UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE CULTURA E ARTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO

GUILHERME PEDROSA CARVALHO DE ARAÚJO

EU SOU TU, TU ÉS EU: 4 E O GÊNERO EM JOGO

FORTALEZA 2021

GUILHERME PEDROSA CARVALHO DE ARAÚJO

EU SOU TU, TU ÉS EU: E O GÊNERO EM JOGO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará, como requisito à obtenção do título de Mestre em Comunicação. Área de concentração: Comunicação Social.

Orientadora: Profa. Dra. Inês Sílvia Vitorino Sampaio

FORTALEZA 2021

GUILHERME PEDROSA CARVALHO DE ARAÚJO

EU SOU TU, TU ÉS EU: PERSONA 4 E O GÊNERO EM JOGO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará, como requisito à obtenção do título de Mestre em Comunicação. Área de concentração: Comunicação Social.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

______Profa. Dra. Inês Sílvia Vitorino Sampaio Universidade Federal do Ceará (UFC)

______Profa. Dra. Georgia da Cruz Pereira Universidade Estadual do Ceará (UFC)

______Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas Universidade Federal do Ceará (UFC)

Aos meus pais e à minha irmã, sempre.

AGRADECIMENTOS

Escrever uma dissertação em um momento tão turbulento é um processo desafiador. São tantas as companhias ao longo do processo, que os agradecimentos acabam se tornando, também, um texto de difícil escrita, talvez por medo de esquecer alguém importante ou não conseguir expressar tamanha gratidão pelas pessoas que fizeram parte dessa jornada.

Primeiro, gostaria de agradecer à minha família. Romildo e Cláudia, meus pais, e Tamyres, minha irmã. Obrigado por acreditarem no meu trabalho, obrigado pela escuta, todas as vezes que eu precisei debater, ou só colocar pra fora, o que estava passando pela minha cabeça no momento de escrita. Obrigado por todo o estímulo e por toda a confiança depositada em mim. Acho que eu nunca conseguirei expressar o quão grato eu sou por ter uma família que me apoia e acredita em mim, incondicionalmente.

À minha orientadora, Inês Vitorino. Obrigado pelo cuidado, pela atenção, pela dedicação, por ser uma pessoa fundamental nessa trajetória. Você me ensinou muito sobre responsabilidade, paciência, escuta e, sobretudo, humildade. Obrigado, de verdade.

À minha mãe acadêmica, Georgia Cruz. Posso afirmar, com toda certeza, que se hoje eu estou escrevendo este texto de agradecimento, foi por sua causa. Obrigado por incentivar a seguir os meus sonhos e por ter visto, e acreditado, no meu potencial.

Aos meus amigos, cada um à sua maneira. Isa Sinara e Mateus Pinheiro, obrigado pelo apoio, pelo incentivo, por estarem ao meu lado durante o processo. Gabriel Amarante, obrigado por ter me acompanhado, mesmo longe, desde a seleção até o momento em que eu concluí esse texto. À minha turma incrível de mestrado. Especialmente Mariana Lage e Marina Solon, vocês são uma enorme inspiração para mim, não só como pesquisadoras, mas como pessoas.

A Deus, Deusa, Universo, ou como queiram chamar.

Eu parei de buscar por aceitação quando eu realmente me encontrei e me entendi, e eu percebi que a minha vida não tem de ser aceita por outra pessoa. Veja, nós olhamos para essas coisas como aceitação e tolerância, e não percebemos o quão degradantes elas são. Você já está se colocando em um pedestal acima de outro ser humano, e nós deveríamos ser iguais. Logo, eu não preciso que você me aceite. Eu posso querer que você me entenda. Mas, para ter a sua aceitação, isso significa que eu acredito que você é maior que eu. Ou eu acredito que você tem algum tipo de privilégio ou autoridade sobre a minha vida, e… de jeito nenhum.1

(Dominique Jackson)

1 Tradução livre do autor. Trecho original: “I stopped looking for acceptance when I actually found myself and understood myself, and I realized that my life is not for someone else to accept. See, we look at these things like acceptance and tolerance , and we don’t realize how degrading it is. You’re already putting yourself on a pedestal above another human being, and we are supposed to be equal. So, therefore, I don’t need you to accept me. I may want you to understand me. But, as far as you accepting me, that just means that I believe that you are greater than I am. Or I believe that you have some kind of privilege or authority over my life, and… no way.”

RESUMO

Na presente dissertação, buscamos entender como são construídas a identidade de gênero e a orientação sexual dos personagens de Persona 4, a partir dos recursos estéticos, narrativos e mecânicos de um jogo digital. Para tanto, foram levados em consideração o desenvolvimento dos personagens, o ambiente das missões de jogo, os aspectos visuais e a parte de combate e estratégia da obra em questão. A problematização do conceito de jogo teve como base autores como Huizinga (2003), Caillois (2001), McLuhan (2007) e Brougère (2003), e a abordagem de sua forma digital orientou-se pelas contribuições de Schell (2008), Crawford (1982), Adams (2010) e Isbister (2006), entre outras. Para a compreensão dos conceitos concernentes aos estudos de gênero, nos baseamos nas proposições de autores como Butler (2003), Louro (2000), Miskolci (2012), Federici (2018) e Wolf (2019), aliadas ao trato do conceito de personagens, tendo como referência Seger (1990), Cândido et al. (1997), Brait (1985) e Mungioli (2014), entre outras. Pautado em uma abordagem qualitativa, concentrando os esforços em cinco personagens do jogo: Chie, Yukiko, Kanji, Rise e Naoto. Optamos pelo método trifásico de estudo de jogos proposto por Petry et al. (2013). Para a delimitação do corpus, trabalhamos com o conceito de quests como estruturas episódicas de jogos digitais, baseado nos trabalhos de Howard (2008) e Oliveira e Massarolo (2010). Com a análise, observamos que, apesar de utilizar amplamente os recursos dos jogos digitais, Persona 4 ainda recorre a concepções e tropos preconceituosos para a formulação de seus personagens. Se, por um lado, o amplo uso de elementos estéticos, narrativos e mecânicos permite um aprofundamento sobre as questões de gênero relacionadas aos personagens, por outro, o embasamento impreciso de algumas dessas narrativas fortalece discursos excludentes e opressivos já vigentes.

Palavras-chave: Jogos Digitais. Gênero. Personagem. Persona 4.

ABSTRACT

This dissertation aims to understand how the gender identity and sexual orientation of the characters in Persona 4 are constructed, based on the aesthetic, narrative and mechanical resources of a digital game. Therefore, were taken into account the development of the characters, the atmosphere of the game’s missions, the visual aspects and part of combat and strategy from the work in question. The main questioning on the concept of game was based on authors such as Huizinga (2003), Caillois (2001), McLuhan (2007) and Brougère (2003), and the approach of its digital form was guided by the contributions of Schell (2008), Crawford (1982), Adams (2010) and Isbister (2006), among others. To understand the concepts related to the gender studies, the propositions were based on authors such as Butler (2003), Louro (2000), Miskolci (2012), Federici (2018) and Wolf (2019), allied to the concept of characters taking as reference Seger (1990), Candido et al. (1997), Brait (1985) and Mungioli (2014), among others. Based on a qualitative approach, focusing this work’s efforts on five characters: Chie, Yukiko, Kanji, Rise and Naoto; we opted for the three-phase method of studying games proposed by Petry et al. (2013). As for the delimitation of the corpus, we worked with the concept of quests as episodic structures of digital games, based on the work of Howard (2008) and Oliveira and Massarolo (2010). With the analysis, we observed that despite using the resources of digital games widely, Persona 4 still uses outdated conceptions and metaphors for the formulation of its characters. If, on the one hand, the widespread use of aesthetic, narrative and mechanical elements allows a deeper understanding of gender issues related to the characters, on the other hand, the imprecise basis of some of these narratives strengthens the excluding and oppressive discourses in our society.

Keywords: Videogames. Gender Studies. Character. Persona 4

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Capas Dos Jogos Mais Vendidos De 2019 ...... 18 Figura 2 - Laura, Sean E Blanka, Respectivamente ...... 19 Figura 3 – Chie, Yukiko, Kanji, Rise E Naoto (Respectivamente) ...... 25 Figura 4 – Yu, Yosuke, Chie, Yukiko, Kanji, Rise, Naoto e Teddie (Respectivamente) ...... 31 Figura 5 – Close em Yukiko ...... 83 Figura 6 – Close em Yukiko ...... 83 Figura 7 – Mileena e Scorpion, respectivamente ...... 123 Figura 8 – Jubei e Taokaka, respectivamente ...... 124 Figura 9 – Juliet Starling ...... 124 Figura 10 – Zhang He, Amane Nishiki e Kuja, respectivamente ...... 127 Figura 11 - Entrada do Castelo de Yukiko ...... 129 Figura 12 - Parte Interna do Castelo de Yukiko ...... 129 Figura 13 - A Progressão dos andares do Castelo de Yukiko ...... 129 Figura 14 – Entrada da Sauna Fumegante ...... 130 Figura 15 - Parte Interna da Sauna Fumegante...... 130 Figura 16 - Entrada do Marukyu Striptease ...... 132 Figura 17 - Parte Interna do Marukyu Striptease ...... 132 Figura 18 – Entrada do Laboratório Secreto ...... 133 Figura 19 - Parte interna do Laboratório Secreto ...... 133 Figura 20 - Trance Twin ...... 135 Figura 21 - Positive King ...... 135 Figura 22 - Secret Bambino ...... 135 Figura 23 - Avenger Knight ...... 135 Figura 24 - Charming Prince ...... 135 Figura 25 – Monopolizing Cupid ...... 136 Figura 26 – Daring Gigas ...... 136 Figura 27 – Visual De Nice E Tough Guy ...... 137 Figura 28 – A Aparição de Nice e Tough Guy com a sombra de Kanji atrás ...... 137 Figura 29 – Soul Dancer ...... 138 Figura 30 – Amorous Snake ...... 138 Figura 31 – Miss Gene ...... 138

Figura 32 – Dominating Machine ...... 139 Figura 33 – Dominating Machine ...... 139 Figura 34 – Fail Gene ...... 139 Figura 35 – Chie ...... 140 Figura 36 – Yukiko ...... 140 Figura 37 – A verdadeira forma da sombra de Chie ...... 142 Figura 38 –A persona de Chie ...... 142 Figura 39 – Aparição de Yukiko no Canal Da Meia-Noite ...... 143 Figura 40 –O Encontro de Yukiko e sua sombra ...... 143 Figura 41 – A verdadeira forma da sombra de Yukiko ...... 145 Figura 42 –A persona de Yukiko ...... 145 Figura 43 – Visual de ...... 147 Figura 44 – Visual de Kanji Tatsumi...... 147 Figura 45 – A sombra de Kanji enrubescida ...... 148 Figura 46 – A sombra de Kanji furiosa ...... 148 Figura 47 – A verdadeira forma da sombra de Kanji ...... 149 Figura 48 –A persona de Kanji ...... 149 Figura 49 – Rise no comercial do jogo ...... 150 Figura 50 – Rise no cartaz promocional do jogo ...... 150 Figura 51 – Visual de Rise ao se mudar para Inaba ...... 151 Figura 52 – Visual de Rise ao se mudar para Inaba ...... 151 Figura 53 – Visual de Rise ao se mudar para Inaba ...... 151 Figura 54 – Forma da Sombra de Rise Kujikawa ...... 153 Figura 55 – Forma da Sombra de Rise Kujikawa ...... 153 Figura 56 – Rise aceitando a sua persona ...... 153 Figura 57 – Rise utilizando seus poderes ...... 153 Figura 58 – Visual De Naoto ...... 154 Figura 59 – Visual De Naoto ...... 154 Figura 60 – Visual De Naoto ...... 154 Figura 61 – A verdadeira forma da sombra de Naoto ...... 155 Figura 62 – A persona de Naoto ...... 155

SUMÁRIO

1 A INTRODUÇÃO: BEM-VINDOS À SALA DE VELUDO ...... 13 1.1 Leia antes de jogar ...... 13 1.2 Aperte start: início do percurso e problematização ...... 15 1.3 Esta é a sua missão: objetivos, apontamentos metodológicos e estrutura ...... 23 2 A SUA JORNADA COMEÇA AQUI: PERSONA 4 E OS JOGOS DIGITAIS .. 29 2.1 Persona 4: Enredo, personagens, repercussão e polêmicas ...... 29 2.2 O que é um jogo? E o que é um jogo digital? ...... 34 2.3 Por uma divisão e categorização dos jogos digitais ...... 41 2.4 Gameplay, quests e episódios de jogo ...... 50 3 O CANAL DA MEIA-NOITE: ENTRE PERSONAGENS E GÊNERO ...... 55 3.1 Uma discussão sobre gênero e personagens de jogos digitais ...... 55 3.2 Personagens de videogames, profundidade e desenvolvimento ...... 67 3.3 Questões de gênero no desenvolvimento de um personagem ...... 72 3.4 O desenvolvimento dos personagens de Persona 4 ...... 78 3.4.1 Um conto de duas princesas: e Yukiko Amagi ...... 79 3.4.2 Um ode à masculinidade: Kanji Tatsumi ...... 91 3.4.3 Um alguém que eu não reconheço: Rise Kujikawa ...... 99 3.4.4 Um experimento drástico: ...... 106 4 EU SOU TU, TU ÉS EU: O GÊNERO COMO ATRIBUTO DE JOGO ...... 115 4.1 Atributos cosméticos versus atributos funcionais e as suas implicações...... 115 4.2 Dimensão estética: atributos cosméticos e gênero em Persona 4 ...... 127 4.2.1 O ambiente da quest: cenários e inimigos ...... 128 4.2.2 Aspectos visuais dos personagens: expressão de gênero, sombra e persona ...... 139 4.3 Dimensão mecânica: atributos funcionais e gênero em Persona 4 ...... 156 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: RECOMPENSAS DA QUEST ...... 165 REFERÊNCIAS ...... 172

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1. A INTRODUÇÃO: BEM-VINDOS À SALA DE VELUDO

1.1 Leia antes de jogar

Veja, esse mundo existe entre a mente e a matéria, ele separa os sonhos da realidade. De maneira geral, somente aqueles que fizeram um contrato podem visitar esta sala e, talvez, num futuro bem próximo, tal destino estará lhe esperando também2 (PERSONA 4, 2008, tradução livre). Em Persona 4, a Sala de Veludo é o cenário inicial do jogo, onde o jogador é introduzido ao universo, aos personagens e ao seu objetivo. Tendo isso em vista, não pude pensar em outro título para o primeiro capítulo, visto que neste capítulo discorro sobre como surge esta dissertação, e como ela se estrutura.

Olhando para trás, sempre estive em contato com jogos digitais, o que fez com que se tornassem, de forma muito natural, o meu objeto de estudo. Tive o meu primeiro console (o aparelho de videogames) aos 6 anos, no começo do ano 2000, e desde então esse tipo de atividade tem estado presente na minha vida, numa relação que já dura um pouco mais de 20 anos. Minhas primeiras memórias com os jogos envolvem o meu Super Nintendo e alguns cartuchos de jogos, como Super Mario World, Donkey Kong Country, Mortal Kombat e Power Rangers. Antes mesmo de entender a implicação disso, lembro de sempre preferir jogar com personagens femininas, quando era possível e, embora essa preferência tenha surgido desde muito cedo, a compreensão dos motivos que explicavam (e explicam) esse critério de escolha só se tornaram claros muitos anos depois3.

Em 2009, no ensino médio, conheci Persona 4 através de amigos que também tinham o mesmo console que eu. Nunca tinha ouvido falar na franquia, mas decidi pegar emprestado por terem me dado boas avaliações do jogo. Começando de maneira misteriosa, de maneira a se assemelhar a uma série policial, Persona 4 vai, aos poucos, se aprofundando nos conflitos internos de cada um dos personagens, que até então me eram alheios, como sexualidade e o que eu viria a entender depois como identidade o de gênero, o que me fez realmente me envolver com a história. Depois de concluir o jogo, passei muito tempo sem entrar em contato novamente com Persona 4. Na graduação, meu interesse por pesquisar jogos digitais foi surgindo e uma das questões que me chamou a atenção desde o começo foi o porquê de as

2 Trecho original: “You see, this realm exists between mind and matter, it separates dreams from reality. Generally speaking, only those who have forged a contract are allowed to visit this room, and perhaps in the very near future, such a fate will be awaiting you as well.” 3 No texto, quando estiver tratando de questões individuais, sobre a minha vivência, utilizarei a primeira pessoa do singular. Nas demais discussões do trabalho, utilizarei a primeira pessoa do plural.

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mulheres nos jogos de luta estarem representadas de maneira sexualizada? E esse foi o ponto de partida para que eu começasse a me interessar pelos estudos de gênero.

Ingressando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da UFC, decidi manter a relação entre gênero e jogos digitais como objeto de estudo. Diferente da graduação, partindo do estudo de diversos jogos, para a pós-graduação resolvi me concentrar em uma obra só, e observá-la com maior profundidade, fazendo-me relembrar a experiência que eu tive com o jogo Persona 4. Buscando verificar como os jogos digitais estavam sendo estudados nos Programas de Pós-Graduação, na área da Comunicação, e nas grandes áreas das Ciências Humanas e Ciências Sociais Aplicadas, fiz um levantamento dos trabalhos publicados entre 2010 e 2019 no Catálogo de Teses e Dissertações (CTD) da CAPES. Utilizando “jogos digitais” como termo de pesquisa principal, e as suas combinações com os termos “personagem” e “gênero”, foram catalogados os primeiros 20 resultados de cada pesquisa, totalizando 124 trabalhos, dos quais 67 tratavam especificamente sobre jogos digitais. A maior parte das teses e dissertações encontradas estudam a relação entre os jogos digitais e o aprendizado, seja pela utilização destes em sala de aula ou pela experiência dos alunos na criação do seu próprio jogo.

Foram encontrados poucos trabalhos que abordavam a relação entre gênero e jogos digitais e, em alguns destes, essa relação se revelava a partir de dados estatísticos referentes aos jogadores, mas não se aprofundaram sobre as implicações referentes a esses números. Dos trabalhos que realmente abordam a relação apontada acima, dois se destacam: (a) o estudo da produção de jogos digitais em um cenário queer4; (b) o estudo das personagens femininas nos jogos digitais5. Por mais que não tenha sido encontrado nenhum trabalho no Catálogo de Teses e Dissertações que estudasse o jogo Persona 4, creio que o estudo é relevante para o Programa de Pós-Graduação em Comunicação pois os jogos digitais, apesar de recentes se comparados a outras produções como o cinema e a televisão, já se configuram como uma das indústrias mais lucrativas do entretenimento.

A proposta da Linha 2 - Mídias e Práticas Socioculturais - do PPGCOM da UFC é pesquisar a relação entre as práticas socioculturais e a mídia nas sociedades contemporâneas; para tal, é preciso entender o que são mídias e como os jogos digitais se encaixam na

4 “Jogos vivos para pessoas vivas: Composições Queer-contrapúblicas nas culturas de jogo digital” de Lucas Aguiar Goulart (2017). Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS 5 “GamerGirls: As mulheres nos jogos digitais sob a visão feminina” de Livia Lenz Fonseca (2013). Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Comunicação da UNISINOS

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categoria. De acordo com o Dictionary of Media and Communications (DANESI, 2009), mídia é todo e qualquer meio utilizado para transmitir informação. Como exemplo, o autor afirma que antes da palavra escrita, a mídia utilizada era a oral e a pictográfica. Com o desenvolvimento humano, as técnicas foram aprimoradas e novos meios criados. Levis (1997), por sua vez, lembra que os videogames, como dispositivo eletrônico e elemento da indústria do entretenimento, estão mais relacionados com a produção e difusão de obras audiovisuais do que com o campo do ócio, podendo ser considerado, assim, um novo meio, uma nova mídia, audiovisual. Para Dovey e Kennedy (2006), ainda, por possuírem uma linguagem própria e uma velocidade de transformação superior a meios mais estabelecidos, como cinema e televisão, os jogos demandam uma maneira própria de serem entendidos como uma mídia, por mais que possa ser observados com base em perspectivas de outras mídias tradicionais, como as textuais ou cinematográficas, entre outras.

Estudar como o jogo digital constrói, por meio dos seus recursos, a identidade de gênero e orientação sexual dos personagens, permite estudar os jogos não somente a partir dos seus potenciais, como também de que forma os seus elementos podem ser utilizados não só para a construção das questões que serão estudadas nesta dissertação, como também a sua utilização para as diversos finalidades que um videogame pode ter em sua amplitude. Além disso, como produção audiovisual, os jogos podem ser estudados não só pela sua especificidade técnica, mas também pelo seu conteúdo, estética e relação com o mercado e com os jogadores.

1.2 Aperte start: início do percurso e problematização

De pontos brancos que se movem em uma tela preta até grandes produções audiovisuais, os jogos digitais evoluíram muito desde o seu surgimento e popularização, dispondo da complexidade e variedade de recursos de outras produções como televisão ou cinema (CERDERA E LIMA, 2016). Se comparados com outras produções, os jogos são obras audiovisuais recentes, surgidas em 1961 e popularizadas a partir da década de 80. Também conhecidos como videogames, os jogos digitais constituem um ramo do entretenimento igualmente ou mais lucrativo do que o cinema ou a música. No Reino Unido, os jogos possuem uma receita que corresponde a mais da metade da indústria do entretenimento (R$ 18,5 bilhões de um total de R$35,7 bilhões)6; mundialmente, os

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videogames bateram recorde e faturaram mais de US$134 bilhões, com a América do Norte concentrando quase um terço desse faturamento, com o total de US$ 43,4 bilhões (32,38% do total)7.

Antes considerados como produções voltadas para o mero entretenimento, com pouco ou nenhum valor artístico, cultural ou social, os jogos hoje são reconhecidos como uma produção audiovisual cujos enredos, personagens, figurinos e ambientações contém em si, além das suas especificidades como obra audiovisual, um conjunto de valores sociais presentes nesse contexto (WILLIAMS et al, 2009). Descritos como paraísos artificiais (McLUHAN, 2007), regidos por um sistema computacional (SCHUYTEMA, 2008), os jogos digitais propõem um universo que permite que o jogador possa vivenciar, virtualmente, experiências que não seriam possíveis na sua realidade, tornando viável a possibilidade de transitar entre diversas comunidades e realidades durante a sua experiência de jogo (LEONARD, 2013). Para entender a estruturação de um jogo digital, Schell (2008) propõe uma divisão em quatro níveis: estético (sensorial, o visual, os sons, os efeitos do jogo, etc), narrativo (a sucessão de estados, a história do jogo, entre outros), mecânico (regras do jogo, as ações e as limitações) e tecnológico (as máquinas, os dispositivos, as plataformas); ressalto que esses níveis não são mutuamente excludentes, sendo possível um mesmo elemento participar de mais de uma dimensão proposta nessa estrutura tetrádica.

Como uma plataforma que desempenha ampla função social (CERDERA E LIMA, 2016), os jogos são potencialmente capazes de provocar uma mudança de mentalidade acerca das realidades retratadas em suas narrativas. Assim, podem contribuir tanto para a dissolução de estereótipos quanto para a naturalização e perpetuação de preconceitos comumente difundidos em jogos digitais e outras obras audiovisuais. Um dos problemas que pode ser abordado, seguindo essa linha de raciocínio, é a construção da identidade de gênero e orientação sexual dos personagens de jogos digitais. O gênero aqui surge como uma categoria que vai muito além da diferenciação dos corpos como determinante de uma identidade masculina ou feminina, revelando uma construção processual que se realiza no contexto em que um indivíduo se insere e está a ele relacionado, não encontrando sua finalidade na biologia (BUTLER, 2003). A autora afirma que o corpo não é um receptáculo passivo, que não são as suas características que determinam o gênero, mas a identificação do indivíduo com uma ou outra identidade de gênero. O corpo, para Butler (2003), produz, reproduz e

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atualiza essas identidades, esses modos de ser de um gênero. A identidade de gênero, para Louro (2000) é a identificação que um indivíduo tem com um determinado gênero. A autora reforça que essas identidades estão sempre sendo modificadas, que não existe uma identidade pronta e perfeitamente acabada para o indivíduo assumir, mas que elas estão em constante processo de construção.

Já a orientação sexual, também chamada de identidade sexual pela autora, diz respeito às relações afetivas e sexuais com os outros indivíduos, e que está intimamente ligada à identidade de gênero, mas não é determinado por esta. Butler (2003) afirma que muito embora haja a crença de que a identificação com um gênero (por exemplo, o feminino) pressuponha uma heterossexualidade, a orientação sexual de um indivíduo não possui nenhuma relação de obrigatoriedade com a sua identidade de gênero.

A discussão sobre questões referentes a gênero e jogos digitais pode seguir por diversos vieses. Podemos falar sobre hipersexualização das personagens femininas, sobre a maioria dos personagens principais ser do gênero masculino, sobre as relações homoafetivas nos jogos digitais, entre muitos outros caminhos.

De maneira inicial, se olharmos as capas dos jogos mais vendidos de 2019 (Figura 1) já podemos observar uma tendência que aponta para, pelo menos, uma sub-representação feminina nos jogos digitais.De acordo com o site Venture Beat8, os 10 jogos mais vendidos no ano de 2019, sem especificar a plataforma, foram, na seguinte ordem: Call of Duty: Modern Warfare 2019, NBA 2K20, Madden NFL 20, Borderlands 3, Mortal Kombat 11, Star Wars Jedi: Fallen Order, Super Smash Bros. Ultimate, Kingdom Hearts III, Tom Clancy’s Division 2 e Mario Kart 8.

Das 10 capas de jogos, podemos observar que 8 delas (com exceção de Kingdom Hearts III e Tom Clancy’s Division 2) apresentam como elemento central uma figura masculina. Enquanto Kingdom Hearts III apresenta diversos personagens na capa, sem colocar um personagem só em destaque, Tom Clancy’s Division 2 apresenta três personagens, de costas, sendo o personagem central uma mulher, posta em destaque, se comparada com os demais. Mario Kart 8, por fazer parte da franquia Mario Bros. (que tem como protagonista o encanador italiano Mario), apresenta um motivo óbvio para apresentar um personagem masculino como elemento central da capa. Entretanto, jogos como Mortal Kombat 11 e Super

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Smash Bros. Ultimate¸ que não possuem um protagonista específico e sim um elenco de personagens dentre os quais o jogador pode escolher, ainda assim valorizam personagens masculinos como elemento principal da composição de suas capas. Kingdom Hearts III, apesar de ter como protagonista o personagem Sora, não o coloca como a figura mais importante da capa, dividindo a composição com outros personagens da narrativa e tendo o mesmo grau de importância dos demais.

Figura 1 - Capas dos jogos mais vendidos de 2019

Fonte: compilado do autor

Já sobre a proporção entre personagens masculinos e femininos, temos como exemplo dessa lista Mortal Kombat 119. Dos 31 personagens presentes no jogo, apenas 10 personagens (cerca de ⅓ do total) são mulheres. Em Mario Kart 8, dos 41 personagens disponíveis, só 13 (aproximadamente 31%) são do gênero feminino. O cenário se repete em Super Smash Bros. Ultimate10: reunindo personagens de diversos jogos majoritariamente da Nintendo, dos 75 personagens totais do jogo, 11 (aproximadamente 14,67%) são do gênero feminino e 5 (aproximadamente 6,67%) possibilitam que o jogador escolha entre a versão homem ou mulher do personagem11. Trazemos essas observações para que possamos perceber que um estudo de 15 anos atrás (DILL et al, 2005) ainda apresenta considerações que se aplicam à produção de jogos atualmente. Os pesquisadores afirmam que, dos jogos mais vendidos no ano 2000, 70% dos seus protagonistas eram do gênero masculino, e esse cenário parece não ter se modificado de maneira significativa. A própria franquia Persona possui um elenco de protagonistas majoritariamente masculino. A exemplo de Persona 4, por mais que o jogador

9 Site oficial de Mortal Kombat 11 acesso em 24 fev. 2021 10 Site oficial de Super Smash Bros. Ultimate acesso em 24 fev. 2021 11 Número de personagens presentes até o dia 25 de março de 2020.

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possa formar um grupo com diversos personagens, o protagonista (cujo nome é dado pelo jogador) sempre é fixo nesse conjunto de personagens jogáveis, e ações e personalidade são determinadas por quem joga.

Além da baixa quantidade de personagens do gênero feminino, também ressalto que, principalmente em jogos de luta, essas personagens tendem a ter os seus atributos físicos postos em primeiro plano, em detrimento da sua personalidade ou narrativa. Khun (1994) aponta para uma hipersexualização das personagens femininas, processo de evidenciar e valorizar os aspectos sexuais (principalmente os atributos físicos) das personagens em detrimento de suas outras características, transformando a figura feminina no que a autora chama de boneca desumanizada, colocando-a primariamente para o deleite visual do jogador e deixando a sua verdadeira função no jogo em segundo plano. Alguns jogos como Soul Calibur, BlazBlue e Dead or Alive, franquias que já contam com diversos títulos, revelam essa tendência à hipersexualização das personagens femininas, o que segundo Fonseca (2013) mostra a visão que os produtores têm acerca do que é uma mulher. Em entrevista ao Uol Jogos, o produtor de Street Fighter12, Yoshinori Ono, revelou que ao criar a personagem brasileira Laura, ele visitou o Rio de Janeiro, para conhecer melhor a cultura do país e a aparência das mulheres. Entretanto, Ono afirma que, na hora de definir o visual da personagem, resolveu criar uma versão da mulher brasileira que inclui as suas preferências e a maneira que os japoneses a imaginam13.

O resultado é uma personagem de corpo curvilíneo, com seios avantajados, decotes e transparências na roupa, e poses e falas com conotação sexual. Tratamento esse que é completamente diferente dos demais personagens brasileiros, Sean Matsuda, irmão de laura, e Blanka, o monstro com poderes elétricos que mora na Amazônia (Figura 2).

Figura 2 - Laura, Sean e Blanka, respectivamente

12 Site oficial de Street Fighter V acesso em 24 fev. 2021 13 Disponível em acesso em 03 ago. 2020

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Fonte: streetfighter.fandom.com

Outras personagens, além da sexualização evidente, passam por um processo preconceituoso de construção de sua identidade de gênero. É o caso da Poison, das franquias Final Fight e Street Fighter. A personagem é uma das vilãs da franquia Final Fight (1989) e, como o ato de lutar contra uma mulher foi considerado controverso para a época, os produtores, de maneira simplista, afirmaram que a personagem é transgênero (implicando que, na verdade, ela seria um homem) acreditando que assim seria justificável a violência contra ela.

Outro problema que pode ser encontrado nos jogos é a não possibilidade do engajamento em relações homoafetivas, possibilitando que apenas pares heterossexuais possam ser formados ao longo do jogo. A franquia The Witcher14, que conta a história de um bruxo viajante que trabalha solucionando casos paranormais em cidades e vilarejos, possibilita que o jogador inicie diversas interações românticas e sexuais entre Geralt, o personagem principal, e diversas personagens (mulheres), como Triss, Keira e Yennefer. Além disso, em algumas cidades, existe a possibilidade de o jogador contratar os serviços de mulheres em um bordel. Por mais que nesse local também tenha trabalhadores homens, não é possível engajar em nenhuma interação com estes, apenas com as mulheres, não só trazendo como única opção o engajamento de relações heterossexuais, como colocando diversas figuras femininas à disposição do protagonista. Persona 4 também não se mostra diferente de The Witcher. Por mais que não possa engajar em interações sexuais com as personagens, o protagonista do 4º jogo da franquia Persona pode desenvolver relacionamentos afetivos com quase todas as personagens femininas do jogo. Em contrapartida, nenhum relacionamento homoafetivo pode ser iniciado pelo protagonista, restringindo o desenvolvimento da relação entre ele e qualquer outro personagem masculino ao estabelecimento de uma amizade verdadeira.

14 Site oficial de The Witcher 3 acesso em 24 fev. 2021

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Outros jogos começaram a partir dessa perspectiva, mas modificaram com o tempo para se tornar mais inclusivos, como Final Fantasy XIV15. Ao introduzir a função de casamento entre dois personagens, a união só era possível caso o casal fosse heterossexual. Somente depois de lançada a nova função, os desenvolvedores resolveram remover essa limitação, possibilitando uma união homoafetiva entre dois personagens. Entretanto, outros jogos, desde o início, permitem que os seus personagens desenvolvam relações afetivas e/ou sexuais, independentes do seu gênero, como é o caso de The Sims16. Tendo sido lançado no ano 2000, e já estando no quarto título da franquia, o jogo sempre possibilitou que quaisquer dois personagens, chamados de sims, iniciem uma relação afetiva e/ou sexual, contanto que ambos possuam pontos suficientes para iniciar essas interações.

Quando pensamos sobre os jogos que possibilitam ao jogador criar o seu próprio personagem, uma das primeiras opções a aparecer é a escolha do gênero (em alguns jogos chamado de sexo) do personagem, e apresentando como opções apenas masculino e feminino. Normalmente, essas escolhas vêm atreladas à formatação do corpo e uma série de implicações sobre características estéticas do personagem, como cabelos, maquiagem, roupas etc. O próprio The Sims, até o ano de 2016, limitava uma série de escolhas e ações possíveis no jogo baseado no gênero/sexo dos personagens. Ao escolher, por exemplo, o gênero masculino para um personagem, além da formatação física, só aparecem opções de cabelos, roupas e demais elementos de customização marcados como masculinos. Somente em junho de 2016 a franquia resolveu expandir as opções para a criação dos sims, possibilitando que quaisquer itens pudessem de customização pudessem ser escolhidos independente do gênero e da formatação do corpo. Outros jogos separam a formatação do corpo da identidade de gênero, como Animal Crossing: New Horizons, cujo corpo dos personagens não é diferenciado, deixando a customização, penteados e roupas a cargo dos jogadores, investindo também em uma linguagem neutra de gênero, para que não haja nenhuma inferência ou marcação do gênero do personagem criado pelo jogador.

Para proporcionar maior liberdade de escolha e inclusão dos jogadores, os desenvolvedores utilizam os recursos dos jogos digitais, como os aspectos visuais, as regras do jogo e o código, para expandir as possibilidades de criação e/ou customização, e as ações desempenhadas pelos personagens nos jogos digitais. É com base nessas considerações que definimos como pergunta central que norteia essa dissertação: como ocorre a construção da

15 Site oficial de Final Fantasy XIV acesso em 24 fev. 2021 16 Site oficial da franquia The Sims acesso em 24 fev. 2021

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identidade de gênero e da orientação sexual dos personagens do jogo digital Persona 4 por meio dos recursos estéticos, mecânicos e narrativos?

Para responder à pergunta, será analisado o jogo Persona 4. Lançado em 2008 pela desenvolvedora japonesa , o jogo mostra como os seus personagens lidam com relações amorosas e familiares, exposição, sexualidade e gênero; mostrando isso a partir de quests (missões, em tradução livre), que funcionam como episódios de uma narrativa seriada que se desenvolve dentro do jogo (OLIVEIRA E MASSAROLO, 2010).

Persona 4 conta a história de um personagem (cujo nome é dado pelo jogador) que se muda para uma cidade do interior. Logo após a sua mudança, uma série de desaparecimentos misteriosos começa a acontecer, sempre culminando no assassinato da vítima. Descobrindo ter um poder capaz de impedir que as pessoas desaparecidas sejam assassinadas, o protagonista, juntamente com os seus aliados, se envolve em missões para resgatar essas pessoas que desapareceram. Totalizando 9 missões principais para a narrativa do jogo, 4 delas envolvem pelo menos um dos personagens principais do jogo enfrentando desafios relacionados à orientação sexual e identidade de gênero, sendo essas: O Castelo de Yukiko (tendo como personagens centrais Chie e Yukiko), A Sauna Fumegante (protagonizada por Kanji Tatsumi), O Clube de Striptease Marukyu (cuja protagonista é Rise Kujikawa) e O Laboratório Secreto (de Naoto Shirogane, com implicações em Kanji Tatsumi). Essas missões consistem em entrar em um cenário (que dá nome à quest), específico para cada personagem, conseguir atravessá-lo e derrotar o personagem que está desaparecido em uma versão deturpada, chamada de sombra, que é a corporificação dos desafios que os personagens supracitados enfrentam.

Yukiko e Chie são amigas que enfrentam conflitos relacionados à feminilidade, ao despertar do interesse masculino e à independência feminina; Kanji é um valentão que questiona a sua sexualidade e, ao fazê-lo, se depara com uma masculinidade exacerbada para esconder a sua insegurança; Rise é uma garota, que vive uma vida dupla. Oscila entre a Rise celebridade, sempre preocupada com a sua aparência, e a Rise por trás das câmeras, que tenta, ao máximo, se afastar da exposição; por último, o jovem Naoto questiona a categorização de atividades de acordo com a identidade de gênero e, por consequência, a sua própria identidade, vendo o exercício da sua profissão ser prejudicado.

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As mecânicas, o visual e a narrativa, três dos quatro níveis de um jogo digital propostos por Schell (2008), de cada uma dessas missões do jogo se adequa de forma a mostrar a maneira que o personagem enxerga e lida com questões referentes à identidade de gênero e orientação sexual. Já a dimensão tecnológica do jogo, que permanece constante para a maioria dos títulos, não se altera com as mudanças das missões ou das narrativas dos personagens que compõem o recorte para o estudo.

1.3 Esta é a sua missão: objetivos, apontamentos metodológicos e estrutura

De forma a responder a pergunta que norteia esta pesquisa, temos como objetivo geral da pesquisa: compreender de que forma a identidade de gênero e a orientação sexual dos personagens do jogo digital Persona 4 são construídas tendo por base elementos estéticos, narrativos e mecânicos.

Para atingir o objetivo geral, definimos três objetivos específicos: (a) compreender o enquadramento e a estrutura de Persona 4 como um jogo digital; (b) analisar como as questões referentes à identidade de gênero e à orientação sexual podem integrar o desenvolvimento de um personagem de jogos digitais; (c) distinguir os atributos cosméticos dos atributos funcionais de um jogo digital e as suas implicações na utilização dos recursos estéticos e mecânicos do Persona 4.

Esta dissertação se pauta por uma abordagem qualitativa. Por não se preocupar com a representatividade numérica e sim com o aprofundamento e a compreensão do objeto de estudo (SILVEIRA e CÓRDOVA, 2009), fica clara nossa preferência por uma pesquisa de natureza qualitativa, que visa a interpretação dos fenômenos observáveis na pesquisa.

Para o estudo de jogos, Petry et. al (2013) propõem um modelo trifásico para a melhor compreensão desse tipo de obra audiovisual: (a) estudar o jogo, (b) observar alguém jogar e (c) jogar o jogo. Entretanto, como a pesquisa está centrada nos personagens do jogo, e não na relação deles com o jogador, optamos por concentrar a análise nos itens (a) e (c). O estudo do jogo será constituído tanto em jogar quanto em analisar os materiais oficiais de Persona 4, como artes conceituais, artbooks e manuais, sendo possível observar como o jogo se apresenta, se estrutura e se modifica a cada uma dessas quests centrais para a sua narrativa. Como material de apoio para as análises, também serão utilizadas para consulta as informações presentes na animação feita sobre o jogo, Persona 4: The Animation. Entretanto,

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como se trata de uma análise do jogo Persona 4, em caso de desencontro das informações, serão valorizadas aquelas que constam no jogo.

De forma a definir as dimensões dos jogos digitais, alguns trabalhos propuseram a divisão dessas obras em partes constituintes: Aarseth (2003) propõe a divisão em 3 esferas: jogabilidade, regras e cenário de jogo; Battaiola (2000) que os divide em enredo, motor e interface; Salen e Zimmerman dividem também o jogo digital em três esferas: regras, objetivos e mecânicas. Schell (2008), diferente do proposto pelos autores supracitados, propõe uma divisão em 4 dimensões, chamada de Tétrade Elementar: estética (visual e sonoro), narrativa (sucessão de estados, a história), mecânica (regras e organização do jogo) e tecnologia (tanto os dispositivos quanto o processamento). Essa estrutura proposta por Schell (2008) apresenta também uma divisão considerando a profundidade de interação necessária para a acessar cada um dos níveis, sendo a estética a dimensão mais superficial, de contato imediato, antes mesmo de se jogar o jogo, seguida igualmente por narrativa e mecânica, que demanda que o jogador, de fato, jogue, e por último a tecnologia empregada para o desenvolvimento do jogo, que nem sempre está acessível para quem joga. Embora essa estrutura tetrádica, como o nome sugere, seja composta por quatro elementos, a tecnologia empregada para o desenvolvimento do jogo não será analisada, visto que essa dimensão pouco reflete a construção da identidade de gênero e orientação sexual dos personagens que desejamos analisar em Persona 4.

Neste ponto, é importante ressaltar que a versão escolhida para a análise de Persona 4 é a lançada no ocidente, no idioma inglês. Originalmente em japonês, o jogo teve os seus diálogos traduzidos para o inglês, tendo algumas partes adaptadas para minimizar qualquer sensação de estranhamento por parte do público ocidental, principalmente norte-americano. Ressaltamos também que, nossa análise, se orienta por uma perspectiva ocidental, apoiada em referências de autores ocidentais, que não está imersa efetivamente na cultura e na mitologia japonesas, o que pode, evidentemente, ter algum impacto na nossa leitura, o que reconhecemos de partida.

As quests (usaremos como tradução o termo missões) no jogo funcionam como estruturas episódicas de uma narrativa seriada (OLIVEIRA E MASSAROLO, 2010). Como Persona 4 possui uma narrativa que determina a ordem dos acontecimentos-chave para o jogo, cada uma dessas missões funciona como uma parte específica da história. Entretanto, uma missão de jogo não se caracteriza somente por essa estrutura narrativa. De acordo com

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Howard (2008), a principal característica de uma quest é possuir um objetivo claro a ser atingido pelo jogador.

Para compor as unidades de análise, foram selecionados os personagens que, em suas quests, possuem como fator desencadeador da missão problemas relacionados à orientação sexual ou identidade de gênero, chegando assim a 5 dos 8 personagens personagens principais jogáveis: Chie Satonaka, Yukiko Amagi, Kanji Tatsumi, Rise Kujikawa e Naoto Shirogane (Figura 3).

Figura 3 – Chie, Yukiko, Kanji, Rise e Naoto, respectivamente

Fonte: creativeuncut.com

Isbister (2006) diz que, em uma escala maior, existem dois tipos de personagens: os personagens jogáveis (playable characters) e os personagens não-jogáveis (non-playable characters ou NPCs). Os personagens jogáveis, também chamados de personagens do jogador, são aqueles que o jogador pode controlar as ações; já os personagens não-jogáveis, ou NPCs, são aqueles personagens que, como o nome sugere, agem independente da vontade do jogador, obedecendo rotinas pré-estabelecidas.

As quests envolvem pelo menos um desses personagens, cujo eixo principal está relacionado às questões referentes ao gênero. Chie e Yukiko estão agrupadas na mesma quest, pois a missão de Chie está contida na de Yukiko, ambas relacionadas à feminilidade e envolvendo um possível interesse romântico entre as duas. Kanji Tatsumi é temido na cidade por sua fama de valentão. Filho da dona de loja de tecidos da cidade, Kanji esconde, por trás da fachada agressiva, uma confusão em relação aos sentimentos ao descobrir que um garoto está interessado nele. Rise é uma celebridade internacional que resolve voltar para Inaba com a intenção de dar uma pausa em sua carreira, vivendo uma vida longe dos holofotes e da pressão para estar sempre bonita e disposta a agradar o seu público. Por último, Naoto é um jovem detetive que esconde ser uma pessoa transgênero (que não se identifica com o gênero

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que lhe foi designado ao nascer), por acreditar que isso influencia negativamente a sua reputação na carreira escolhida.

Para proceder com a análise, listamos 4 grandes categorias analíticas: (a) desenvolvimento do personagem; (b) o ambiente da quest; (c) aspectos visuais dos personagens; e (d) combate e estratégias. Cada uma dessas categorias possui subdivisões. Na categoria (a), desenvolvimento do personagem estão contidos os seguintes elementos: relacionamentos e interesses amorosos, o tratamento recebido pelos outros personagens, personalidade, motivação inicial da quest, mudanças ao fim da quest, carta de tarô associada ao personagem e os diálogos da quest. Na categoria (b), ambiente da quest, serão observados o cenário onde a missão acontece e os inimigos que nele aparecem. A terceira grande categoria, (c) aspectos visuais dos personagens, está subdividida em expressão de gênero, persona, e sombra17 dos personagens.

A expressão de gênero é a maneira (relacionada ao gênero) como a pessoa se apresenta e que não têm uma relação de obrigatoriedade com a identidade. Esse é o caso, por exemplo da drag queen. Como postula Butler (2003), por mais que o indivíduo se apresente de uma forma feminina, a sua identidade de gênero não corresponde à essa apresentação. A sombra e a persona dos personagens são elementos inspirados em conceitos homônimos propostos por Jung (2014). De acordo com o autor, a persona é uma fachada, um recorte mais ou menos consciente18 de características que o indivíduo deseja mostrar ou ressaltar em sua personalidade. Já a sombra é formada por um conjunto de conteúdos inacessíveis, de imediato, à luz da consciência (por isso o nome sombra), mas que podem vir à tona em momentos de vulnerabilidade. Normalmente, são relegadas à sombra características reprimidas, indesejadas ou não reconhecidas por um indivíduo.

A análise dos aspectos visuais dos personagens e o ambiente da quest serão amparados no estudo dos elementos visuais proposto por Dondis (2003). Intitulada Sintaxe da Linguagem Visual, a obra da autora fornece uma extensa base para a análise e a interpretação de elementos básicos que compõem as imagens, tais como cores, linhas, pontos, planos, escalas e contrastes.

17 Para o jogo Persona 4, a sombra é a corporificação dos sentimentos reprimidos, enquanto a persona é a maneira com que os personagens desejam ser vistos, e se corporificam na forma de invocações usadas pelos personagens para combater os inimigos. 18 Jung (2014) afirma que, embora as características elencadas para essa fachada sejam, em sua maioria, conscientes, os critérios subjacentes à escolha destas não é totalmente acessível ao indivíduo, sendo influenciada por aspectos inconscientes.

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Por fim, a quarta categoria, (d) combate e estratégia, contempla os elementos: função e atributos dos personagens, vantagens e desvantagens no combate, e a dinâmica de batalha do chefe final da quest de cada personagem.

Tendo as quests como as partes do jogo Persona 4 em que são abordados os problemas pessoais dos personagens, analisar os elementos das quests agrupados nestas categorias nos fornece uma base para que seja possível compreender como os elementos estéticos, narrativos e mecânicos dos jogos digitais são utilizados para construir a identidade de gênero e orientação sexual dos personagens.

Além desta Introdução, que compõe o primeiro capítulo, com a apresentação do problema de pesquisa a ser enfrentado nesta dissertação, uma discussão inicial sobre como a identidade de gênero e a orientação sexual dos personagens pode estar presente nos jogos digitais e a elucidação sobre os objetivos e o método de estudo, este texto está estruturado em cinco capítulos.

O segundo capítulo trata do estudo dos conceitos de jogos, jogos digitais, bem como as suas categorias e estruturação, buscando entender como Persona 4 se relaciona com essas definições e como está categorizado e estruturado como um videogame. Para abordar a questão do jogo, trazemos, então, autores como Huizinga (2003), Caillois (2001), McLuhan (2007). Já para discutir os conceitos de jogo digital, ampliamos essa reflexão inicial, incorporando contribuições de Crawford (1982), Schuytema (2008), Adams (2010), Schell (2008), entre outros. Ao discutir a categorização, estabelecemos uma comparação entre a divisão dos jogos digitais de Crawford (1982) e Adams (2010), com alguns apontamentos propostos por Johnson (2005) sobre certas categorias, além de confrontar a divisão dos jogos digitais em elementos básicos propostos por Aarseth (2003), Battaiola (2000), Salen e Zimmerman (2004), e Schell (2008). Por último, sobre a estruturação, traremos os conceitos de quest de Howard (2008) e Oliveira e Massarolo (2010), dos fluxos de ações propostos por Johnson (2005) e a organização dos eventos de jogo proposta por Adams (2010).

O terceiro capítulo discute os conceitos de gênero e de personagem, e como a identidade de gênero e a orientação sexual podem integrar o desenvolvimento de um personagem. Em um primeiro momento serão discutidos os conceitos de personagem, dentro e fora dos jogos digitais, trazendo autores como Isbister (2006), Brait (1985), Cândido et al (1976), Seger (1990), entre outros. A discussão de gênero articula proprosições de Butler

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(2003) Miskolci (2007), Louro (2000), Preciado (2011), Spargo (2000), etc.. Em um segundo momento, abordamos a profundidade e o desenvolvimento dos personagens, articulando as discussões já feitas sobre personagens com os conceitos de Mungioli (2014) e Adams (2010), para entender os estados desses personagens, os seus papéis e mudanças de estados nos jogos digitais. O terceiro momento deste capítulo foca em exemplificar como a identidade de gênero e a orientação sexual podem integrar o desenvolvimento de um personagem, categorizando essa integração de acordo com a discussão sobre o desenvolvimento de personagens da etapa anterior. O último momento deste capítulo concentra o desenvolvimento dos personagens de Persona 4, buscando alinhar com as discussões já feitas nesse capítulo, focando na dimensão narrativa do jogo, contemplando os recursos narrativos de Schell (2008).

O quarto capítulo contempla a discussão sobre a dimensão mecânica e estética proposta por Schell (2008). Para isso, tendo por base a distinção de elementos estéticos e funcionais de Adams (2010), analisamos como os elementos das categorias de análise ambiente da quest, aspectos visuais e de combate e estratégia se enquadram nessa divisão e se categorizam de acordo com os recursos de Schell (2008), dedicando partes do trabalho para tratar de cada uma das categorias de análise.

O quinto e último capítulo trata das considerações finais desta dissertação. Nele, apresentamos as principais conclusões acerca do processo de análise, tendo por base a pergunta que norteia a presente dissertação. Também apontamos as possibilidades de expansão deste estudo, contemplando aspectos que fogem ao escopo da análise.

Assim como é falado a quem joga Persona 4, temos um(a) convidado(a) (você que está lendo) com um destino deveras interessante. Então sente-se e aproveite a leitura.

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2. A SUA JORNADA COMEÇA AQUI: PERSONA 4 E OS JOGOS DIGITAIS

2.1 Persona 4: Enredo, personagens, repercussão e polêmicas

Como indicamos na introdução desta dissertação, Shin : Persona 4, conhecido simplesmente Persona 4 ou P4, é um jogo lançado em 2008 pela desenvolvedora japonesa Atlus inicialmente para o console PlayStation 2 (PS2). Pertencente à categoria de jogos de RPG (role-playing game, ou jogo de interpretação de papéis, em tradução livre), o jogo é um spin off (obra derivada) da franquia Shin Megami Tensei (ou MegaTen)19.

A obra é classificada pela ESRB (Entertainment Software Rating Board, ou Conselho de Avaliação de Softwares de Entretenimento, em tradução livre) como M (Mature, ou maduro em tradução livre, com conteúdos indicados para maiores de 17 anos20). Persona 4 recebe essa classificação indicativa por conta dos temas abordados, que envolvem, de acordo com o referido conselho, sangue e violência animados, nudez parcial, temas sexuais, linguagem inapropriada e referência ao consumo de bebidas alcoólicas. Entretanto, o sistema ESRB classifica os jogos que são comercializados na América do Norte. O jogo Persona 4, lançado originalmente em japonês, possui uma classificação indicativa diferente no sistema CERO (Computer Entertainment Rating Organization, ou Organização de Classificação de Entretenimento Computacional, em tradução livre), sendo classificado como B (indicado para pessoas com idade igual ou superior a 12 anos21) por conter temas relacionados à sexualidade (roupas de banho e roupas sugestivas, comportamento sugestivo, entre outros) e violência22.

No Brasil, de acordo com o site da Classificação Indicativa do Ministério da Justiça, o jogo possui três entradas23, cada uma categorizando o jogo de maneira diferente: Ação, Simulação e RPG. As entradas que categorizam o jogo como Ação e Simulação possuem classificação indicativa “não recomendado para menores de 18 (dezoito) anos” por conter consumo de drogas lícitas, assassinato e agressão física. Já a entrada que categoriza Persona 4 como RPG possui a classificação indicativa “não recomendado para menores de 14 (catorze) anos” por conter conteúdo sexual e violência.

Os jogos de RPG, como os da franquia MegaTen, colocam o jogador como o responsável pela condução de um personagem ou de um grupo deles (comumente chamado de

19 Disponível em acesso em 09 abr. 2020 20 Disponível em acesso em 27 jul. 2020 21 Disponível em acesso em 30 jul. 2020 22 Disponível em acesso em 30 jul. 2020 23 Disponível em acesso em 18 set. 2020

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party). Esses jogos possuem como um dos pontos principais o foco na história e nos diálogos, em que o jogador intervém diretamente no rumo da história a partir das opções que são apresentadas durante o desenvolvimento do jogo. O primeiro título da franquia supracitada, Digital Devil Story (1987), conta a história de dois personagens que são capazes de invocar criaturas místicas em um universo digital para enfrentar os seus adversários. Já a série Persona surge pela primeira vez em 1996, com o jogo Revelations: Persona, trazendo o estilo de jogo da série MegaTen, com enredos que normalmente abordam um ambiente escolar e o uso de invocações (as personas) para que os personagens possam lutar.

O quarto jogo da franquia derivada de MegaTen - o Persona 4 - trata de assassinatos misteriosos que acontecem na pequena cidade de Inaba e a investigação sobrenatural por parte dos estudantes da escola local. Vendendo somente na primeira semana mais do que as vendas totais do jogo anterior, , o jogo foi um dos marcos da franquia, vendendo, desde o seu lançamento, mais de 800 mil cópias, segundo o site VGChartz24. Enquanto Persona 3 (2006) vendeu, do seu lançamento a janeiro de 2016, aproximadamente 210 mil cópias, Persona 4, somente na sua semana de estreia, vendeu 211 mil unidades. Se adicionadas as vendas de seu lançamento até o janeiro de 2016, Persona 4 acumula mais de 294 mil cópias vendidas somente no Japão, segundo o site Persona Central25.

Ainda segundo o Persona Central, se contabilizadas as vendas de todos os jogos que levam Persona 4 no título (Persona 4, Persona 4: Golden, Persona 4: Arena, Persona 4: Arena Ultimax e Persona 4: Dancing All Night), estas ultrapassam 1 milhão de cópias vendidas somente no Japão. Segundo o site VGChartz, além das expressivas vendas no Japão, Persona 4, o jogo base, vendeu cerca de 340 mil cópias na América do Norte, 40 mil cópias na Europa e 80 mil cópias no restante do mundo.

Contando ainda com quadrinhos, uma série televisiva (Persona 4: The Animation, de 2011), e outros jogos, como Persona 4: Golden (uma versão expandida de Persona 4, que também possui a sua série de televisão) e (jogo de luta lançado para PlayStation 3 e Xbox 360), o jogo possui a avaliação 90/100 do site , tendo recebido prêmios como o melhor jogo de PlayStation 2 e também o jogo mais discutido e compartilhado do seu ano de lançamento (2008)26.

24 Disponível em acesso em 21 jan. 2020 25 Disponível em acesso em 21 jan. 2020 26 Disponível em acesso em 21 jan. 2020

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Em Persona 4, o jogador assume o papel do protagonista (cujo nome é dado pelo próprio jogador, mas que em Persona 4: The Animation e em outros jogos derivados se chama e nos quadrinhos se chama Souji Seta), um estudante da cidade grande que, por conta de uma viagem a trabalho de seus pais, se vê obrigado a morar durante um ano com o seu tio materno, Ryotaro Dojima, em uma pequena cidade japonesa chamada Inaba. Além do protagonista (que chamaremos de Yu Narukami, por causa da maior recorrência) o jogo conta com mais 7 personagens jogáveis, que ajudam Yu em sua jornada, sendo estes: Yosuke Hanamura, Chie Satonaka, Yukiko Amagi, Kanji Tatsumi, Rise Kujikawa, Naoto Shirogane e Teddie, um urso de pelúcia que guia os personagens (Figura 4).

Figura 4 – Yu, Yosuke, Chie, Yukiko, Kanji, Rise, Naoto e Teddie, respectivamente

Fonte: creativeuncut.com Antes de iniciar o jogo, entretanto, é exibida uma cena de uma limusine chegando, e no seu interior estão presentes duas pessoas: um homem de olhos esbugalhados e nariz comprido chamado Igor, e uma mulher loira e pálida chamada Margareth. Igor diz que esse ambiente interno à limusine se chama Velvet Room (Sala de Veludo, em tradução livre), um local que existe independente de tempo e espaço e que só aqueles que possuem um contrato podem ter acesso a essa sala. Igor põe cartas de tarô à mesa e afirma que o protagonista está destinado a um grande futuro, mas que esse futuro reserva uma grande catástrofe e um mistério maior ainda. Cada carta de tarô simboliza uma pessoa que o protagonista encontrará em sua jornada. Essas cartas simbolizam a relação entre Yu e a pessoa correspondente ao arcano, que se fortalece conforme a relação se desenvolve. Prometendo explicações futuras, Igor e Margareth se despedem, dizendo que eles o encontrarão futuramente.

Logo nos primeiros dias do protagonista em Inaba, começa uma série de desaparecimentos seguidos de assassinatos misteriosos na cidade, e o único fator que parece ligar todos eles é a aparição das vítimas na televisão dias antes do ocorrido. Essa aparição se dá em um canal televisivo, conhecido como Canal da Meia-Noite (Midnight Channel em inglês), que só pode ser sintonizado nos dias chuvosos à meia-noite.

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Existe uma história que circula pela cidade envolvendo esse canal, dizendo que a pessoa a aparecer na televisão seria o grande amor de quem o está assistindo naquele momento, entretanto, quando as vítimas dos assassinatos misteriosos são as mesmas que aparecem no Canal da Meia-Noite, a cidade começa a ficar preocupada com as aparições na televisão. A primeira vítima é uma repórter que fora encontrada morta e pendurada a um poste, depois de ter se envolvido em polêmicas e aparecido no canal misterioso.

Descobrindo ter um poder capaz de ajudar a desvendar as ocorrências, o protagonista então resolve entrar no mundo da televisão para descobrir as causas dos assassinatos. Usando qualquer aparelho de televisão como portal, o personagem principal é capaz de entrar em um mundo místico, o mundo da televisão, um lugar habitado por criaturas não-humanas, onde se depara com as pessoas desaparecidas e os seus sentimentos mais profundos. Teddie, uma criatura parecida com um urso de pelúcia, fala ao protagonista que alguém está jogando pessoas lá dentro e que isso tem causado uma perturbação em seu mundo. Percebendo que esse lugar tem ligação com o desaparecimento e a morte das vítimas, o protagonista entra em uma luta contra o tempo para salvar as potenciais vítimas.

Esses sentimentos são dos mais diversos, como raiva, inveja e frustração. Ao atingirem grandes proporções, ganham forma no mundo da televisão e começam a consumir a pessoa do mundo real. A cada desaparecimento, o protagonista e os seus amigos adentram o mundo da televisão para salvar as pessoas que foram capturadas, antes que estas sejam consumidas e, posteriormente, mortas por esses sentimentos. Muitos dos sentimentos expressados e corporificados nesse mundo paralelo têm a ver com as expectativas e as relações que envolvem identidade de gênero e orientação sexual. É buscando entender como Persona 4 aborda as questões de gênero que será feita a análise de 5 dos protagonistas: Chie Satonaka, Yukiko Amagi, Kanji Tatsumi, Rise Kujikawa e Naoto Shirogane.

Chie e Yukiko são melhores amigas desde a infância, e possuem personalidades bem diferentes. Chie é uma garota super extrovertida, fã de artes marciais e esportes, que se sente frustrada por não conseguir a atenção das pessoas por sua beleza. Yukiko é uma garota tímida e reservada. De uma família tradicional da cidade de Inaba, a garota se sente frustrada por não ter autonomia, e ter sempre que corresponder às expectativas da sua família. Ao contrário de Chie, Yukiko é vista como uma das jovens mais belas pelos moradores da cidade. Kanji é conhecido como o aluno valentão da escola. Alto, com piercings e cabelos descoloridos, ele é visto como uma pessoa amedrontadora pelos demais, mas que gosta de se dedicar a hobbies

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como costura e crochê. O personagem entra em conflito quando um garoto demonstra interesse nele, não sabendo como lidar com a situação. Rise é uma celebridade internacional que resolve voltar para Inaba para viver uma vida normal, longe dos holofotes e da exposição. Naoto é um jovem detetive que, percebendo a ineficácia do trabalho da polícia em desvendar os desaparecimentos e assassinatos, resolve agir por conta própria e encontrar o culpado. Entretanto, para exercer essa profissão e impor respeito, esconde o fato de ser uma pessoa transgênero, o que prejudicaria a sua reputação.

Cada um desses personagens, frente aos problemas enfrentados em seu dia-a-dia, acaba fortalecendo os seus sentimentos reprimidos, corporificando suas emoções e criando mundos particulares dentro do mundo da televisão. Nesses mundos criados, é possível observar como cada personagem lida com as emoções reprimidas e como elas tomam forma e os consomem no mundo da televisão. Esses mundos particulares possuem uma aparência, uma narrativa e uma dinâmica próprias para cada um dos personagens, se modificando cada vez que um outro personagem é colocado ao centro. A exemplo disso, Yukiko, uma das protagonistas, quando adentra esse mundo, aparece como uma princesa que se enclausura em um castelo em busca de um príncipe encantado para salvá-la.

Dedicando partes essenciais do jogo para tratar de problemas como masculinidade, feminilidade, sexualidade e identificação de gênero, Persona 4 mostra como cada personagem lida com essas questões e como elas se traduzem nesses mundos particulares. Entretanto, apesar de serem o foco de diversas partes do jogo, não significa que tenham sido tratadas com responsabilidade, pelo menos é o que apontam portais de entretenimento e jogos, com o Vice e o GameSpot. Em uma matéria publicada em dezembro de 2017, o portal canadense Vice aponta para a falta de tato que a desenvolvedora de Persona 4 teve ao inserir personagens LGBTQ em seus jogos27. Com o intuito de apontar as falhas do jogo Catherine: Full Body, a matéria cita também os problemas de outros títulos da Atlus.

O site estadunidense especializado em jogos digitais GameSpot, também publicou uma matéria, em março de 2013, sobre essa falta de tato com os personagens LGBTQ, dessa vez falando especificamente de Persona 428. Além de Naoto, citado anteriormente, a matéria também fala sobre o tratamento dado ao personagem Kanji Tatsumi, transformando a sua

27 Disponível em acesso em 11 abr. 2020 28 Disponível em acesso em 11 abr. 2020

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narrativa de homossexualidade e aceitação em um fortalecimento da ideia misógina de que as mulheres são falsas e superficiais, enquanto os homens são mais leais e verdadeiros.

Entretanto, existem outras quests do jogo, não citadas nas matérias, que abordam questões referente ao gênero, a exemplo de Yukiko Amagi e Chie Satonaka, que além de trazerem problemas referentes à ideia de feminilidade, abordam a sexualidade que vem atrelada a isso; e Rise Kujikawa, que explora a exposição e a valorização corporal da figura feminina, em detrimento de outros atributos.

É com base nas questões abordadas pelo jogo e da maneira que elas se apresentam na sua composição que será analisado como o são construídas a identidade de gênero e a orientação sexual dos personagens dos jogos digitais a partir dos seus elementos estéticos, narrativos e mecânicos.

2.2 O que é um jogo? E o que é um jogo digital?

Antes de abordarmos o jogo digital, consideramos importante problematizar o termo jogo, para então chegar em sua versão digital. Já no prefácio de Homo Ludens, Huizinga (2003) afirma não ver “razão alguma para abandonar a noção de jogo como um fator distinto e fundamental, presente em tudo o que acontece no mundo” (p. 3).

Depois de sua afirmação que define o jogo como algo que permeia todas as atividades, Huizinga continua a discussão, colocando que o jogo é, acima de tudo, uma função significante, que encerra um sentido em si, que ultrapassa os limites físicos ou biológicos e que, às atividades propostas em sua lógica, confere um sentido próprio às ações desempenhadas, transcendendo as necessidades imediatas da vida. Essa função significante, chamada de função lúdica, reside, de acordo com Huizinga (2003) em uma não-seriedade e em uma gratuidade. Caillois (2001), em concordância com Huizinga (2003), afirma que essa função lúdica está relacionada com o ato de impor-se, voluntariamente, dificuldades ou empecilhos para atingir um objetivo.

Ao dizer que o jogo ultrapassa os limites físicos e biológicos, Huizinga (2003) afirma que o ato de jogar não pode ser explicado tão somente por um instinto que nos leva ao jogo, como também essa atividade não se encerra nas ações realizadas dentro deste, mas sim que há nele a “presença de um elemento não material em sua própria essência” (p. 5) As ações realizadas dentro de um jogo e o próprio ato de jogar têm por objetivo a realização do próprio

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jogo, o prazer de jogar. Fugindo de teorias que abordam o jogo como um ensaio para desempenhar uma função no futuro ou um desejo inato, e biológico, pela competição, ele traz o jogo como algo que está além das civilizações e da condição humana. Para o autor, uma das evidências disto é que os animais também parecem conhecer, e distinguir, uma situação de jogo de uma situação de, e aqui usamos livremente o termo, vida real.

Antes de mais nada, afirma Huizinga, o jogo é uma atividade voluntária, não localizada na vida real. Ao contrário, trata-se de uma suspensão desta para a execução de uma atividade que está instanciada em uma esfera de tempo e regulação próprias. Caillois (2001) afirma que, a partir do momento em que uma pessoa é obrigada a se engajar em uma atividade de jogo, esta perde o seu caráter principal e, portanto, deixa de ser um jogo, e se torna uma coação da qual o indivíduo forçado a tal participa para se libertar. Outra característica importante do jogo, além do seu instanciamento, é a sua capacidade de repetição. Por mais que a atividade se encerre, sempre é possível evocar a mesma instância para que seja realizada novamente. Dependendo ou não de um meio físico, de maneira deliberada ou espontânea, os jogos são “mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial” (HUIZINGA, 2003, p. 11).

No início de Brinquedo e Cultura, Brougère (2001) promove uma distinção entre o brinquedo e o jogo. Enquanto o brinquedo é visto como “um objeto que a criança manipula livremente, sem estar condicionado às regras ou a princípios de utilização de outra natureza” (p. 13), o jogo pressupõe a existência de uma regulação prévia ao seu exercício; por exemplo, um jogo de xadrez já possui um conjunto de regras prévio a ele que explica o seu funcionamento e manipulação, como posição e função e movimentação das peças; enquanto uma boneca não possui uma maneira correta para ser manipulada. Como o trabalho de Brougère apresenta uma discussão mais voltada aos objetos materiais, o autor também afirma que, diferente do brinquedo, cuja função, razões de ser e regras de funcionamento se dão conforme é manipulado, os objetos de jogo são regulados antes do uso, e o seu caráter imagético está mais ligado à função desempenhada do que ao caráter simbólico; retomando como exemplo o jogo de xadrez, a peça Torre tem uma ligação maior com o movimento que esta peça realiza no tabuleiro do que com uma torre de um castelo, em sua abstração, colocada sobre o tabuleiro. De maneira simplificada, enquanto esse instanciamento para uma esfera fora da vida real, com o brinquedo, se dá tão somente a partir da manipulação, no jogo existe uma configuração pré-existente para que os participantes possam ser transportados para esse

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estado de suspensão do real, estabelecendo, assim, que uma das diferenças entre o brinquedo e o jogo é o controle que o indivíduo tem sobre a sua manipulação.

Crawford (1982) aponta para uma escala de manipulação em que o jogo se encontra no meio termo entre história e brinquedo. A história, para o autor, possui o menor grau de manobra, oferecendo uma sequência linear e unidirecional de fatos, apresentando sempre a mesma ordem e conclusão, pelo menos em sua estrutura tradicional. O jogo permite ao jogador escolher, dentre as limitações impostas pela sua regulação, que ações devem ser tomadas, representando assim um grau médio de manipulação, visto que são dadas opções dentre as quais o jogador pode escolher. O brinquedo, por fim, não regula o que pode ser feito, cabendo a quem o manipula tomar a direção desejada, apresentando o maior grau dentro da escala de manipulação.

Sobre essa regulação inerente ao jogo, Crawford (1982) propõe que uma das características do jogo é a existência de um conjunto de regras bem definidas que precisa estar explícito a todos os participantes da atividade. Sobre a crença nessas regras para a participação no jogo, Huizinga (2003) ressalta a impossibilidade do ceticismo. Em outras palavras, para a participação no jogo, os participantes têm de acreditar que o que regula o jogo é “uma verdade apresentada como inabalável” (p. 12). Deste modo, não somente as regras tornam-se essa “verdade inabalável”, como também adquirem um caráter normativo imperioso, e qualquer infração às leis do jogo é capaz de estragar ou até mesmo desestruturá- lo e encerrá-lo. Assim, com a transgressão desta regra básica, encerra-se a instância que separa o jogo da vida cotidiana. Como Huizinga (2003) afirma, essa função lúdica do jogo está relacionada à produção de uma ilusão. Nesses termos, ela toma o lugar de algo, cria um outro mundo, uma outra instância, que é o jogo, que se torna verdadeiro para os que dele participam.

Em Os Meios de Comunicação como extensões do homem, McLuhan (2007) dedica um capítulo dessa obra para falar do jogo como uma atividade que, entre outras coisas, serve para liberar as tensões particulares, atribuindo nessa afirmação uma finalidade biológica da qual Huizinga (2003) tenta fugir. O jogo, para McLuhan, é “uma máquina que começa a funcionar só a partir do momento em que os participantes consentem em se transformar em bonecos temporariamente” (McLUHAN, 2007, p. 267). Essa afirmação revela não somente o jogo como uma esfera à parte da vida real, chamada pelo autor de “paraíso artificial”, como também a importância do participante de abrir mão da própria identidade para se tornar uma

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peça, parte integrante do jogo. Huizinga (2003) diz que o indivíduo se torna outra pessoa ao desempenhar o papel que lhe é designado dentro do jogo, representando, exibindo, transportando a si e aos outros para um estado em que aquela forma assumida pelos participantes é sua verdadeira forma.

Schell (2008) resume a definição de jogo a partir de 10 apontamentos: (a) deve ser voluntário, (b) tem objetivos, (c) tem conflito, (d) tem regras, (e) podem ser vencidos, (f) são interativos, (g) tem desafios, (h) possuem valores internos, (i) engajam os jogadores e (j) são sistemas fechados e formais.

Embora alguns deles já tenham sido pontuados anteriormente, outros aparecem como uma aparente novidade para a definição, como o item c: a presença de conflito; que possui uma ligação íntima com o item f: são interativos. Apesar do apontamento ser feito por Schell (2008), usamos a definição de Crawford (1982), que também considera o conflito e a interação como elementos essenciais do jogo. O conflito surge com a interação do jogo. A interação, característica fundamental do jogo tanto para Schell (2008) quanto para Crawford (1982), é a resposta às ações do jogador, só há interatividade se houver uma relação de causa e consequência entre as ações do jogador e o meio (CRAWFORD, 1982); surgido de um processo interativo, o conflito é o que impede, o que dificulta o jogador de atingir o seu objetivo.

Já Caillois (2001) aponta 4 categorias fundamentais para a compreensão dos jogos: agôn (conflito), alea (chance), mimicry (mimetismo) e ilinx (vertigem). Essas categorias, segundo o autor, podem relacionar-se umas com as outras. A primeira categoria, agôn, engloba os jogos que parecem de alguma forma com uma competição, cujas condições de igualdade entre os participantes são artificialmente criadas. Normalmente essa rivalidade se dá a partir de um único aspecto ou habilidade, como velocidade, pensamento estratégico ou força, entre outros. A prática do conflito, segundo o autor, pressupõe atenção e treinamento apropriado para desenvolver a habilidade fundamental para o tipo de jogo que se enquadra nessa categoria. O resultado dos jogos que se inserem nessa categoria são decorrentes das ações dos jogadores e das suas capacidades desenvolvidas para desempenhar os papéis demandados pela atividade.

Já os jogos de chance, chamados por Caillois (2001) de alea, são todos os jogos cujo resultado não depende dos jogadores ou de suas habilidades, cuja vitória depende muito mais

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da sorte. O treinamento e a profissionalização, diferente do agôn, não são levados em consideração, pois o jogador assume uma posição passiva, aguardando o resultado do dado, da roleta, da moeda ou de qualquer objeto ou mecanismo que determinará a sua vitória ou derrota. Por mais que pareçam opostos, agôn e alea obedecem a mesma lei: a criação de condições de igualdade pura. Entretanto, cremos que esse estado de igualdade seja mais instável, sem ferir a estrutura da atividade, nos jogos que o autor categoriza como agôn, ou de conflito. Por mais que, nas regras, o jogo forneça os mesmos recursos para os dois jogadores, a preparação prévia, condicionamento físico e quaisquer outras condições anteriores ao jogo favorecem um jogador em detrimento do outro. Já os jogos de chance, alea, só podem ser desbalanceados caso haja trapaça, a exemplo de um dado viciado, o que ocasiona, no momento de sua descoberta, a dissolução da instância de jogo.

A categoria da mimetização ou imitação (mimicry) está intimamente ligada ao que já foi reconhecido por McLuhan (2007), o fato de que o jogador aceita abrir mão da sua identidade para desempenhar o papel demandado pelo jogo. Essa categoria pressupõe a entrada em uma esfera ilusória em que o jogador abre mão do seu caráter individual para se tornar uma peça do jogo. Essa fantasia de tornar-se um outro não tem, entretanto, como objetivo convencer os outros, mas antes o valor interno ao jogo de representar essa fantasia para o seu funcionamento. A última categoria fundamental, ilinx ou vertigem, versa sobre os jogos cujo objetivo gira em torno de destruir a estabilidade e de causar uma sensação de pânico nos jogadores. Entretanto, por mais que seja uma categoria que pressupõe um desconforto para o seu funcionamento, ela mantém o caráter voluntário do jogo e o prazer dessa atividade vem justamente dessa perturbação no estado de concentração ou então da resistência à instabilidade provocada pelo jogo. Caillois (2001) revela mais uma característica dos jogos, que é a incerteza. Segundo o autor, um resultado incerto sempre ronda o ambiente de jogo. A partir do momento em que uma atividade sempre gera um resultado previsível, sem a mínima margem para que algo diferente do esperado ocorra, ela não pode mais ser caracterizada como um jogo.

Huizinga (2003) ainda afirma que os jogos são desprovidos de qualquer interesse material, que a sua realização não envolve o ganho ou perda de bens ou dinheiro. Entretanto, Caillois (2001) diz que isso exclui os jogos de apostas, privando-os do enquadramento na categoria de jogos. Entretanto, analisando esse tipo de jogo, que segundo Caillois (2001), não tem lugar no trabalho de Huizinga (2003), é possível perceber que, mesmo removendo o

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dinheiro ou os bens materiais apostados, os jogos de aposta continuam sendo jogos, uma vez que a sua regulação e o seu caráter voluntário, entre outros aspectos, permanecem inalterados caso o que esteja sendo apostado não seja dinheiro ou bens materiais, e sim outro recurso de sinalização de um vencedor e um perdedor.

Com base nessa leitura, podemos perceber algumas das características principais do jogo. Mas e o jogo digital, como se caracteriza? Schuytema (2008) afirma que o jogo digital é uma atividade caracterizada por ações e decisões a fim de se chegar a um objetivo definido, dotada de um conjunto de regras e limitações. A particularidade desse tipo de jogo é que o ambiente (e com ambiente entendamos não só o espaço onde se dá o jogo, mas também o cenário e as ações) é controlado por um sistema computacional.

Katie Salen e Eric Zimmerman (2004) afirmam, em Rules of Play, que os sistemas computacionais são o meio através do qual esse tipo de jogo é realizado; logo, a tecnologia não deve ser vista como a finalidade deste tipo de atividade, mas deve ser levada em consideração como uma das características fundamentais para a formulação e entendimento dos jogos digitais. Levis (1997) afirma que esses jogos são filhos da união entre a computação e a televisão, e que os videogames foram a primeira tecnologia informática que muitos tiveram contato direto e pessoal. Com videogames aqui, referimo-nos aos jogos digitais em si, e não aos aparelhos, os suportes em que os jogos são rodados; estes chamaremos de consoles.

Essa analogia encontra sentido no fato de que, para funcionarem em sua plenitude, os consoles necessitam de uma tela. Muitos dos primeiros consoles domésticos eram ligados aos televisores para poder serem utilizados, uma vez que o computador realizava as operações necessárias para o desenvolvimento do jogo, e estes eram mostrados nos aparelhos de televisão. O autor afirma que existem 4 tipos de grandes plataformas para os jogos digitais: as máquinas recreativas, indicadas para um jogo específico, normalmente destinadas a espaços públicos, às quais o jogador tem acesso a partir do uso de fichas ou créditos comprados previamente; os computadores pessoais, nos quais podem ser instalados jogos digitais; os consoles de videogame, aparelhos produzidos com máquinas concebidas fundamentalmente para os jogos digitais e que usualmente são ligados ao aparelho de televisão; e os consoles portáteis, semelhantes aos consoles, mas que possuem uma tela própria e não precisam se ligar a nenhum outro aparelho para funcionar.

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Ainda segundo Levis (1997), graças aos videogames, as pessoas podem, finalmente, controlar o que é mostrado em suas telas. Para Greenfield (1988) o resultado dessa união é a interatividade, a capacidade direta do jogador de influenciar ou controlar o que é feito e, por consequência mostrado, e o elemento visual dinâmico da televisão. Esse controle promovido pela interatividade é apontado como um dos fatores mais atrativos dos jogos digitais. A autora afirma, ainda, que ao questionar uma garota de 9 anos sobre o porquê da preferência dos jogos em detrimento da televisão, recebeu como resposta: “Na TV, se a gente quer matar alguém não pode” (GREENFIELD, 1988, p. 88).

Isso ocorre pois, pela primeira vez, as pessoas podem controlar o que aparece na tela, saindo da condição de couch potatoes29 (ou batatas de sofá, em tradução livre), para a de agente do jogo. Neste segundo caso, pode não só escolher o que vai ser visto na tela, com base na escolha dos títulos de jogos digitais, como também definir, dentre as opções possíveis e particulares de cada jogo, as ações que serão desempenhadas e mostradas. Sintetizado por Salen e Zimmerman (2004), houve uma mudança da condição de espectador para a de jogador.

Ocultamos de maneira proposital uma característica do jogo, para que esta pudesse ser trazida ao falar da sua versão eletrônica (usarei jogo digital e jogo eletrônico, e por vezes videogame, como sinônimos). Huizinga (2003), ao tratar da esfera de instanciamento do jogo, fala da suspensão temporária da, também, vida social; McLuhan (2007), traz que os jogos são “artes populares [...] extensões do homem social” (p. 264). Onde entra essa vida social no jogo eletrônico? Com quem, ou contra quem, o jogador participa dessa atividade em sua versão digital?

Utilizando como exemplo o Pong, tido como o primeiro jogo digital, que foi lançado em 1972, este trata-se de um jogo que reproduz digitalmente as mecânicas do jogo de pingue- pongue.

Abstrações à parte (uma vez que Pong representa as raquetes como retângulos e a bola como um quadrado, ambos brancos em um fundo preto), o jogo simula uma partida de pingue-pongue, em que o objetivo é lançar a bola e fazer com o adversário não consiga rebatê-la de volta. Pela própria descrição, o jogo pressupõe a existência de um adversário. No

29 Couch Potatoes é uma denominação de um grupo de telespectadores Californianos que, nas palavras de Greenfield (1988) vegetam frente ao aparelho de televisão.

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caso dos jogos digitais, caso não haja um outro jogador humano, existe a possibilidade de se jogar contra o sistema (comumente chamado de máquina, CPU ou COM). Na ausência de um outro participante, essa função é desempenhada pelo sistema computacional.

Por mais que existam jogos que não demandem a participação de outras pessoas, como o jogo Paciência (ou Solitaire, que, como o nome original sugere, é um jogo individual, solitário), achamos importante ressaltar que o sistema computacional não só controla a ambientação, como também emula os parceiros (sejam adversários ou aliados) caso seja necessário. No caso do Paciência, ou de outros jogos que não possuem um adversário aparente, o jogador enfrenta o próprio sistema para atingir as condições de vitória.

Williams et al. (2009) apontam que os jogos digitais são produções audiovisuais que podem conter em seus enredos, personagens, figurinos, e outros elementos, reflexos dos valores sociais presentes em seu contexto de produção. Essa afirmação alinha-se ao pensamento de Cerdera e Lima (2016), que reconhecem no jogo eletrônico a capacidade de, através dos valores presentes em sua narrativa, ajudar na dissolução de preconceitos e mudar a mentalidade dos jogadores sobre os assuntos abordados ao longo do jogo. Ao recorrer à palavra “reflexo”, Brougère (2001) promove uma discussão sobre essa noção. Embora seja feita ao discutir o brinquedo, cremos que essa contribuição possa se estender aos jogos. Ao abordar a boneca como reflexo da sociedade, o autor questiona a suposta imparcialidade dessa ideia do reflexo. Seria esse “espelho”, que vai refletir esses valores sociais, uma superfície imparcial? Ao, de fato, refletir exatamente aquilo que é posto diante dele? Para Brougère, não. Essa imagem refletida não é direta e imparcial. O espelho é seletivo, somente alguns valores são refletidos por essa superfície. Longe de abordar esse processo de seleção do que vai ser refletido ou não por esse espelho, trazemos essa ideia do reflexo para que se tenha em mente que ao trazer os jogos (sejam digitais ou não) como reflexos, sejam do contexto de produção, da realidade ou das vidas psicológicas dos jogos, seja pensado essa seleção de valores a partir de um processo de filtragem, e não de maneira imparcial, a partir de um espelho ideado como neutro. Embora Williams et al (2009) não afirmem que esta é a única dimensão do jogo, a presença dos valores sociais pode permear as múltiplas camadas de um jogo digital. Dedicamos, assim, a próxima seção para entendermos como se dividem as camadas dos jogos digitais, e como esses jogos são categorizados.

2.3 Por uma divisão e categorização dos jogos digitais

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Alguns autores, como Aarseth (2003), Battaiola (2000), Salen e Zimmerman (2004) e Schell (2008) trazem em seus trabalhos algumas propostas da divisão do jogo digital em suas partes constituintes ou elementos essenciais para a sua criação.

Aarseth (2003) divide os jogos eletrônicos em três camadas: jogabilidade, estrutura e mundo; A jogabilidade é entendida pelo autor como as ações que o jogador pode desempenhar dentro do jogo e as motivações que levam a essa tomada de decisão; a estrutura contém as regras, as limitações e também o código que controla todo o sistema por trás do que é visível ao jogador; por último, o mundo do jogo é responsável pelo visual e pela narrativa presente no jogo.

Battaiola (2000) apresenta uma divisão também em tríade: enredo, motor e interface. O enredo é definido pelo autor como a trama, o tema, a sucessão de estados do jogo, em suma, a narrativa; o motor, semelhante à estrutura de Aarseth (2003), também é responsável pelo controle interno do jogo, regulando as ações e reações do ambiente à interação do jogador; por último, a interface é o que realiza a mediação de quem joga com a estrutura interna do jogo, fornecendo as respostas visuais às ações realizadas dentro do jogo.

Salen e Zimmerman (2004) também analisam a construção de um jogo digital tendo por base três elementos: regras (rules), objetivos (goals) e mecânicas (mechanics). Para os autores, as regras são as instruções que informam ao jogador sobre o funcionamento do jogo. Com base nesses parâmetros, elas definem o que o jogador pode ou não fazer para atingir o seu objetivo, o segundo elemento dessa categorização. Os objetivos são os elementos que criam o propósito do jogo, que orientam as ações dos jogadores. Já as mecânicas são as ferramentas e os recursos com os quais o jogador pode interagir, seja o controle do console ou os objetos do jogo, para desempenhar as ações previstas nas regras do jogo.

Schell (2008) é o autor que apresenta uma divisão mais complexa das dimensões de um jogo digital, por apresentar não somente apresentar quatro camadas, mas também uma estrutura que divide as dimensões de acordo com a ordem que o jogador é exposto a elas.Chamada de Tétrade Elementar, essa estrutura possui três níveis: um mais superficial, que não demanda muito contato do jogador com o jogo para acessar esse nível; o nível intermediário, que demanda um maior envolvimento e interação de quem joga; e o nível mais profundo, que, mesmo jogando inteiramente o jogo, só entra em contato com esse nível aquele jogador que tem uma grande compreensão dos mecanismos por trás do processo de

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formulação do jogo. Essa organização visa apenas apresentar o quanto esses elementos estão expostos ao jogador, mas não implica em uma relação de maior ou menor importância por estar em maior ou menor contato. O autor ressalta que, por mais que determinadas funções dentro da indústria de jogos tenham tendências a valorizar mais um elemento que o outro, eles são igualmente importantes para o jogo digital.

São nesses níveis que encontramos os elementos constituintes, divididos da seguinte maneira: estética (superficial), narrativa (intermediário), mecânicas (intermediário) e tecnologia (profundo). A dimensão estética (aesthetics), a que estabelece primeiro o contato com o jogador, é aquela que contém os elementos visuais e sonoros do jogo. Os sons, a música, os cenários, os visuais dos personagens, tudo está incluso nessa dimensão. O jogador não precisa, para entrar em contato com os elementos dessa dimensão, dedicar muito tempo à ação de jogar o jogo, uma vez que são elementos principalmente sensoriais e que não demandam ações para que se tenha acesso a eles.

A dimensão narrativa (story), que engloba o enredo, a trama, a sucessão de fatos, se encontra no nível intermediário pois, justamente para entender como os pontos da narrativa estão encadeados, é necessária uma maior dedicação para se ter acesso, pelo menos parcialmente, a esses elementos. O mesmo vale para as mecânicas (mechanics), que, de acordo com Schell (2008), são as regras de jogo e os procedimentos. É a partir das mecânicas que são definidos os objetivos do jogo e como eles podem ou não atingi-los. Se um jogo possibilita um personagem pular, escalar paredes e atacar para conseguir chegar ao final da fase, podemos dizer que essas ações são as mecânicas do jogo.

Já a tecnologia (technology) empregada no desenvolvimento do jogo não se restringe tão somente à capacidade de processamento, motor gráfico e robustez da máquina, mas também aos dispositivos de entrada e saída, como os controles, teclados e sensores. É através da tecnologia que a estética, a mecânica e a narrativa podem aparecer no jogo. Por mais que, explicando dessa forma, possa surgir dúvidas quanto à categorização dessa dimensão como a mais profunda, é preciso pensar na abstração que é feita durante a ação de jogar.

Tomando como exemplo o ato de apertar um botão para que o personagem pule, por mais que o jogador tenha o controle (que faz parte da dimensão tecnológica do jogo) em mãos e faça o comando através dele, somente aqueles com um maior conhecimento sobre linguagens de programação entram em contato com essa dimensão, ao entender os processos

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internos que ocorrem entre o ato de apertar o botão e a resposta em jogo. É essa abstração, e obviamente a evolução da tecnologia, que permite ao jogador ter a sensação de explorar cenários gigantescos em uma tela de profundidade mínima, expandindo assim não somente as dimensões físicas que o jogo (ou a sensação causada por ele) pode ocupar, como também as múltiplas possibilidades de cenários, personagens e efeitos sonoros apresentados ao jogador.

Comparando a divisão proposta pelos autores, podemos encontrar algumas interseções entre as definições. A dimensão de mundo, proposta por Aarseth (2003) fica dividida entre as dimensões estética e narrativa de Schell (2008), por englobar tanto o visual quanto a história e a ambientação do jogo. Já os objetivos, regras e mecânicas de Salen e Zimmerman (2004) são englobadas, quase que em sua totalidade, pela dimensão mecânica de Schell (2008), que controla a regulamentação como um todo. Entretanto, as mecânicas de Salen e Zimmerman também encontram parte da sua definição na dimensão tecnológica de Schell, uma vez que também diz respeito aos dispositivos, aos aparelhos utilizados para jogar.

Se nos jogos (não digitais), os corredores abstraem o percurso com os doze signos do zodíaco gravados de forma a simular o percurso diário do sol (McLUHAN, 2007), essa abstração ganha mais força, visualmente falando, quando pensamos na versão digital dos jogos. Não tentamos aqui provar a superioridade de um em relação ao ouro, apenas apontar brevemente essa diferença entre a atividade física e a dimensão visual nessas duas modalidades. Se por um lado perde-se a atividade física (como o ato de correr nesse exemplo), isso desconsiderando os jogos que demandam outros movimentos além dos realizados com os controles, por outro, ganha-se muito na dimensão estética, principalmente a visual e sonora. Em vez de simular esse percurso correndo ao redor de uma pista, a partir do jogo eletrônicos podemos permitir que o jogador realize, virtualmente, o mesmo percurso que aquele abstraído nas pistas com os signos do zodíaco gravados.

Tendo a noção das dimensões do jogo, apresentamos uma divisão dos tipos de jogos digitais proposta por Juul (1998). Segundo o autor, existem dois tipos de jogos: os emergentes e os progressivos. Os emergentes são os jogos que estão relacionados à decisão e à ação. Com pouco ou nenhum desenvolvimento narrativo, esse tipo de jogo é focado no que Schell (2008) chama de mecânicas. São as regras de jogo, os objetivos e o conjunto de ações que realmente importam para a sua realização.

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Já os jogos progressivos são aqueles cujos objetivos, as ações e as decisões são revelados através de uma progressão, de uma mudança de estados. Esses jogos, cuja mecânica também é importante, possuem um enfoque maior na dimensão narrativa, pois é ela que controla a sucessão de estados do jogo, apresentando assim as mecânicas possíveis para determinado momento do jogo. Esse desenvolvimento narrativo dos jogos progressivos é o que aproxima os jogos digitais de outras produções audiovisuais. Para Gouveia (2010), é essa característica dos jogos digitais que dá margem para a compreensão da relação com outras mídias.

Para Bogost (2015), em pensamento similar ao de Gouveia (2010), os jogos apresentam um diferencial em relação a outras produções audiovisuais, como o cinema e a televisão: as ações não acontecem se o jogador não as realiza. Se voltarmos um pouco para o início deste capítulo, antes mesmo de falar sobre jogos digitais, é possível perceber que essa afirmação de Bogost recupera, mesmo que implicitamente, muitas das noções citadas anteriormente. Entretanto, longe de ser o único aspecto observável dos jogos digitais, eles podem ser vistos a partir de uma perspectiva do aprendizado. Para Munguba (2002), esse tipo de produção audiovisual pode ser usado como “facilitador do desenvolvimento de noção de regras e da ideia de que aprender pode ser algo prazeroso e lúdico” (p. 58).

Uma das principais características que relaciona o jogo eletrônico e o aprendizado é a necessidade do desenvolvimento de alguma estratégia de solução para conseguir ultrapassar os estágios propostos pelo jogo, necessitando a participação ativa por parte dos jogadores, o que representa um ganho em relação a abordagens de aprendizado mais passivas. Crawford (1982) propõe duas grandes categorias para os jogos: jogos de habilidade e ação (skill-and- action games ou S&A) e os jogos de estratégia (strategy games). A principal diferença entre essas duas categorias é o tempo de resposta do jogador, sendo imediata para a primeira categoria, valorizando os reflexos, e mais demorada para a segunda categoria, que prioriza o raciocínio lógico. Os jogos de habilidade e ação demandam do jogador uma coordenação entre as mãos e os olhos do jogador, respondendo rapidamente aos estímulos visuais do jogo, enfatizando principalmente os gráficos e os sons, para fornecer as informações necessárias para a resposta do jogador. Dentro dessa categoria, são encontrados os jogos de categorias: de combate (combat), de labirinto (maze), de esportes (sports), de rebater (paddle), de corrida (race) e outros tipos (miscellaneous).

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Os jogos de combate tem como objetivo principal atacar os inimigos e se posicionar para não ser atingido; os de labirinto, como o nome sugere, apresenta ao jogador um mapa e o objetivo é se deslocar por ele até encontrar uma saída, ou um objeto a ser coletado; os de esportes tem como ideia principal a tradução de mecânicas de jogos esportivos reais para o ambiente digital; os de rebater são jogos com mecânicas em que o jogador controla uma espécie de raquete, e tem por objetivo posicionar esse paddle (remo, em tradução livre, mas para o jogo, acreditamos que a melhor tradução seja anteparo) de forma a não deixar a bola, ou o que quer que tenha de ser rebatido, passar; os de corrida funcionam de maneira semelhante ao dos esportes, em que a ideia principal é traduzir para o ambiente digital a dinâmica das corridas; e os outros tipos são aqueles cuja categorização proposta pelo autor não consegue abarcar por completo. Já os jogos de estratégia demandam do jogador uma tomada de decisão mais demorada, pensando não apenas na resposta próxima, mas nas consequências a longo prazo, que podem levar à vitória ou derrota no jogo. As ações não são em tempo real, o jogador tem tempo para avaliar todas as opções possíveis antes de realizá- las, valorizando o raciocínio.

Esses jogos são subdivididos em: de aventura (adventure), de Dungeons and Dragons (D&D), de guerra (wargames), de chance (games of chance), interpessoais (interpersonal) e educacionais (educational).

Os jogos de aventura apresentam ao jogador um mundo a ser explorado, introduzindo desafios a cada nova parte encontrada; os jogos de Dungeons and Dragons (D&D) tem como base o sistema homônimo de role-playing game (RPG) de mesa, com foco inicial em traduzir para o ambiente digital as dinâmicas desse sistema30. Os jogos de guerra, segundo o autor, simulam táticas de combate, e o papel do jogador é tomar as decisões táticas certas para vencer as batalhas; segundo o autor, é um dos tipos de jogos mais difíceis de se implementar, por conta da alta complexidade das suas regras de jogo. Os jogos de chance são aqueles que têm como principal característica o uso da probabilidade como mecânica principal; jogos de cartas, de dados, de roleta, são alguns dos exemplos. Os interpessoais são os jogos cujo foco é na relação entre os jogadores, a troca de informações e a sua comunicação, funcionando bem em jogos de espionagem ou que envolvam situações diplomáticas.

30 Dungeons and Dragons é um sistema de jogo não-digital criado por Gary Gygax, em que os jogadores interpretam aventureiros. Guiados por um mediador, chamado de dungeon master (DM) que determina que tipo de desafios vão aparecer ao longo das aventuras, os jogadores têm de tomar decisões, baseados nas capacidades de seus personagens, para atingir o objetivo determinado pelo DM (CRAWFORD, 1982).

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Os jogos educacionais, agrupados com os jogos infantis (children’s games) na categorização de Crawford, são aqueles cujo objetivo principal é com o conteúdo, com o ensino. Embora pontue que todos os jogos são, de alguma forma, educacionais, o autor não desenvolve as implicações dessa afirmação ou o porquê da associação com os jogos infantis.

Longe de querer discutir o que faz um jogo infantil, o autor parece categorizar todos esses com um propósito semelhante ao educacional, sendo implícita a ideia de que um jogo para crianças é automaticamente, ou ao menos majoritariamente, um jogo cujo objetivo principal é o ensino de conteúdos, muitas vezes escolares.

Por mais que proponha várias subcategorias para os jogos de estratégia e habilidade e ação, Crawford (1982) admite que a sua categorização é falha, e cita exemplos de jogos que desafiam a sua taxonomia, e que parecem não se encaixar em nenhuma das categorias ou em mais de uma delas; o que é compreensível, já que a sua obra data da década em que os jogos começaram a se popularizar. O autor reconhece, por exemplo, que apesar da incompletude de sua definição, não vê motivos pelos quais jogos de guerra (wargames) devem ser estudados separados dos jogos de Dungeons and Dragons; ou a possibilidade de jogos como Pac-Man serem estudados como uma interseção entre os jogos de labirinto e os jogos de combate, uma vez que ao mesmo tempo que o jogador tem que encontrar o seu caminho pelo mapa, tem de fazê-lo alternando momentos de fuga e de combate com os inimigos. Apesar de incompleta, a categorização dos jogos proposta por Crawford (1982) apresenta contribuições importantes para a divisão dos jogos, principalmente com base nas habilidades necessárias para a sua fruição, como o raciocínio lógico, a coordenação entre olhos e mãos e os reflexos rápidos.

Cremos que a principal contribuição seja a definição das duas categorias (skill-and- action e strategy games), que falam a respeito principalmente das mecânicas do jogo, importantes para caracterizar um jogo digital a partir do raciocínio envolvido no ato de jogar e as habilidades necessárias para tal.

Adams (2010), propõe uma nova classificação dos jogos, que em muito herda da categorização de Crawford. Abandonando as duas grandes categorias, essa nova divisão se dá em jogos de: ação (action), estratégia (strategy), interpretação de papéis (role-playing), esportes (sports), simulações de veículos (vehicle simulations), simulações de construção e gerenciamento (construction and management simulations), aventura (adventure), vida artificial (artificial life), quebra-cabeças (puzzle) e jogos online.

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Os jogos de ação de Adams herdam as características da grande categoria dos jogos de habilidade e ação (skill-and-action) de Crawford, sendo caracterizados por jogos que demandam a coordenação olho-mão para responder aos estímulos apresentados. Dentre os jogos de ação, podemos encontrar os subcategorias: tiro (shooter); luta (fighting), que herda as características dos jogos de combate propostos por Crawford; plataforma (platform), cujo ambiente se dá a partir de plataformas flutuantes que demandam do jogador boa coordenação para explorar o ambiente a partir delas; de quebra-cabeças ágeis (fast puzzles), que, apesar de se comportarem como quebra-cabeças, demandam agilidade do jogador; as aventuras de ação (action-adventures), que adicionam o caráter exploratório aos jogos de ação; os jogos de música, dança e ritmo (music, dance and rhythm); e os outros tipos de jogos de ação, que segundo Adams (2010), só podem ser definidos a partir da negação das características dos outros subcategorias.

O jogos de estratégia de Adams (2010) compartilham das mesmas ideias da categoria de Crawford (1982), valorizando o raciocínio e não a resposta imediata e coordenação motora do jogador para desempenhar as funções necessárias para o jogo. O mesmo vale para a categoria dos jogos de esportes; embora na definição de Crawford (1982), estes estejam como subcategoria dos jogos de skill-and-action, na classificação de Adams (2010), estes também têm como característica principal a adaptação das dinâmicas e regras para o ambiente digital.

Os jogos de interpretação de papéis (role-playing games ou RPGs) compartilham características com os jogos D&D de Crawford, que também são jogos de RPG, mas se limitam a um sistema em específico. Assim como o Dungeons and Dragons, e outros sistemas de RPG traduzidos para o ambiente digital, os jogos digitais de interpretação de papéis se caracterizam por mostrar as aventuras de um personagem, ou de um grupo pequeno deles (comumente chamado de party), cujas habilidades e narrativas se desenvolvem ao longo do jogo; cada uma dessas aventuras, normalmente nomeadas como quests, possuem um objetivo a ser atingido por um personagem ou pelo seu grupo. Como esse tipo de jogo digital possui um grande foco na narrativa, Adams (2010) afirma que isso o torna extremamente versátil, podendo haver híbridos entre os RPGs e jogos de ação, de aventura, entre outros.

Inicialmente, os jogos de simulação de veículos (vehicle simulation) de Adams (2010) podem até parecer com os jogos de corrida de Crawford. Mas o primeiro apresenta uma complexidade maior, pois não só envolve as corridas dentro dessa categoria, como também tem como característica a (re)criação da sensação de dirigir ou pilotar um veículo, seja este

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terrestre, aéreo ou aquático, focando mais nas funcionalidades dos veículos do que na competição entre eles.

Os jogos de simulação de construção e gerenciamento (construction and management simulations ou CMS), como o próprio nome sugere, tem por objetivo a construção, seja de uma cidade, de um império ou de um formigueiro (ADAMS, 2010) e o seu gerenciamento, enfrentando as intempéries que podem afetar o seu sistema e demandando do jogador um pensamento estratégico para conter as crises e fazer a sua construção prosperar. Esses jogos não tem um final, tampouco um adversário aparente, o objetivo é fazer com que o que quer que o jogador tenha construído, se desenvolva e dure o maior tempo possível. Os jogos de vida artificial (artificial life ou a-life), parte de uma premissa semelhante, mas dessa vez, em vez de uma preocupação com construções ou cidades, há a preocupação com seres vivos, dando vida a essas criaturas, gerenciando as suas atividades diárias e atendendo às suas necessidades, que variam de acordo com o jogo.

Os jogos de aventura (adventure) de Adams são caracterizados de maneira semelhante aos de Crawford, a diferença é que Adams não atrela a obrigatoriedade de um jogo de aventura ser necessariamente de estratégia, não demandando, por consequência, uma resposta rápida do jogador. Já os jogos de quebra-cabeças (puzzles) são uma adaptação do modelo analógico, ou da vida real. O que o ambiente digital agrega a esses modelos físicos é expandir as possibilidades, como armazenar os movimentos realizados pelo jogador, remover limites característicos dos modelos físicos e endurecer as regras para que estas sejam mais difíceis de serem burladas.

Por mais que os jogos online apareçam como uma categoria para o autor, cremos que eles adicionam uma característica a mais aos outros tipos de jogos, tais como aventura, ação, entre outros. A adição que o online traz é a possibilidade de multijogadores de maneira remota, utilizando a internet. Entretanto, isso não quer dizer que a característica online seja dispensável, muitos jogos desse tipo incorporam isso como dinâmica importante do jogo, necessitando, por exemplo, que diversos jogadores estejam conectados e presentes em determinado espaço do jogo para conseguirem, de maneira cooperativa, vencerem um desafio.

Apesar de cobrir de maneira mais detalhada as categorias de jogos digitais, Adams (2010) não se preocupa em falar sobre os jogos educacionais. Entretanto, ao revisar a categorização proposta pelo autor, não percebemos nenhuma categoria que exclua a

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possibilidade do jogo possuir um propósito educacional, possibilitando uma leitura de um jogo educativo como um híbrido, por exemplo: um jogo de ação, ou de estratégia, ou de ritmo que, além das características nativas de sua categoria, tenha a preocupação com o ensino de algum conteúdo, conforme apontado por Crawford (1982).

Johnson (2005) afirma, em seu livro Everything Bad is Good for You (Tudo Que É Ruim É Bom Para Você, em português), que os jogos ajudam aos seus jogadores a desenvolver diversas habilidades, como a coordenar olhos e mãos, reconhecer padrões, apurar a destreza e o raciocínio lógico. Esse aprimoramento se dá por uma característica já citada dos jogos digitais: o fato do jogador precisar fazer escolhas, tomar decisões, para que ele aconteça. O autor fala que uma boa maneira de atestar isso é perceber a série de operações que o jogador tem de realizar para atingir o seu objetivo, e que esse aprendizado vai para além do conteúdo do jogo. Ao citar o exemplo de Age of Empires, jogo que se vale da mitologia e história de grandes impérios da história da humanidade, Johnson (2005) afirma que, além do conteúdo histórico que serve para embasar a história e a estética do jogo, as decisões que precisam ser tomadas incentivam o raciocínio lógico e a formulação de estratégias para que o jogador possa obter sucesso nos desafios que o jogo propõe.

Essa categorização serve como base para que possamos entender mais os jogos a partir de suas características e seus elementos. Ressaltamos, entretanto, que não devem ser tratadas como pétreas ou mutuamente excludentes; diversos jogos, como as categorizações apontam, apresentam elementos ou determinadas partes que pegam emprestadas características de outros tipos de jogos.

2.4 Gameplay, quests e episódios de jogo

Como afirmado anteriormente, Persona 4 pertence à categoria de RPG, tendo como focos importantes os diálogos, visto que a narrativa do jogo possui um papel destacado para o entendimento dos objetivos, e as batalhas. Adams (2010) afirma que esse tipo de jogo - o RPG - permite a articulação com outras categorias, como a de ação, que implicaria em uma rápida resposta e boa coordenação entre os olhos e as mãos do jogadores para que o jogador possa inserir o comando demandado pelo jogo na hora certa. Entretanto, Persona 4 se encontra mais próximo da abordagem estratégica de Crawford (1982), que permite ao jogador tomar o tempo que for necessário para fazer as suas escolhas. Em outras palavras, pode pensar

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nos efeitos causados pelas suas decisões a médio e longo prazo, enquanto nos jogos de ação, a avaliação do que é mostrado na tela tem de ser rápida, visando os efeitos a curto prazo.

Esse conjunto de ações que são tomadas frente a um desafio imposto pelo jogo fazem parte de uma dinâmica chamada por Adams (2010) de gameplay. Para o autor, esse gameplay consiste nos desafios que o jogador tem de superar e todo o conjunto de ações que o permitem fazê-lo. Retomando o jogo Pong como exemplo, os desafios propostos pelo jogo são dois: marcar pontos e impedir que o adversário faça o mesmo. Para tal, o jogador dispõe de apenas uma ação possível, que é movimentar verticalmente o anteparo para rebater a bola. Conforme a complexidade do jogo aumenta, cresce também a quantidade de desafios e o conjunto de ações que podem ser feitas para superá-los.

Se tomarmos, agora, como exemplo o jogo Super Mario World, o objetivo principal do jogo é resgatar a princesa Peach, que foi sequestrada pelo vilão Bowser. Por apresentar uma complexidade maior que Pong, os desafios são hierarquizados, cada um possuindo um conjunto de ações necessárias para que um determinado obstáculo seja superado. Johnson (2005) afirma que, embora os jogos possuam alguns desses conjuntos em comum (por exemplo, apertar os botões para se movimentar ou desempenhar alguma ação), cada jogo tem uma organização própria. De maneira simplificada, visto que foge ao escopo do presente trabalho definir um fluxo de ações de Super Mario World, para resgatar a princesa Peach, o jogador precisa vencer o chefão Bowser. Para vencer Bowser, o jogador necessita chegar até determinada fase para enfrentá-lo; para tal, é necessário passar por todas as outras fases; seguindo nesse processo até chegar nas etapas chamadas por Johnson (2005) de atômicas, que são as etapas que não apresentam uma subdivisão, como apertar um botão para se deslocar horizontal ou verticalmente.

Tomando como exemplo um desafio específico, derrotar o chefão Bowser em Super Mario World, podemos perceber o conjunto de ações que podem ser realizadas para atingir o objetivo proposto. O conjunto de ações para derrotar Bowser incluem: a movimentação horizontal, que serve para desviar dos projéteis lançados; pular, que serve tanto para desviar quanto para derrotar os inimigos que aparecem na fase; arremessar os inimigos para atingir a cabeça de Bowser, entre outros. Se mudarmos o desafio, por exemplo, ao mudar a fase do jogo, por mais que grande parte das mecânicas de conserve, o seu uso será adaptado ao conjunto de ações, de habilidades, necessárias para vencer o desafio proposto nessa etapa.

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Em jogos como Super Mario World, esse conjunto de ações tem de ser realizado rapidamente. O jogador não pode, por exemplo, demorar a reagir ao ver um projétil vindo em sua direção, mas sim tem de apertar os comandos rapidamente para não ser acertado; caso contrário, sofrerá a penalidade prevista pelo jogo. Entretanto, conforme afirmado anteriormente, alguns jogos permitem que o jogador calcule bem as suas ações possíveis e reflita sobre as consequências de uma decisão ou outra. Jogos de RPG, como Final Fantasy e Persona, ao colocar o jogador em um embate contra os inimigos, permite a visualidade de todas as ações possíveis: atacar, conjurar magias, usar itens, defender, fugir, entre outros. Organizado por turnos, cada um dos personagens em batalha, controlados pelo jogador ou pela máquina, escolhe uma ação a ser realizada. Esse tipo de organização permite ao jogador pensar melhor sobre suas escolhas. Por exemplo: se ele sabe que a próxima vez é a de um inimigo, o jogador pode presumir que será atacado, então coloca o seu personagem para usar uma magia de cura quando for a sua vez, reparando o dano sofrido. A maioria desses jogos não impõe um tempo limite para que o jogador realize os comandos, deixando que o planejamento e as previsões tomem o tempo que for necessário.

Persona 4 possui dois mundos, o mundo comum e o mundo fantasioso, o primeiro focado nas interações entre o protagonista e os demais personagens, e o segundo voltado para as batalhas entre o grupo controlado pelo jogador e os inimigos. No mundo comum, o conjunto de ações mais valorizado é o de escolha de opções de diálogo, que, além de dar andamento à história, ajuda o jogador a alcançar certas vantagens. Ao se engajar em uma interação com um personagem, é possível que, em algum momento, seja perguntado ao jogador o que deseja responder. Dependendo da opção escolhida, é possível levar o diálogo por um determinado caminho e fortalecer a relação entre o protagonista e o personagem com quem iniciou uma interação. Já no mundo fantasioso, focado nas batalhas com os inimigos, o conjunto de ações mais relevantes são as opções que aparecem em combate. Tal como Final Fantasy e outros jogos da mesma categoria, o jogador pode ordenar que os personagens realizem algumas ações, como atacar, usar magias, defender, analisar os inimigos, usar um item ou fugir.

Os desafios e objetivos maiores, ou seja, os desafios não-atômicos dos jogos são organizados de maneira diferente. Títulos como Super Mario World e Donkey Kong são organizados em fases; jogos de luta como Mortal Kombat ou Street Fighter por partidas; Final Fantasy e Persona são organizados por missões (quests); outros jogos, como Tetris, não

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possuem um fim determinado, dependendo das habilidades do jogador para o prolongamento da sessão de jogo. Como o jogo a ser analisado é Persona 4, julgamos importante elucidar o conceito de quests, ou missões de jogo, para que seja possível uma melhor compreensão da estruturação do jogo.

Howard (2008) inicia a discussão de quest (usaremos como tradução livre o termo missão) com base em uma definição literária que sugere uma expedição ou aventura com um objetivo definido, como obter um item de valor, resgatar alguém, obter conhecimento, derrotar um inimigo, entre outros. O autor afirma que o sistema de missões de um jogo tem uma relação íntima com a narrativa presente nessas produções. Contudo, é importante ressaltar que nem todos os jogos necessariamente possuem uma narrativa intrínseca ao seu gameplay (ADAMS, 2010). Pensadas dessa maneira, Howard (2008) propõe que as quests possam ser vistas como estruturas episódicas dentro do jogo. Para Herman (2009), um episódio é uma unidade narrativa, uma sequência coerente de situações e eventos internamente interligados e coerentes. Esses episódios podem se ligar a outras unidades narrativas para compor uma história maior. No caso dos jogos, essas missões se interligam com o objetivo de dar continuidade ao jogo.

Orientadas por um objetivo, essas buscas se dividem, de acordo com Howard (2008) em duas grandes categorias: as principais (main quests) e as secundárias (side quests). Nos jogos que possuem uma narrativa que norteia os acontecimentos principais, as main quests são aquelas que desenvolvem esse fio condutor, encarregando-se de ordenar e organizar esses eventos fundamentais para o andamento da história subjacente ao jogo. Já as side quests são aquelas que ajudam a desenvolver histórias paralelas aos eventos que não necessariamente tem impacto na narrativa principal, mas que contribuem para a expansão do universo do jogo, desenvolvendo personagens ou locais que não tem tanta importância assim para o fio principal.

As histórias desses jogos com um foco narrativo, podem se organizar em: histórias lineares, ramificadas, recursivas e emergentes (ADAMS, 2010). Nas histórias lineares, chamadas por Schell (2008) de string of pearls (corrente de pérolas, em tradução livre), os eventos importantes estão encadeados um após o outro e a capacidade do jogador de modificar esses eventos se torna limitada, por conta da sua inevitabilidade. Já as histórias ramificadas oferecem diversos caminhos narrativos, que são modificados pelas escolhas feitas pelo jogador, levando a diferentes conclusões. As histórias recursivas são uma categoria

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intermediária entre as lineares e as ramificadas, pois entre um evento inevitável e outro, o jogador tem liberdade para fazer diversas escolhas que modificam, de maneira limitada, o rumo dos acontecimentos. Por último, as histórias emergentes são aquelas que não possuem blocos narrativos criados pelos produtores, deixando que o jogador ordene os acontecimentos. Esse tipo de narrativa é comum em jogos de vida artificial ou de gerenciamento. É o caso da franquia The Sims, que não possui uma ordem programada para os acontecimentos, tampouco acontecimentos chave, tendo apenas alguns eventos pontuais programados, enquanto a história é construída juntamente com as ações de quem joga. O jogo Spore31 (2008) também funciona de maneira semelhante; no jogo, o objetivo é criar vida em um planeta ainda inóspito e assistir ao desenvolvimento das espécies, logo, os blocos narrativos não são definidos, sendo o curso do jogo delineado de acordo com as ações do jogador ao modificar as espécies do seu planeta.

Dentro dessa categorização, a história de Persona 4 se enquadra em uma narrativa recursiva. O jogo é organizado em dias, seguindo um calendário. Embora o jogador tenha a liberdade para realizar diversas atividades na maioria dos dias do jogo, em algumas datas específicas, existem eventos que tem a obrigatoriedade de acontecer, não importando quais outras atividades o jogador tenha participado nos dias anteriores. Esses eventos obrigatórios permanecem inalterados, de forma a garantir que o curso dos acontecimentos aconteça conforme o planejado pelos desenvolvedores. Explicando: como o jogo trata de uma série de desaparecimentos, por mais que o jogador possa, por exemplo, treinar seus personagens, fazer missões secundárias ou passear pelo cenário do jogo na maior parte do tempo, em determinados momentos do jogo, os desaparecimentos vão acontecer e o jogador tem de concluir essa missão principal, caso contrário perderá o jogo.

Como as missões principais de Persona 4 a serem analisadas possuem relação com os personagens envolvidos e as suas identidades de gênero e orientações sexuais, dedicamos o próximo capítulo a discutir os conceitos de personagem e de gênero, e como questões referentes à identidade de gênero e orientação sexual podem integrar o desenvolvimento de um personagem de jogo digital.

31 Site oficial de Spore acesso em 24 fev. 2021

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3. O CANAL DA MEIA-NOITE: ENTRE PERSONAGENS E GÊNERO

3.1 Uma discussão sobre gênero e personagens de jogos digitais

Elemento central de Persona 4, o conceito de personagem demanda uma elucidação. Brait (1985), na obra A Personagem, começa revisitando alguns conceitos que definem essa figura. Partindo da premissa de que o personagem habita uma realidade ficcional, a autora questiona uma primeira possível definição de que os personagens representam pessoas fictícias. Contudo, a autora não parece satisfeita com essa definição, avaliando-a como redutora. Ela afirma que essa relação obrigatória entre a pessoa humana e o personagem mais confunde do que ajuda a clarear o que está no cerne do conceito de personagem. Ao buscar um dicionário especializado em literatura, Brait (1985) identifica que os personagens representam pessoas segundo as características da ficção. De maneira semelhante, em busca de uma definição mais acurada, Brait, apoiando-se em ideias aristotélicas, postula que a personagem não deve ser vista como uma pessoa fictícia, mas como o reflexo (termo que aparece como sinônimo de imitação) de uma pessoa. Recorrendo ao exemplo da fotografia, a autora diferencia a foto três por quatro e as fotografias de estrelas de cinema. Para Brait, por mais que a primeira esteja mais atrelada à realidade do fotografado, assumindo um caráter mais objetivo e a segunda tenda a se aproximar de uma idealização, ambos os registros passam por uma produção que busca reproduzir a realidade. Nas palavras da autora: “O fotógrafo não registra uma imagem. Ele cria uma imagem. Seu ponto de partida e seus instrumentos são trabalhados para criar a ilusão do real” (BRAIT, 1985, p. 16).

Quanto mais avança no texto, mais a autora parece se afastar da sua definição anterior, abandonando a relação entre pessoa e personagem. Isto porque essa baliza é vista como um empecilho para a autora, pois, independente de ser uma imitação ou uma representação, ainda está em uma relação direta com uma pessoa humana. Brait chega a um conceito mais consolidado de que a personagem é uma entidade específica da trama à qual está submetida, e que se torna mais nítida conforme a narrativa em que está inserida se desenvolve. Nesse percurso, a autora passa de uma definição que engloba apenas as formas humanas de personagens (excluindo assim os personagens das fábulas, animais personificados) para uma entidade narrativa de fisionomia, de constituição própria da narrativa, acolhendo as formas não-humanas de personagem, e livrando-se, finalmente, dessa baliza que tanto a inquieta ao longo do livro. Sobre o personagem, acolhendo não apenas as figuras humanas, a autora, ao final, postula que a personagem aparece “como produto do enredo” (BRAIT, 1985, p. 42).

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Cândido et al (1976) dizem que para um personagem se configurar como tal, é necessário mais do que tão somente uma descrição, mesmo que extensa. Para se consolidar, e ser entendida com clareza como personagem, essa entidade narrativa precisa se animar e se humanizar, podendo ser entendida com clareza somente a partir da sucessão de estados. Por mais que entre em conflito com o conceito de Brait (1985), no quesito humanizar, podemos aliar o conceito trazido pelos autores de que a personagem, entidade narrativa que surge dentro das especificidades do enredo, só se consolida como tal a partir da sua capacidade de ação, tornando-se cada vez mais nítida ao longo da sua narrativa.

Seger (1990), ao abordar a construção de um personagem, afirma que essa entidade narrativa não existe no vazio, que ela precisa de um contexto para a sua existência. Essa afirmação pode ser posta juntamente com uma de Brait (1985) que afirma que um personagem tem uma relação de verossimilhança interna com o seu enredo. Com verossimilhança interna, Brait quer dizer que, embora não seja crível no mundo real, o personagem e tudo o que está relacionado a ele precisa ser crível dentro do mundo criado na narrativa, caso contrário, este parecerá deslocado. Isbister (2006) destaca a verossimilhança externa como um elemento crucial para a criação e composição de uma personagem, e também para relação com o público. A autora afirma que o personagem também pode parecer deslocado, caso o jogador não consiga se identificar com ele e relacioná-lo com pessoas ou situações externas à narrativa.

Embora essas definições venham de universos literários, televisivos e cinematográficos, elas podem ser aplicadas à análise de um jogo digital. A principal diferença, já ressaltada na seção anterior, é que alguns personagens (não todos) só desempenham ações, ou nos termos de Cândido et al (1976), só se animam, a partir de comandos dados pelo jogador. Dizemos alguns personagens pois, conforme afirmado anteriormente, o jogador passa a participar do universo de jogo ao se tornar, e controlar, um personagem; mas esse personagem controlado por quem joga não é o único existente, havendo outros personagens cuja sucessão de estados se dá de maneira independente, seguindo o roteiro pré-estabelecido. Por essa particularidade do jogo, recuperamos a divisão de personagens de jogos digitais de Isbister (2006), que os apresenta divididos em: personagens jogáveis (playable characters ou avatar) e personagens não-jogáveis (non- playable characters ou NPCs).

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Entretanto, ao tratar de Persona 4, a divisão entre os personagens entre jogáveis e não- jogáveis não é tão simples assim. Explicando: como afirmado anteriormente, o jogo se caracteriza como uma fantasia de portal, apresentando um limiar entre o mundo comum e o mundo fantástico (no caso do jogo, o mundo da TV). Enquanto no mundo comum, são valorizadas as interações entre os personagens, no mundo da TV o foco principal é a exploração dos cenários e o combate. Como o jogador fica com a responsabilidade de controlar o protagonista, no mundo comum, os demais personagens principais (como Yukiko, Chie, entre outros) têm as suas rotinas, as suas ações, pré-determinadas pela estrutura do jogo, não sendo possível controlar as funções que estes desempenham. Eles só se tornam personagens jogáveis a partir do momento em que há essa mudança de mundo.

Na batalha, o jogador pode escolher o que cada um dos personagens pode fazer. Por exemplo: escolher se Yukiko atacará, usará uma magia, se defenderá, entre outras possibilidades. No conjunto de ações possíveis, ainda temos mais uma particularidade para uma das personagens. Rise não participa do combate do jogo, mas a sua assistência pode ser utilizada a qualquer momento, para que ela faça a análise dos inimigos e descubra as suas fraquezas e resistências. Dessa forma, podemos pensar nos personagens principais de Persona 4 como aqueles que integram o grupo (chamado comumente de party) do protagonista, sendo elementos centrais para as quests do jogo e tendo participação fundamental nos embates deste.

Recuperamos aqui uma discussão que deixamos em suspenso na seção anterior. Os personagens não-jogáveis, ou NPCs, são justamente os outros participantes do jogo criados pelo próprio sistema. Assim como os personagens de outras produções, os NPCs seguem roteiros pré-estabelecidos ou possuem, em sua estrutura interna, algoritmos de decisão que alteram as suas ações de acordo com o comportamento do [avatar do] jogador.

Esses personagens não controlados pelo jogador podem assumir papéis relevantes para a história, como aliados ou inimigos, dividindo o protagonismo com o personagem controlado pelo jogador, ou podem desempenhar papéis menores, como comerciantes e transeuntes. Resgatando um termo da mitologia hindu, o personagem controlado pelo jogador, o avatar, é, assim como nos mitos, uma manifestação corporal de um ser imortal; guardadas as devidas proporções, no jogo eletrônico, é a manifestação digital de um ser real, analógico, é a forma que ele encontra de interagir com esse mundo. Schell (2008) avalia que o jogador e o avatar têm uma relação que alterna entre uma completa simbiose entre jogador e avatar, ao ponto do jogador confundir-se com o personagem e narrar todos as ações do avatar em primeira

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pessoa, e uma completa separação entre os dois, numa clara cisão entre a ação de quem joga (“eu apertei o botão”) e a do personagem (“e meu avatar atacou”). Sobre a formulação do avatar, principalmente nos jogos em que há um grande envolvimento com a narrativa, Schell (2008) aponta que há divergências sobre qual seria o melhor modelo de composição desse personagem, indicando dois grandes modelos: “a folha em branco” ou o personagem ideal.

A “folha em branco” é um modelo de avatar que não apresenta muitas características marcantes, ficando a cargo do jogador projetar nele as suas nuances, ou as nuances desejadas. Esse tipo de avatar normalmente não fala, para que, ao ler os diálogos, o jogador possa responder, mentalmente e fora do jogo, por ele. Já o personagem ideal parte do pressuposto que o avatar é tudo aquilo que um jogador quer ser: uma bruxa super poderosa, um guerreiro de força sobre-humana, uma agente secreta, uma criatura mística, entre outros exemplos. Entretanto, nesse pressuposto está inclusa, também, a personalidade desse avatar. Diferente do “folha em branco”, o personagem ideal possui um caráter bem definido: destemido, corajoso, sedutor, leal, misterioso, entre outros. Esse tipo de avatar, para gerar o envolvimento necessário do jogador, tem que apresentar o que Isbister (2006) chama de “uma fantasia que o jogador gostaria de experimentar” (p. 178). Em Persona 4, enquanto o protagonista é do tipo “folha em branco”, ficando a cargo do jogador decidir os aspectos da sua personalidade e escolher entre as respostas possíveis para os diálogos, os demais personagens que integram o rol de personagens jogáveis são ideais, tendo características bem definidas; por exemplo: Yukiko é bela e delicada, Chie é forte e enérgica, Rise é carismática e talentosa, Kanji é bravo e impaciente e Naoto é inteligente e sagaz.

O problema é que algumas dessas fantasias, aponta Isbister (2006), oferecem personagens ideais apenas para um determinado tipo de público, partindo do pressuposto que a maior parte dos jogadores são adolescentes heterossexuais do gênero masculino.

Retomamos a afirmação de Williams et al (2009) sobre o jogo digital poder ser, ao menos parcialmente, um reflexo do seu contexto de produção, para pensarmos como o jogo é produzido. Segundo estes pesquisadores, ainda acredita-se que o público dos jogos digitais é composto, em sua maioria, por adolescentes heterossexuais do gênero masculino. Essa crença serve de baliza para grande parte do conteúdo inserido nos jogos. Retomando também Brougère (2001), que reconhece a natureza seletiva desse suposto "reflexo", é possível perceber que os valores sociais presentes nessas produções, se tomarmos a afirmação de

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Isbister (2006) como certa, não são reflexos imediatos, mas uma mediação entre o que é observado no contexto de produção e o que é mostrado para os jogadores.

Em seu livro Creating Unforgettable Characters (Como Criar Personagens Inesquecíveis, em português), Linda Seger (1990) dedica um capítulo para falar sobre estereótipos e como eles surgem. Para a autora, estereótipos são a representação de um grupo de pessoas utilizando apenas um pequeno conjunto de características (p. 78) e que normalmente esses estereótipos são negativos, por mostrar o outro através de uma representação enviesada. Seger (1990) afirma que muitos grupos sofrem com os efeitos dessa estereotipação, entre eles, pessoas com sexualidades diferentes da heterossexual e as mulheres. Entretanto, a autora também traz que nem os homens estão livres dessa estereotipação, uma vez que, ao excluir outras identidades que diferem do “super macho”, há uma maior fixação do que se espera do comportamento de um homem.

Essas questões apontadas por Seger (1990) e Isbister (2006) nos levam a enveredar pelo terreno de gênero, sendo necessária uma elucidação sobre o termo. Ao falar que não se nasce mulher, torna-se, Beauvoir (1953) traz nessa afirmação que o gênero não é algo determinado biologicamente, atrelado obrigatoriamente à diferenciação dos corpos em masculino e feminino. Tornar-se mulher é, sobretudo, incorporar e ser reconhecida como tal de acordo com o é considerado “ser mulher” em determinado contexto. Com base nessa afirmação já é possível perceber, por exemplo, a inexistência de um conceito, ideia ou molde universal de homem ou mulher. Por mais que existam algumas características em comum, o que compõe o rol de características masculinas ou femininas (em termos de gênero, não em termos de biologia) é influenciado temporal, geográfica e, sobretudo, culturalmente pelo contexto onde essas definições de gênero são aplicadas. Joan Scott (1986) afirma que a existência dessa percepção de masculino e feminino surge a partir de subjetividades inscritas em relações culturais ditadas por um complexo sistema de regras. Esse sistema adquire essa complexidade pois o gênero permeia as mais diversas esferas da vida de um indivíduo, como o comportamento, o trabalho e as relações amorosas e familiares.

Juntamente com Conway e Bourque, Scott (1996) traz, em consonância com um trabalho de Chartier (1995), a ideia de que os papéis desempenhados pelos gêneros masculino e feminino surgem não exclusivamente com base em uma divisão biológica (em macho e fêmea, ou XY e XX), que se refere a uma evolução biológica ou disposição natural dos corpos. Esses papéis surgem principalmente relacionados a uma estrutura social e econômica

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que designa ao homem ou à mulher suas funções na sociedade, como trabalhar fora para prover o sustento ou dedicar a vida ao cuidado e manutenção do lar e da família. Chartier (1995) revela que essa relação dista de uma suposta naturalidade e que essa divisão de tarefas de acordo com o gênero, a divisão sexual do trabalho, é um desdobramento do desenvolvimento industrial, delegando às mulheres funções consideradas inferiores e ligadas à manufatura, à casa, enquanto ao homem é delegado o papel da indústria, do externo.

Essa naturalidade forjada que diz ser instintivo da mulher o cuidado, a atenção, e a “intuição feminina” é, para Bourdieu (2019), antes de mais nada, condicionada. Para o autor, a mulher se vê condicionada a desenvolver tais características por conta de um sistema de dominação em que elas ocupam posições inferiores. O autor chama essa intuição de uma “perspicácia peculiar dos dominados” (BOURDIEU, 2019, p. 58) e reitera que, antes de ser uma característica atrelada à mulher, é uma estratégia de sobrevivência desenvolvida pelos grupos que sofrem com processos de subalternização.

Em um artigo sobre a descoberta histórica do gênero, Rago (1998) afirma que essas categorias cristalizadas e (supostamente) naturais ao gênero devem ser pensadas não a partir de disposições, mas de processos históricos e culturais que elencaram esse rol de características para os gêneros. Fazendo uma leitura junguiana, Bello (2016) traz um pensamento que cremos ser possível alinhar com o questionamento [sobre a “intuição feminina”] de Bourdieu exposto acima. Longe de serem características inerentes ao corpo sexuado, a uma lógica dualista em que o animus e a anima32 são designados, respectivamente, ao homem e à mulher, o que é considerado socialmente feminino ou masculino pode ser desenvolvido por qualquer indivíduo, visto que essa categorização não encontra a sua finalidade na biologia (muito embora essa área do conhecimento por muitas vezes seja usada para justificar tais fins dados ao gênero).

É observável, nessa discussão inicial, os estudos de gênero sempre atrelados à figura feminina e às opressões sofridas por conta de um sistema que valoriza a figura masculina. Joas e Knöbl (2013) afirmam que inicialmente os estudos de gênero tinham uma ligação

32 Animus e anima são, de acordo com Jung (2014) pares de características diametralmente opostas, como o claro e o escuro, o individual e o coletivo, e, também, o masculino e o feminino. No lado do animus, temos o masculino, as manifestações exergéticas, o poder individual, enquanto na anima temos o feminino, o repouso, o poder do coletivo e a horizontalidade. Muito embora essas características sejam atribuídas como inerentes ao homem (animus) e à mulher (anima), os indivíduos, independente do seu (e aqui uso livremente o termo) sexo biológico ou gênero, são capazes de desenvolver características de ambos os lados, muito embora sejam estimulados, culturalmente, a desenvolver o lado que correspondente ao seu gênero.

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direta, sendo uma relação quase sinonímica, com o feminino. Por conta das diferenças observáveis entre os homens e as mulheres dentro de um mesmo contexto social, os trabalhos iniciais tentavam justamente chegar a uma explicação ou às causas dessa relação desigual entre os (até então entendidos como) dois gêneros. Mais do que um sinônimo de feminino, no entanto, os estudos de gênero podem ser conduzidos de forma a entender as implicações do gênero (masculino, feminino e outros, como veremos adiante) nas relações e na organização social.

Além da presença do fator contextual do gênero, algo que também podemos perceber, com certa recorrência, é essa relação, ou a tentativa de uma relação com a biologia. Com essa suposta finalidade biológica, Butler (2003) afirma que o gênero surge de um suposto determinismo em que a genitália caracteriza o gênero de um indivíduo. Muito embora a autora não negue a relação entre a biologia (o “sexo”), que ela chama de diferenciação dos corpos ou o corpo sexuado, e o gênero, Butler (2003) afirma que essa relação não possui um caráter obrigatório, que, mais do que um fator dado como natural, o gênero encontra o seu destino na cultura, e não na biologia.

Antes de continuar essa discussão, gostaríamos de introduzir um autor que se situa um pouco fora dessa discussão, mas que traz uma contribuição adicional para pensar as marcas da cultura nesse processo. Em O senso comum como um sistema cultural, um dos apontamentos que Geertz (1997) faz é que existe a crença da existência de apenas dois gêneros: o masculino e o feminino. O autor não discute o mérito da biologia como finalidade do gênero, mas apresenta a definição de senso comum de forma a nos ajudar a entender como se dá esse tipo de conhecimento dado como natural, justificado por ser “assim que as coisas são”. Para o autor, o senso comum é um conhecimento construído de forma acessível e não metódico, de forma facilmente replicável e que, escondendo a sua elaboração, torna-se trivial por conta de sua aparência natural. O senso comum é retratado como inerente ao que se refere e, como a sua origem ou verificabilidade são desconhecidas (ou pouco geram interesse) pelos que o reproduzem, acaba sendo tido como incontestável.

Como o próprio título sugere, o tipo de conhecimento construído pelo senso comum também não é pétreo e universal, mas cultural. Ao falar, em poucas linhas, sobre gênero, o autor afirma que o indivíduo que desvia dos moldes, ou expectativas, do gênero que lhe é atribuído, como homossexuais, transgêneros, andrógenos, entre outros, são tratados de acordo com as crenças do sistema social em que está incluso. Não pretendemos nos alongar no texto

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de Geertz, mas observemos que, ao falar sobre esses desvios de gênero, o autor aponta, entre outros grupos, os homossexuais como desviantes. Esse é um ponto importante para voltar ao texto de Judith Butler (2003).

A autora afirma que essa oposição diametral entre masculino e feminino pressupõe também uma heterossexualidade, que a autora categoriza como compulsória. Por heterossexualidade compulsória, a autora quer dizer que, dentro da estrutura que regulamenta o masculino e o feminino existe, como característica fundamental, uma atração pelo gênero oposto, orientada por uma ligação estreita com os ideais de reprodução e perpetuação da espécie. Ou seja, quando um indivíduo, independente do seu gênero, é homossexual, dentro desse sistema de heterossexualidade compulsória, configura-se uma transgressão, uma vez que este não corresponde às expectativas que são projetadas sobre ele ao ser identificado como sendo de determinado gênero. Essa heterossexualidade compulsória acaba por normatizar e formatar os relacionamentos, mesmo que não sejam heterossexuais. Miskolci (2012) afirma que é possível encontrar as mesmas expectativas em relações homoafetivas, tais como o “papel do homem” e o “papel da mulher”, pois ainda há, em um sistema heteronormativo, uma visão dos papéis que os indivíduos têm que desempenhar, ligados a um ideal de gênero.

Foucault (1999) ao falar sobre essa suposta naturalidade da heterossexualidade, afirma que o homossexual era visto como um hermafrodita de alma. Ao afirmar isso, o autor traz a ideia de que um homem, por exemplo, homossexual possui uma alma ao mesmo tempo masculina, pelo fato de ser homem, e feminina, por sentir atração pelo masculino. Entender gênero é fundamental para entender as questões de sexualidade, uma vez que, como falado anteriormente, uma das características que parecem estar atreladas ao rol de características do gênero masculino e feminino é uma suposta heterossexualidade natural. Percebamos, no entanto, que até então o debate tem girado em torno de masculino e feminino, um debate polarizante e mutuamente excludente. Mesmo quando Bello (2016) traz em sua leitura de animus e anima uma possibilidade dos indivíduos desenvolverem qualquer um dos dois lados, a discussão ainda está operando com dois pólos. Existem outras possibilidades além dessa oposição entre homem e mulher?

Por mais que a biologia não seja a finalidade do gênero, podemos começar a percorrer o caminho dessa discussão nesse ponto. Partindo da premissa de que, biologicamente, só existe homem e mulher (como macho ou fêmea, reprodutivamente falando), onde entram as

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pessoas cujos corpos se configuram e se desenvolvem de maneiras diferentes? Uma pessoa intersexual (ou hermafrodita) é homem ou mulher? Homens que nascem com a Síndrome de Klinefelter, que podem desenvolver mamas por conta de um cromossomo X extra, continuam sendo homens? Butler (2003) vai contestar essa suposta finalidade biológica ao afirmar que nem mesmo a baliza usada para determinar o corpo que carrega essas características é exata, quanto mais os significados que são nele inscritos. Além disso, a autora também contesta a ideia do corpo como um receptáculo passivo, que, ao momento da sua diferenciação, recebe, aceita e incorpora aquele gênero.

O corpo não só não é um receptáculo passivo, como ele tem a capacidade de revelar a artificialidade e a estrutura imitativa que existe por trás da sua formulação como natural. Butler (2003) dá o exemplo da drag queen que, com um corpo masculino, através de uma série de artifícios, como roupas, espartilhos, maquiagem e peruca, cria uma paródia de uma mulher, a partir do exagero. É esse exagero, essa incorporação (física) de atributos dados como femininos (como os seios ou os longos cabelos) que se revela a artificialidade das características vistas como naturais, pois um homem, através de uma dimensão que Butler vai chamar de performatividade, consegue incorporar e ser entendido como uma mulher, sem deixar de, ao mesmo, ser homem. No entanto, como afirma Spargo (2000), essa performatividade apontada por Butler é comumente lida como uma escolha a ser feita, tal como a escolha de uma roupa para usar no dia-a-dia.

A performatividade falada, no entanto, está relacionada à uma identidade que seja inteligível dentro de um sistema de gênero e a sua possível subversão e deslocamento. A performatividade, segundo Parker e Sedgwick (1993) é prejudicada caso haja uma falha no processo de comunicação, sendo um conceito relacionado, sobretudo, com a sua compreensão de acordo com as condições de enunciação, uma vez que ela é dotada da capacidade de, dentro do sistema que ela está inserida, propor novas configurações que desestabilizam a estrutura vigente. Sendo assim, de acordo com Joas e Knöbl (2013), mais do que uma finalidade biológica ou uma identificação, o gênero passa também por um critério de inteligibilidade, de compreensão por parte de outros, além do próprio indivíduo.

É a partir do entendimento e de um afastamento desse binarismo e da revelação de uma estrutura artificial e performativa do gênero que a autora introduz um pensamento queer, um pensamento que abarca todas essas identidades desviantes do binarismo masculino- feminino compulsoriamente heterossexual. Como afirma Oliveira (2017), a identificação

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queer propõe uma desobediência a esse pensamento, abrindo margem para identificações múltiplas e mais fluidas, podendo transitar, e por consequência revelar a artificialidade, entre o masculino e feminino, não como dois pólos, pulando imediatamente de um para o outro, mas transitando em um amplo espectro. Antes tido como um xingamento, ligado à ideia do estranho, do abjeto, do esquisito, o termo queer foi ressignificado para se transformar em um termo guarda-chuva que abriga todas as identidades fora de um sistema binário e heteronormativo (MISKOLCI, 2012). Essa noção de abjeto aparece no trabalho de Butler (2003) como “aquilo que foi expelido do corpo, descartado como excremento” (p. 230). Socialmente, Miskolci (2012) afirma que a abjeção é o espaço ao qual são relegados aqueles que representam uma ameaça para o bom funcionamento da sociedade.

Para que exista o abjeto, é imprescindível a noção de um interno e um externo, um espaço correto e um espaço outro. Se tomarmos como interno, abordando essas questões de gênero, como o binário masculino-feminino heterossexual, quaisquer corpos e identidades outras sofrerão um processo de abjeção. Nesse binário masculino-feminino heterossexual, gostaria de adicionar também a cisgeneridade. Cisgênero, ou simplesmente cis, são as pessoas que se identificam com o gênero designado baseado nas suas características biológicas. Em outras palavras, quando um bebê nasce e dizem que é um menino (masculino, homem) e a pessoa se identifica com essa determinação, ela é cisgênero. Esse adendo se faz importante pois, se o binário considerasse apenas o masculino e o feminino sem estar atrelado a essa cisgeneridade, não teríamos pessoas transgênero sofrendo também processos de abjeção. As pessoas transgênero (comumente chamadas de trans) são aquelas que, ao contrário das pessoas cis, não se identificam com o gênero que lhes é designado ao nascimento. Por esse motivo, também sofrem o processo de abjeção, já que para o sistema vigente, o gênero ainda encontra fim na biologia, e não na cultura e nas relações sociais (BUTLER, 2003).

Esse processo de abjeção, no entanto, não se dá uma única vez. Em Epistemology of the Closet, Sedgwick (1990) explica sobre o processo de “sair do armário” de homossexuais. Essa expressão significa se assumir publicamente, tornar público o conhecimento da homossexualidade, ou de qualquer outro tipo de transgressão ou desobediência de gênero. Entretanto, como afirma a autora, a saída do armário não acontece uma vez. As pessoas passam pelo mesmo processo diversas vezes: com a família, com os amigos, no trabalho, para a sociedade em geral. E esses processos não se dão de maneira homogênea, uma vez que os limites dessa abjeção são diferentes de acordo com o seu contexto.

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Dessa forma, o queer se configura, de acordo com Miskolci (2012) como uma recusa desses valores que estabelecem essas linhas de abjeção, abrindo margem para o afloramento de múltiplas identidades integradas à sociedade e aos círculos sociais, e não somente toleradas. Uma pessoa queer, então, é toda e qualquer pessoa que se encontra fora da norma cisgênero heterossexual. Ser queer é, sobretudo, a recusa de uma caracterização, o queer (o estranho, o abjeto) engloba tudo o que não está no centro. Preciado (2011) afirma que uma teoria queer rejeita até mesmo as categorizações como gays, lésbicas, transexuais, pois essas nomenclaturas, essas etiquetas, foram dadas tendo como base um sistema cisgênero e heterossexual, eles remetem à norma estão inseridos dentro dessa lógica, para se encontrarem, enquanto um pensamento queer se localiza fora dessa esfera que engendra essas categorizações dentro de uma norma. Como afirma o autor: “a política da multidão queer não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma definição sobre as práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se levantam contra os regimes (PRECIADO, 2011, p. 16).

Louro (2000) promove uma elucidação sobre os conceitos de identidades de gênero e identidades sexuais (também chamadas de orientação sexual). Enquanto a identidade de gênero diz respeito ao gênero com o qual a pessoa se identifica, a identidade sexual é caracterizada pelas relações afetivas e/ou sexuais de um indivíduo. Da maneira que são definidas as identidades sexuais, elas demandam um estabelecimento das identidades de gênero dos indivíduos, para que então sejam categorizadas as suas práticas. Se considerarmos, por exemplo, um indivíduo homossexual, temos que considerar a identidade de gênero deste e que este se relaciona com alguém da mesma identidade. Ressalto, entretanto, que essas nomenclaturas ainda são baseadas na ideia de uma relação sinonímica entre gênero e sexo biológico. Essas identidades não são fórmulas prontas ou imutáveis; como Louro (2000) afirma, “têm o caráter fragmentado, instável, histórico e plural” (p. 4). Além disso, ainda segundo a autora, essas identidades se cruzam e se mesclam com outras identidades, não só relacionadas ao gênero e práticas sexuais, mas também às de raça, de nacionalidade, de classe, entre outras.

Muitas dessas nomenclaturas dadas às identidades sexuais partem, como afirmado anteriormente, de uma perspectiva binária, cisgênero e heterossexual, além de atrelar o gênero ao conceito de sexo biológico. Enquanto estivermos presos aos modelos binários, essa nomenclatura ainda encontra alguma precisão em suas definições, ainda que com alguma

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adaptação. Considerando identidades apenas masculinas e femininas (incluindo cis e transgêneros), identidades sexuais como hétero, homo e bissexual33 possuem um sentido lógico, considerando que o sufixo -sexual dessas nomenclaturas se referem não mais ao sexo biológico e sim ao gênero. Quando nos afastamos desse sistema binário, essas nomenclaturas começam a encontrar inconsistências entre a sua definição e o tratamento dado, pensando numa perspectiva de abjeção proposta por Butler (2003). Para ilustrar, se um indivíduo de identidade de gênero não-binária se relaciona com outro indivíduo que se identifica como homem, essa relação se configuraria como uma relação heterossexual (sempre fazendo a adaptação da nomenclatura para que o sexo seja entendido como gênero). Entretanto, esse relacionamento entre pessoas de gêneros distintos (portanto heterossexual pela nomenclatura) não é visto, tratado ou entendido da mesma forma de um relacionamento heterossexual entre um homem e uma mulher, ambos cisgêneros, por estarem fora da norma binária. Galupo, Ramirez e Pulice-Farrow (2017) afirmam que, por conta dessa norma, o uso de termos como bissexual, como uma sexualidade que transita entre o gêneros iguais e opostos, causa uma grande confusão ao definir as orientações sexuais. Os autores também fazem uma crítica à sigla LGBT, pois além de agrupar identidades de gênero com identidades sexuais, ela cria um horizonte comum de vivências de pessoas dessa comunidade.

Entretanto, como Louro (2000) afirma, essas identidades sexuais e de gênero são atravessadas por muitas outras, sendo um esforço muito redutor tentar enquadrar todos esses indivíduos em uma mesma experiência quanto ao seu gênero. Um saber queer, de acordo com Preciado (2011), promove a dissolução desse horizonte comum, dando espaço à multiplicidade que pode ser encontrada nesses grupos que sofrem processos de abjeção por suas diversas identidades e as suas interseções. Essa dissolução dos horizontes comuns e a valorização das experiências individuais nos faz voltar aos personagens que recorrem a estereótipos, conforme aponta Seger (1990).

Além de recorrer a um lugar-comum para a criação desse personagem, muitos deles possuem desenvolvimento e motivações pobres, sem se dedicar a mostrar as diversas facetas ou aspectos do personagem, insistindo em uma personalidade plana. Como dito anteriormente, ao citar o caso da personagem transgênero Poison, a sua identidade de gênero foi usada muito mais como uma desculpa para que ela pudesse ser uma inimiga do que

33 Partindo do pressuposto de que só existem dois gêneros (masculino e feminino), heterossexual é a identidade sexual cujo indivíduo se relaciona afetiva ou sexualmente com indivíduos do gênero oposto, homossexual que se relaciona com indivíduos do mesmo gênero e bissexual que se relaciona com ambos os gêneros.

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necessariamente para abordar as questões subjacentes a isso. Assim, dedicamos a próxima sessão a discutir sobre desenvolvimento e profundidade de personagens, para entendermos melhor as camadas e os estados de um personagem dentro de uma narrativa, sob o enfoque das questões de gênero.

3.2 Personagens de videogames, profundidade e desenvolvimento

Nem todos os personagens de jogos digitais precisam ter uma narrativa bem desenvolvida, apresentando um crescimento ou evolução. Em diversos jogos, por exemplo, existem NPCs (personagens que não são controlados pelo jogador) que desempenham uma função de figurante, ou então desempenham um papel muito pontual, como vender itens ou dar uma instrução específica de um momento do jogo, entre outras possibilidades. Entretanto, alguns personagens, normalmente o avatar (personagem controlado pelo jogador) e outras peças-chave para o jogo, por conta da sua importância, apresentam uma série de mudanças ao longo da narrativa. Pensando nesses aspectos de cada um dos personagens, Mungioli (2014) propõe uma categorização dos personagens de jogos digitais em três categorias: bidimensionais (ou planos), tridimensionais (ou redondos) e falsos tridimensionais. Antes de falar sobre a categorização, no entanto, reforçamos que essa classificação, de início, não estabelece um juízo de valor, ou seja, não são inerentemente positivas ou negativas; e sim o tratamento dado ao personagem que, dentro de uma dessas categorias, pode implicar em um empobrecimento ou enriquecimento do jogo.

A primeira categoria, personagens bidimensionais ou planos, descreve os personagens cujas motivações e personalidade não são marcantes ou bem delimitadas (MUNGIOLI, 2014). A presença desse tipo de personagem em um jogo digital é importante para compor um cenário ou realizar alguma interação específica para ou com o avatar. Nessa categoria se enquadram os transeuntes, os vendedores de itens, guardas, e quaisquer outros personagens que tenham uma atuação pontual no jogo. Com uma função limitada, esses personagens bidimensionais normalmente não tem explicitadas as suas histórias de vida, diálogos muito elaborados ou mudanças (sejam grandes ou pequenas) durante o jogo. Os bidimensionais começam e terminam o jogo sem que sejam afetados pelos acontecimentos. Como dito anteriormente, esse tipo de categoria não é necessariamente ruim, embora seja superficial e sua naturalização também pode contribuir para a construção de estereótipos de gênero.

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Mungioli (2014) aponta, no entanto, que normalmente os desenvolvedores dão esse aspecto raso às personagens femininas, tratadas como objetos à disposição e, em certos casos, de desejo do personagem principal. Para ilustrar esse exemplo, o autor fala do caso da Princesa Peach, da franquia de jogos do Mario Bros. Enquanto Mario percorre diversas fases e aprende novos poderes, a única função da princesa é ser salva pelo encanador. Sem motivação ou personalidade aparente, a princesa se assemelha a um objeto que precisa ser recuperado. Essa fórmula de princesa, destituída da capacidade de agir por conta própria, sempre à espera de um outro personagem (geralmente do gênero masculino) é chamada por Dowling (1981) de Complexo de Cinderela. Ressaltamos, entretanto, que esse complexo não se aplica somente às personagens bidimensionais.

Como afirmamos anteriormente, personagens bidimensionais não são, por definição, necessariamente ruins ou de baixa qualidade, dependendo da função que eles desempenham. Se um NPC existe em um jogo unicamente para dar uma informação importante ao jogador, não sendo recorrente no restante do percurso, não é necessário que haja um desenvolvimento de todas as motivações desse personagem. Entretanto, se um personagem de grande importância, ou recorrência, para o jogo recebe esse tipo de tratamento, pode acarretar em um empobrecimento do jogo. Por exemplo, 4 (2020) apresenta os seus 5 personagens principais (Adam, Blaze, Cherry, Axel e Floyd) perseguindo os irmãos gêmeos Mr. e Mrs. Y, chefes do crime que tomaram conta da cidade, chamada Oak City. Organizado em fases, o jogo vai mostrando as etapas da perseguição até chegar aos irmãos. Por mais que os protagonistas enfrentem diversos desafios, coletem pistas e persigam os vilões, a narrativa do jogo não desenvolve aspectos particulares de nenhum dos personagens principais, deixando que as suas características se limitem às suas mecânicas dentro do jogo, caracterizando as motivações individuais como desconhecidas ou inexistentes.

Já os personagens tridimensionais, ou redondos, são aqueles cujas motivações e características são bem definidas e que, submetidos às mudanças e ao curso da trama, se transformam. Esses personagens se desenvolvem, eles crescem, ao longo da narrativa, sendo perceptíveis as suas mudanças de posicionamento, de personalidade, de atitudes, ao longo da narrativa. Nas palavras do autor: “possuem profundidade, além de sua simples missão na narrativa” (MUNGIOLI, 2014, p. 7). Assim como a categoria bidimensional, esses personagens não são essencialmente bons ou ruins, visto que esse desenvolvimento pode ser feito a partir de ideais preconceituosos, ao abordar, por exemplo, as questões de gênero.

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Catherine: Full Body (2019), da mesma desenvolvedora de Persona 4 (a empresa japonesa Atlus), ao desenvolver uma das suas personagens, chamada Rin, utiliza de um recurso muito preconceituoso para apresentar a maior revelação sobre a personagem: o fato de ela ser transgênero. Para tanto, a revelação final da personagem é mostrada com horror por parte do protagonista, chamado Vincent. Ao olhar a personagem da cintura para baixo, logo observando os seus genitais, o personagem fica horrorizado, como se tivesse se deparado com algo monstruoso. Por mais que seja possível perceber as mudanças da personagem quando submetida aos movimentos da trama e as suas motivações, a revelação final da transgeneridade da personagem é inserida como um recurso de humor, por meio da repulsa do protagonista, que não acredita ter se envolvido com uma garota trans. Os personagens de Persona 4 se inserem nessa categoria. Não só cada um dos personagens possui suas motivações claras, como também reagem, cada um à sua maneira, conforme os eventos do jogo acontecem. Entretanto, isso também não os isenta de serem construídos tendo por base visões preconceituosas sobre mulheres ou pessoas LGBTQ, como afirmado anteriormente.

A última categoria de Mungioli (2014) são os personagens falsos tridimensionais. De acordo com o autor, esses personagens tentam se passar por tridimensionais, mas ao final da narrativa permanecem inalterados. Como exemplo, temos Lara Croft, da franquia Tomb Raider. Por mais que a personagem tenha seus objetivos claros e seja afetada momentaneamente pelas modificações da trama, Lara Croft termina a trama da mesma maneira que começou, como se, na verdade, não tivesse sido submetida aos eventos da narrativa. Esse tipo de personagem, por mais que tenha a sua razão de existir, não evolui, não se modifica, e apesar de ter personalidade e capacidade de agir, permanece no mesmo estado do início ao fim do jogo. Para o autor, esses personagens são os que causam o maior estranhamento, pois nem se misturam com o cenário e o enredo do jogo, como os bidimensionais, nem se desenvolvem ao ponto do jogador ser capaz de compreendê-los.

Ao falar sobre profundidade e desenvolvimento de personagens, Adams (2010) propõe uma divisão também orientada pelo conceito de dimensão, que, contudo, diferencia-se da de Mungioli (2014), variando de 0 a 3 possibilidades. O autor também não estabelece uma relação direta e proporcional entre a quantidade de dimensões e a qualidade do personagem, visto que isso depende mais da função exercida e pela maneira com que essa dimensionalidade é tratada.

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Os personagens de 0 dimensões são aqueles cujo estado emocional pode variar em qualquer direção, em qualquer número de estados, porém só são capazes de expressar um estado de cada vez, não havendo uma transição suave ou uma construção desses estados. São personagens cujos estados emocionais são descontínuos e, por mais que eles possam apresentar diversos estados, como medo, amor, ódio, compaixão, entre outros, sempre alteram seu estado emocional de maneira brusca. Ora estão felizes e de repente tornam-se bruscamente tristes, depois raivosos, e assim em diante. Podemos pensar nos personagens de Streets of Rage 4, citado anteriormente, como personagens de 0 dimensões. Todos os estados emocionais dos personagens são, como Adams (2010) afirma, discretos. Mas não discretos no sentido de sutis, e sim no sentido matemático, oposto ao analógico, ao contínuo. Os personagens apresentam-se raivosos, temerosos, surpresos, empolgados, entre outros estados ao longo da narrativa, mas não há uma transição. Os estados se modificam em saltos, não há uma construção tampouco uma personalidade ou traços característicos dos personagens. Os traços e as reações variam de acordo com a necessidade do jogo, deixando pouco espaço para individualidade ou desenvolvimento destes.

Os unidimensionais são aqueles que, segundo Adams (2010), possuem os seus estados transitando em uma linha entre dois extremos. Tendo em vista, por exemplo, o binômio simpatia e antipatia apresentado pelo autor, o personagem unidimensional varia os seus estados emocionais somente entre esses dois pólos, independente da situação em que está inserido. Apesar de limitados, os estados desse personagem são mostrados de maneira fluida, continuamente, na mudança entre os estados, entre os extremos. Esses personagens não possuem sentimentos confusos, visto que o seu estado emocional está situado em linha reta, entre dois estados opostos. Em Persona 4, o protagonista encontra uma raposa que guarda um templo em que as pessoas depositam os seus desejos. Caso o jogador queira, pode realizar os desejos dessas pessoas, que são entregues pela raposa. Como personagem de baixa complexidade, os estados da raposa alternam entre contentamento e descontentamento, conforme o protagonista realiza os pedidos que são colocados no templo.

Os personagens bidimensionais são aqueles cujos estados se dão a partir de dois eixos. Semelhante aos personagens unidimensionais, que possuem um eixo binomial, os bidimensionais possuem mais de um desses eixos (não necessariamente dois, podem ser mais) para definir os estados, mas esses eixos nunca se sobrepõem. Dessa forma, os personagens apresentam um espectro maior de reações e estados, mas não apresentam conflitos entre esses

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dois eixos. O autor exemplifica um personagem que possui duas dimensões: uma que alterna entre honesto e desonesto, e outra que alterna entre ofensivo e educado. Essas duas dimensões proporcionam uma profundidade maior do personagem, uma vez que nos possibilita conhecer melhor as suas motivações e comportamento, ao apresentar mais parâmetros, mas ainda assim não ocorrem sentimentos confusos ou conflitantes nesse personagem, por não haver sobreposição dessas dimensões. Podemos pensar como exemplo a já citada Lara Croft. Por mais que ela apresente uma grande variedade de estados ao longo dos jogos, esses estados nunca entram realmente em conflito, e, ao final dos jogos, a personagem não apresenta mudança34.

A última categoria de Adams, os personagens tridimensionais, são aqueles cujos estados estão dispostos em um contínuo, ao invés de estarem situados sobre eixos diferentes, sem sobreposição. Por conta desse contínuo, os personagens tridimensionais apresentam conflitos conforme os seus estados transitam, podendo provocar sentimentos mistos, confusões e até mesmo um comportamento errático. Essas características que Adams (2010) aponta se assemelham bastante aos personagens tridimensionais de Mungioli (2014), ao afirmar que uma das principais características desse tipo de personagem é a capacidade de convencimento acerca das suas atitudes, pela visibilidade dos seus estados, e também a possibilidade de demonstrar comportamentos não esperados, por apresentarem uma complexidade maior.

Yosuke, um dos companheiros do protagonista de Persona 4, pode ser visto como um personagem pertencente à categoria tridimensional de Adams (2010). Embora seja conhecido por ser extremamente alegre e otimista, o personagem, em seu íntimo ressente a morte da sua paixão do colégio, Saki Konishi. Ele se sente obrigado a esconder os seus sentimentos de tristeza e frustração para não desfazer a imagem que sempre tentou construir para as outras pessoas. Conforme o jogo se desenvolve, Yosuke vai demonstrando essas outras nuances, até se permitir ter os seus momentos de vulnerabilidade. As mudanças de estados nesse caso, ao contrário dos personagens de zero dimensões, são contínuos; não há uma transição discreta (no sentido oposto ao contínuo) no personagem. As suas mudanças são construídas

34 Quando falamos de Lara Croft, me refiro aos jogos antes do reboot da franquia, em 2013. Nos jogos originais, Lara é uma arqueóloga que explora tumbas e sítios arqueológicos em busca de relíquias. A personagem ficou conhecida por seus lábios carnudos, cabelos presos em uma trança, grandes seios e trajes mínimos. Em 2013, foi lançado um jogo trazendo a personagem completamente reformada, destituindo a personagem das características anteriores e abordando a história a partir de um ponto de vista mais pessoal da arqueóloga.

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continuamente, mostrando o conflito do personagem em se permitir ter sentimentos negativos e expressá-los, sem abandonar a sua fachada.

Trabalhar com a categorização de Adams (2010) e a de Mungioli (2014) juntas é interessante, pois enquanto Adam foca na complexidade dos personagens, Mungioli pensa no seu desenvolvimento. Esses dois conceitos são importantes, pois tanto podemos avaliar a diversidade dos estados emocionais dos personagens quanto a sua mudança durante o curso da narrativa do jogo. De posse dessas informações, dedicamos a próxima seção para discutir como questões referentes ao gênero podem ser inclusas no desenvolvimento de um personagem, com foco na sua narrativa.

3.3 Questões de gênero no desenvolvimento de um personagem

Como foi dito anteriormente, identidade de gênero e orientação sexual podem ser integradas de diversas maneiras nos jogos digitais. Nesta seção, trago os exemplos em que essas questões são integradas ao desenvolvimento, ou seja, na dimensão narrativa, do personagem, tanto positiva quanto negativamente. Retomamos o exemplo da personagem Poison, das franquias Final Fight e Street Fighter para iniciar a discussão. Por mais que a personagem seja canonicamente transgênero para ambos os títulos, a motivação por trás dessa decisão apelou para definições imprecisas sobre gênero, atrelando-o à biologia.

Em sua primeira aparição, no jogo Final Fight (1989), Poison chamou a atenção por ser uma vilã, do gênero feminino. Muito foi comentado sobre a violência contra a mulher, e que, por isso mesmo, não seria adequado que a personagem compusesse o rol de vilões do jogo. Para contornar a situação, a Capcom, empresa desenvolvedora de ambas as franquias, afirmou que a personagem na verdade é transgênero, evidenciando que, na visão da empresa, Poison não seria uma mulher, mas um homem que finge ser uma. De acordo com o Kotaku35, site especializado em jogos digitais, Yoshinori Ono, um dos produtores de Street Fighter, afirmou, em uma entrevista de 2007, que a personagem é uma mulher transgênero que fez a cirurgia de redesignação genital para o ocidente, mas que para o Japão, a personagem na verdade é um homem que esconde o pênis para parecer com uma mulher. Entretanto, em 2011, Ono voltou atrás, declarando que considerava positivo esse debate sobre a identidade da

35 Disponível em acesso em 4 out. 2020

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personagem, e afirmando que Poison é aquilo que as pessoas enxergam ao olhar para ela, e que deixaria essa discussão e definição a cargo dos fãs da franquia e da personagem.

O posicionamento de Ono tem alguns pontos que merecem a atenção. O primeiro é a crença, e a insistência, em uma ligação direta entre gênero e a genitália, o corpo sexuado. Por mais que Butler (2003) afirme que esses dois pontos estejam relacionados, não há uma relação de obrigatoriedade entre os dois. Então, ao afirmar que no ocidente a personagem é uma mulher transgênero, mas que no Japão é um homem, e que apenas esconde o pênis para parecer mulher, o produtor resume todo o gênero de Poison à genitália, sendo o critério final a manutenção ou não do falo como determinante para que seja definido o seu gênero como masculino ou feminino. Há uma finalidade biológica do gênero que vai de encontro aos postulados de Butler (2003) que destaca o caráter social, histórico e contextual do gênero, sendo construído e constituído por uma série de aspectos que vão muito além da diferenciação dos corpos ou da genitália.

Ao voltar atrás, e dizer que na verdade a personagem é aquilo que os jogadores creem que ela seja, ele também deslegitima a identidade de gênero de indivíduos transgêneros, implicando que, acima da identificação do indivíduo, quem determina o gênero de Poison são os jogadores. A personagem refere-se a si mesma no feminino e é tratada no feminino pelos demais personagens, ou seja, se identifica e é identificada como mulher dentro do universo do jogo, mas o que prevalece, para Ono, é a crença do jogador. Com esse posicionamento, Yoshinori Ono se isenta de uma decisão que poderia impactar negativamente a franquia. Ainda, essa questão não é abordada, ou sequer mencionada, em nenhum dos jogos. Seja participando de uma gangue de vilões ou como organizadora de um campeonato de vale-tudo, nunca é abordada a identidade de gênero de Poison, sendo apenas tratada em entrevistas e posicionamentos da empresa quando questionada sobre a personagem.

Caso fosse intencional usar a personagem para subverter a lógica entre o masculino e o feminino, uma alternativa seria trazer Poison como um personagem que, apesar de se vestir e se comportar de uma maneira associada o feminino, se identificasse e fosse identificado no universo do jogo como um homem. Dessa forma, Poison poderia receber um tratamento, a exemplo do que é apontado por Butler (2003), de drag queen, um indivíduo que se identifica com o masculino mas que, por uma série de artifícios, como roupas, perucas, enchimentos e maquiagem, cria uma personagem feminina, revelando assim a artificialidade dos critérios de gênero e dissociando da biologia, da genitália e passando, sobretudo, por um processo de

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auto-identificação, uma vez que o indivíduo que incorpora essa personagem feminina não obrigatoriamente se identifica como tal.

Um personagem que apresenta essa dualidade entre aparência e identidade é o vilão Flea, do jogo Chrono Trigger (1995). Flea é um poderoso mago metamorfo (que pode mudar de aparência) e que assume uma forma comumente lida pelos personagens do jogo como feminina. Ao se apresentar para enfrentar Chrono e os seus aliados, o mago fica irritado quando o confundem com uma mulher. Quando os personagens demonstram choque por descobrir que ele é um homem, Flea afirma que o gênero não faz a diferença, que poder é beleza, e que ele é poderoso.

Outro personagem que possui uma narrativa semelhante é Bridget da franquia de jogos de luta Guilty Gear36. A mãe de Bridget estava grávida de gêmeos, e ao nascimento, descobriu que os dois eram do mesmo sexo (utilizamos sexo e não gênero por ser a maneira que o jogo apresenta a história de Bridget). No vilarejo onde moravam, o nascimento de gêmeos do mesmo sexo era sinal de má sorte, e um dos dois tinha de ser sacrificado ou exilado. Para poder manter ambos os filhos, os pais de Bridget resolvem criá-lo como uma menina. Ao crescer, Bridget descobre a verdade, e passa, então, a se identificar como do gênero masculino. Apesar disso, ele resolve manter a mesma aparência, por gostar dela. Embora Bridget sempre seja confundido com uma garota, o personagem constantemente corrige aqueles que têm uma concepção errônea da sua identidade de gênero.

Essa dissociação entre a aparência e a identificação do personagem é semelhante à drag queen trazida como exemplo por Judith Butler (2003), em que o corpo pode incorporar essas características lidas como femininas sem que a identidade de gênero do indivíduo seja alterada. Apesar de ser uma das características centrais de Flea e Bridget, a identidade de gênero de ambos não precisa ser abordada de maneira aprofundada na narrativa do jogo. No caso de Flea, essa informação sobre o personagem é reservada tão somente ao momento em que o protagonista de Chrono Trigger vai enfrentá-lo, sem que isso o caracterize como um personagem de baixa qualidade, principalmente em relação às questões de gênero que compõem as suas histórias. O fato dos personagens apresentarem essa aparente dissociação entre o visual e a sua identidade nos ajuda a entender melhor o que é marcado como “masculino” ou “feminino” para o universo do jogo. Diferente de Poison, que tem a sua

36 Site oficial da franquia Guilty Gear acesso em 24 fev. 2021

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identidade apagada na história do jogo, sendo confirmada apenas em entrevistas, Bridget e Flea apresentam essas questões em suas histórias, o que ajuda os jogadores a entender e a situar os personagens dentro do universo dos jogos nos quais estão presentes, ajudando a entender, inclusive, como os demais personagens de Guilty Gear e Chrono Trigger lidam com essas questões.

Se trouxemos, até aqui, exemplos de um personagem por jogo, Dragon Age: Inquisition37 (2014) chamou a atenção da GLAAD (Gay & Lesbian Association Against Defamation, ou a Associação Gay e Lésbica Contra Difamação, em tradução livre) pela rica diversidade do seu elenco, contando com 3 dos 9 personagens jogáveis como homo ou bissexuais (Iron Bull, Sera e Dorian), além de contar com um personagem coadjuvante transgênero (Krem)38. O jogo foi considerado como um dos 100 melhores RPGs de todos os tempos, ficando em 89º lugar de acordo com o IGN39, portal especializado em jogos eletrônicos, não só pelo enredo central do jogo, como também pela atenção dada aos personagens.

Dorian, um dos personagens jogáveis, é um mago que, por ser gay, resolve fugir da sua terra natal para evitar um casamento forçado com uma mulher. Iron Bull, um Qunari (raça do jogo Dragon Age) robusto e com grandes chifres, é um personagem abertamente bissexual em Dragon Age: Inquisition, e se mostra muito respeitoso com a identidade de gênero e orientação sexual dos demais personagens, por diversas vezes corrigindo as pessoas que se referem ao Krem no feminino, por ser transgênero. Além disso, Iron Bull pode se envolver romanticamente com Dorian, caso o jogador opte por não se engajar em um relacionamento com nenhum dos dois.

Entretanto, esse tratamento dado aos personagens nem sempre é o mais comum ao se abordar orientação sexual e identidade de gênero destes nos jogos. Um fenômeno muito comum que acontece nos jogos digitais é o chamado queerbaiting. Termo criado com a junção de queer (termo guarda-chuva que engloba todas as identidades sexuais e de gênero que difere das identidades cis-hétero) e bait (que significa isca), é a designação de uma atitude deliberada de indução à crença que um ou mais personagens de uma determinada produção audiovisual, como jogo, série, filme, entre outros, são queer (BRENNAN, 2018). Esse tipo de

37 Site oficial de Dragon Age: Inquisition acesso em 24 fev. 2021 38 Disponível em acesso em 06 out. 2020 39 Disponível em acesso em 06 out. 2020

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atitude tem por objetivo atrair o público queer, sem necessariamente se comprometer com a inserção de questões relacionadas à identidade de gênero ou orientação sexual dos personagens, deixando essas informações por vezes subentendidas, mas nunca realmente exploradas.

Um exemplo desse fenômeno é o personagem Soldado: 76, do jogo Overwatch40 (2015). O jogo pertence à categoria FPS (First Person Shooter, ou de Tiro em Primeira Pessoa, em tradução livre) e é focado em partidas em que dois times adversários se enfrentam pela dominação de um território ou invasão da base inimiga. O jogo não possui foco na história individual dos personagens, dedicando eventos especiais para contar os acontecimentos-chave da narrativa criada. A maior parte dos acontecimentos é contada a partir de materiais externos ao jogo, como quadrinhos, curta-metragens e matérias postadas no site oficial. Soldado: 76, cujo verdadeiro nome é Jack Morrison, é um soldado estadunidense que se junta à força-tarefa internacional Overwatch para proteger o mundo dos ataques terroristas. Em um conto chamado Bastet41, lançado em 2019, é revelado que Morrison namorava Vincent, mas que teve que teve que se separar do seu amado por conta do seu dever como militar.

Por mais que seja possível argumentar que não existe a possibilidade de desenvolvimento do relacionamento entre Jack e Vincent pois o jogo não possui foco na narrativa, a relação entre os dois é abordada única e exclusivamente nesse conto, não sendo sequer mencionada ou referenciada em outros momentos do jogo, apenas sinalizando para a homossexualidade do personagem, sem se comprometer com a abordagem do assunto ou desenvolvimento da relação entre Soldado: 76 e o seu amado. Por mais que o jogo não tenha um foco narrativo, algumas interações entre os personagens ajudam a entender um pouco melhor a história. Widowmaker, uma das personagens do jogo, em uma das interações com outra personagem, fala sobre o seu marido, já morto, chamado Gérard, além de sussurrar o nome do seu amado ao se preparar para o combate. Já Jack Morrison não menciona o nome de Vincent em nenhuma das suas falas no jogo. O mesmo acontece com Tracer. Em 2016, Overwatch publicou uma edição da história em quadrinhos chamada Reflexos, para o evento de natal do jogo, em que é mostrado como cada um dos personagens do jogo comemora o feriado natalino. Tracer, cujo verdadeiro nome é Lena Oxton, é vista fazendo algumas tarefas pela cidade, e ao voltar para casa se encontra com a sua namorada. Torbjorn, outro

40 Site oficial de Overwatch acesso em 24 fev. 2021 41 Disponível em acesso em 06 out. 2020.

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personagem do jogo, se encontra com a esposa e os filhos para a ceia. Widowmaker, citada anteriormente, aparece no cemitério, visitando o túmulo do seu falecido marido. Com o evento natalino, algumas falas foram implementadas no jogo relacionadas ao tema. Mercy, uma personagem do jogo, cita a esposa de Torbjorn ao falar de guloseimas natalinas, elogiando os seus dotes culinários. A esposa de Torbjorn, Ingrid Lindholm, é citada outra vez, quando ele conversa com Reinhardt sobre fantasias natalinas; entretanto, nenhum personagem cita Emily, a namorada de Tracer, nem ela mesma, mantendo essa informação externa ao jogo, assim como acontece com Vincent e o Soldado: 76.

Entretanto, esse não-comprometimento com personagens ou casais LGBTQ pode se apresentar também por meio de um tropo que Brennan (2018) chama de “bury your gays” (enterre os seus gays, em tradução livre). Esse artifício é comumente usado em séries para mencionar a homossexualidade de um personagem e matá-lo para que não haja um desenvolvimento ou fadando um personagem à infelicidade pela perda do seu amado. Esse fenômeno, de acordo com o autor, em que um dos pares LGBTQ é morto, é comum. Por mais que o autor recorra a esses conceitos em análises de séries de televisão, esse fenômeno é observável também nos jogos digitais. Life is Strange42 (2015) é um jogo que possui o foco na narrativa, cuja protagonista, controlada pelo jogador, é Max Caulfield. Ela é uma garota que tem poderes de voltar no tempo e que tem constantes visões de uma tempestade que destruirá a sua cidade, Arcadia Bay. Max conhece Chloe, uma garota de cabelo azul, e que é elemento- chave para evitar a destruição da cidade. Ao longo do jogo, as personagens desenvolvem uma forte amizade e um interesse romântico mútuo, e Max usa seus poderes, diversas vezes, para desfazer eventos que ocasionam a morte de Chloe. No final do jogo, Max descobre que é a sua relação com Chloe a causa do cataclisma que destruirá Arcadia Bay, e tem de escolher entre salvar a amiga ou salvar a cidade.

Referimo-nos à relação das duas como amizade pois, embora as personagens tenham um interesse romântico mútuo, a única vez que elas se beijam, até então, é em uma brincadeira estilo verdade ou desafio, e esse assunto não é mencionado posteriormente, sendo mostradas pelo jogo como melhores amigas. Para salvar a cidade, Max precisa sacrificar Chloe. Caso essa opção seja escolhida, é mostrada uma cena de despedida das duas, em que elas se beijam, e declaram abertamente os sentimentos uma pela outra. Caso seja escolhida a opção de salvar Chloe, ela e Max entram em um carro e fogem da cidade, sem que haja uma

42 Site oficial de Life is Strange acesso em 24 fev. 2021

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cena que culmine na realização plena do casal. O tropo, descrito por Brennan (2018), aqui toma forma como a única realização possível do casal, ou seja, para que a relação das duas seja admitida, externalizada, é preciso que haja o sacrifício de uma das partes do par. Algo que não é necessário quando Warren, melhor amigo de Max, declara os seus sentimentos por ela, abrindo espaço para que o jogador possa escolher beijar o amigo da protagonista, em uma cena romântica, e não de brincadeira, como o beijo de Max e Chloe.

Chloe e Max, assim como Iron Bull e Dorian, são personagens tridimensionais (ADAMS, 2010) e redondos (MUNGIOLI, 2014). Como afirmamos anteriormente, esses critérios não necessariamente implicam em um tratamento adequado à identidade de gênero e orientação sexual do personagem, uma vez que, embora os quatro pertençam às mesmas categorias, enquanto a orientação sexual de Iron Bull e Dorian são exploradas amplamente, inclusive mostrando Iron Bull como um personagem respeitoso e sensível às questões de gênero, Max e Chloe são tratadas, e se tratam, como amigas no jogo, e para a realização plena delas como casal, é necessário o sacrifício de uma das personagens. Enquanto isso, personagens como Bridget, personagem plano (de acordo com a categorização de MUNGIOLI, 2014), possuem uma qualidade maior ao abordar a identidade de gênero e a aparência do personagem, por não recorrer, em sua criação, ao queerbaiting ou tropos, como o “bury your gays”.

De posse dessa discussão, observando que não necessariamente a complexidade de um personagem implica na qualidade da abordagem de questões relacionadas à identidade de gênero e orientação sexual, podemos seguir para a análise do desenvolvimento dos personagens de Persona 4, pensando como os recursos da dimensão narrativa de um jogo digital, foram utilizados para construir a identidade de gênero e orientação sexual dos personagens.

3.4 O desenvolvimento dos personagens de Persona 4

Para a análise de Persona 4, os personagens foram divididos de acordo com as suas missões, uma vez que essas abordam suas questões relacionadas à identidade de gênero e orientação sexual. Para contemplar o desenvolvimento dos personagens em dimensão narrativa, elencamos seis categorias de análise: (a) personalidade, (b) tratamento recebido pelos demais personagens, (c) relacionamentos e interesses românticos, (d) diálogos da quest, (e) gatilho para a quest, (f) mudanças ao final da quest, e (g) carta de tarô associada ao

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personagem. A carta de tarô é importante nesta análise pois, no jogo, elas representam o laço formado entre um personagem (como dos que serão analisados nesta dissertação) e o protagonista de Persona 4. Para o jogo, ela simboliza um personagem e a sua importância para o enredo, fortalecendo o personagem principal da trama. Ressaltamos também que os diálogos serão analisados com base na transcrição exata e tradução de excertos do jogo, contendo, por vezes, gírias, modulações de voz (representadas por palavras escritas inteira ou parcialmente em caixa alta) e pausas entre as frases (representadas por reticências).

Essas categorias foram pensadas de acordo com os elementos em comum com todas as missões de Persona 4. Como o jogo dá um grande destaque à dimensão narrativa, cremos que o primeiro passo para a análise seja entender como os personagens estão situados na trama.

3.4.1 Um conto de duas princesas: Chie Satonaka e Yukiko Amagi

A primeira missão a ser analisada, e também a primeira missão de resgate do jogo, é a missão “Princess Yukiko’s hunt for her Prince Charming” (A caça da Princesa Yukiko pelo seu Príncipe Encantado, em tradução livre), localizada no Castelo de Yukiko. Por mais que, tanto pelo nome da quest quanto pelo local onde ela ocorre, seja possível perceber que Yukiko é o elemento central dessa parte do jogo, Chie também desempenha um papel fundamental, sendo necessário resgatá-la também. Yukiko e Chie são melhores amigas e a organização da quest gira em torno da relação das duas personagens e como isso afeta outros problemas pessoais de ambas.

A primeira categoria a ser analisada é a personalidade das personagens. Chie é uma personagem enérgica e muito expressiva. Fã de artes marciais e muito barulhenta, ela é conhecida por ser boa de briga e não tão inteligente, o oposto da sua melhor amiga Yukiko, que é discreta e muito fechada, Yukiko é inteligente e muito esforçada, principalmente no trabalho na pousada de sua família, a Pousada Amagi (Amagi Inn no jogo em inglês). Apesar da fama de durona, Chie é uma personagem super preocupada com os seus amigos e faz de tudo para defendê-los, já Yukiko, apesar da aparente seriedade, é uma pessoa bem-humorada e que ri com facilidade quando se sente confortável.

As personagens aparecem como opostos em seus comportamentos, e nesses lugares de extroversão e introspecção, Yukiko e Chie ocupam posições que Bourdieu (2019) aponta como lugares comumente associados a masculinos e femininos, respectivamente (pensando

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em uma lógica binária). O autor afirma que, dentro de uma lógica sexista, enquanto ao homem é reservado o local de extroversão, o público, o expansivo, à mulher é relegado o lugar da introspecção, da reserva, da discrição, e esse tipo de pensamento encontra finalidades em diversas áreas, inclusive no trabalho, sendo o homem responsável pelo provimento e a mulher pela manutenção do lar, sendo assim a posição do homem como “fora”, e a da mulher como “dentro”. No jogo, o fato de Yukiko ser lida pelos demais personagens como feminina, ao contrário de Chie, evidencia-se quando analisamos como ambas são tratadas e percebidas no universo do jogo, o que nos leva a mencionar a segunda categoria de análise.

Por conta da sua postura mais discreta, Yukiko desperta a curiosidade e o interesse dos alunos e inveja das alunas do colégio onde estuda, a Yasogami High School. Amagi é constantemente perseguida e galanteada pelos seus colegas, que se declaram romanticamente e tentam levá-la para um encontro, sempre exaltando a beleza e a feminilidade da personagem, mas nunca obtém uma resposta positiva da mesma. Por sempre rejeitar os meninos, é criada uma competição no colégio, chamado de Amagi Challenge (Desafio Amagi, em tradução livre), para ver qual deles consegue levar Yukiko para um encontro romântico. Por conta de uma falta de firmeza e pela timidez, Yukiko só consegue se livrar das importunações com a intervenção de Chie, que defende a amiga e a afasta os outros rapazes, sendo vista como o guarda-costas ou o cão de guarda de Amagi nunca sendo alvo do interesse romântico de nenhum aluno, mas sim uma figura completamente oposta ao feminino e ao desejo, que intimida os demais estudantes em vez de atraí-los.

Entretanto, isso afeta Chie de maneira negativa, pois a personagem se sente mal por não ser vista como feminina e atraente, da mesma forma que Yukiko. Por conta desse tratamento recebido por Amagi, as demais colegas de classe se mantém distantes, vendo-a como adversária ou uma ameaça, em se tratando de conseguir conquistar os garotos do colégio. Esse tratamento dado a Yukiko não se limita apenas ao colégio. Ao ceder uma entrevista para um canal local de televisão, um dos repórteres insinua que a aparência da jovem seja uma das responsáveis pelo sucesso da pousada de sua família, principalmente o público masculino. Essa afirmação do repórter não só revela que, no universo do jogo, os personagens enxergam uma relação obrigatória entre a beleza e a feminilidade, como reduzem a personagem a uma isca para atrair homens à pousada, desvalorizando o trabalho feito pela estudante e a sua família para o sucesso do local, histórico e ponto turístico de Inaba.

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Essa relação obrigatória entre beleza e feminilidade não está, no entanto, limitada ao jogo. Wolf (2019) afirma que essa relação coloca a mulher em uma posição na qual a sua aparência torna-se mais importante do que qualquer outra qualidade ou característica sua, desqualificando-a em sua competência, entre outros atributos. Para a autora, isso representa uma pressão sobre as mulheres para estarem sempre com uma boa aparência. Nesta linha, a desatenção em relação à beleza é tratada como desleixo e lida como uma característica contrária ao feminino. Essa “boa aparência”, ainda, segue critérios masculinos do que é considerado atraente ou não, ao mesmo tempo que esse sistema isenta os homens de assédios, direcionando um sentimento de culpa às mulheres, com a desculpa de que, por se vestirem de maneira atraente, elas estão provocando os homens e, portanto, devem lidar com as consequências.

A perseguição e o assédio sofrido por Yukiko reflete essas afirmações de Wolf (2019), pois a personagem, por ser considerada bela e feminina, tem que lidar com a constante perseguição dos colegas e as insinuações do repórter da televisão local. Ainda segundo Wolf (2019), esse sistema dificulta o acesso das mulheres a diferentes esferas (mercado de trabalho, posições de chefia, relacionamentos, entre outros), colocando a aparência como impeditivo, e relacionando a atração física despertada ao sucesso feminino, criando uma atmosfera competitiva que promove a desunião entre as mulheres, transformando-as em adversárias. Não à toa, as colegas de classe de Yukiko (com exceção de Chie) a veem como uma ameaça, como se a personagem, por ser considerada muito bonita, fosse roubar os seus namorados, mesmo que Yukiko rejeite todas as investidas dos rapazes. Federici (2017) afirma que esse clima de inimizade entre as mulheres serve ao propósito de manter a estabilidade das estruturas sexistas vigentes, pois a união de mulheres tem o potencial de desestabilizar e dissolver esse sistema.

Essa discussão nos leva a falar sobre os relacionamentos e interesses amorosos das personagens. Yukiko, como já dito, é muito reservada e dedicada ao trabalho e aos estudos, o que faz com que não tenha muito tempo para as demais atividades com os seus amigos. Sendo a próxima a assumir, contra a sua vontade, a gerência da pousada, ela passa quase todo o seu tempo livre trabalhando nos negócios da sua família. Por mais que seja muito visada pelos colegas do colégio, Yukiko não se envolve romanticamente com ninguém, sempre recusando os convites e demonstrando desinteresse pelos pretendentes, ficando visivelmente enrubescida quando questionada sobre ou ao se deparar com essas situações. Chie, que ao contrário da

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melhor amiga não é tão visada, também não demonstra muito interesse nos seus colegas de sala, mas se frustra por não ser desejada por eles. O único interesse romântico que Chie teve, revelado até o início da quest das duas, foi o seu amigo Yosuke, que, assim como os demais colegas, estava interessado em Yukiko, situação que a deixa visivelmente desconfortável quando trazida ou relembrada. A relação mais abordada no jogo é a amizade entre as personagens, que são amigas desde criança. Nessa relação, Chie sempre desempenhou o papel de defensora da amiga, de protetora, preocupada com o bem estar de Yukiko.

A quest de ambas começa após a morte misteriosa de uma aluna chamada Saki Konishi, que foi encontrada pendurada na fiação elétrica de um poste próximo ao colégio que Yukiko e Chie estudam. Após a morte de Konishi, Yukiko começa a agir de maneira estranha e, quando questionada, afirma ser só cansaço por conta do trabalho na pousada. Nesse período, Yukiko é entrevistada pelo jornal local, com um semblante bastante abatido. Além da insinuação feita pelo repórter de que a personagem seria uma isca, um atrativo para os clientes do gênero masculino, ele a questiona sobre os assassinatos misteriosos que estão acontecendo na cidade, cujos motivos Yukiko afirma desconhecer. No mesmo dia, após Yukiko ceder a entrevista, o misterioso Canal da Meia-Noite entra no ar, mostrando a silhueta de uma jovem de cabelos compridos, trajando um quimono, mas não é possível reconhecer detalhes da roupa ou as feições. Ao ver essas imagens, mesmo sem os detalhes, Chie acredita que a silhueta pertence a Yukiko, e entra em desespero por acreditar que a amiga é a próxima vítima dos assassinatos misteriosos que acontecem em Inaba. No dia seguinte, ao sintonizar novamente no canal, os personagens veem uma imagem nítida de Yukiko. Em vez de trajar suas roupas comuns ou o quimono, uniforme da pousada gerenciada pela sua família, Amagi aparece vestida de princesa e se comportando de uma maneira completamente diferente da usual.

Se Yukiko é uma pessoa extremamente contida e que evita os seus pretendentes, no Canal da Meia-Noite a personagem aparece extrovertida e galanteadora. Apresentando um programa chamado Princess Yukiko’s hunt for her prince charming (A caça da Princesa Yukiko por seu príncipe encantado), Yukiko lança um concurso em busca de um pretendente, afirmando que isso não é um jogo e nem uma pegadinha. Afirmando estar pronta para formar um grande harém com os seus pretendentes, ela vira de costas para a tela e corre para dentro do que parece ser um castelo medieval europeu, encerrando a transmissão do Canal da Meia- Noite, que perde o sinal. Os colegas de sala estranham esse comportamento de Yukiko, completamente diferente do usual. Na transmissão, a personagem chama seus pretendentes,

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apostando o seu amor e se anunciando como prêmio para quem resgatá-la daquela masmorra, uma postura muito mais liberta do que a conhecida por Yukiko, que sempre evitou envolvimentos amorosos. Ao fazê-lo, ela se inclina para a frente da câmera, depositando a mão sobre a sua genitália e mostrando o decote (Figuras 5 e 6), como forma de usar os seus atributos físicos como um atrativo para o público masculino, tal como sugeriu o repórter na entrevista para a televisão local.

Figuras 5 e 6 – Closes em Yukiko

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Essa atitude de Yukiko, de valorizar os seus atributos sexuais, é um fenômeno que Fonseca (2013) chama de vênus estereotipia, em que se enfatiza os atributos da mulher como boa reprodutora, em detrimento das outras características, em referência à deusa romana Vênus, deidade do amor e da beleza. Essa estereotipia recai tanto sobre o mito da beleza descrito por Wolf (2019) quanto realça a redução da mulher à reprodutora da força de trabalho (FEDERICI, 2017). Se antes, como afirma Federici (2017), em um contexto de transição do feudalismo para um sistema capitalista, a valorização dos atributos sexuais recaía sobre a mulher por conta do seu papel na reprodução, que gerava uma maior quantidade de mão de obra. A partir do momento em que a mulher começa a ocupar outras esferas sociais além da casa, como o mercado de trabalho e a vida pública, deixando cada vez mais de lado o seu papel reprodutora da força de trabalho, esses elementos se tornam realçadores de sua feminilidade (WOLF, 2019).

Preocupados com a vida da amiga, e acreditando que ela possa ser a próxima vítima dos assassinatos misteriosos, por ter aparecido no Canal da Meia-Noite, Chie, juntamente com Yu e Yosuke, resolvem entrar no mundo da televisão para resgatar Yukiko. Ao entrar no mundo da televisão, Chie dispara na frente dos amigos e corre para dentro do castelo para resgatar Yukiko. Preocupados, Yu e Yosuke, juntamente com Teddie, um habitante do mundo da televisão que resolve ajudar os personagens a parar as perturbações em seu mundo, correm para dentro do castelo, tentando alcançar Chie. Ao explorar uma pequena parte do castelo,

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Yu, Yosuke e Teddie encontram Chie, jogada no chão. Ao encontrarem com a amiga, eles começam a ouvir a voz de Yukiko, em tom de desabafo:

Ela disse que vermelho ficava bem em mim… Eu odeio o meu nome… Yukiko... “Neve”... A neve é fria e derrete rápido… É efêmera, sem valor. Mas é perfeita para mim… Fora herdar a hospedaria, eu não tenho valor algum. E ainda assim… Chie disse que eu fico bem de vermelho. Chie foi a única que deu sentido à minha vida. Ela é brilhante e forte, e pode fazer qualquer coisa… Ela é tudo o que eu não sou. Chie me protege… Ela cuida da minha vida sem valor… E eu… eu não mereço nada disso… Chie é tão gentil…43 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Após ser ouvida a voz de Yukiko, uma outra Chie envolta em uma aura sombria aparece, idêntica à original, exceto pelos olhos, que são em um tom de amarelo vibrante. Teddie explica que esse dúplice na verdade é a sombra de Chie, uma entidade do mundo da televisão que se corporifica quando o indivíduo perde o controle dos seus sentimentos reprimidos. Em Persona 4, a sombra é inspirada no conceito junguiano de mesmo nome. Para Jung (2014) essa definição é um pouco mais complexa do que tão somente sentimentos reprimidos: a sombra é composta de elementos que escapam à luz da consciência, por isso é chamada de sombra, cujos conteúdos são passíveis de serem trazidos à tona. Tratam-se de aspectos inconscientes, negligenciados e empurrados para uma zona de pouco acesso, que não valorizamos ou não externamos, mas que nem por isso deixam de existir ou interferir em nossas vidas. Em tom de desdém, a sombra de Chie responde ao desabafo ouvido no castelo:

“Chie é tão gentil” hein? Que piada. Nós estamos falando DAQUELA Yukiko!? Ela diz que eu estou protegendo-a!? Ela diz que é inútil! É como deveria ser, não é? A Yukiko é tão bonita… com a pele tão clara… tão feminina… É ela que deixa os meninos babando. Quando a Yukiko olhou para mim com tanta inveja… Cara, como eu me senti incrível. Yukiko sabe como as coisas funcionam. Ela não consegue fazer nada se eu não estou por perto… Eu sou melhor que ela… Muito, muito melhor! É isso mesmo. Eu que não consigo fazer nada sozinha… Eu não consigo vencer como garota, imagina como pessoa… Eu sou patética. Mas a Yukiko… Ela depende de mim… É por isso que ela é minha amiga. Eu nunca vou deixá-la escapar. Ela é muito importante para mim.44 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Por meio dessa fala da sombra de Chie, é possível notar que a feminilidade de Yukiko e o desejo despertado nos garotos é percebido por Chie, a quem é negada a ideia de ser uma

43 Trecho original: She said that red looks good on me… I hated my name… Yukiko… “Snow”... Snow is cold and it melts quickly… It’s transient, worthless. But it’s perfect for me… Apart from inheriting the inn, I’m worthless. Still… Chie told me that red looks good on me. Chie was the only one who gave my life meaning. She’s bright and strong, and she can do anything… She has everything that I don’t. Chie protects me… She looks after my worthless life… And I… I don’t deserve any of it… Chie is so kind... 44 Trecho original: “Chie is so kind” huh? What a joke. Are we talking about THAT Yukiko!? She says I’m protecting her!? She says she’s worthless! That’s how it should be, right? Yukiko’s so good looking… so fair- skinned… so feminine… She’s the one all the guys drool over. When Yukiko looked at me with such jealousy… Man, did I get a change out of that. Yukiko knows the score. She can’t do anything if I’m not around… I’m better than her… Much, much better. That’s right. I’m the one who can’t do anything alone… I can’t win as a girl, let alone as a person… I’m pathetic. But Yukiko… She depends on me… That’s why she’s my friend. I’ll never loosen my grip on her. She’s too important to me.

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mulher feminina e desejada por não ser semelhante à sua amiga. Com base nos desabafo de Yukiko e a réplica da sombra de Chie, podemos perceber melhor como se configura essa relação das duas, que até então tinha sido apresentada como uma amizade. Analisando os diálogos, podemos perceber que ambas mostram um desejo de ser aquilo que a outra é, Chie vê o valor em Yukiko por conta da sua beleza, da sua feminilidade, da atração que exerce sobre os homens, enquanto Yukiko valoriza a amiga pela sua força, pela sua energia e pela sua liberdade, e ambas nutrem um sentimento de dependência pois, por mais que se sintam inferiores, sabem que uma depende da outra e encontram algum conforto nisso.

Um ponto que merece a atenção na fala de Chie é a associação da pele clara com a beleza e a feminilidade de Yukiko. De acordo com Li, Min e Belk (2008), a branquitude (whiteness), que engloba a cor da pele e traços faciais caucasianos, são tidos como traços de beleza em muitas culturas asiáticas. Essas características são entendidas, assim, como sinais de beleza e virtude de um indivíduo. A pele clara (mochi-hada, ou pele clara como arroz triturado), de acordo com os autores, é vista pelos japoneses como um sinal de feminilidade, castidade, pureza e virtude moral, além de despertar o interesse sexual masculino.

Dentro de uma lógica binária e que associa a feminilidade à beleza, enquanto Chie deseja se aproximar desse ideal de feminilidade, belo e romântico, Yukiko quer se afastar disso, por enxergar essa feminilidade, essa introspecção como algo sem valor, fugaz. Não só essa feminilidade desejada por Chie está ligada a uma exigência de beleza, como também ela se insere como fator fundamental em um sistema de heterossexualidade compulsória. Butler (2003), ao falar de heterossexualidade compulsória, afirma que uma das característica de um gênero (dentro de uma lógica binária de masculino ou feminino) é a atração pelo outro gênero, e que o não atendimento deste critério resulta em um desvio na condição de ser homem ou mulher.

Negando o pronunciamento de sua sombra, Chie acaba por fortalecê-la, ao ponto dela se transformar em uma outra criatura e se tornar uma ameaça para ela e seus amigos, que tem de combatê-la e derrotá-la antes que a verdadeira Chie seja devorada pela sua sombra. Ao ser derrotada e aceita por Chie, a sua sombra se transforma em sua persona. No jogo, é explicado que essa persona é uma fachada, usada para enfrentar as dificuldades da vida, o que é também inspirada no conceito jungiano. Para Jung (2014) a persona (máscara) é um invólucro criado de forma a exaltar ou transformar a personalidade daquele que vai desempenhar um papel, sendo um “recorte mais ou menos arbitrário e acidental da psique coletiva” (p. 23). Ela é uma

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aparência, um contrato entre o indivíduo e a sociedade e que, apesar de reconhecida pelo consciente, não deixa de ser influenciada pelo inconsciente, e pela sombra.

O gatilho para iniciar o resgate de Chie foi ouvir, durante o desabafo, que Yukiko a invejava. Para Chie, as características dignas de exaltação são a beleza e a delicadeza, e por consequência a feminilidade, e ela se sente inferior justamente por não se enquadrar nesse ideal. Ao ouvir no desabafo de Yukiko “Ela é brilhante e forte, e pode fazer qualquer coisa… Ela é tudo o que eu não sou”, Chie percebe que, no fundo, é ela que precisa de Yukiko, e que o fato de a amiga ser tão visada, e ainda assim precisar dela, é de onde ela tira o seu conforto. Esse sentimento de inferioridade revela que Chie enxerga o valor de uma mulher como residente na aparência, ao falar que a amiga é bonita e de pele clara, e por consequência feminina e que atrai os homens, a personagem elenca essas características como dignas de exaltação , deixando de lado quaisquer outras características. A maior frustração de Chie é não ser tão atraente quanto a amiga para despertar o interesse dos colegas, resumindo a feminilidade à capacidade de atrair (dentro de uma lógica binária) o gênero oposto. Isso revela uma visão que resume o gênero feminino à aparência e ao parceiro, e o valoriza a partir desses critérios, negligenciando as demais características e capacidades de uma mulher (WOLF, 2019). Incapaz de se enquadrar nesses critérios, Chie passa a se valer da beleza da amiga para se sentir superior, ao mesmo tempo que assume um papel de protetora da amiga, que Chie enxerga como incapaz de se defender, por mais que negue isso, deixando a cargo de sua sombra a externalização desses sentimentos.

Ao aceitar a sua sombra e adquirir a sua persona, de nome Tomoe, Chie forma um laço com Yu que é representado pela carta “O Carro” do tarô. O sétimo arcano, a carta de um cavaleiro em uma carruagem puxada por duas esfinges, uma preta e uma branca, representa o desejo de conquistar, mais do que a conquista em si. De acordo com Ouspensky (1976), é uma carta que representa uma grande determinação e confiança, que pode levar para um destino certeiro ou desastroso. Representando Chie, essa carta é concordante com a descrição da personagem dada por Yukiko, de ser uma pessoa brilhante e forte, capaz de atingir os seus objetivos. Duas coisas importantes de se pontuar na carta do carro são: (a) a figura que aparece na carta é uma figura masculina, e não uma figura feminina, para representar Chie, baseado nessa crença de que o feminino é composto apenas pela boa aparência e pelo desejo despertado no gênero oposto, ambas negadas à personagem; (b) a carta representa uma figura de poder (o cavaleiro) que se sustenta, se apoia, em outras criaturas, as esfinges, para avançar,

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mostrando que parte da força de Chie vem justamente da sua relação com Yukiko, e que esta relação a faz progredir, seguir adiante.

Conforme continuam a explorar o castelo em busca da amiga, Chie e os demais escutam constantemente a voz de Yukiko, demonstrando a sua impaciência com a demora dos seus “príncipes”, maneira que ela usa para se referir aos amigos que estão lá para resgatá-la. Ao chegarem ao andar mais alto do castelo, Yu, Yosuke, Chie e Teddie encontram a princesa Yukiko no topo de uma escadaria e a Yukiko verdadeira ajoelhada em frente ao primeiro degrau. Ao avistar o grupo, a sombra se surpreende e fala:

Três príncipes estão aqui para me ver!? Nossa! Vocês são os convidados surpresa que chegaram atrasados? Aaaaaaah… Eu gostaria de ter reparado mais em vocês! Ora, está ficando cheio aqui. Por que não vamos para um outro lugar? Um lugar bem, bem distante, onde ninguém me conhece. Se você é o meu príncipe, você me levaria para lá, não levaria? Vamos lá… por favorzinho?45 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Os amigos se surpreendem ao ouvir que ela os vê como três príncipes. Eles têm dúvidas se o terceiro príncipe é Teddie, um urso, ou Chie, uma mulher. Ao discutirem sobre isso, a sombra de Yukiko continua:

Chie… Sim, ela é o meu príncipe… Ela sempre lidera…. Chie é um príncipe forte… ou pelo menos era. Na hora da ação, Chie não é boa o bastante! Ela não pode me levar embora daqui! Ela não pode me salvar! Pousada histórica? Treinamento para gerente!? Eu estou cansada dessas coisas me prendendo! Eu nunca pedi pra nascer aqui! Tudo é decidido por mim! De como eu vivo, até onde eu morro! Eu estou cansada disso! Que vá tudo para o inferno! Eu só quero ir para algum lugar longe… Qualquer lugar, menos aqui… Alguém, por favor me leve embora, eu não consigo sair daqui sozinha. Eu sou completamente inútil. Eu não tenho esperança se ficar, e nenhuma coragem para ir. Então eu passo o dia sentada esperando que algum dia o meu príncipe virá! [...] Tradição histórica? Orgulho da cidade? Quanta besteira! É assim que eu me sinto de verdade. Não é… eu?46 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Nesse diálogo podemos perceber que, como afirmamos no começo da análise, a Chie é dada uma “função masculina”, que se torna mais clara com essa fala da sombra de Yukiko. Chie é vista como um dos príncipes da amiga, talvez o primeiro príncipe pensado, visto que é notável a frustração de Yukiko ao falar da incapacidade da amiga de tirá-la dali, de ajudá-la a

45 Trecho original: Three princes are here to see me!? My my! Are you the surprise guests who came in late? Awwwww…. I wish I’d gotten a better look at you! My, it’s getting crowded here. Why don’t you and I go somewhere else? A land far, far away, where no one knows me. I f you’re my prince, you’d take me there, won’t you? C’mon… pretty please? 46 Trecho original: Chie… Yes, she’s my prince. She always leads the way… Chie’s a strong prince… or at least, she was. When it comes down to it, Chie’s just not good enough! She can’t take me away from here! She can’t save me! Historic inn? Manager training!? I’m sick of all these things chaining me down! Inever asked to be born here! Everything’s decided for me! From how I live, to where I die. I’m so sick of it! To hell with it all! I just want to go somewhere far away… Anywhere but here… Someone, please take me away, I can’t leave here on my own. I’m completely useless. I have no hope if I stay, and no courage to leave. So I sit on my ass hoping that someday my prince will come! [...] Historical tradition? Pride of the town? What a bunch of bullshit! That’s how I really feel. Isn’t that right… me?

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fugir do seu inevitável destino. Yukiko se vê como uma princesa, incapaz de fugir do seu indesejado destino, esperando que o seu príncipe, Chie, salve-a, incorporando assim o que Dowling (1981) vai chamar de Complexo de Cinderela.

Esse complexo resulta de um sistema que educa o homem para a sua independência e a mulher para aguardar o seu salvador, aquele que irá salvá-la das angústias da vida. Enquanto a mulher é ensinada a esperar pelo seu herói, o homem é ensinado que ele é o herói. Dowling (1981) afirma que nesse sistema que castra as mulheres de suas próprias decisões, elas podem “sair de casa, trabalhar, viajar, [...] até ganhar muito dinheiro; subjacente a isso tudo, porém, está o conto de fadas, dizendo: “aguente firme, e um dia alguém virá salvá-la” (p. 10) Usando como metáfora a história de Cinderela, uma garota que vive uma vida infeliz e só se vê fora dessa vida ao ser resgatada por um príncipe, Dowling reforça o quão limitante isso é para a vida das mulheres, sempre representada por figuras sem poder de decisão, alimentando uma esperança que uma figura (masculina) mude a sua vida por completo.

É com base nessa lógica que Yukiko se vê como inútil. Sem ser capaz de enxergar a possibilidade de assumir o controle da sua vida, ela deposita as suas esperanças em uma figura masculina (incluindo Chie nesse rol), por acreditar ser impossível para uma mulher definir o seu próprio curso de ação. Dowling (1981) reforça que esse complexo sustenta um ideal ilusório de que a mulher não é capaz de se realizar plenamente sem estar acompanhada do seu “príncipe”. Imersa nessa narrativa, Yukiko se frustra, acreditando ser incapaz de se impor, de contrariar as expectativas que sobre ela são projetadas, o que fica claro quando a sombra de Yukiko se refere à personagem como “completamente inútil”.

Por mais que Chie não seja confundida com um homem, a ela sempre são designados os “papéis masculinos”, por que suas características tidas como femininas são ausentes ou pouco valorizadas, chegando ao ponto máximo no jogo ao ser enxergada como um príncipe. Não fica claro se Yukiko é hetero ou bissexual, mas o fato de a sua sombra recrutar os príncipes para o seu castelo, dizer que deseja formar um harém com todos os pretendentes e chamar a sua atenção com base em seus atributos sexuais, e, sobretudo, considerar Chie como um deles, abre margem para a interpretação de uma possível bissexualidade da personagem. Não parece, no entanto, preocupação da personagem com o gênero do seu pretendente ou salvador. Se no complexo de Cinderela de Dowling (1981), a mulher espera pelo seu herói, obrigatoriamente masculino, aqui essa obrigatoriedade não é mais necessariamente válida.

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Considerando Chie como o primeiro “príncipe” de Yukiko, o que há aqui, no entanto, é uma divisão ainda binária e quase-heterossexual entre duas personagens femininas, visto que, embora sejam duas mulheres, uma assume o papel da “mulher” (associando à mulher características como a fragilidade, a passividade e a beleza) e a outra assume o papel do “homem” (incorporando a força, o senso de aventura e a coragem). Isso ganha mais força quando retomamos que a carta que representa Chie é o carro, que tanto possui como elemento central uma figura masculina, como significa o desejo de conquista, mais do que a própria conquista em si. Essa falta de clareza em relação ao caráter amoroso ou não de Yukiko e Chie pode estar relacionada à cultura do Japão, país onde o jogo se passa e foi desenvolvido. De acordo com Wieringa (2007), isso começa a se revelar já no idioma, que não possui uma palavra para lésbica, e mesmo os relatos históricos e mitológicos de relações entre duas mulheres, em que uma incorpora o masculino (se vestindo e/ou se passando como homem) são raras, em comparação ao mesmo tipo de relação envolvendo dois homens.

O gatilho para a quest de Yukiko, e por consequência para o resgate de Chie também, é o fato de ela ter depositado todas as suas esperanças na sua amiga, o seu príncipe, uma pessoa que não tem o poder de mudar o seu destino, de salvá-la da masmorra (metaforicamente) que é ficar presa à cidade de Inaba e ter de trabalhar na hospedaria da família. Yukiko esconde que, se vendo incapaz de mudar o seu próprio destino, espera que outra pessoa apareça e a salve, que a leve para longe dali. A personagem se via como impotente, embora escondesse isso. Perceber que não seria Chie a responsável por mudar isso, mesmo que a amiga desempenhe um papel fundamental em sua vida, é o que faz Yukiko começar a ser consumida por essa sua visão de Cinderela, em termos de Downling (1981).

Ao aceitar a sua sombra e receber a sua persona, chamada Konohana-Sakuya, Yukiko forma um vínculo com o protagonista do jogo, nomeado pelo jogador, representado pela carta A Papisa, o segundo arcano do tarô, cujo simbolismo está relacionado à voz interior e ao crescimento pessoal (OUSPENSKY, 1976). A carta da papisa apresenta como elemento central uma figura feminina, o que corrobora com as questões de feminilidade trazidas ao longo da quest do Castelo de Yukiko, e funcionando como uma oposição (em um sistema binário) à figura masculina da carta O Carro. Nichols (2007) aponta para uma ligação muito forte da carta com a figura feminina, que é “convocada a fim de realizar-se de maneiras para as quais a nossa sociedade coletiva ainda fecha suas portas” (p. 24), Também é uma carta ligada à sensação de permitir que as coisas aconteçam, relacionando-se com a personagem

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que inicialmente luta contra essa impossibilidade de tomada de ação e que depois, ao aceitar esse seu lado há muito reprimido, permite que a vida a leve por seus caminhos, percebendo que, por mais que não possa mudar certas coisas, ela ainda tem a capacidade de ação.

Após o fim da quest, as personagens, agora reconhecendo esses sentimentos reprimidos, começam a apresentar mudanças em seu comportamento. Chie começa a se dedicar ao seu treinamento em artes marciais para deixar de se escorar apenas em Yukiko e jura não ser mais apenas a garota em que Yukiko pode confiar47, buscando o seu valor nas suas próprias atitudes, e não dependendo da associação a outras pessoas para se sentir melhor. Isso mostra que Chie percebe que além da aparência e da sua feminilidade, existem outras características que a tornam uma pessoa de valor. Yukiko, entendendo que ninguém, exceto ela, poderá mudar a sua vida, resolve se posicionar e não aceitar o destino que lhe é imposto. Abandonando a ideia de que ela é uma princesa incapaz, e que precisa de resgate, resolve começar a aprender uma série de habilidades que serão necessárias para quando ela for morar longe da família. Além disso, Yukiko começa a descobrir o seu potencial e depender menos de Chie para se defender das investidas dos outros colegas e até mesmo de um repórter da emissora local, que tenta, novamente, associar a sua beleza com a fama da pousada de sua família.

Ao fim da quest, ambas as personagens mostram que entendem a origem dos sentimentos que reprimiam, e começam a agir para mudar essa realidade. Chie deixando de depender da sua amiga, e seus atributos físicos, para se sentir melhor, busca o seu valor em outras características suas que independem da aparência e de envolvimentos amorosos; e Yukiko se desvencilhando da ideia de que uma mulher não pode decidir o seu próprio destino, necessitando ser valorizada pelo seu companheiro, e começa a dar passos em direção à sua independência.

Podemos perceber, assim, que essa quest mostra um tensionamento entre as noções de feminilidade das duas personagens. Enquanto Yukiko se vê presa e dependente do seu príncipe encantado, Chie se sente inferior a Yukiko, e às demais mulheres, por não se enquadrar no modelo de feminilidade que acredita ser o ideal. Além disso, as narrativas das personagens dão a entender um possível interesse romântico mútuo, tanto pela visão que Yukiko tem de Chie (que é o seu primeiro “príncipe”), quanto pela narrativa das personagens

47 Trecho original: I swore to quit being nothing but the girl Yukiko can rely on.

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ter como pontos centrais uma a outra. Entretanto, não há uma realização ou confirmação plenas do possível relacionamento (ou interesse) romântico entre as personagens, restringindo-se, assim, a uma sugestão.

3.4.2 Um ode à masculinidade: Kanji Tatsumi

A segunda missão a ser analisada, também a segunda do jogo, é a quest de resgate de Kanji Tatsumi, chamada Kanji Tatsumi in Rosy Steam Paradise - Men Only (Kanji Tatsumi no Paraíso Rosado e Fumegante - Apenas para Homens, em tradução livre). O primeiro ponto a ser observado é a personalidade de Kanji Tatsumi. O garoto é conhecido por ser um encrenqueiro da cidade, sempre envolvido em confusões, principalmente enfrentando gangues de motociclistas que rondam a cidade de Inaba. Pavio curto, agressivo e pouco amigável, Kanji tem poucos amigos na cidade e na escola, pois muitas pessoas têm medo de se aproximar dele, por conta da sua fama. Tatsumi é um personagem extremamente fechado, que não gosta de falar ou demonstrar os seus sentimentos, o que se reflete também no segundo ponto da análise, que é o tratamento que é dado a Kanji pelos demais personagens do jogo. Bello (2016) afirma que esse distanciamento emocional e essa agressividade são características dadas como masculinas, e que a demonstração de fraqueza é uma característica tida como feminina dentro de um sistema binário e sexista, que associa a feminilidade à fraqueza. Enquanto às mulheres, segundo Bello, são reservadas a emotividade e a passividade, aos homens cabem a atividade e a força física. Essas características, supostamente inerentes e naturais dos gêneros masculino e feminino, não deixam margem para outras formas de ser homem ou mulher.

O documentário The Mask You Live In (A Máscara em que Você Vive, em tradução livre) da diretora Jennifer Siebel Newsom (2015), aborda a socialização masculina que, desde a infância, define um perfil do que é masculino, que dita o comportamento de um indivíduo do gênero masculino, tolhendo demonstrações de afeto, principalmente entre homens, e sensibilidade, justificados pelo argumento de que isso não é “coisa de homem”. A masculinidade acaba por ser dada como esse lugar de distanciamento emocional, e qualquer demonstração de afeto ou emoção, supostamente, desqualificaria o indivíduo como um homem. Por conta desse comportamento, Kanji não desperta outros sentimentos, a não ser medo e repulsa por parte dos demais personagens, sendo visto como uma ameaça ou problemático pelos outros. Embora seja temido, Kanji só se envolve em brigas com as

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gangues que perturbam a paz de Inaba. Entretanto, ele afasta e intimida todos aqueles que tentam se aproximar e conversar com ele, principalmente as garotas.

Depois de aparecer em uma reportagem da televisão local mostrando as brigas entre as gangues de motociclistas, o Time de Investigação (Investigation Team, em inglês, o termo que Yu e seus amigos usam para denominar o seu grupo) começam a suspeitar que Kanji seja a próxima vítima; suspeita essa que é reforçada quando o Canal da Meia-Noite é sintonizado e aparece uma silhueta semelhante a do rapaz. Temendo pela segurança de Tatsumi, o time resolve coletar algumas informações sobre o rapaz e seguí-lo pela cidade. De longe, Yu e seus amigos observam Kanji conversando com um detetive chamado Naoto, que faz algumas perguntas e afirma estar interessado nele, o que deixa Tatsumi visivelmente enrubescido e confuso. Kanji não consegue entender como um homem pode estar interessado por outro homem, e permanece pensativo em relação ao que foi dito pelo outro rapaz.

No dia seguinte, Kanji combina de encontrar Naoto nos portões da escola e, ao perceber que está sendo observado pelo Time de Investigação, reage agressivamente e se afasta. Ao ser perguntado se não percebeu nada de estranho acontecendo, Tatsumi fica visivelmente irritado com Yu e seus amigos, por achar que eles estão fazendo inferências sobre o envolvimento romântico dele com Naoto, e ameaça agredi-los, caso não saiam da frente. Em um sistema de heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2003), a masculinidade é ferida caso um homem demonstre interesse, romântico ou sexual, por outro indivíduo do gênero masculino, e essa insinuação parece irritar Kanji justamente por ir contra a sua masculinidade, já que ele tem dificuldade de compreender como pode um homem se interessar por outro.

Depois desse evento, o Time de Investigação resolve assistir novamente ao Canal da Meia-Noite para ver quem será mostrado na transmissão. Para a surpresa deles, dessa vez há uma transmissão clara, mostrando Kanji dentro de uma sauna, trajando apenas um fundoshi, traje japonês semelhante a uma tanga, que deixa as nádegas desnudas. Assim como na transmissão de Yukiko, o comportamento de Kanji mostrado na televisão é completamente diferente do observado no cotidiano. Visivelmente corado, Tatsumi anuncia no canal:

O-LÁ, queridos telespectadores… É hora da da “Má, Sauna Má”. Hoje à noite, vou apresentar um lugar soberbo para aqueles que buscam por um amor sublime que ultrapasse a separação dos sexos! Eu sou o seu apresentador, Kanji Tatsumi, servindo para vocês essa reportagem

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furtiva escandalosamente especial! Nossa senhora, imaginem as coisas que podem acontecer comigo lá dentro! Ooooh!48 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Já entendendo o funcionamento do Canal da Meia-Noite e do mundo da televisão, o Time de Investigação presume que um dos sentimentos que Kanji esconde é o seu interesse por outros indivíduos do gênero masculino. Quando Tatsumi, o da televisão, fala de uma experiência que ultrapassa a separação dos sexos, ele recorre à ideia da superação da heterossexualidade compulsória, da ideia de que masculino e feminino são opostos complementares, tendo assim uma experiência homossexual, descrita por Kanji como um amor sublime. Se associarmos essa fala com o título da missão, que possui o excerto “Apenas para Homens”, podemos pensar nesse amor sublime como apenas aquele que acontece entre dois homens.

Catonné (2001) fala que na antiga Grécia, as práticas homossexuais eram comuns, tanto entre homens quanto entre mulheres, e que estas práticas tinham um grande valor social. Enquanto para a mulher, as relações sáficas serviam como uma iniciação à vida sentimental e erótica, preparando as jovens para os seus maridos, as relações entre dois homens tinham um caráter tanto afetivo quanto social, pois introduziam o jovem não só nas práticas sexuais, desempenhando o papel de passivo (aquele que é penetrado), como também aos círculos sociais masculinos. O envolvimento entre dois homens, um adulto e outro jovem, a pederastia, era um processo tido como natural e que, ao atingir a puberdade, a chamada “idade do pelo”, o enlace sexual entre os dois tinha de ser encerrado, evoluindo de um amor para um “laço definitivo e socialmente precioso” (CATONNÉ, 2011, p. 35), algo que não acontecia entre as mulheres. Ainda de acordo com o autor, para os homens: “À heterossexualidade cabe a formação do indivíduo físico. A homofilia encarrega-se do indivíduo social e cultural”. Isso mostra uma valorização da relação entre dois homens, em detrimento de uma relação heterossexual, de caráter reprodutivo.

Ao entrar no mundo da TV, o Time de Investigação se depara com a sombra de Kanji, do mesmo jeito que se depararam com as sombras de Chie e Yukiko, tendo a mesma aparência do verdadeiro, mas envolto em uma névoa e com os olhos em um tom brilhante de amarelo. A sombra de Kanji então se vira para Yu e seus amigos e fala:

48 Trecho Original: Hel-lo, dear viewers...It’s time for “Bad, Bad Bathhouse”. Tonight, I’ll introduce a superb site to those searching for sublime love that surpasses the separation of the sexes! I’m your host, Kanji Tatsumi, serving you this scandalously special sneak-in report! Goodness gracious, just imagine the things that might happen to me there! Ooooh!

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Oooooh, nossa! Obrigado pela sua atenção exclusiva! Finalmente, eu penetrei as instalações! Essas imagens estão sendo transmitidas ao vivo de dentro desse paraíso fumegante! Mas eu ainda não tive nenhum encontro. Será por causa dessa névoa quente? É como se o suor estivesse virando fumaça! Mmmm, meu corpo está formigando de empolgação. Essa coisa elusiva que eu realmente desejo… Será que eu vou finalmente encontrá-la aqui? Pois então, em frente e mais fundo para alcançar mais reinos do romance!49 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Nessa fala da sombra de Kanji, podemos perceber as referências à penetração. Catonné (2001) afirma que, nas relações homossexuais, desde a Grécia antiga até atualmente, um homem passivo, ou seja, aquele que é penetrado, ainda é visto como inferior à contraparte ativa (quem penetra) da relação sexual, pois a passividade é o papel destinado à mulher, enquanto o parte ativa da relação sexual, a penetração, é destinada ao homem. O fato da sombra de Kanji, que possui interesse sexual em outros homens, ainda se colocar de forma a valorizar a sua posição como ativo da relação se relaciona com a sua personalidade que incorpora o ideal de masculinidade apontado por Bello (2016) e que fere menos, dentro de uma lógica binária, a sua masculinidade por ocupar o papel de ativo em uma relação sexual entre dois homens. Essa relutância de explorar o outro lado, por consequência, se torna mais óbvia conforme o Time de Investigação explora cada vez mais a sauna em que o verdadeiro Kanji está preso. Conforme eles entram nos cômodos, é possível ouvir a voz de Tatsumi:

Um homem não pode recuar em tempos como esses! Preste atenção, e eu mostrarei o quão másculo Kanji Tatsumi pode ser! Um homem tem essa coisa chamada orgulho… Heheh, eu nunca vou perder [o orgulho]... Você está tentando romper a barreira do que é aceitável, assim como eu? OoooOOOOoooh! Isso significa que você me deseja? É isso? Oh, isso me deixa tão feliz! Pois então, eu simplesmente TENHO que preparar algo espetacular para você!50 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Esse diálogo acontece conforme o jogador explora a sauna, em busca de Kanji, explorando também os sentimentos que Tatsumi reprime. Ao falar que não vai perder o seu orgulho ou recuar em certas situações, é perceptível que Kanji, apesar do desconforto, não quer parecer covarde, característica que não é considerada máscula. Somente ao perceber que também é desejado, da mesma maneira que deseja esse outro (que, diferente de Yukiko, Kanji não endereça esse discurso para ninguém em específico no jogo), ele se sente mais confortável com a situação. Através de um discurso de conotação sexual, Kanji se mostra

49 Trecho Original: Oooooh, my my! Thank you for your undivided attention! At last, I’ve penetrated the facility! These images are coming to you live from this steamy paradise! But I’ve yet to have any charming encounters. Could this hot fog be the cause? It’s like steam rising from sweat! Mmmm, my body’s tingling with excitement! That elusive thing I truly yearn for… Will I finally find it here? Well then, onward and deeper to reach further realms of romance. 50 Trecho Original: A man can’t back down at a time like this! Just watch, and I’ll show you how manly Kanji Tatsumi can be! A man’s got this thing called pride… Heheh, I’ll never lose… Are you trying to break the barrier off the acceptable, just like me? OoooOOOOoooh! Does that mean you’re yearning for me? Is that so? Oh, that makes me sooooo happy! Well then, I simply MUST prepare something spectacular for you!

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desconfortável em deixar que as pessoas tenham acesso a todos esses sentimentos que ele esconde, que, até agora, estão relacionados à culpa de se sentir atraído por outro homem e ficar feliz por saber que esse sentimento é mútuo. Quando chegam ao final da sauna, eles encontram a sombra de Kanji de frente para o verdadeiro, dizendo:

Ah, qual é, chega de charadas. Não é horrível enganar as pessoas? Enganar a si mesmo…? O que tem de tão ruim em fazer o que eu quero fazer? Eu sou o que você realmente quer, não sou? Ohh, como eu odeio as garotas… Tão arrogantes e egocêntricas! Elas choram se você fica com raiva, falam mal de você pelas suas costas, espalham mentiram nojentas… Elas olham para mim como se eu fosse… se eu fosse uma COISA horrível, e dizem que eu sou um esquisitão… Rindo de mim, o tempo todo! Você gosta de cozinhar? Que bicha! Pintar não tem nada a ver com você. Mas você é um cara… Você não age como um cara… Por que você não é másculo...? O que quer dizer ser “um cara”? O que quer dizer ser “másculo”? Garotas são tão assustadoras… Homens são tão melhores… Eles nunca diriam essas coisas horríveis e degradantes. Sim, eu prefiro muito mais os homens…51 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Nessa fala da sombra de Kanji, as motivações começam a ficar confusas, pois ao mesmo tempo que ela [a sombra] fala sobre enganar os outros e se enganar, e todas as sugestões, ao longo da missão, apontarem para o fato de Kanji ter se interessado por Naoto e ficado feliz pela recíproca ser verdadeira, a argumentação feita, no encontro final, aponta muito mais para uma visão misógina, que atribui às mulheres características como superficialidade, falsidade e instabilidade emocional. Essa desvalorização das mulheres, ao passo que enaltece a figura masculina, segundo Federici (2017), é uma visão que perpetua um sistema de opressão, dominado pelos homens, e que tem por objetivo a exclusão das mulheres das esferas de poder e da vida social, tratando-as como inaptas, maldosas e pouco confiáveis.

Essa visão androcêntrica concentra todas as qualidades ao masculino, visto como detentores naturais (uma vez que essas características são necessariamente atreladas ao gênero do indivíduo dentro dessa visão) do poder e das virtudes (BOURDIEU, 2019). A quest de Kanji, nesse momento, passa a ser muito mais uma valorização do homem, como detentor de muitas virtudes, do que os conflitos em relação à masculinidade. Por mais que, brevemente, atividades, como costurar ou pintar, sejam questionadas como externas ao universo da masculinidade, o foco do discurso do personagem não é a contestação da natureza da pintura ou da costura, mas a negação das mulheres, que, ao questionarem sua masculinidade, são

51 Trecho Original: Oh, come now, enough with the charade. Isn’t it awful to deceive people? To deceive yourself…?What’s so bad about doing what I want to do? I’m what you really want, aren’t I? Ohh, how I hate girls… So arrogant and self-centered! They cry if you get angry, they gossip behind your back, they spread nasty lies… They look at me like some… some disgusting THING and say that I’m a weirdo… Laughing at me, all the while! You like to sew? What a queer! Painting is so not you. But you’re a guy… You don’t act like a guy… Why aren’t you manly… ? What does it mean to be “a guy”? What does it mean to be “manly”? Girls are so scary… Men are much better… They’d never say those awful, degrading things. Yes, I vastly prefer men...

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vistas como assustadoras, algo que, segundo a fala da sombra de Kanji, os homens jamais fariam.

Ao ser derrotada, a sombra ainda não é aceita de imediato pelo verdadeiro Kanji, ao contrário do que acontece com Yukiko e Chie, que reconhecem esses sentimentos como seus. Enfrentando ainda a rejeição, a sombra de Tatsumi fala que os três (Yu, Yosuke e o verdadeiro Kanji) seriam três incríveis namorados e implora para ser aceito, não importa por quem. Nesse momento, o verdadeiro Kanji desfere um soco no rosto da sua sombra e a derruba. Ao fazer isso, ele diz:

Tch. Não consigo acreditar que essa coisa existe dentro de mim… É, eu sei… Eu sabia o tempo todo que tinha algo como você [dentro de mim]! Não é questão de garotos ou garotas… Eu só morro de medo de ser rejeitado.52 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Depois da fala de Kanji, e da aceitação da sua sombra, os diálogos da quest se mostram inconsistentes, e também contraditórios. A missão começa com diversas insinuações a uma relação homossexual, que, no diálogo do jogo, ultrapassa a separação dos sexos, depois passa para uma visão misógina e androcêntrica, e é concluída como se a sombra do personagem representasse o medo de rejeição, acima de qualquer coisa. Por mais que a sombra, antes de desaparecer, aponte para os três personagens masculinos como potenciais namorados (ignorando Yukiko e Chie), a conclusão da batalha, que culmina na derrota da sombra de Kanji, é o medo de rejeição, que não justifica todas as inferências feitas ao interesse romântico e sexual por outros homens, e está parcialmente justificado no discurso misógino, já que o personagem diz preferir os homens, por serem mais confiáveis e menos maldosos. Tendo isso em mente, torna-se confuso o que é, de fato, o gatilho para a quest de Kanji, pois o fato que antecede o seu desaparecimento é o seu encontro com Naoto e a percepção de que está sendo observado. Entretanto, a conclusão da missão nos leva a pensar em outros aspectos que são omitidos, como essa rejeição sofrida pelo personagem ao longo do tempo. Essa falta de comprometimento com a criação de uma narrativa da homossexualidade de Kanji se configura como queerbaiting, pois há uma forte sugestão, mas não há a consolidação da identidade sexual do personagem.

A abertura para possíveis interpretações sobre a sexualidade de um personagem não é algo necessariamente ruim. O problema, em Persona 4, é que existe essa delimitação e consolidação apenas quando os personagens são heterossexuais, como é o caso de Yosuke

52 Trecho Original: Tch. Can’t believe something like this is inside of me… Yeah, I know… I’ve known all this time I had something like you! It ain’t a matter of guys and chicks… I’m just scared shitless of being rejected.

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(que já demonstrou interesse em Yukiko e era apaixonado pela colega de classe Saki Konishi) e Teddie (que tem expressa atração por mulheres bonitas). Quando as identidades sexuais dos personagens fogem à heterossexualidade, como Kanji, Chie e Yukiko, não há uma confirmação direta, deixando apenas uma sugestão para tal interpretação.

Em um desabafo após o encerramento da quest, torna-se ainda mais claro o gatilho para a existência da sombra, mas a delimitação da homossexualidade do personagem, e a sua relação com a misoginia e medo de rejeição ainda permanece confusa. Kanji diz aos colegas do Time de investigação, quando perguntado sobre quem era o garoto com quem ele foi visto:

E-eu não sei muito sobre ele… Digo, a gente só se encontrou duas vezes… Uh, bem… Ele perguntou coisas tipo… Se tinha acontecido algo estranho ultimamente… Mas eu não sei aonde a minha cabeça estava… Quando eu me dei conta, disparei que queria vê-lo novamente. Eu, uh… eu mesmo não entendo o que aconteceu. Garotas são tão barulhentas e desagradáveis, então, sabe…. Eu realmente não gosto de lidar com elas. Os caras são bem mais relaxados. E- então, uh, eu comecei a pensar… E se eu for do tipo que nunca se interessa por garotas? E eu não pude aceitar isso, então minha cabeça ficou dando voltas e voltas… Quer dizer, na verdade era coisa da minha cabeça. Eu que impedia esses pensamentos [...] Eu me interesso por costura e coisas do tipo desde criança, mas no instante em que eu falo isso, as pessoas me olham estranho… As garotas riem de mim, as pessoas na vizinhança me tratam como se eu fosse um animal em um zoológico, e eu já estava de saco cheio de tudo. Eu creio que eu não tenho medo de garotas. Eu tinha medo de pessoas em geral.53 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

O que parece é que os questionamentos de Kanji começam nesse interesse por Naoto, depois passam para o fato de ele gostar de atividades, como costura, que, supostamente, não fazem parte do universo masculino, e que, justamente por causa disso, as garotas não gostam dele, fazendo com que ele passe a ver o feminino como um ambiente hostil e opressor (quando na verdade é o local da masculinidade que tolhe o desenvolvimento dessas habilidades e formas de expressão), a partir dessa demonização das mulheres, para, no fim, dizer que na verdade o personagem tem medo de rejeição, de maneira geral.

Podemos, assim, enxergar a orientação sexual de Kanji sendo construída a partir de duas frentes, que se complementam: o medo de rejeição e a associação direta entre misoginia e homossexualidade. Na primeira, por não ter sido acolhido pelas mulheres, Kanji acaba por, em uma visão binária e antagônica, buscar esse acolhimento no masculino. Entretanto, o jogo

53 Trecho Original: I-I really don’t know much about him… I mean, I’ve only met him twice… Uh, well… He just asked stuff like… If anything different happened lately… But I dunno where my head was at… When I came to my senses, I blurted out that I wanted to see him again. I, uh… I don’t really get it myself. Girls are so loud and obnoxious, so, y’know… I really don’t like dealing with’em. Guys are a lot more laid-back. S-so, uh, I started thinking… What if I’m the type who never gets interested in girls? And I couldn’t accept that, so I kept spinning around and around in my head… I mean, it was all in my head, when y’get down to it. I was the one shutting out that stuff [...] I’ve bem interested in sewing and stuff since I was a kid. But the second I say stuff like that, people look at me funny… Girls make fun of me, the people in the neighborhood treat me like I’m some zoo animal, so I was sick of everything. I guess I wasn’t really afraid of girls. I was just scared of people in general.

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revela que Kanji é uma pessoa fechada, sem quaisquer amizades, independente do gênero, por ser uma pessoa que desperta medo nos demais. A primeira pessoa que se aproxima de Tatsumi, mesmo sabendo da sua reputação, é Naoto. Como a quest do personagem se inicia após esse contato, Naoto, como uma figura masculina, pode significar para Kanji esse acolhimento desejado, e a partir desse ponto, o personagem torna-se gay. A outra frente, que complementa a primeira, é que Kanji passa a admirar, a exaltar a masculinidade, a partir do momento em que, por ser rejeitado pelas mulheres, “percebe” (na visão do personagem) que as considera desagradáveis, ao contrário dos homens. A homossexualidade do personagem, nessa frente, surge pela repulsa causada pelo gênero “oposto” (entre aspas, tendo em vista que Persona 4 só trata da identidade de gênero dos personagens tendo por base uma perspectiva binária), e não pelo desejo de pessoas do mesmo gênero. Em ambas as frentes, no entanto, parece haver um fator que objetivamente faz com que Kanji se torne gay.

Por mais que esse receio de ser rejeitado, por gostar de atividades que não são vistas como masculinas, rendam uma discussão per si, isso só isso só aparece, pontualmente, na fala de Kanji, e não justifica, por exemplo, o desejo de ver Naoto novamente, o que só fortalece a ideia de que a narrativa de Tatsumi se configura como um queerbaiting. Uma das principais diferenças ao final da quest é que, além de Kanji se tornar mais aberto aos membros do Time de Investigação, se tornando um dos integrantes, Yosuke constantemente faz alguma piada ou insinuação sobre a sexualidade do personagem. Esse tipo de abordagem acaba resumindo a narrativa da homossexualidade de Kanji em um alívio cômico, uma das maneiras que Brennan (2018) aponta para a inserção de personagens queer sem se comprometer com as questões relacionadas à sua identidade.

Em um diálogo após o resgate de Kanji, em que ele, Yu e Yosuke estão acampando, Yosuke questiona a sua segurança na presença de uma “pessoa como Kanji”, o que irrita Tatsumi. Mostrada em forma de piada, essa ideia do homossexual como um predador sexual contribui para a perpetuação de um imaginário de que pessoas queer são uma ameaça para a integridade física dos indivíduos cis-heterossexuais, que se veem em constante perigo, subvertendo a lógica de oprimido e opressor. Nessa linha de raciocínio, contém, em seu fundamento, a noção de que as relações sexuais que não são capazes de gerar indivíduos, como a sodomia, são impuras e pecaminosas (FOUCAULT, 1999).

Por fim, a carta de tarô associada a Kanji é O Imperador. De acordo com Ouspensky (1976), essa carta simboliza o poder e a austeridade. Representada por um homem mais velho

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em um trono, essa carta está relacionada à rigidez e à obediência às regras, principalmente associada ao masculino, ao viril. Associar O Imperador a Kanji traz de volta as questões da sua narrativa, que propõe uma rigidez, uma fixidez à masculinidade. De acordo com Nichols (2007), a carta também se relaciona à figura paterna, protetora e corajosa. Posteriormente, é revelado que Kanji perdeu o pai ainda muito jovem e, na ausência dessa figura masculina, torna-se o “homem da casa”. Apesar da fixidez, o imperador, para a autora, é uma figura mais próxima da humanidade, mais disposta a se expor, o que está relacionado com os sentimentos reprimidos de Kanji que são revelados para o Time de Investigação durante o resgate. Por mais que a quest de Kanji se encerre, neste momento, diversos acontecimentos-chave para o entendimento do personagem acontecem na missão que traz Naoto como protagonista, já brevemente mencionado nesta análise. Sendo assim, alguns aspectos referentes a Kanji serão tratados na subseção 3.4.4, para uma maior clareza.

A narrativa da missão de Kanji, assim como a narrativa da quest de Yukiko e Chie, aborda a identificação do personagem para com as expectativas sobre o gênero que lhe é atribuído. Incorporando uma masculinidade rígida e restritiva, Kanji reprime todos os seus aspectos que fogem a esse modelo. Da mesma forma da quest anterior, a narrativa não aborda plenamente a orientação sexual de Kanji. Entretanto, neste caso, em vez de se limitar à sugestão, a questão é tangenciada, desviando a motivação da homossexualidade e transformando-a em elemento de medo da rejeição, ignorando a aberta confissão do interesse de Kanji por Naoto, que funciona como gatilho para a quest.

3.4.3 Um alguém que eu não reconheço: Rise Kujikawa

A quest seguinte, intitulada Maru-Q Midsummer Night’s Dream Special: Risette exposed (Especial Sonho de uma Noite de Verão da Maru-Q: Risette exposta, em tradução livre) tem como protagonistas dois personagens: Rise Kujikawa e Teddie. Entretanto, como somente Rise possui questões relacionadas à sua identidade de gênero, somente os elementos relacionados à personagem serão analisados. Antes de ser apresentada, de fato, no jogo, Kujikawa aparece na televisão e em cartazes no cenário do jogo. Conhecida pelo nome artístico Risette, a personagem é uma cantora em ascensão no Japão e garota propaganda de diversos produtos, incluindo uma bebida dietética. No início da carreira e fazendo um grande sucesso, Rise surpreende os fãs anunciando que vai dar uma pausa, o que faz as pessoas se indagarem sobre o motivo dessa interrupção. A jovem celebridade resolve se isolar em Inaba, onde a sua família possui uma loja de tofu, para ficar longe da sua agenda de celebridade.

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Conhecendo a loja, muitas pessoas de Inaba se juntam à sua frente para tentar encontrar a cantora. Neste contexto, muitos comentários feitos sobre Rise abordam sua aparência, oscilando entre ela ser muito bonita ou não ser tão bonita quanto na televisão. O próprio Yosuke, ao se declarar fã da cantora, não faz elogios ao trabalho dela, e sim à sua aparência, e se mostra um pouco decepcionado, neste aspecto, ao encontrá-la pessoalmente.

Yosuke não é o único a dar esse tratamento para Rise quando sabem da sua chegada à cidade. Esse comentário é feito por diversos outros NPCs do jogo, reduzindo a personagem à sua aparência e deixando de lado o seu trabalho. Como já foi comentado na análise de Yukiko e Chie, Wolf (2019) afirma que, na sociedade contemporânea, agora que as mulheres começam a ocupar mais a esfera da vida pública e não são apenas reduzidas ao seu papel como reprodutoras/geradoras de força de trabalho, o modo encontrado para controlar esse grupo social é gerar uma constante insatisfação com a sua aparência. Esse mecanismo de controle coloca, para as mulheres, a boa aparência acima de qualquer coisa, estando associada diretamente ao valor como mulher.

O fato de Rise ter se isolado na cidade de Inaba atrai a televisão local para tentar alguma matéria com a cantora. Reconhecendo o padrão de desaparecimentos, o Time de Investigação resolve verificar se o Canal da Meia-Noite fará alguma transmissão nos dias que seguem à chegada de Rise. Conforme esperado, a cantora aparece em uma transmissão do canal misterioso. Trajando apenas um biquíni, e com a câmera alternando o foco entre os seus seios e suas coxas, a Rise da televisão fala:

Boa noite, boa noite! Eu sou Rise Kujikawa! Nessa primavera, uma jovem garota sobe de nível para se tornar uma estrela colegial… Yayyy! Então hoje, eu vou comemorar ultrapassando os limites dos padrões e práticas! Todo mundo sabe que horas são? É hora do show! Mostrar o que, huh? Hmhmhm… Tu-do! Eee, que vergonha! É muito sensual para a TV?! Bem, se é uma coisa que vale a pena fazer, então vale a pena fazer até o final! Eu vou mostrar tudo para vocês! Heehee! Fiquem ligados!54 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Essa fala da Rise do Canal da Meia-Noite mostra a insatisfação gerada pela pressão de manter uma aparência e uma personalidade que atenda aos padrões do seu público, o que se torna exaustivo para a cantora, que não pode se vestir ou se comportar como quer, sempre tendo que tomar cuidado com a sua imagem como celebridade.

54 Trecho Original: Good evening, good evening! I’m Rise Kujikawa! This spring, one young girl levels up to become a high school idol… Yayyy! So today, i’m gonna celebrate by pushing the limits of standards and practices! Does everybody know what time it is? Showtime! Show what, huh? Hmhmhm… E-very-thing! Eee, how embarrassing! Is this too hot for TV?! Well, if a thing is worth doing, it’s worth doing all the way! I’m gonna bare it all for you! Heehee! Stay tuned!

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Ao investigar sobre os possíveis motivos para a pausa na carreira, Yu e seus amigos descobrem que Rise está cansada de sustentar uma personalidade que não é autêntica. Por conta dessa característica da narrativa da personagem, dividimos a discussão da personalidade dela em dois momentos: (a) prévio à quest, quando o Time de Investigação ainda não é amigo da celebridade e (b) após o término da quest, quando os demais personagens se tornam amigos de Rise.

Arima (2003), em um estudo sobre a publicidade na televisão japonesa, identificou três grandes perfis de figuras femininas que aparecem nas propagandas: donas de casa belas e sábias, garotas jovens atraindo a atenção das pessoas e celebridades jovens55, respectivamente. Esses dois últimos perfis incluem uma exibição dos atributos corporais, que são para chamar a atenção do seu público. Entretanto, a personalidade feminina não é galanteadora, ou provocativa; a garota-propaganda tem de ser, segundo a autora, simpática, prestativa e sociável.

Essa diferença entre a personalidade e o que é mostrado na TV já pode ser percebido pela fala de Rise, pois embora apareça de biquíni nas propagandas, e os seus atributos corporais sejam utilizados para atrair a atenção do público alvo, dentro do jogo, o seu discurso sempre tem que ser comedido, levando-a a se portar de modo contido e demonstrar simpatia. O que a sua sombra faz no Canal da Meia-Noite é o contrário disso, visto que ela promete uma exibição do seu corpo, como uma forma de chamar a atenção. O Time de Investigação estranha esse comportamento, dizendo que ela está indo longe demais e que ela pode acabar fazendo algo que se arrependa, o que corrobora com o estudo de Arima (2003), que aponta para uma exibição dos atributos físicos das garotas-propaganda contrastando com uma personalidade mais amigável, e não provocativa e sensual.

Ao entrar no mundo da televisão, eles correm atrás de Rise, que está mantida refém em um clube de striptease. Ao entrar no recinto, são recebidos pela sombra de Rise, que fala ao Time de Investigação que eles verão até o último centímetro de Rise, e corre para dentro do clube. Conforme a exploração segue, é possível ouvir a voz de Kujikawa, em tom de desabafo, dizendo que está cansada de dietas e da academia, e se refere ao seu nome artístico, Risette, sempre na terceira pessoa. Ela também diz que não se importa com as aparências, e que o interior é o que realmente importa, fazendo referência à pressão estética sofrida para se

55 Trecho original: beautiful and wise housewives, young ladies attracting people’s attention e young celebrities.

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manter sempre atraente para o seu público, já que vive de fazer propaganda de produtos dietéticos, que a obrigam a estar sempre em forma.

Wolf (2019) chama atenção para o fato de que essa cultura que glorifica a magreza não existe para exaltar a beleza ou está relacionada a uma obsessão para com esta, mas sim tem como objetivo promover a obediência feminina, já que isso torna uma forma de controlar o comportamento das mulheres, para além dos hábitos alimentares. Bourdieu (2019), por sua vez, afirma que uma das características associadas à feminilidade é “a arte de se fazer pequena” (p.53); associando a cultura da magreza como um mecanismo de controle não só do corpo, mas também do comportamento. Em outras palavras, a ideia da pequenez feminina se traduz no controle das medidas corporais, sendo pressionadas a manter um corpo magro, como também a assumir personalidade mais contida, comportada e obediente, duas queixas que ficam claras nas falas de Rise. Esta se mostra insatisfeita com a vida de celebridade por conta dessa série de restrições impostas para que ela se enquadre no perfil desejado pela empresa que a gerencia a sua carreira.

Ao explorar o clube de striptease, o Time de Investigação encontra Rise ajoelhada em frente à sua sombra, que está agarrada a um mastro de pole dance, trajando apenas roupas de banho. Ao perceber a chegada do time, a sombra de Rise começa a se exibir. Ao ouvir a verdadeira Rise pedindo para que pare, ela diz:

Oooh, ela quer que eu pare. Que engraçado! Como se isso fosse sequer perto do que você quer realmente mostrar, sua piranha! Qual é, olhe! Você não consegue desviar o olhar! Essa sou eu! Essa sou eu de verdade! Não a Risette, a celebridade falsa! Olhe para a garota bem na sua frente! Eu estou cansada de ser uma cabeça-de-vento clichê que coloca goela abaixo tudo que oferecem [em referência aos produtos dietéticos que ela faz propaganda] e faz tudo isso com um sorriso no rosto! Deixe a minha verdade, nua e crua, ficar gravada na sua mente!56 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Nesse momento, a fala da sombra de Rise deixa em primeiro plano a vontade de se libertar desse tipo de personalidade que as celebridades (femininas e) jovens têm de assumir, não podendo recusar o que lhes é ordenado, sendo sempre simpáticas, dóceis, em qualquer situação, corroborando, assim, com o que foi discutido anteriormente. Apesar de ter diminuído o tom sexual da fala, em comparação com os diálogos anteriores, a personagem e a

56 Trecho Original: Oooh, she wants me to stop. That’s so funny! As if that’s even close to what you’re really thinking, you little skank! C’mon, look! You can’t tear your eyes away! This is me! This is who I really am! Not Risette, the fake celebrity! Look at the girl right in front of you! I’m sick of being some airhead cliche who chokes down everything she’s fed and takes it all with a smile! Let my naked truth be burned into your brains!

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ambientação da quest ainda sugerem fortemente uma hipersexualização na sombra de Rise, algo que será analisado no próximo capítulo.

Consideramos importante, também, ressaltar que nessa fala, há uma consciência limitada da personagem sobre as possibilidades de lidar com essas questões, tendo como opções únicas os papéis de “cabeça-de-vento”, que só se preocupa com a aparência, ou uma “piranha”, que deseja a atenção dos homens. A personagem se sente presa a essas duas possibilidades, oscilando entre a imagem que os seus agentes desejam que ela seja e aquela que é objeto do julgamento implacável dos demais.

Ao derrotar e aceitar a sua sombra, Rise reconhece esses sentimentos de rejeição à personalidade dócil criada para Risette. Nesse processo, a Rise é designada a carta de tarô Os Amantes/ Os Enamorados. Apesar do nome, e de carregar como símbolo um homem e uma mulher apaixonados, esse arcano não necessariamente possui ligação direta com relacionamentos amorosos, simbolizando o equilíbrio e também o livre-arbítrio, de saber fazer as suas escolhas e entender as consequências disso. Para Rise, a carta simboliza a tomada de decisão de abandonar a sua carreira como artista para poder viver da maneira que deseja, entendendo as implicações dessa escolha. A carta, que mostra duas pessoas, também pode simbolizar Risette, a celebridade e Rise, a pessoa por trás das câmeras. Ao entender que Risette também faz parte de si mesma, Kujikawa aceita essas características e não as vê como inteiramente negativas, o que está relacionado com esse equilíbrio contido no simbolismo da carta, de acordo com Ouspensky (1976).

Após integrar o Time de Investigação é que podemos entender melhor os demais aspectos da análise, uma vez que, diferente dos personagens apresentados até agora, Rise não é amiga dos membros do Time de Investigação antes da quest acontecer. Diferente da garota contida e simpática que aparecia na televisão, Rise é mais assertiva e bem humorada apenas com os amigos próximos. Isso justifica o porquê de a personagem ficar tão desconfortável com a docilidade que tinha que fingir para ser bem quista pelo seu público que, como foi discutido ao falar sobre o perfil das garotas-propaganda japonesas, procura em seus ídolos pessoas simpáticas, sorridentes e de boa aparência.

Rise é uma pessoa muito direta, e também muito galanteadora, sempre flertando abertamente com o protagonista, o que rende o apelido de “Garota Perigosa” (Dangerous Girl, no jogo em inglês), dado por Chie, por conta das investidas de Kujikawa. Diferente das

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outras personagens, que só desenvolvem um interesse romântico pelo protagonista caso o jogador siga por esse caminho (o que será melhor explicado no próximo capítulo), Rise flerta constantemente com Yu, o que não é bem visto por Yukiko e Chie, que mantém uma visão mais tradicional de que o homem que tem de investir e conquistar a amada.

Se retomarmos a última fala da Rise da televisão, podemos perceber que Kujikawa é chamada de “skank” (piranha, no sentido pejorativo). Aliado ao fato de que Rise é quem toma a iniciativa, podemos perceber que a personagem se culpava, ou ao menos via de maneira negativa, essa sua atitude de tomar a dianteira nos relacionamentos, indo contra a lógica do complexo de Cinderela (DOWLING, 1981) em que a mulher não tem iniciativa e deve ser cortejada pelo homem. O gatilho da quest para Rise é essa não-conformidade com a personalidade dócil que ela tinha de assumir, e o fato de ela se culpar e reprimir a sua verdade, gerando pensamentos como o de ela mesma se ver como uma “piranha”, por conta da sua assertividade. Nessa situação, as mudanças principais da personagem são em relação a essa personalidade televisionada, num processo em que ela abandona essa docilidade que tinha de assumir por conta de sua carreira.

Rise rivaliza com as outras garotas do grupo constantemente, algo que não acontece na sua relação com os colegas (homens) do Time de Investigação. Por vezes debocha ou provoca Yukiko e Chie, tentando se provar uma candidata melhor ao coração do protagonista, entretanto, essa rivalidade não recebe das outras personagens uma resposta, com a mesma intensidade, ou mesmo resposta alguma. Esse aspecto da relação de Rise com os demais mostra não somente uma recorrência a um imaginário de rivalidade feminina, que alimenta essa visão de que as mulheres são rivais umas das outras, em suas relações, como também apresenta como finalidade das suas atitudes a conquista de um homem, o que Dowling (1981) aponta como um dos pontos de Complexo de Cinderela, em que a mulher só encontra o seu valor associada a um homem, ou a partir dos valores deste.

Apesar das provocações, Rise tem uma boa amizade com Yukiko e Chie. Entretanto, ela não é bem quista pelas colegas de classe, tampouco pela professora substituta do colégio, por conta de sua assertividade e sua aparência. A professora, chamada Ms. Kashiwagi, chama Rise de jailbait (“chave de cadeia” em tradução livre, termo usado para se referir a crianças e adolescentes que são envolvidas sexualmente com pessoas adultas). A única motivação que leva a professora a fazer essa inferência sobre Kujikawa são as aparições televisivas e os

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trajes utilizados pela estudante. Em todo caso, não é mostrado no jogo nenhum escândalo amoroso ou notícia envolvendo Rise, que tem 15 anos, com um homem adulto.

Esse posicionamento da professora em relação à estudante, responsabiliza tão somente a menina pela atração que ela exerce sobre homens, por conta da sua aparência, apresentando- a como uma armadilha irresistível, semelhante ao modo pelo qual Yukiko é tratada pela imprensa local, como uma espécie de isca para atrair hóspedes (masculinos) à hospedaria da sua família. Ao mesmo tempo que existe a pressão para que as mulheres sejam sempre belas, essa beleza é tratada como sendo a responsável por todos os assédios sofridos. Nessa leitura, o homem é projetado como uma vítima indefesa dos encantos femininos, que não tem outra alternativa senão realizar alguma investida, mesmo que não autorizada ou consentida pela mulher (WOLF, 2019).

A quest de Rise, assim, trata de questões referentes à pressão estética e esse perfil dócil feminino para agradar ao público, sobretudo como mecanismos para controlar o comportamento das mulheres. Por mais que Rise compreenda as implicações disso para o seu trabalho como celebridade, sendo o motivo para a sua desistência da carreira, é possível perceber que certos comportamentos que incentivam a rivalidade feminina ainda são reproduzidos por ela, e por outras personagens femininas do jogo, que a veem como uma ameaça, partindo principalmente da ideia de que as mulheres são rivais umas das outras quando se trata de relacionamentos amorosos. Por mais que seja um fenômeno resultante de uma cultura misógina, que coloca as mulheres umas contra as outras, incorporar esse tipo de comportamento na trama do jogo pode ser entendido como uma busca por estabelecer uma relação de verossimilhança externa, apontada por Isbister (2006). Isso faz com o que o é apresentado no jogo, ou em qualquer outra obra, possa ser assimilado, relacionado, com eventos externos à esta. O problema central não é mostrar esse tipo de acontecimento verossímil no jogo, mas sim Rise não refletir ou se colocar de maneira crítica frente a essas atitudes, agora que é ciente de muitas das motivações subjacentes a estes comportamentos.

A narrativa de Rise aborda a dicotomia entre o seu comportamento como pessoa pública e a sua verdadeira essência, e como isso recai sobre as expectativas relacionadas ao gênero feminino. Em sua quest são abordadas questões como a pressão estética, principalmente a manutenção de um corpo magro, e o comportamento pudico, mesmo que contrastando com a exposição do seu corpo, como características associadas à uma imagem valorosa para a mulher. A partir do momento em que Rise passa a agir de maneira contrária

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ao que esperam, começa a ser vista de maneira negativa, inclusive responsabilizando a jovem por eventuais comportamentos masculinos, o que lhe rende definições como “piranha” ou “chave de cadeia”. A personagem se mostra, com os eventos de sua quest, mais consciente sobre como essas expectativas afetam não só a sua carreira, mas também a sua vida pessoal.

3.4.4 Um experimento drástico: Naoto Shirogane

A última quest a ser analisada tem como protagonista o jovem detetive Naoto Shirogane, e também tem implicações no desenvolvimento de Kanji Tatsumi. Ela se estrutura de maneira diferente das demais, tanto por Naoto ser uma pessoa que não é próxima do Time de Investigação e também por que, diferente dos demais, Naoto prepara o seu próprio sequestro, para poder investigar a fundo os desaparecimentos e assassinatos em Inaba. Antes do início da missão, pouco se sabe sobre o personagem. Conhecido por ser um “ás da investigação” (tradução livre para a alcunha de ace detective, em inglês), Naoto atua como consultor e detetive para o departamento de polícia de Inaba, apesar da pouca idade (15 anos).

Quando o suposto criminoso responsável pelos sequestros é preso, Naoto não está plenamente convencido da autoria dos crimes e resolve se matricular na escola Yasogami, onde o Time de Investigação estuda, para acompanhar mais de perto a rotina de Yu e seus amigos, já que o grupo é composto de muitas vítimas de desaparecimento. Ao se matricular no colégio, Naoto chama muita atenção, principalmente das garotas do colégio, que de imediato se dispõem, em tom de flerte, a mostrar a escola para o detetive. Entretanto, o rapaz se diz desinteressado, tanto em conhecer a escola, quanto as garotas, rejeitando o flerte.

Em diversos momentos em que o Time de Investigação tenta fazer contato com Naoto, Kanji fica visivelmente envergonhado e evita dirigir a palavra ao detetive. Se lembrarmos a quest de Kanji, por mais que a motivação fique um pouco nebulosa, um dos motivos pelos quais o personagem começa a duvidar da sua sexualidade é o fato de Naoto ter demonstrado interesse em Tatsumi, que então não entendia como um garoto poderia ter interesse em outro, demonstrando que o personagem é alheio a configurações de relacionamento diferentes da heterossexual.

Mesmo que a quest de Kanji tenha sido concluída, ele ainda titubeia em relação à sua orientação sexual e aos seus sentimentos por Naoto. O jovem detetive não dá muita abertura para o Time de Investigação, sempre respondendo negativamente às tentativas de

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aproximação. Sabendo do padrão que antecede os desaparecimentos, Naoto resolve dar uma entrevista ao jornal local, que faz uma matéria prometendo revelar a “verdadeira identidade do príncipe detetive”, e gerando rumores sobre o que Naoto esconde. Após aparecer no jornal local, acontece uma transmissão do Canal da Meia-Noite, mostrando uma sala de cirurgia. Nela, é possível ver Naoto, que para em frente à câmera e diz:

Boa noite a todos. Eu sou o príncipe detetive, Naoto Shirogane. Bem vindos ao Experimento do Século: O Projeto Genoma. Eu serei tanto o condutor quanto a cobaia, num processo de alteração corporal proibido, porém maravilhoso! Vocês verão a minha partida para um novo mundo… O momento de um novo nascimento! Deste dia em diante, eu seguirei em direção a um caminho completamente diferente em vida…! E eu compartilharei essa ocasião gloriosa, esse dia memorável, como todos vocês! Fiquem ligados!57 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Ainda não fica tão claro o que, de fato, Naoto vai fazer, e quais são as implicações desse processo de alteração corporal, pois, até o momento, pouco se sabe sobre o personagem. Diferente das demais quests, em que é possível ouvir o desabafo do personagem, na missão de Naoto só é possível ouvir alertas, pedindo a expulsão do Time de Investigação. Kanji é o personagem que se mostra mais preocupado com o resgate de Naoto, por conta dos seus sentimentos pelo garoto. Como não é possível ouvir a voz de Naoto durante a exploração, o diálogo só acontece quando o Time de Investigação consegue, finalmente, encontrar o detetive, que está de frente para a sua sombra. Diferente também dos demais, Naoto não está, inicialmente, rendido pela sua sombra, e sim tentando dissuadi-la, afirmando o quão difícil é ter de lidar com uma criança. Visivelmente irritada com o comentário de Naoto, a sombra do detetive dispara:

Por que se enganar? Eu sou você. Esses trejeitos infantis não são apenas um afetamento… Eles são a verdade. Todos esses dizem isso, não dizem...? “Você é apenas uma criança”, “Fique fora do nosso trabalho, criança”, e assim por diante. Não importa quantos casos você passe horas pensando sobre, não importa quantos crimes você resolva, você é uma criança aos olhos deles. É no seu cérebro que eles estão interessados. A massa cinzenta trancada no seu crânio. Enquanto eles precisarem dela, você é um ás! Quando acabarem, você volta pro parquinho. Você não pode lidar com a natureza duas-caras da sociedade… Você é só uma criança solitária. Você não é nada além de uma criança. Como você pode mudar a verdade essencial? No seu cerne, você admira o tipo de homem “forte” e “descolado” que povoam a ficção policial. Mas, ao tentar emular isso, você deve saber que, na verdade, não é nada disso - você é uma criança. Não tem como evitar esses princípios… Admita que você é uma criança, e admita que não tem nada que você pode fazer a respeito disso. Agora! Nossa análise está completa. Vamos começar o procedimento de alteração corporal. Você não tem objeções, tem… “Naoto” Shirogane? “Naoto”... que nome legal e másculo! Mas um nome não pode mudar a verdade. Não deixa você cruzar a barreira dos sexos. Como você poderia se tornar um homem ideal se você não é nem [do sexo] masculino...? Está tudo bem. Você não precisa mais sofrer. É por

57 Trecho Original: Good evening, everyone. I am the detective prince, Naoto Shirogane. Welcome to the “Experiment of the Century: The Genome Project.” I will be experimentor and experimentee both, in a forbidden yet wonderful bodily alteration process! You shall witness my departure into a new realm… The moment of a new birth! From the chosen day forth, I shall walk a completely different path in life…! And I will share this glorious occasion, the memorable day, with all of you! Do stay tuned!

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isso que você vai se submeter a esse processo de alteração corporal, para começo de conversa.58 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Nessa fala da sombra de Naoto, podemos perceber alguns aspectos do entendimento do personagem sobre ser um homem transgênero. O primeiro é a indissociabilidade entre o corpo (o sexo biológico) e o gênero. Ao falar que é impossível ser homem sem ser do sexo masculino, a sombra de Naoto coloca o corpo como determinante para a identidade de gênero, algo que Butler (2003) afirma ter relação com, mas não ser determinante do gênero, visto que o gênero não encontra sua finalidade na biologia. Tanto que, na transmissão do Canal da Meia-Noite e dentro do mundo da televisão, a sombra de Naoto afirma que passará por uma operação de modificação corporal para cruzar a barreira dos sexos, o que não só revela uma oposição binária entre masculino e feminino, como também afirma, a partir dessa fala, que somente uma cirurgia, comumente chamada de “mudança de sexo”, é capaz de proporcionar uma transição completa, uma passagem para o “outro lado” da “separação dos sexos”, excluindo, também diversas outras identidades fora do espectro binário.

Esse tipo de noção sobre o gênero reforça a ideia errônea de que o corpo, como Butler (2003) aponta, é um receptáculo passivo que, dependendo da sua formatação, recebe um gênero sem contestação ou resistência. Enquanto Naoto não se submeter ao procedimento, ele não passará de uma imitação de um homem. Influenciado pela sua família, Naoto também deseja se tornar um detetive nos moldes dos seus parentes (homens); tendo sido designado a ele o gênero feminino ao seu nascimento, por conta do seu corpo, o discurso da sombra revela que a família de Naoto considera o fato do garoto ser transgênero uma brincadeira de criança e que só permitem que ele continue nessa “fantasia” por ele oferecer contribuições muito importantes para os casos investigados.

58 Trecho Original: Why delude yourself? I am you. These childish gestures are no mere affectation… They’re the truth. The fools all say it, don’t they…? “You’re only a child”, “Keep out of our business, kid”, and so forth. No matter how many cases you spend hours cogitating over, no matter how many crimes you solve, you’re a child in their eyes, It’s your brain they’re interested in. The grey matter locked up in that skull. As long as they need it, you’re an ace detective! But once you’re done, it’s back to the playpen with you. You haven’t the means to deal with society’s two-face nature… You’re just a lonely child. You’re but a child. How can you change that essential truth? At your core, you admire the sort of “strong” and “cool” men who populate detective fiction. But in trying to emulate them, you must know that in truth, you’re nothing of the sort - you’re a child. There’s no avoiding first principles… Admit that you’re a child, and admit that you’re a child, and admit that there’s nothing you can do about it. Now then! Our analysis is complete. Let us begin the body alteration procedure. You have no objections, do you… “Naoto” Shirogane? “Naoto”... Such a cool, manly name! But a name doesn’t change the truth. It doesn’t let you cross the barrier between the sexes. How could you become an ideal man when you were never male to begin with… ? It’s all right. You needn’t suffer anymore. That’s why you’re undergoing this body alteration procedure to begin with.

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Grande parte da personalidade de Naoto vem dessa influência da sua família e do imaginário que cerca a figura de um detetive. Butler (2003) afirma que o gênero tem caráter performativo, e que, a cada vez que um indivíduo de uma determinada identidade de gênero se apresenta como tal, este reproduz e atualiza a estrutura [binária] de gênero. Ao crescer com esses referenciais de masculinidade, Naoto acaba por reproduzir o mesmo comportamento classificado como masculino, o que é visto pelos mais velhos como um teatro, uma brincadeira, irritando-o profundamente. Assim, ele sente que a única maneira de ultrapassar essa barreira entre a brincadeira de ser homem e o tornar-se homem de verdade é recorrer ao procedimento, que no jogo é chamado de alteração corporal (body alteration procedure), fazendo com o que o seu corpo mude de uma formatação biologicamente feminina para uma formatação masculina. Essa alteração seria a prova final de que o detetive não está “brincando de ser homem”, e sim que finalmente tornou-se um; visto que, para a sua família, Naoto se apresentar como um detetive homem é muito menos uma questão da identidade de gênero do personagem, e muito mais uma brincadeira infantil, como fingir ser um super herói, não levando a sério a identificação de Shirogane com o gênero masculino por conta da sua pouca idade (15 anos).

Ao derrotar a sombra, Naoto tem uma conversa com o Time de Investigação, explicando melhor a sua história e a fala de sua sombra. Kanji é o primeiro a reagir à informação de que a Naoto nasceu, biologicamente59, menina. Yukiko pergunta se o detetive não gosta de ser uma menina, e se é por isso que ele se veste como menino. Ao ouvir o questionamento, Shirogane responde que:

Meu sexo não combina com a minha imagem ideal de um detetive… Além disso, o departamento de polícia é uma sociedade masculina. Se eles tivessem o menor motivo concreto para me menosprezar, ninguém mais precisaria de mim...60 (PERSONA 4, 2008, tradução livre)

Além de uma clara disforia entre o seu “sexo biológico” e a imagem que Shirogane tem de si mesmo, esse argumento abre margem para a discussão da ideia de que certos papéis sociais e certas ocupações são diretamente ligadas ao gênero, algo que já foi discutido, por exemplo na análise de Yukiko e Chie.

59 Quando apontamos para um corpo “biologicamente” masculino ou feminino, nos referimos à ideia de gênero que está ligada diretamente com a territorialização dos órgãos reprodutores. 60 Trecho Original: My sex doesn’t fit my ideal image of a detective… Besides, the police department is a male- oriented society. If they had the slightest “concrete” reason to look down on me, no one would need me anymore...

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Nessas falas de Naoto, podemos perceber que, tanto há uma visão das atitudes da criança como algo que não deve ser levado a sério, quanto a noção de incapacidade da mulher de exercer certos ofícios. No documentário The Mask You Live In (NEWSON, 2015), esta questão de como certas como quanto certas características de sensibilidade e capacidade de demonstrar emoções ou fraquezas, são desestimuladas na criação e no convívio de garotos. Esses aspectos são considerados femininos, e, logo, não condizentes com uma postura masculina.

Naoto, desde pequeno, se identifica com esse perfil masculino, arbitrário, e não com o tipo de personalidade e comportamento esperados de uma menina. Nesse processo de identificação, o jovem também inclui o exercício do ofício de detetive no rol de características masculinas. Ao dizer que o seu sexo (nas palavras do personagem) não combina com a sua imagem ideal de detetive, Naoto reforça a ideia de que existem profissões naturalmente masculinas e femininas, ideia essa enviesada por seu convívio familiar, em que apenas os homens seguem a carreira policial. Dessa forma, ao se identificar com o masculino, e com o ofício de detetive, o jovem passa a incorporar também características como distanciamento emocional, força (não necessariamente física) e dureza, para não ser lido como frágil, ou feminino, ou ser reconhecido como (biologicamente) mulher.

Diferente de uma suposta “predisposição biológica”, as características dadas como masculinas e femininas estão situadas no contexto em que os indivíduos se encontram. Em outras palavras, essas características são, sobretudo, ensinadas e estimuladas dentro desse contexto, em vez de uma predisposição inerente ao gênero (BELLO, 2016). Além disso, os papéis desempenhados, como prover e manter o lar, estão relacionados à dinâmica vigente, principalmente na transição entre o feudalismo e o capitalismo, em um tempo em que o principal papel da mulher era a reprodução da força de trabalho, era responsabilidade do homem providenciar o sustento do lar (FEDERICI, 2017).

Unido ao ideal misógino de inferioridade feminina, consolida-se no imaginário das pessoas que certos papéis só podem ser desempenhados plenamente por homens. Entretanto, a quest de Naoto, em sua conclusão, não aborda essa questão, e tampouco aborda a transgeneridade do personagem. Ao descobrirem a formatação física, o sexo biológico, de Naoto, os personagens automaticamente passam a tratá-lo no feminino. Uma informação importante sobre a conclusão da missão do detetive é que, no momento de aceitação da sombra, não é o garoto estabelece o gatilho inicial para a sua quest, mas Yukiko, que afirma

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que, dados os acontecimentos, agora Naoto deveria saber que o seu real desejo não era se tornar um adulto, ou um homem, e sim se aceitar como mulher.

Esse tipo de conclusão volta a insistir numa relação obrigatória entre a formatação física e o gênero, e que na verdade o personagem tem que se aceitar, ou se conformar, com o gênero que lhe foi atribuído. Esse fechamento para a quest do detetive apaga a identidade queer do personagem, semelhante ao que foi feito com Kanji, e transforma toda a construção feita ao longo da missão em uma argumentação que não se compromete com a identidade, seja sexual ou de gênero, dos personagens. Dessa forma, a narrativa direciona a argumentação para uma simplificação do problema, que ignora os diálogos, as evidências e as construções feitas até o momento final da missão. No caso de Naoto, a não conformidade de gênero se transforma em uma narrativa de aceitação, mas não avança em direção ao entendimento de Naoto como uma pessoa transgênero, e sim uma regressão à aceitação da personagem como cisgênero, aceitando assim, o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento.

A narrativa de Naoto pode ser comparada, à primeira vista, com a história do filme Mulan (1998). Superficialmente, ambas trazem como protagonista uma personagem feminina que precisa se disfarçar para ter acesso a espaços ocupados apenas por homens (no caso de Mulan, o exército, e no caso de Naoto, o departamento de polícia). Entretanto, se olharmos com mais atenção, podemos perceber algumas diferenças entre as duas narrativas. Mulan em momento nenhum passa a se identificar com uma figura masculina. Por mais que a personagem não esteja em conformidade com o que esperam de uma mulher, no contexto do filme, ela não deixa de se identificar com o gênero feminino. Já Naoto, como é possível observar nos diálogos, crê que o seu “sexo” (feminino) não combina com a sua imagem ideal (masculina), e tenta mudar essa “verdade essencial”, fazendo referência à cirurgia de redesignação sexual.

Outro ponto importante é que, diferente dos demais personagens de Persona 4, que reconhecem a validade das suas sombras e as aceitam, não é Naoto que chega à conclusão de que se identifica com o masculino ou feminino. Na verdade, são os seus colegas do Time de Investigação que definem que o personagem como mulher, quando o seu segredo é revelado, e o fazem com base na formatação do seu corpo, desconsiderando os verdadeiros sentimentos (disfóricos) entre o seu sexo biológico e a sua identidade de gênero. Desse momento em diante, Naoto passa a, sem a sua validação, ser qualificado como feminino por todos os

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personagens do jogo, sem que o detetive tenha a chance de falar sobre a sua identidade de gênero.

A carta atribuída ao laço formado entre Naoto e Yu é a Roda da Fortuna. Diferente das demais cartas que apareceram até o momento, a Roda da Fortuna é a primeira que não apresenta uma figura humana em sua ilustração, o que pode estar relacionado ao fato de, em sua missão, Naoto se colocar como cobaia de um experimento de modificação corporal, para alterar o seu corpo e ter uma experiência completa no gênero masculino. Esse tipo de afirmação nos leva a associar ao pensamento de Louro (2000), que diz que o gênero acaba se tornando o referencial mais seguro, com menor margem de erro (dentro de um pensamento binário) para se fazer referência a um indivíduo.

Assim, a partir do momento em que Naoto deixa embaçadas as fronteiras da sua identidade de gênero, dificulta-se o processo de fazer referência ao personagem. No tarô, a carta representa os movimentos cíclicos, o ciclo da vida (OUSPENSKY, 1976). Se pensarmos na relação de Naoto com a carreira de detetive, é algo que está presente em sua família, e que se repete nas gerações seguintes e, por mais que o personagem represente uma quebra dessa tradição cisgênero masculina, Naoto continua o legado de sua família. De acordo com Nichols (2007), a roda da fortuna também está relacionada à transformação, de liberação dessas energias inscritas nesse ciclo, passando para um uso consciente dessa força para um potencial transformador. Isso pode representar a percepção de Naoto de todo esse processo de assimilação do masculino e a sua transformação, antes em um ciclo angustiante, agora para um processo em que o detetive é capaz de utilizar essas energias ao seu favor, na construção da sua identidade, de maneira consciente.

O gatilho para a quest de Naoto também se torna um pouco mais nebuloso do que os demais pois, diferente dos outros personagens analisados, Naoto tem conhecimento sobre a maneira com que os desaparecimentos são orquestrados, e se coloca como isca para conseguir mais informações. A sua sombra, assim como a de Kanji, possui um discurso que, por mais que aponte para uma identidade fora da configuração cisgênero e heterossexual, não se compromete completamente com a consolidação desta. Após a conclusão da quest, logo os

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estudantes da escola Yasogami descobrem que Naoto na verdade61 é uma menina, o que, surpreendentemente (para o jogo), não diminui o interesse das garotas em Shirogane.

Em uma das conversas no corredor da escola em que o Time de Investigação estuda, é possível ler o diálogo em que uma das estudantes fala que, mesmo sendo uma menina, Naoto ainda possui um certo charme, enquanto os rapazes do colégio começam, depois da revelação, começam a se interessar romanticamente pelo detetive. O curioso, no entanto, é que o personagem não altera em nada o seu visual, o que será melhor discutido no próximo capítulo, sendo apenas essa informação sobre a identidade de gênero responsável pela mudança do tratamento recebido por Naoto dos demais personagens do jogo.

Naoto chega a receber uma carta de um admirador secreto, mas afirma que não abrirá a carta pois, independente do remetente ser homem ou mulher, ele não está interessado, e que não tem tempo para gastar com esse tipo de relação. Aqui podemos notar um ponto em comum entre Naoto e Yukiko, visto que ambos se mostram indisponíveis para relacionamentos amorosos, e se tornam, por isso mesmo, muito visados na escola em que estudam por conta dessa indisponibilidade. As razões para isso, contudo, são diferentes. Naoto está focado na resolução dos crimes, e coloca o seu trabalho em primeiro lugar, evitando distrações e sentimentos. Cria, assim, uma personalidade emocionalmente distante que corresponde ao perfil de detetive, masculino, que a personagem admira. Enquanto Yukiko não corresponde às investidas como uma forma de esconder o seu desejo de ser salva pelo seu príncipe encantado.

Em um outro momento do jogo, os estudantes da escola Yasogami organizam um festival, que tem como uma das atrações um concurso de beleza entre as alunas. Inscritas contra a sua vontade, Chie, Yukiko, Rise e Naoto não sabem se devem ou não participar dessa competição. Kanji suplica para que Naoto participe. Quando perguntado sobre o porquê do pedido, Tatsumi explica que se o detetive participar do concurso, ele finalmente poderá sanar as dúvidas sobre a sua sexualidade, e encerra o argumento pedindo para que Naoto “o faça homem” (make me a man!, no diálogo original). Por mais que essa parte do jogo esteja relacionada a Kanji, trazemos essa informação na seção sobre Naoto por conta do contexto em que esse momento se situa.

61 Usamos aqui o “na verdade” em referência à maneira que os demais personagens tratam Naoto após a conclusão do seu resgate.

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Ao longo deste, sempre é enfatizado o fato de Kanji ter sentimentos por Naoto, mesmo antes da revelação de que Shirogane é (biologicamente) uma garota, mas após o resgate de Kanji, o detetive não mostra nenhum interesse romântico ou qualquer relação mais estreita com Tatsumi, se limitando às interações em grupo. Ao pedir que Naoto o faça homem, Kanji precisa da confirmação que se sente atraído pelo detetive, vestido como mulher para participar do concurso, o que recorre, novamente, à ideia de heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2003) que engendra o gênero de maneira a colocar como uma das características fundantes de uma identidade (masculina ou feminina) a heterossexualidade. Essa fala de Kanji também descarta outras possibilidades para além da oposição binária entre homo e heterossexualidade, excluindo assim a hipótese de Kanji ser, por exemplo, bissexual, uma vez que em nenhum momento é apresentada a possibilidade de Tatsumi se sentir atraído por pessoas dos gêneros masculino e feminino, ou outras identidades de gênero.

Das missões em questão, Naoto talvez tenha um dos enredos mais complicados, a nível do trato das questões referentes ao gênero do personagem. Por mais que apresente uma visão crítica sobre os papéis de gênero e questione a sua arbitrariedade, o personagem é furtado da afirmação da sua identidade. Sempre questionada ou posta como uma brincadeira, a identidade do detetive como um homem transgênero nunca é consolidada. No momento mais crucial da sua narrativa (a sua catarse), quem chega à conclusão da identidade de gênero de Naoto não é o próprio personagem, mas seus aliados.

A consolidação, no entanto, ignora a narrativa do personagem e a sua não identificação com o feminino, recorrendo à biologia para concluir que, em verdade, Naoto é uma garota, que se fingiu de garoto por conta do seu trabalho como detetive, apenas. Essa conclusão não apenas vincula, indissociavelmente, o gênero à biologia, como também ignora a identificação de um indivíduo para com a sua identidade de gênero. Em vez disso, o critério que define se Naoto é homem ou mulher, além da biologia, é a imposição de terceiros.

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4. EU SOU TU, TU ÉS EU: O GÊNERO COMO ATRIBUTO DE JOGO

Tendo como base o entendimento de como a identidade de gênero e a orientação sexual dos personagens pode integrar o seu desenvolvimento, contemplando assim a dimensão narrativa do jogo, de acordo com o modelo tetrádico de Schell (2008), podemos prosseguir para a compreensão de como essas questões podem ser integradas às dimensões estética e mecânica de um jogo digital.

Como afirmado anteriormente, a dimensão estética, de acordo com Schell (2008), é a primeira dimensão com a qual o jogador tem contato, sendo responsável pela primeira impressão, englobando principalmente os elementos visuais e sonoros, as respostas sensoriais mais utilizadas nos jogos digitais. Já a dimensão mecânica engloba as regras do jogo, a estruturação e o funcionamento, estando situada em um nível intermediário, ao lado da dimensão narrativa, pois para acessar as mecânicas de um jogo digital, é necessário que o jogador interaja, que jogue, de fato, ou que tenha um contato prolongado com a obra, para entender como esta se estrutura.

Adams (2010), ao falar sobre a organização de um jogo, apresenta o conceito de atributo, uma qualidade que ajuda na descrição de algo interno ao videogame. Esses atributos atuam como valores, parâmetros, para as mais diversas funções que ocorrem dentro do jogo. Para isso, o autor propõe uma divisão desses atributos em duas categorias: cosméticos e funcionais. Essas categorias estão intimamente ligadas com as dimensões estética e mecânica. Dessa forma, dedico a seção a seguir à análise da diferença entre esses dois tipos de atributos e como eles são utilizados em jogos digitais, principalmente para a construção da identidade de gênero e orientação sexual dos seus personagens.

4.1 Atributos cosméticos versus atributos funcionais e as suas implicações

Para Adams (2010), um atributo cosmético é aquele que tem implicações apenas no visual, ou nos demais elementos sensoriais, mas não interfere, positiva ou negativamente, nas ações que podem ser desempenhadas durante o gameplay. Como exemplo de um atributo cosmético, o autor aponta um jogo de corrida. A cor do carro não afeta a velocidade, ou qualquer outra ação desempenhada pelo jogador. Podemos pensar também como exemplo os jogos cujos personagens têm diversas skins, alterações na aparência e nos efeitos visuais dos

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personagens, que não oferecem nenhuma vantagem ou desvantagem em relação às suas habilidades, ao combate, ou qualquer outro aspecto funcional.

De acordo com o autor, os atributos cosméticos estão relacionados com a customização, e não com a jogabilidade. Já os atributos funcionais são aqueles que têm impacto direto nas ações que o jogador realiza. Por exemplo, muitos personagens de jogo contam com diversos atributos, como força, destreza, inteligência, entre outros. Cada um desses atributos influencia diretamente nas ações que o personagem pode realizar. Um avatar com mais força, por exemplo, pode golpear mais fortemente ou levantar objetos, enquanto outro com maior destreza consegue se esconder melhor no cenário, e assim por diante.

Dessa forma, podemos relacionar esses atributos cosméticos como parte dos elementos contemplados pela dimensão estética, enquanto os atributos funcionais possuem ligação íntima com a dimensão mecânica de Schell (2008). Entretanto, existem jogos cuja customização de um personagem impacta diretamente na jogabilidade. Imaginemos um cenário em que, em um determinado mundo de jogo, os personagens loiros sofrem perseguição de NPCs (personagens não controlados pelo jogador) que fazem a segurança da cidade. Um parâmetro comumente cosmético, como a cor do cabelo, passa a interferir diretamente nas ações realizadas e na experiência de jogo de um jogador que deseja que o seu avatar tenha cabelos loiros.

Dentro da lógica de Adams (2010), esse atributo deixa de ser cosmético e passa a ser um atributo funcional. Entretanto, na divisão tetrádica de Schell (2008), o cabelo loiro está situado tanto na dimensão estética, por corresponder a uma característica visual do personagem, quanto na dimensão mecânica, pois se relaciona com as regras do jogo. Aion62 (2008), um MMORPG63, possui como uma das opções de customização a raça do personagem, que pode ser Elyos ou Asmodian64. Com uma narrativa que se passa em um mundo dividido entre territórios das duas raças, a preferência por uma ou outra impacta não somente a dimensão estética do jogo (o visual do avatar), como também em algumas ações que podem ser realizadas dentro do jogo. Se um Elyos invade um território Asmodian, por exemplo, este será atacado automaticamente pelos NPCs que protegem as cidades e as

62 Site oficial de Aion acesso em 24 fev. 2021 63 Massively Multiplayer Online Role-Playing Game, um gênero de RPG online que suporta diversos jogadores remotos simultaneamente 64 No universo de Aion, Elyos e Asmodian são duas raças antagônicas que estão em constante guerra. Os Elyos se assemelham aos humanos, enquanto os Asmodian são criaturas noturnas com garras e patas monstruosas.

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guarnições, por ser da raça inimiga. A escolha de uma raça também implica em uma não- hostilidade entre jogadores que tenham escolhido o mesmo grupo, assim, jogadores Elyos só podem atacar jogadores cujos personagens sejam Asmodians, e vice-versa.

Como essa distinção de atributos pode ser usada na construção da orientação sexual ou identidade de gênero dos personagens digitais? Adams (2010) faz uma breve discussão sobre o sexo ser cosmético ou funcional para o jogo, que consideramos seja insuficiente, tanto pela extensão do excerto, quanto pela argumentação. O primeiro ponto é o uso de sexo biológico como sinônimo de gênero, algo já bastante discutido ao longo desta dissertação. O segundo ponto é que a discussão se limita apenas às capacidades físicas dos personagens. Por mais que o autor dê exemplos pertinentes, como a relação entre a massa muscular de um corpo sexualmente diferenciado como masculino ou feminino, e a associação dessas diferenças biológicas aos atributos funcionais do jogo, tais como força e destreza, não é isento de problemas. Recorre ao lugar comum ao fazer esse tipo de inferência, além de não dar a liberdade do jogador formatar o seu avatar como bem desejar. Por mais que seja um ponto relevante, Adams (2010) não cita de que outras formas o gênero poderia se modificar e/ou modificado, no uso desses tipos de atributos. Isbister (2006) reserva um capítulo do seu livro Better Game Characters by Design: A Psychological Approach apenas para discutir como o gênero pode ser abordado nos jogos digitais, trazendo uma discussão sobre o visual e as características dos personagens e como elas poderiam variar de acordo com o gênero destes, trazendo como exemplo The Sims (2000) e como o gênero de um sim (personagem do jogo) é usado como um atributo de jogo.

Uma maneira simples de expandir essa discussão é pensar nas opções de customização que estão diretamente ligadas ao gênero do personagem. É comum, em jogos nos quais avatar pode ser personalizado, que a primeira pergunta da criação de personagem seja o seu gênero e, a partir dessa escolha, são mostradas diferentes opções de cabelos, feições, roupas, entre outras características. O gênero do personagem, então, aparece como um modificador da customização e, embora raramente vá causar algum impacto nas habilidades do personagem, já predetermina as opções de customização, deixando inacessíveis as opções que estão disponíveis para o(s) outro(s) gênero(s).

The Sims, franquia cujo primeiro título foi lançado nos anos 2000, hoje é um exemplo de robustez para a customização dos personagens, apresentando uma grande riqueza de parâmetros para modificar as características faciais, roupas e penteados dos personagens.

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Entretanto, até 2016, essas opções de customização ficavam atreladas ao gênero do personagem, tendo assim uma gama de elementos “masculinos” e “femininos”, e que não poderiam ser utilizados por um personagem do gênero oposto (utilizamos “oposto”, pois o jogo ainda trabalha com a oposição entre masculino e feminino).

Somente em julho de 2016, The Sims lançou uma atualização que remove essa marcação de gênero dos elementos customizáveis, podendo ser usados por quaisquer personagens do jogo, independente de gênero. Entretanto, esse não foi o único aspecto modificado com essa atualização. Na customização dos sims (os personagens do jogo), é possível definir, além da identidade de gênero, as especificidades dos seus corpos.

São apresentadas 5 perguntas sobre o gênero e o corpo do personagem: (a) identidade de gênero, (b) constituição física, (c) preferência de traje, (d) o uso do banheiro, (e) se pode ou não engravidar. A primeira opção determina como aquele personagem se identifica e será tratado pelos demais no jogo, tendo duas opções disponíveis: masculino ou feminino. A constituição física determina a formatação do corpo do personagem: a masculina possui ombros mais largos, quadris estreitos, cintura menos definida, enquanto a formatação feminina possui quadris mais largos, pernas mais grossas e tronco mais estreito. Entretanto, essa formatação possui diversos parâmetros de customização, criando múltiplas possibilidades de sims dentro do jogo.

A preferência de trajes, também dividida em masculino e feminino, como o nome diz, é uma preferência, funciona como um filtro, que mostra, em um primeiro momento, a opção escolhida, mas que pode ser alterado ou removido conforme a vontade do jogador. O uso do banheiro no jogo apresenta como opções usar o banheiro sentado ou em pé, o que pode implicar em uma determinação da genitália do personagem, embora o jogo não mostre ou faça insinuações sobre isso. A última opção determina se o sim pode engravidar os outros, ficar grávido, ou nenhum dos dois. Embora essa última opção também esteja relacionada à fisiologia do corpo, assim como a anterior, uma não limita a outra. Apesar de se ater a uma lógica binária e reprodutiva, ao não limitar essa customização, The Sims acaba desafiando o próprio sistema em que se baseia, para permitir uma maior elasticidade e expandir as possibilidades de criação de personagem.

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Entretanto, nem sempre a identidade de gênero do personagem e a sua formatação física precisam ser abordadas nesse nível de complexidade, visto que Temtem65 (2020) apresenta uma forma simplificada de customização de personagens e que ainda assim respeita essa variedade de identidades fora do espectro binário masculino-feminino cisgênero. Na criação do seu avatar, o jogador escolhe a formatação do corpo, rosto, cabelo e roupas para, finalmente, escolher o gênero do personagem. Essa escolha não se dá pela marcação de “masculino” ou “feminino” (que também não aparece em nenhuma outra opção da customização), e sim pela escolha dos pronomes usados pelo personagem. No jogo em inglês, são possíveis as opções: “he/him”, “she/her” e “they/them”. A última opção aparece como uma alternativa para as pessoas que não se identificam, total ou parcialmente, dentro do espectro binário, e em nada interfere no jogo, modificando apenas a maneira que os demais personagens do jogo se referem ao avatar. Diferente de The Sims, a customização do personagem em Temtem possui finalidades apenas estéticas, e não limita ou possibilita novas ações no decorrer do jogo por conta das escolhas feitas. Animal Crossing: New Horizons66 (2020) remove do jogo quaisquer marcações de gênero, seja a partir das escolhas do visual do personagem ou na linguagem do jogo. Em vez de perguntar o gênero do personagem, a tela de criação pede que o jogador informe o estilo do seu personagem, apresentando duas opções: cabelo curto ou cabelo longo. Essa escolha serve apenas para o início do jogo, podendo ser alterada à vontade ao longo do gameplay. Em vez de perguntar os pronomes, como Temtem, Animal Crossing adota uma linguagem neutra, evitando assim que, nos diálogos, contenha qualquer inferência ao gênero do avatar.

Outra maneira de olharmos para o gênero dos personagens como um atributo funcional, é pensar nos jogos em que é possível desenvolver relacionamentos amorosos ou sexuais com/entre os personagens. Pensando no já citado Dragon Age: Inquisition (2014), o gênero do avatar não é um mero limitador de customização ou um aspecto apenas cosmético. Como os personagens do jogo possuem uma orientação sexual definida, o jogador pode se engajar em atividades românticas apenas se a sua identidade de gênero corresponder à identidade sexual do personagem com quem deseja iniciar uma relação. Essas relações se dão entre o avatar e os personagens já criados pelos desenvolvedores. Por exemplo, a elfa Sera só demonstra interesse pelo avatar do jogador caso este seja do gênero feminino; Dorian, por ser um personagem gay, só pode participar de uma relação amorosa com o personagem do

65 Site oficial de Temtem acesso em 24 fev. 2021 66 Site oficial de Animal Crossing: New Horizons acesso em 24 fev. 2021

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jogador, caso este seja do gênero masculino; por fim, Iron Bull é um personagem que pode se envolver com o avatar independente do gênero. A dimensão mecânica de Dragon Age: Inquisition traz o gênero dos personagens como um fator fundamental para o desenvolvimento de certas atividades dentro do jogo.

Essa incorporação da identidade de gênero e orientação sexual dos personagens se faz presente principalmente em jogos que tenham uma mecânica de relacionamentos, mesmo que não seja esse o objetivo geral, como afirma MacDonald (2016). De acordo com a autora, existem 4 tipos principais de mecânicas que podem ser incorporadas: (a) múltipla escolha, (b) gerenciamento de status, (c) transacional, e (d) de barreira67. Essas categorias, segundo a autora, não são mutuamente excludentes, sendo comum a incorporação de mais de um tipo de mecânica para possibilitar o romance entre os personagens do jogo.

No primeiro tipo de mecânica, múltipla escolha, o romance acontece através de uma série de opções que aparecem nos diálogos do jogo. Em determinados eventos, são apresentadas algumas alternativas de respostas do diálogo para que o jogador possa escolher a resposta que considera mais adequada para o seu objetivo, culminando ou não no relacionamento amoroso entre os personagens do jogo. The Witcher, já citado anteriormente, é um jogo que possui esse tipo de mecânica de relacionamento amoroso entre os personagens. Assumindo o papel do bruxo Geralt, o jogador pode engajar em interações românticas com algumas personagens, contanto que faça as escolhas que levem a essa finalidade.

Persona 4 é, também, um jogo que possui mecânicas de romance semelhantes. O protagonista pode, caso o jogador queira, iniciar interações românticas com diversas personagens do jogo, contanto que seja do gênero feminino, incluindo as personagens já analisadas Yukiko, Chie, Rise e Naoto. Como o envolvimento amoroso com as personagens é opcional, este foi desconsiderado para a análise no capítulo anterior. Ambos os jogos, The Witcher e Persona 4, só possibilitam o romance com base nessa mecânica de múltipla escolha se for com uma personagem feminina.

Os diálogos, entre os protagonistas desses jogos com outros personagens masculinos, que apresentam diversas opções, nunca são para desenvolver um relacionamento amoroso com eles, visto que essa opção está disponível apenas para interações com mulheres. Apesar

67 Em tradução livre. Termos originais, respectivamente: multiple choice, stats management, transactional e gating

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do gênero das personagens não aparecer, explicitamente, como um atributo, é possível perceber que ambos os jogos não disponibilizam as interações românticas ou sexuais fora de uma proposta heterossexual. Além disso, colocam as personagens como opções para que o jogador possa escolher qual delas lhe agrada mais, uma vez que o único mecanismo para a realização desse tipo de atividade no jogo é a escolha do jogador.

A segunda categoria de MacDonald (2016), gerenciamento de status, traz o relacionamento entre os personagens a partir de um dado observável, e a partir deste é possível desbloquear novas interações. The Sims é um bom exemplo para esse tipo de mecânica de relacionamentos. Por mais que apresente uma robustez mecânica para o gênero, este não é levado em consideração para o engajamento de relações românticas e sexuais no jogo. Ao contrário de jogos como Dragon Age: Inquisition, que cada personagem possui uma orientação sexual definida, em The Sims, o único critério é o quão altos estão esses status que possibilitam as relações.

Apresentando indicadores de amizade e romance, a única maneira de habilitar essas ações é interagir com os personagens e ganhar cada vez mais pontos. Quanto maior for a pontuação romântica entre dois sims, mais ações possíveis são desbloqueadas, como confessar atração, beijar, pedir em casamento, entre outras. O terceiro tipo de mecânica, a transacional, é o tipo de mecânica em que é necessário oferecer itens do jogo para desenvolver um relacionamento amoroso com os personagens. O jogo Monster Prom68 (2018), por exemplo, só possibilita o romance entre o avatar e alguns personagens caso o jogador adquira e ofereça certos tipos de item, que tornam possíveis tais interações.

Alguns jogos incorporam diversos tipos de mecânicas para desenvolver o relacionamento entre personagens. Persona 569, por exemplo, mistura os tipos transacional e múltipla escolha para criar um envolvimento romântico. Além das opções de diálogo, que levam ao relacionamento romântico entre o protagonista e as possíveis pretendentes, é possível também comprar itens para presenteá-las, facilitando assim o processo de conquista. Assim como em Persona 4, as relações amorosas só podem acontecer entre o protagonista e uma personagem do gênero feminino.

68 Site oficial de Monster Prom acesso em 24 fev. 2021 69 Site oficial de acesso em 24 fev. 2021

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A última opção, o gating, é um tipo de mecânica de romance que obriga o jogador a desenvolver um relacionamento romântico com um personagem, cuja dinâmica sempre incorpora o envolvimento sexual ou amoroso. The Witcher 3, além das opções de múltipla escolha para romancear diversas personagens, em um determinado momento da história, o jogador é obrigado a se envolver romanticamente com uma das personagens, a bruxa Yennefer. Mesmo que sejam apresentadas duas ou mais opções para os diálogos, todas elas culminam no desenvolvimento do romance entre a bruxa e Geralt.

Esse tipo de tratamento dado às relações heterossexuais, como afirma Greenhill (2015), possível de ser observado em Persona 4 e The Witcher, atesta a impossibilidade de existir uma relação entre um homem e uma mulher, sem nenhum grau de parentesco, que não culmine em um romance. Enquanto as relações românticas e/ou sexuais entre indivíduos queer raramente se consolidam, as relações heterossexuais estão fadadas ao romance ou ao sexo.

Existem, contudo, outras maneiras de projetar um olhar sobre os jogos concernente às questões de gênero, analisando tão somente a dimensão estética do jogo, sem a preocupação das amarras com o conceito de atributos cosméticos proposto por Adams (2010). Um outro caminho possível é apresentado por Fonseca (2013), em sua análise da questão da hipersexualização das personagens femininas dos jogos digitais.

Além do baixo protagonismo feminino, já discutido brevemente ao falar sobre as capas dos jogos mais vendidos de 2019, projeta-se, em jogos com essa característica, um olhar sobre essas personagens que as reduz à aparência, como afirma Wolf (2019), e que também coloca em evidência o corpo da personagem, seja pelo exagero de alguns atributos físicos como seios, quadris e glúteos, ou a partir de posições, figurinos e enquadramentos que dão ênfase nessas partes.

Como foi mostrado na seção 3.1, é notório o tratamento dado a personagens que compartilham histórias semelhantes, como os irmãos Sean e Laura Matsuda, de Street Fighter. Enquanto Sean usa um roupão de artes marciais apenas com a cor modificada, a roupa de Laura tem uma série de adaptações para que possam ser ressaltados o busto e o quadril da personagem, além de deixar o abdômen de fora. Como Fonseca (2013) afirma, embora a mulher voluptuosa seja um perfil possível de personagem feminina, o problema reside em ofertar esse perfil em demasia, reduzindo ou não oferecendo de maneira alguma

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outras opções de personagens, formatando a inclusão feminina única e exclusivamente a partir de corpos que não representam as mulheres em sua diversidade.

Esse tipo de tratamento dado às personagens femininas se estende ao ponto de uma franquia de jogos de luta, chamada Dead or Alive70, criar um parâmetro chamado breast motion (movimentação dos seios) para que o jogador possa controlar o quanto os seios das personagens se movimentarão durante as suas ações, como andar, atacar, receber um golpe, cair ao chão, entre outros.

É visível, não só em Dead or Alive, mas em diversos outros jogos, a diferença entre o tratamento do visual de personagens femininos e os personagens masculinos. Considerando, por exemplo, Mortal Kombat. As ninjas femininas (Kitana, Jade e Mileena), até a 10ª edição do jogo, lutavam sempre às roupas curtas, como maiô e botas na altura da coxa, enquanto os ninjas (como Sub-Zero, Scorpion, Ermac, entre outros) deixam expostos apenas os braços e os olhos (Figura 7). Essa diferença visual vem desde as primeiras versões do jogo, cujos figurinos eram idênticos, alterando apenas a cor. É possível notar esse fenômeno também em personagens com os mesmos motivos estéticos.

Figura 7 – Mileena e Scorpion, respectivamente (2004)

Fonte: creativeuncut.com

Tomando como exemplo Jubei e Taokaka, da franquia Blazblue (Figura 8), ambos possuem elementos em comum, como uma temática felina e trajam sobretudos com capuz. Na execução, no entanto, embora ambos os personagens usem um figurino parecido, composto por um sobretudo com mangas longas, cujas terminações imitam patas de gato, e possuam capuz, Jubei é, literalmente, um gato bípede, enquanto Taokaka, por mais que tenha o rosto escondido pelo capuz, possui pernas humanas e o seu sobretudo é curto o suficiente para que,

70 Site oficial de Dead or Alive 6 acesso em 24 fev. 2021

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durante os ataques e/ou dependendo das poses da personagem, seja possível ver a sua calcinha.

Figura 8 – Jubei e Taokaka, respectivamente

Fonte: creativeuncut.com

O jogo Lollipop Chainsaw (2012), que mistura um cenário de apocalipse zumbi com uma ambientação escolar estadunidense, premia o jogador com um troféu caso ele posicione a câmera de forma a ver a calcinha da protagonista, Juliet Starling (Figura 9). Por mais que, na comparação com outras obras audiovisuais, o jogo digital proporcione diversas liberdades, entre elas do jogador definir a posição da câmera, esse tipo de ação, uma vez realizada e premiada no jogo, tende a desumanizar a figura feminina, apresenta, como afirma Kuhn (1994), a mulher como uma boneca manipulável, que pode ser manuseada sem oferecer nenhuma resistência.

Figura 9 – Juliet Starling

Fonte: whatculture.com

Esse tipo de comportamento ou de possibilidade pode ser evitado, por exemplo, quando o jogo prevê a mudança automática do ângulo da câmera ou do enquadramento, toda vez que o jogador realizar tais ações. É o que acontece com NieR Automata (2018): ao tentar posicionar a câmera para ter a visão da roupa íntima da protagonista 2B, o enquadramento é

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automaticamente modificado, colocando a personagem em uma posição em que não é possível ver por baixo do seu vestido.

Leonard (2003) afirma que um dos apelos que os videogames têm para o seu público é a possibilidade de explorar diferentes situações e realidades que não seriam possíveis ou sem que elas trouxessem as consequências da vida real. Essa característica pode ser usada não só para a exploração de universos fantásticos, como também para situações hipotéticas que tem aplicação cotidiana. Por mais que Huizinga (2003) fuja de uma teoria que estabeleça uma ligação direta entre o jogo e um ensaio para situações futuras, estes podem ser usados como forma de treinamento para diversas profissões. Jogos de simulação (ADAMS, 2010) tem como intuito emular a experiência de desempenhar diversas atividades, como dirigir, pilotar, construir, entre outras. Esses jogos podem ser utilizados como treinamento, preparando os jogadores para uma resolução mais rápida de um amplo espectro de situações dentro daquele contexto; com a vantagem de não ter nenhum dano, material ou à integridade física de quem joga, caso realize alguma operação ou comando errado.

Entretanto, em casos como o de Lollipop Chainsaw, essa liberdade e segurança proporcionadas pelos jogos contribuem para o fortalecimento de uma visão desumanizada da figura feminina (KUHN, 1994), em que temos uma representação de uma mulher, passível de ser manipulada, à vontade do jogador, sem oferecer nenhuma resistência ou represália. Cremos que esse tipo de possibilidade, permitida em títulos como o citado anteriormente, fortalece esse imaginário que desumaniza a figura feminina e a responsabiliza pelos assédios masculinos, por conta da sua disponibilidade, dentro dessa lógica (WOLF, 2019).

Quando abordamos a diferença para além do masculino e feminino, acontece um fenômeno chamado queercoding, que pode ser entendido em uma semelhança com o já explicado queerbaiting, no sentido de indicar uma possível configuração fora do eixo binário, cisgênero e heterossexual, mas sem o comprometimento total com essas questões. Greenhill (2015) afirma que o queercoding, ou a codificação queer, é um composto de sinais que levam ao entendimento de que determinado personagem está fora do eixo cis-heterossexual, sem falar abertamente sobre isso ou se comprometer com a informação que, para todos os efeitos, não está explícita.

A autora, entretanto, afirma que nem sempre essa codificação é planejada, e que muito dessa formatação reproduz modelos de personagens que não necessariamente são bons

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exemplos de uma codificação queer. Esses sinais podem ser dados a partir de elementos que façam parte de uma vivência queer, o que não significa, no entanto, que somente as pessoas dentro desse meio entenderão. Embora não seja relacionado aos jogos digitais, um personagem que recentemente foi entendido como queer é o Arqueiro, da série animada She- Ra e as Princesas do Poder.

Em um episódio em que os protagonistas aparecem em roupa de banho, o personagem surpreende por estar usando faixas na parte superior do corpo, cobrindo o peitoral. Isso foi interpretado pela audiência como um possível indicativo de que Arqueiro é um homem transgênero, usando as faixas para esconder os seios, artifício muito comum utilizado por pessoas trans. Para o portal de entretenimento Digital Spy71, a produtora do animação, Noelle Stevenson, afirmou que gosta muito da teoria dos fãs mas que não pode confirmar a identidade de Arqueiro como transgênero pois isso envolveria um maior comprometimento com a causa, como contratar um artista de voz que também fosse um homem trans, para assim dar espaço e visibilidade à causa, entretanto, ela tampouco afirma que o personagem é cisgênero, deixando em aberto essa questão.

Entretanto, muitos casos, em videogames, apenas codificam os personagens a partir de tropos já bastante comuns e, muitas vezes, estereotipados. Um deles é o personagem extremamente vaidoso e afeminado (dentro dos padrões de masculinidades definidos pela atmosfera do jogo). Não contendo nenhuma informação que confirme, ou negue, que o personagem está situado fora do eixo cis-hétero, o visual e os maneirismos dos personagens apelam para figuras já conhecidas para esses tipos de personagem.Zhang He, de Dynasty Warriors, Amane Nishiki, de Blazblue e Kuja, de Final Fantasy (Figura 10), são três personagens que recorrem à mesma fonte para a sua concepção: traços mais finos e delicados, trajes normalmente marcados como femininos, vaidosos e com uma personalidade excêntrica e teatral.

Esses personagens são mostrados a partir de uma masculinidade desviante do padrão apresentada nos universos dos jogos nos quais estão incluídos, sendo o único exemplo desse tipo de formatação de personagem masculino. O que poderia, no entanto, ser positivo, é justamente a colocação desses personagens como uma forma de questionar o local do masculino e do feminino.

71 Disponível em acesso em 15 nov. 2020

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Figura 10 – Zhang He, Amane Nishiki e Kuja, respectivamente

Fonte: creativeuncut.com

Entretanto, o que acontece é a criação de um personagem caricato e teatral, sempre acompanhado de um visual excêntrico, fora da curva, tanto para os padrões de masculinidade endógenos quanto exógenos, aplicados ao mundo externo dos jogos em questão. São mostrados como desviantes, estranhos, o que, segundo Greenhill (2015), leva a uma interpretação desses personagens como queer, a partir desses códigos, especialmente os visuais. Desse modo, evita-se abordar as implicações dessa representação, reduzindo o personagem a uma caricatura queer que tende a cair no lugar comum.

Com base nessa discussão inicial, mais panorâmica, envolvendo as dimensões estética e mecânica de outros jogos, podemos seguir para a análise desses aspectos em Persona 4. Cada uma dessas dimensões será tratada em uma seção específica, contemplando as categorias de análise correspondentes.

4.2 Dimensão estética: atributos cosméticos e gênero em Persona 4

Para proceder com a análise, os elementos contemplados pela dimensão estética foram divididos em dois grandes grupos: o ambiente da quest e os aspectos visuais dos personagens. No primeiro grupo, são encontradas duas categorias: (a) cenário da quest e (b) os inimigos que são encontrados durante a missão. Já o segundo grupo apresenta três subdivisões: (a) expressão de gênero, (b) persona e (c) sombra dos personagens analisados (Chie, Yukiko, Kanji, Rise e Naoto).

Como explicado no capítulo anterior, a ambientação da quest está ligada à narrativa dos personagens. O visual dos inimigos e o cenário em que acontece a missão se relacionam com aspectos trazidos no diálogo e na motivação para o início da missão. Para efeitos de jogo,

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esses dois elementos que serão analisados estão situados na dimensão estética do jogo digital, sendo influenciados pelos elementos narrativos e tendo pouca ou nenhuma influência nos elementos mecânicos do jogo. Os inimigos se encontram nessa categoria de análise por serem específicos do cenário em que estão situados, adquirindo significado juntamente com este para a criação do ambiente em que a quest acontece. Como aparecem apenas nos combates do jogo, e não possuem diálogos ou participação em outros momentos deste, decidimos agrupá- los juntamente com o cenário para a composição da ambientação da quest. Além disso, alguns dos modelos de inimigos se repetem entre um cenário e outro, sendo importante para a análise, entendê-los de acordo com a dungeon em que aparecem. Para esta etapa do trabalho, serão analisados primeiro os cenários, para que possam ser comparados entre si. Uma vez feita essa discussão, seguiremos para a análise dos inimigos, relacionando-os com o cenário e o contexto das suas aparições.

A segunda grande categoria, que engloba a expressão de gênero, a persona e a sombra dos personagens, está organizada dessa forma pois esses 3 componentes se encontram intimamente ligados entre si, exercendo influência um sobre o outro, podendo ser entendidos, assim, como um contínuo e, portanto, agrupados na mesma categoria. Diferente da categoria anterior, como há uma sequência entre esses 3 elementos, estes serão analisados em conjunto, de acordo com cada personagem.

4.2.1 O ambiente da quest: cenários e inimigos

Seguindo a mesma ordem do terceiro capítulo, o primeiro cenário a ser analisado é o da quest envolvendo Chie e Yukiko. Nomeado “Castelo de Yukiko”, o cenário se assemelha a um castelo medieval europeu, semelhante aos mostrados em filmes de contos de fada, com paredes de pedra, grandes janelas de vidro, lustres e tapeçaria em vermelho (Figuras 11 e 12), cor predominante na composição visual de personagem e que aparece por diversas vezes nos elementos visuais do jogo ao fazer referência a Yukiko. A cor também representa a relação da personagem com a sua melhor amiga, uma vez que, se lembrarmos a fala da personagem durante a quest, foi Chie quem disse que Yukiko ficava bem de vermelho, acabando por se tornar um elemento marcante da personagem. Na parte interna do castelo, o vermelho se destaca como uma das cores mais presentes, não só na decoração, mas na ambientação. Quanto mais o jogador avança no Castelo de Yukiko, subindo os andares, mais o cenário vai ganhando um tom avermelhado, mostrando a proximidade entre o Time de Investigação e Yukiko (Figura 13).

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Figuras 11, 12 e 13 - Na parte superior, entrada e parte interna do Castelo de Yukiko. Abaixo, a progressão dos andares do castelo

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Dowling (1981) fala sobre o Complexo de Cinderela, recorrendo a metáforas de príncipes encantados e masmorras de contos de fada, para apontar para uma realidade artificialmente criada, e ainda muito recorrente, no imaginário coletivo. Yukiko, que se enxerga desprovida do potencial de tomar as próprias escolhas, fica reclusa na pousada, o seu castelo, na esperança de que o seu príncipe a resgate, vendo o romance como a única maneira possível de escapar de um destino indesejado. Por mais que o jogo seja ambientado no Japão, o castelo se assemelha a uma ambientação europeia, o que mostra essa penetração de histórias como os contos de fada europeus, cujo final feliz de uma princesa quase sempre está relacionado a um romance. Assim como nos contos de fadas, a princesa Yukiko se encontra presa na torre mais alta do castelo, e os seus príncipes têm de passar por todos os andares do castelo para, finalmente, resgatá-la.

Seguindo a ordem de aparição, o próximo cenário a ser analisado é o de Kanji Tatsumi, chamado Sauna Fumegante (Steamy Bathhouse, em inglês). Tendo como entrada os armários em que os clientes guardam as roupas (Figura 14). Os corredores, por sua vez, são grandes salas cheias de vapor com assentos nas laterais, destinados ao usufruto do calor e do

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vapor (Figura 15). Lembrando o título da missão de Kanji, marcado com um Men Only (Apenas para Homens, em tradução livre), a sauna se torna um reduto onde todos podem exercer a sua masculinidade, sem o medo de represálias ou julgamentos. De acordo com Bolton, Vincke e Mak (1994), saunas e bares se tornaram espaços seguros de socialização de homens gays, ambientes que eles usavam para encontrar amigos, parceiros sexuais e amantes/namorados.

Ainda de acordo com os autores, as saunas oferecem um ambiente seguro para que os seus frequentadores possam exercer as suas práticas homoafetivas e homossexuais, longe dos olhares públicos, preservando mais a identidade daqueles que, por diversos motivos, não podem assumir as suas identidades sexuais e não podem engajar nessas atividades em outros ambientes. Sedgwick (1990) afirma que o processo de “saída do armário” (termo utilizado pela autora) ocorre nas diversas esferas sociais que um indivíduo ocupa, como as saunas gay são ambientes voltados para o público homossexual masculino, elas acabam por se tornar um espaço de exercício aberto dessas práticas. Quando um indivíduo frequenta esses espaços, não tem mais a necessidade de um esconderijo para preservar a sua identidade sexual, voltando a este ao deixar o ambiente, que funciona como uma instância isolada do cotidiano.

Figuras 14 e 15 - Entrada e parte interna da Sauna Fumegante, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Se lembrarmos da narrativa de Kanji, ele desenvolve sentimentos por Naoto, mas não entende como um homem pode se interessar por outro, o que acaba gerando esse conflito interno no personagem; lembrando Butler (2003), se um indivíduo de um determinado gênero (masculino ou feminino) não é heterossexual, isso já se configura, dentro de um sistema cis- heterossexual, como um desvio da sua identidade de gênero, que está amarrada à

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heterossexualidade. Além disso, Kanji tem hobbies como costura e tricô, que não são bem vistos pelos demais (principalmente pelas mulheres, de acordo com o relato do personagem), por não ser uma atividade tida como masculina. A sauna então se torna o ambiente seguro para que Kanji possa exercer todos esses “desvios” da sua masculinidade que precisam ser escondidos no seu cotidiano.

O terceiro cenário é o de Rise, um clube de striptease nomeado Marukyu Striptease, que leva o mesmo nome da loja de tofu da sua família (Marukyu Tofu Shop, ou Loja de Tofu Marukyu, em tradução livre). Se Rise fala, no Canal da Meia-Noite, que vai mostrar tudo, expressando os seus sentimentos em relação a trabalhar como uma estrela da televisão, no mundo da televisão isso se manifesta metaforicamente como um clube de striptease, onde as pessoas que trabalham nele tiram toda a roupa, conforme são pagas para fazê-lo. Se lembrarmos dos diálogos da missão de Rise, a garota fala que, por conta do seu trabalho, tem que aceitar tudo o que lhe oferecem com um sorriso no rosto, que tem que ser dócil e solícita, além de estar sempre magra e em boa forma por conta da constante exposição do seu corpo, já que ela tem o seu nome associado a uma linha de produtos dietéticos.

O clube aparece, assim, como a manifestação do modo como Rise enxerga uma parte do seu trabalho, no qual está obrigada a se expor e despir-se, contanto que estejam pagando para isso. Na entrada, é possível ver diversas mesas e cadeiras e ao fundo é possível observar o palco, onde a performer faz o seu show para o seu público (Figura 16). É pelo palco que o Time de Investigação pode iniciar o resgate da celebridade, indo em direção aos bastidores, grandes corredores com salões encobertos por cortinas (Figura 17). o que está alinhado com esse desejo de Rise de mostrar o que acontece por trás das câmeras, quando ela não está sendo Risette, a sua personagem televisiva.

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Figuras 16 e 17 - Entrada e parte interna do Marukyu Striptease, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Durante toda a exploração do cenário, é possível perceber temas que estão relacionados ao amor e à exposição da figura feminina. Além de gemidos, que podem ser ouvidos durante todo o percurso, são projetadas nas cortinas silhuetas de Rise em posições sensuais, e também diversos corações em luzes neon. Tais elementos podem ser entendidos como uma forma de chamar a atenção do público, e fazer com que gostem dela, algo que Rise deixa claro que detesta fazer, além de não se reconhecer quando está fazendo o papel de Risette. Além disso, podemos lembrar da fala da professora de Rise, Ms. Kashiwagi, que afirma que a sua aluna é uma piranha (“skank”) e chave de cadeia (“jailbait”), então esse ambiente que remete a práticas sensuais está relacionado também com a visão de que a mulher é menos virtuosa caso não se atenha a um perfil mais discreto e conservador, que deve se mostrar inteiramente apenas para o cônjuge (BOURDIEU, 2019).

Por último, o cenário da quest de Naoto é o que explorou menos as questões referentes à identidade de gênero e orientação sexual do personagem. Como a própria narrativa do personagem trata a identidade de Naoto como uma brincadeira de criança, tanto o cenário quanto os inimigos estão mais relacionados à infância do personagem do que necessariamente sobre essa dualidade da formatação do corpo de Naoto e a sua identidade de gênero. O cenário da quest é um esconderijo secreto, cujo ponto de partida (Figura 18) é uma entrada para uma base subterrânea (Figura 19).

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Figuras 18 e 19 - Entrada e parte interna do Laboratório Secreto, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Na narrativa de Naoto, é revelado que o personagem possuía um esconderijo em sua casa, que usava para brincar de detetive quando criança. No mundo da televisão, esse cenário aparece como um laboratório secreto onde Naoto passa por um processo de transformação corporal. Podemos pensar o esconderijo, do mundo comum, como uma espécie de portal, em que Naoto, sendo tratada como menina pelos seus familiares, se transformava no detetive (homem) que tanto queria ser. Ao se manifestar no mundo da televisão, os equipamentos que permitem essa transformação são apresentados na forma de uma sala de cirurgia, partindo do pressuposto que a formatação física determina o gênero, e não a identificação. Assim, essa transformação de Naoto deixa de ser uma transformação simbólica e passa a ser uma transformação literal, uma cirurgia, como a de redesignação de gênero (também conhecida como “mudança de sexo”) que modifica a formatação do seu corpo. Por mais que o cenário em si não tenha muitos elementos que façam referência à questão da identidade de gênero de Naoto, é possível observar diversas vezes a presença de um brasão com uma fênix, criatura mitológica que renasce das cinzas, representando o renascimento de Naoto depois do procedimento de alteração corporal.

Todos os cenários também ficam com a névoa cada vez mais espessa conforme o jogador avança, entretanto, ressaltamos essa característica apenas no cenário de Yukiko, por ser a única que tem uma ligação relevante com a cor da névoa, no caso o vermelho. Kanji, Rise e Naoto não tem uma relação com as cores usadas para dar o aspecto enevoado à dungeon (laranja, rosa e verde, respectivamente). Por isso, a névoa dos cenários destes personagens não foi enfatizada no momento da análise.

Por conta do estilo de jogo, a exploração dos cenários se dá de maneira igual em todas as quests. O jogador tem que guiar os personagens, tentando encontrar as passagens até

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chegar ao final do cenário, também chamado de dungeon. Essas passagens normalmente são simbolizadas por portas que o jogador tem que abrir. No cenário de Rise, as portas são substituídas por cortinas. Pensando na narrativa de Rise, a motivação para a escolha de cortinas pode ser interpretada como essa descoberta do que há por trás do espetáculo, o que acontece fora dos palcos, quem é a Risette quando não está sob os holofotes. Por mais que não altere em nada a maneira com que o jogador interage com o mapa e os objetos do jogo, o uso desse recurso para substituir as portas no cenário da personagem ajuda a fortalecer a atmosfera de descoberta proposta pela dungeon.

Partindo para a análise dos inimigos que compõem o ambiente da quest, iniciaremos pelos que compõem a ambientação do Castelo de Yukiko. Os inimigos que aparecem no castelo possuem uma relação também muito forte com a narrativa de Yukiko, refletindo pouco no resgate de Chie, que acontece logo no início do cenário. Uma das primeiras sombras a aparecer é o par chamado Trance Twins. Esses inimigos são representados por dois indivíduos unidos por três barras de ferro, ligando-os pelo pescoço, punhos e tornozelos (Figura 20). Por mais que as duas figuras sejam idênticas, elas podem ser um aceno à sensação de impotência de Yukiko, de considerar o seu destino sempre amarrado, dependente de uma outra figura, seja a do seu futuro príncipe ou a da sua família, já que a personagem é a herdeira da pousada.

Essa relação hierárquica aparece também em outro inimigo, o Positive King (Figura 21). Representando a figura de um rei, esse inimigo ainda possui uma habilidade de invocar bebês, chamados de Secret Bambinos (Figura 22), para que lutem ao seu lado, simbolizando essa relação hierárquica familiar que define Yukiko como a próxima sucessora da pousada de sua família. A relação entre o Positive King e Secret Bambino fica ainda mais clara pelo fato do bebê possuir, no topo da flor em sua cabeça, uma coroa, menor do que a do rei.

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Figuras 20, 21 e 22 - Trance Twins, Positive King e Secret Bambino, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Ainda aparecem mais dois inimigos que possuem relação com os contos de fadas, o Avenger Knight (Figura 23), um cavaleiro de armadura montado em seu cavalo, e o Charming Prince (Figura 24), um príncipe com motivos medievais, semelhante ao Positive King, brandindo uma espada. Esses dois inimigos, pelo próprio nome, representam os papéis masculinos de cavaleiro e príncipe, respectivamente. O Avenger Knight aparece como um mini boss do castelo, um inimigo invocado pela Princesa Yukiko que dificulta ainda mais o resgate de Yukiko, sendo maior que os demais inimigos presentes no cenário.

Figuras 23 e 24 – Avenger Knight e Charming Prince, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Além dos motivos europeus medievais e a representação de figuras comuns em contos de fadas, como o rei, o cavaleiro e o príncipe, podemos notar a ausência de inimigos notadamente femininos nesse cenário. A única figura feminina do castelo é a própria Princesa Yukiko, que está à espera do seu pretendente. Mesmo as figuras que não são marcadamente masculinas, como os Trance Twins e o Secret Bambino, tampouco apresentam características marcadas como femininas.

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Assim como quest de Yukiko, o cenário de Kanji também é ausente de inimigos que representem figuras femininas. Na missão de Tatsumi, há um ideal misógino recorrente em sua narrativa, o que está relacionado com a exclusão de figuras femininas e a exaltação da masculinidade. Dentre os inimigos que aparecem nesse mapa, destacamos a aparência de dois deles que adquirem um significado importante se alinhados à quest de Kanji. O primeiro deles é o Monopolizing Cupid (Figura 25), que, como o nome sugere, tem a aparência de cupido, figura mitológica responsável por juntar casais através das suas flechadas. Uma das habilidades do Monopolizing Cupid é deixar os demais confusos, o que pode ser relacionado com o conflito gerado em Kanji ao se interessar por Naoto. O outro inimigo é o Daring Gigas (Figura 26), que possui a forma de um lutador de luta livre, exibindo um corpo musculoso e definido, representando a força física normalmente atribuída ao homem, funcionando assim como uma figura de exaltação à masculinidade, tema recorrente na quest do personagem.

Figuras 25 e 26 – Monopolizing Cupid e Daring Gigas, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Outros dois inimigos que aparecem, juntamente à verdadeira sombra de Kanji, são o Nice Guy e o Tough Guy (Figura 27). Semelhante ao Daring Gigas, os dois inimigos também são figuras masculinas e musculosas. Os dois personagens aparecem como suporte da sombra de Tatsumi e possuem a mesma aparência (Figura 28), tendo diferenças apenas na estratégia de combate, ponto que será discutido na próxima seção. Ambos os personagens são divididos verticalmente, possuindo uma metade branca e outra preta, mostrando o equilíbrio na figura masculina, semelhante à figura do yin e yang, e o par que é formado por duas dessas figuras, uma boa (nice) e outra durona (tough), pode ser relacionado com a narrativa de Kanji, que valoriza o masculino e encontra essas duas características, a força e a gentileza, no homem, em detrimento do feminino. Ambos, Nice e Tough Guy, estão trajando roupas de banho, como frequentadores da sauna, representando também duas figuras masculinas que encontram

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segurança nesse ambiente, ao mesmo tempo que, apesar das diferenças observáveis na dimensão mecânica e na estratégia de combate contra a sombra de Kanji, são mostradas como iguais nesse ambiente.

Figuras 27 e 28 – Visual de Nice e Tough Guy e a aparição de ambos, com a sombra de Kanji atrás, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Tratando de temas semelhantes aos abordados na quest de Yukiko, os inimigos que aparecem no cenário de Rise apresentam uma abordagem diferente ao tratar das questões referentes à feminilidade e os relacionamentos amorosos da personagem. Entre os adversários que aparecem no cenário, dois fazem referência a esse enlace, romântico ou sexual. O primeiro deles é chamado Soul Dancer, cuja figura é formada por um casal heterossexual, ambos sem cabeça, e com um balão flutuante, em forma de coração sobre os tocos do pescoço (Figura 29). O outro é uma cobra chamada Amorous Snake (Figura 30), uma serpente branca que possui o símbolo do masculino preso ao pescoço, cuja haste atravessa o espaço negativo do símbolo do feminino.

Se lembrarmos da personalidade de Rise, a personagem é bastante galanteadora, sendo a única a flertar aberta e frequentemente com o protagonista e insinuar que os dois formarão um par, o que justifica a presença do inimigo Soul Dancer. A Amorous Snake, por sua vez, possui uma conotação mais sexual, tanto pela disposição dos símbolos masculino e feminino (visto que a haste do primeiro penetra o segundo), como também pela própria relação entre a figura da serpente e o pecado, se pensada de acordo com a simbologia bíblica. Esse inimigo pode ser relacionado com a forma que algumas pessoas, a exemplo da professora de Rise, enxergam o trabalho da celebridade. Outro inimigo relevante para a construção da personagem é o chamado Miss Gene (Figura 31). Com um corpo que lembra as fitas duplas de DNA e a associação com o nome, podemos perceber o apelo à biologia para justificar esse

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comportamento mais dócil e solícito como naturalmente feminino, algo que Bello (2016) contesta, dizendo se tratar mais do resultado do contexto em que um indivíduo está inserido e os valores que são atribuídos a cada gênero do que uma predisposição biológica.

Figuras 29, 30 e 31 – Soul Dancer, Amorous Snake e Miss Gene, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Um grande número de inimigos que aparece no laboratório de Naoto fazem referência a brinquedos, como robôs e veículos, motivos privilegiados em brinquedos destinados ao público masculino. Brougère (2001) afirma que, enquanto para as mulheres, privilegia-se a temática do trabalho doméstico, para os meninos valorizam-se temáticas como os automóveis, por exemplo. No jogo, um dos inimigos que aparece no cenário é um robô de brinquedo chamado Dominating Machine (Figura 32) que pode ser relacionado a esse universo masculino com o qual Naoto entrou em contato e se identificou desde cedo.

Outros dois inimigos que aparecem nesse cenário e que possuem relações interessantes com a narrativa de Naoto são a Immoral Snake (Figura 33) e o Fail Gene (Figura 34). Ambas as figuras já aparecem na missão de Rise, com nomes e paletas de cores diferentes. No caso de Naoto, a presença da serpente com os símbolos romanos de masculino e feminino podem representar o pecado (associando a serpente à figura bíblica da tentação) de ultrapassar a barreira dos sexos (aqui como sinônimo de gênero) e de lutar contra a sua “verdadeira natureza”, que seria o feminino, exclusivamente pela formatação do seu corpo. Já o Fail Gene, como o próprio nome sugere, representa essa falha genética que é Naoto ter nascido mulher (nos termos do próprio jogo) e finalmente fazer essa correção do seu corpo no mundo da televisão, tornando-se, de uma vez por todas, um homem.

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Figuras 32, 33 e 34 – Dominating Machine, Immoral Snake e Fail Gene, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Por mais que sejam idênticos em suas formas, os inimigos Amorous e Immoral Snake, e Miss e Fail Gene adquirem significados diferentes por conta da narrativa da quest e do cenário que aparecem, sendo importante analisá-los como parte do ambiente da quest. Se, por exemplo, um inimigo como o Fail Gene aparece no cenário de Kanji, em vez do cenário de Naoto, não seria possível entendê-lo da mesma forma, visto que o contexto narrativo e o cenário de sua aparição são diferentes.

4.2.2 Aspectos visuais dos personagens: expressão de gênero, sombra e persona

De posse da análise da ambientação das quests, podemos seguir para a análise dos aspectos visuais dos personagens, englobando a expressão de gênero, a sombra e a persona. As primeiras personagens a ser analisadas são Chie e Yukiko. Como ambas estão inseridas na mesma quest, serão analisadas em conjunto, seguindo a mesma ordem da análise das suas dimensões narrativas (seção 3.4.1).

Chie e Yukiko (Figuras 35 e 36) são apresentadas como duas personagens do gênero feminino, e ambas se expressam como tal. A expressão de gênero, como afirma Butler (2003) está relacionada à maneira que um indivíduo se expressa, através de roupas, penteados, maquiagem, linguagem corporal, entre outros, relacionado ao seu gênero, mas que não necessariamente tem de concordar com a identidade de gênero dos personagens.

Como já foi falado, Chie possui uma personalidade mais expansiva e enérgica, enquanto Yukiko é mais retraída, e isso se reflete no figurino das personagens. A paleta de cores de Chie possui cores mais vibrantes, como no seu casaco verde e amarelo, e os seus cabelos e olhos claros. Já Yukiko, além dos olhos e cabelos pretos, usa um cardigã de um

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vermelho profundo, mais fechado. De acordo com Dondis (2003), o vermelho e o verde são cores que estão diametralmente opostas no círculo cromático, o que pode ser entendido como uma metáfora para a diferença entre as personagens. Mesmo que o vermelho, de acordo com a autora, tenha um caráter expansivo, outras características da cor podem ser usadas para reforçar essa característica, como sua saturação e seu brilho.

Por mais que o vermelho seja uma matiz forte, o cardigã de Yukiko é de um vermelho mais fechado, mais profundo. Matizes mais escuras, mais próximas do preto, tem um potencial de retração maior, o que pode ser observado em Yukiko e em sua personalidade, enquanto o verde de Chie, mais brilhante e saturado, possui um potencial mais expansivo, parecendo maior do que realmente é (DONDIS, 2003). Podemos pensar também no uso dessas cores, com o seu brilho e saturação, e a relação de atração e repulsão. Enquanto Yukiko, que usa cores mais fechadas, atrai os garotos da escola, justamente por essa característica concêntrica da sua paleta de cores, Chie os afasta, apresentando uma paleta vibrante que representa essa força de expansão. O vermelho, também, representa a relação entre as duas, visto que Chie disse a Yukiko que esta ficava bem de vermelho. Quando essa cor passa a ser característica de Amagi, acaba por reforçar também o laço entre as duas personagens, que, conforme a narrativa, abre espaço para a interpretação de um sentimento romântico de ambas as partes.

Figuras 35 e 36 – Chie e Yukiko, respectivamente

Fonte: creativeuncut.com

Entretanto, não é somente a paleta de cores que representa esse caráter de introspecção e extroversão, a vestimenta das personagens também revela essa característica. Enquanto Yukiko usa uma peça colada ao corpo, de forma a delinear bem a sua figura, Chie, ao contrário, usa um casaco mais folgado que esconde mais a sua figura, dando a impressão de ser maior do que realmente é, principalmente seus braços. Se resgatarmos a associação entre a

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feminilidade e a “arte de ser pequena” (BOURDIEU, 2019) e associarmos ao pensamento de Fonseca (2013), que afirma que as figuras femininas são mais apreciadas por sua beleza, expressa na valorização o rosto, o busto, a cintura e os quadris, em detrimento dos braços, que estão ligados à força, podemos entender as escolhas para o figurino das duas personagens. Yukiko é apresentada como uma personagem feminina e delicada, enquanto Chie está situada do lado oposto deste eixo. Por fim, ainda de acordo com Fonseca (2013), os longos cabelos estão ligados, também, à feminilidade, e Chie possui os cabelos curtos, quase tão curtos quanto os do protagonista, enquanto Yukiko possui cabelos longos e pretos, adicionando mais um elemento para a percepção do que é feminino e desejável dentro do universo do jogo.

Como o resgate de Chie acontece dentro da quest de Yukiko, a sua sombra, no primeiro estágio, não se diferencia muito da personagem, apresentando apenas uma aura sombria e olhos amarelos. Quando atinge a sua verdadeira forma, podemos perceber diversos aspectos já trazidos na análise da dimensão narrativa do jogo, que são confirmados no visual da sombra de Satonaka (Figura 37). Um dos elementos que chama a atenção é o fato da figura central ser sustentada por uma série de outras figuras femininas com o uniforme do colégio Yasogami. Isso está relacionado ao fato de Chie esconder que se escora na beleza da melhor amiga para se sentir superior às demais, estando assim em uma posição hierárquica superior, sendo sustentada, literalmente no caso da sombra, pelas demais estudantes.

Além disso, a sombra possui um longo cabelo preto, que se arrasta pelo chão e que possui lâminas nas pontas. Entendendo a sombra em Persona 4 como a corporificação de sentimentos reprimidos, a incorporação dos longos cabelos remetem aos signos de feminilidade presentes em Yukiko, e o uso destes como arma pode simbolizar essa pressão estética imposta sobre as mulheres para uma adesão a um padrão de beleza específico. O vermelho também está presente no visual da sombra de Chie, aparecendo no chicote que a sombra manuseia, também usado como arma e, portanto, apresentando função semelhante na associação entre os elementos visuais de Yukiko e o padrão de beleza. A sombra ainda usa uma vestimenta completamente amarela, o que a aproxima do vermelho de Yukiko, no círculo cromático, mas ainda apresenta esse aspecto vibrante presente em Chie. Além disso, no topo da máscara, podemos ver uma carinha sorridente pintada acima dos olhos raivosos, o que simboliza o fato de Chie esconder os seus verdadeiros sentimentos de insegurança.

Quando Chie vence a batalha contra os seus sentimentos reprimidos, a sua sombra se transforma na sua persona, Tomoe (Figura 38), que conserva algumas características da

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corporificação dos sentimentos negativos da personagem. Lembrando que, para o jogo, a persona é uma fachada que as pessoas usam para enfrentar os desafios do dia a dia. No mundo da TV, aqueles que possuem uma persona, possuem um forte aliado para as batalhas. Tomoe conserva os longos cabelos pretos, como uma incorporação dessa feminilidade para a fachada de Chie, mas dessa vez, sendo utilizados como decoração, e não como arma.

A figura passa de uma dominatrix, de uma mulher que usa outras mulheres de escada, para uma guerreira que luta com uma lança de duas pontas. Ela também conserva o amarelo como cor principal, mas no visual de Tomoe é possível perceber um aceno aos filmes de ação apreciados por Chie, pois o macacão amarelo com detalhes pretos se assemelha à roupa de Billy Lo, personagem do ator e artista marcial Bruce Lee. Transformando-se em uma guerreira, a persona de Chie simboliza, sobretudo, o desejo da personagem, já mostrado na narrativa de Satonaka, de encontrar o seu valor nas suas habilidades, na sua força, e não somente na sua aparência ou depender de Yukiko para se sentir valorizada.

Figuras 37 e 38 – A verdadeira forma da sombra e a persona de Chie, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

A sombra de Yukiko aparece primeiro como uma princesa. Comportando-se de maneira teatral e afetada, ao contrário do padrão de comportamento da personagem, a sua sombra se coloca como prêmio para o príncipe que resgatá-la. Ela aparece no Canal da Meia- Noite (Figura 39) trajando um vestido rosa claro, bufante e decotado, como os vestidos de princesas europeias, ao contrário do figurino usual da personagem, que usa cores mais discretas e silhuetas menores. A sombra, então, mostra o desejo de ser notada, de chamar a atenção, na esperança de que alguém a resgate do seu destino indesejado e, até então, inevitável que é o de ficar presa à cidade de Inaba para tomar conta da pousada de sua família. Toda a discrição e reserva de Yukiko dá lugar a um visual chamativo e expansivo. Parte disso

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está associado ao uso da paleta de cores, mais próxima ao branco, portanto, com um potencial expansivo maior (DONDIS, 2003).

Além disso, há uma rosa vermelha no centro do busto, o que cria um ponto de interesse pelo contraste com o restante do vestido, chamando a atenção para os seios da personagem. Diferente, também, do que acontece no mundo comum, em que Yukiko é visada pelos pretendentes e desvia toda essa atenção recebida, no Canal da Meia-Noite a sombra de Yukiko pede por essa atenção e usa dos seus atributos corporais para atrair os pretendentes. Ao ingressar no castelo, o Time de Investigação encontra a Princesa Yukiko no topo de uma escadaria, na sala do trono, enquanto a verdadeira Yukiko está jogada ao chão, trajando uma vestimenta tradicional japonesa, aos pés da escada (Figura 40).

Figuras 39 e 40 – Aparição de Yukiko no Canal da Meia-Noite e o encontro de Yukiko e sua sombra, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Na imagem de Yukiko, no seu uniforme da pousada (um kimono, veste tradicional japonesa), aos pés da sua sombra, é possível observar a dicotomia entre o oriental e o ocidental em termos desejo. Li, Min e Belk (2008) afirmam que, além da valorização da pele branca, como sinal de pureza (ver seção 3.4.1), as características ocidentais, especialmente em mulheres, eram consideradas mais desejáveis do que as características orientais. A personagem, quando quer despertar o desejo e chamar a atenção de seus possíveis pretendentes, utiliza de recursos culturais ocidentais (vestimentas, ambientação, a referência aos contos de fadas) para se tornar desejável e, sobretudo, expressar essa característica. Essa oposição também coloca em questão a relação entre a pureza e a devassidão. Enquanto Yukiko é pudica, ela desperta o interesse dos demais.

Desde o momento em que a personagem expressa o seu desejo, ela precisa, deliberadamente, fazer esforços para atrair os seus pretendentes. Essa visão, ainda muito

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conservadora, e que se repete também na quest de Rise, relega à mulher considerada desejável à posição de pura e virginal, ausente de desejo, pronta para servir ao seu companheiro (BOURDIEU, 2019). Quando há uma mudança, uma subversão, desse comportamento, ela perde a possibilidade de despertar o interesse, e passa a ser vista como devassa.

Ao revelar a sua verdadeira forma, a sombra de Yukiko se transforma em um grande pássaro vermelho que repousa sobre uma grande gaiola (Figura 41). É importante pontuar essa forma que a sombra se apresenta, pois o pássaro está de asas bem abertas, mas continua fixo à gaiola, embora tenha a capacidade de livrar-se dela. Isso mostra a fragilidade do mito de impotência feminina, da dependência masculina para a sua “salvação” (DOWNLING, 1981). Não há nada que prenda a sombra de Yukiko à gaiola. Entretanto, mesmo do lado de fora, essa posição é mantida não por incapacidade, mas pela mentalidade de dependência. Mesmo que, ao desferir ataques, a ave se distancie da gaiola, ela brevemente retorna a pousar sobre a sua jaula.

O pássaro incorpora, novamente, o vermelho de Yukiko, mas dessa vez, no lugar de um tom mais fechado, as suas penas são de um vermelho vivo e vibrante, representando a repulsa que Yukiko tem pela ideia de si mesma, de algo fugaz, passageiro, como a neve (que dá origem ao seu nome). Dois aspectos da forma verdadeira de sua sombra podem ser destacados: (a) a cabeça e (b) o busto. Apesar de tomar forma de um pássaro, a sombra de Yukiko conserva um rosto humano, semelhante ao da personagem, e com o mesmo penteado, o que retorna à referência à feminilidade de Yukiko que é notada em diversos outros elementos da sua quest.

Mesmo na sua forma mais monstruosa, a personagem não abre mão de características que a tornam bela, voltando à questão da feminilidade e a obrigatoriedade da beleza apresentada por Wolf (2019), reduzindo o gênero feminino à aparência, negligenciando ou apagando os demais aspectos que o compõe. O segundo ponto é que, mesmo sendo uma ave, logo não um mamífero, a sombra de Amagi possui um busto com seios desenvolvidos, e destacados da penugem vermelha com uma forma de coração na cor branca (como pode ser visto na Figura 41), criando novamente um ponto de interesse nessa área, antes destacada pela rosa vermelha no vestido rosa claro. Além de trazer a questão supracitada, há uma ligação quase que obrigatória entre a feminilidade e os seios, área muito destacada no visual de personagens femininas, como aponta Fonseca (2013). Além disso, tem-se a ideia de que os seios estão para a feminilidade como o falo está para a masculinidade (WOLF, 2019) por

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serem ambas estruturas que se desenvolvem para forma do corpo, sendo órgãos aparentes e vistosos, logo são tidos como símbolos máximos dos respectivos gêneros (entendendo o gênero quase como um sinônimo de sexo).

Quando Yukiko derrota a sua sombra e a aceita, ela se torna Konohana-Sakuya (Figura 42). Um dos elementos muito evidentes, se levarmos em consideração a recorrência ao longo da quest, é a ausência de cabelos na persona de Yukiko, elemento que está presente na sua sombra, e na persona e sombra de Chie. Konohana-Sakuya, diferente de Yukiko e sua sombra, não usa um vermelho profundo, mas diversos tons claros, como rosa e branco, funcionando como essa fachada de Yukiko, mais expansiva, mais presente, menos retraída. Entretanto, ela conserva o mesmo ponto interesse, o coração na área do busto, em uma cor diferente do restante da blusa, de forma a criar também um destaque.

Figuras 41 e 42 – A verdadeira forma da sombra e a persona de Yukiko, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Diferente da sua sombra, Konohana-Sakuya não tem nada que a prenda a uma posição específica. A persona de Yukiko não possui pés, sempre pairando e se locomovendo com as suas grandes asas, representando esse desejo de liberdade da personagem. Se lembrarmos da análise da dimensão narrativa, a principal mudança de Yukiko é que ela deseja a sua independência e começa a se trabalhar para adquirir as habilidades necessárias para se virar sozinha. Logo, essa ausência de uma gaiola, de pés, da fixidez, mostra o desejo da personagem de não se prender mais à esperança de que a única libertação virá de outra pessoa, de um fator externo. Por fim, por mais que o nome de Yukiko esteja relacionado à neve, a sua persona possui motivos florais, o que pode ser relacionado com a primavera de Yukiko, a sua mudança de mentalidade e a sua libertação desses ideais de feminilidade castradores de sua capacidade de agência e de escolhas.

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Seguindo para a análise dos aspectos visuais de Kanji, o personagem apresenta um visual mais agressivo que os outros membros do Time de Investigação. Diferente dos demais, Kanji possui o cabelo loiro platinado, uma cicatriz na sobrancelha e diversos piercings (Figura 43). Por conta da sua manutenção da sua aparência de agressivo e forte, Tatsumi mantém uma expressão séria, com o cenho franzido, sustentando uma fronte que causa medo nos demais. Essa fachada que inspira terror vem da ideia que Kanji tem de que a masculinidade está relacionada com a força física e a agressividade. Além de ser uma figura alta, o personagem usa a jaqueta do colégio apenas sobre os ombros, em vez de vesti-la, o que o deixa parecendo mais musculoso, mais forte.

Com exceção do cabelo, a paleta de cores de Kanji é bastante escura, variando entre tons de preto e azul marinho, usados para remeter a essa dificuldade de acesso ao personagem, que, apesar de agressivo, é bastante introspectivo e não demonstra os seus sentimentos, por não ser algo considerado masculino. A caveira em sua camiseta tanto pode ser pensada a partir de um conjunto de símbolos utilizados por punks/roqueiros, como também um sinal de alerta, ou de perigo. Como Kanji é conhecido por se envolver em encrencas e, constantemente, em conflitos físicos com membros de gangues de Inaba, a apropriação desse elemento pode ser entendido como uma forma do personagem afirmar a sua periculosidade. Isso é reforçado também quando o personagem utiliza uma regata, que além de conter os mesmos motivos visuais, revela uma tatuagem de caveira no seu ombro esquerdo, sendo o único personagem tatuado (ou pelo menos com uma tatuagem aparente) do Time de Investigação (Figura 44). Outros elementos que remetem à essa ideia de rebeldia e violência podem ser percebidos, como um colar cujo pingente possui o formato de uma bala de revólver, sempre usado por ele. A incorporação de todos esses elementos ao visual do personagem, que só usa roupas marcadas como masculinas e com poucas cores, contribui para o entendimento da masculinidade que Kanji deseja transmitir.

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Figuras 43 e 44 – Visuais de Kanji Tatsumi

Fonte: creativeuncut.com

Em sua aparição no Canal da Meia-Noite, a sombra de Kanji aparece trajando apenas uma roupa de banho, como um frequentador da sauna. Quase que inteiramente despida, a sombra perde a aparência amedrontadora de Tatsumi, despido, literal e figurativamente, dessa fachada violenta agora que se encontra nesse ambiente seguro, onde ele pode mostrar todos os seus “desvios” de masculinidade, que não podem estar aparentes no seu convívio social em outros ambientes. Diferente do personagem, agressivo e de poucas palavras, a sombra é bastante teatral e excêntrica, falando de forma dramática e quase cantada (semelhante aos personagens Zhang He, Amane Nishiki e Kuja, citados na seção anterior), quase sempre sorrindo e com o rosto enrubescido (Figura 45). Apesar de conservar a cicatriz e os piercings, a sombra de Kanji não possui a tatuagem no ombro esquerdo, presente no personagem. Isso, aliado à mudança de expressão facial, e entendendo como o jogo trabalha o conceito de sombra, podemos perceber essa configuração como esse lado menos agressivo e mais delicado que Kanji se esforça tanto para encobrir. Foucault (2013) afirma que a tatuagem é uma forma de colocar o corpo em outro espaço, de evocar poderes, entrar em contato com forças invisíveis. Pensando dessa forma, a tatuagem de Kanji pode simbolizar, também, a forma que o personagem usa para evocar, para incorporar essa força que está ausente nele. O único momento em que a sombra de Kanji perde a expressão mais suave e teatral, e dá lugar à uma expressão raivosa, é quando o personagem a nega, despertando a sensação de rejeição, tão temida por Kanji (Figura 46).

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Figuras 45 e 46 – A sombra de Kanji enrubescida e furiosa, respectivamente

Fonte: creativeuncut.com e captura de tela do jogo Persona 4

Ao assumir a verdadeira forma, a sombra de Kanji se transforma em um um grande e musculoso corpo, semelhante aos de Nice e Tough Guy, metade branco e metade preto. Cada um dos braços carrega um símbolo de Marte (também símbolo do masculino), usado como arma pela sombra. De dentro desse corpo surge uma espécie de cama feita de rosas, de onde sai uma figura idêntica a Kanji em sua versão do Canal da Meia-Noite, mas com maquiagem completa, usando batom, blush e sombra (Figura 47). No visual da verdadeira forma da sombra de Kanji, podemos observar a dicotomia entre a força e a delicadeza a partir do corpo musculoso e forte que, ao ser repartido, dá lugar à diversas flores com uma figura franzina ao centro, mostrando que por trás, ou por dentro, de uma fachada extremamente forte e amedrontadora, reside uma outra pessoa, delicada e sensível.

Por mais que a sombra incorpore maquiagem ao seu rosto, elementos normalmente associados à feminilidade, os símbolos do masculino, carregado pelos dois braços, reforçam a mensagem de que os dois lados de Kanji são masculinos, algo reforçado pela narrativa do personagem, que esconde um lado mais sensível por conta das represálias sofridas ao longo da vida, principalmente pelas mulheres, que ele classifica como maldosas e não confiáveis. Foucault (1999) afirma que existe uma concepção de que os homossexuais são hermafroditas de alma, que esse “desvio” da heterossexualidade era justificado pela presença de uma alma do gênero oposto. Se pensarmos no visual da sombra de Kanji, essa dicotomia, essa dualidade de um homossexual, pode ser observada tanto pela diferença entre o corpo musculoso e a figura franzina deitada em rosas, como também na composição do corpo musculoso, meio preto e meio branco.

Apesar disso, não há a presença de uma ideia do masculino e feminino, já que não há o símbolo correspondente ao feminino. As flores presentes no visual de Kanji podem ser

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entendidas, assim, tanto com o desabrochar dessa sensibilidade, escondida por dentro dessa fachada masculina, como também em referência às práticas homossexuais, que podem ser realizadas em segurança nesse ambiente, fazendo uma possível referência à idade da flor (conforme discutimos na seção 3.4.2).

Após a sua derrota e aceitação, a sombra de Kanji se torna a sua persona, chamada Take-Mikazuchi. O visual da persona de Tatsumi volta a recorrer aos mesmos elementos e recursos visuais do personagem. Take-Mikazuchi é uma espécie de robô gigante que carrega um grande raio em sua mão (Figura 48). É possível observar, principalmente nos braços, grandes fios vermelhos e saltados, que lembram as veias que saltam de um corpo musculoso e definido. A paleta e os motivos são semelhantes ao visual de Kanji, tendo como cor predominante o preto e a temática de caveira/esqueleto, recorrendo aos mesmos elementos de força, agressividade (e, portanto, masculinidade) presentes na narrativa e nos aspectos visuais. Se em Yukiko e Chie é possível observar uma mudança que é refletida em suas personas, em Kanji há uma regressão ao estágio inicial, pois há a recorrência aos mesmos elementos, sem uma ressignificação, reafirmando que a persona, a fachada, que Kanji deseja mostrar ainda está centrada nessa representação de força e virilidade.

Figuras 47 e 48 – A verdadeira forma da sombra e a persona de Kanji, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

A falta de clareza na elaboração da quest de Kanji contribui para esse tipo de tratamento dado à evolução do personagem. No processo de dar evidências da homossexualidade reprimida do personagem, Persona 4 deixa transparente a falta entendimento, ou de tato, ao tratar dessas questões relativas ao personagem. Diferente dos demais, o visual de Take-Mikazuchi acaba não refletindo a transformação ou a aceitação do personagem de quaisquer questões envolvidas, seja a masculinidade, ou a sua orientação sexual, ou os seus hobbies, em sua narrativa.

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Diferente dos demais, Rise aparece logo no início do jogo, numa das primeiras cenas, antes mesmo de ser apresentada como uma personagem recorrente na trama de Persona 4. Ela é vista em um comercial de uma bebida de baixa caloria, que promete mudar o corpo de quem consumir o produto (Figura 49). Risette, a personagem midiática criada para Rise, aparece de biquíni em uma praia, e a câmera foca, indiscretamente, em seu corpo, dando ênfase nos quadris, cintura e busto da personagem, para finalmente mostrar o rosto da garota propaganda. Além de exibir uma figura que projeta um ideal de beleza feminina, são valorizados e exibidos sobretudo os atributos corporais da pessoa, partindo de uma valorização do corpo da mulher como uma venus estereotipia (FONSECA, 2013), já discutido anteriormente, para só depois mostrar o rosto da personagem.

Neste contexto, Risette aparece como uma figura sorridente e simpática, para atrair esse público, encaixando-se no ideal do que o seu público espera de uma celebridade feminina. Essa figura de Rise, ideal para um ídolo no jogo, é explorada também nas artes promocionais deste. No cartaz de divulgação (Figura 50), é possível ver Risette também de biquíni, dessa vez amarelo e laranja, semelhante ao comercial exibido no começo do jogo, valorizando novamente os atributos físicos, a aparência da personagem, e colocando-a como uma figura para atrair o público, tal como apontado anteriormente por Arima (2003) e citado na análise da dimensão narrativa de Rise (seção 3.4.3).

Figuras 49 e 50 – Rise no comercial e no cartaz promocional do jogo

Fonte: captura de tela do jogo Persona 4 e creativeuncut.com

Um ponto em comum entre Rise e Yukiko é que ambas as personagens, consideradas belas dentro do universo do jogo, possuem longos cabelos, enquanto Chie, que não é vista como tal, possui os cabelos curtos, como os personagens masculinos do jogo. Entretanto, por causa da exposição da sua figura, por conta do trabalho, Rise é taxada de “piranha”, enquanto Yukiko é exaltada, por ser discreta e esconder o seu corpo.

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Quando anuncia o seu afastamento da mídia, Rise resolve se refugiar em Inaba e passa a se comportar e se vestir de uma maneira completamente diferente do que é mostrado na televisão. Trabalhando na loja de tofu da sua família, a personagem agora, além de uma expressão facial soturna, o oposto de Risette, usa um vestido longo, de cores discretas (Figura 51), passando despercebida diversas vezes ou gerando comentários sobre a sua aparência, quando é reconhecida. O mesmo acontece quando a personagem entra para a escola Yasogami. Diferente de Yukiko e Chie que, além do uniforme, trajam uma peça colorida por cima, que as diferencia dos personagens secundários, Rise usa o uniforme feminino sem nenhuma alteração ou acessório de cor chamativa, a única diferença é que a personagem usa uma blusa branca de gola alta por baixo do uniforme (Figura 52).

Diferente da sua atuação como celebridade, Rise agora aparece a todo custo tentando não só passar despercebida, através de roupas mais discretas, que não a diferenciam dos demais, como também esconder o seu corpo, sempre posto em primeiro plano durante a sua atuação como celebridade. Mesmo quando a personagem se torna próxima do Time de Investigação e começa a lidar melhor com a sua relação com a fama, Rise continua se vestindo de forma a mostrar pouco o seu corpo, embora use cores mais vivas (Figura 53).

Figuras 51, 52 e 53 – Visuais de Rise ao se mudar para Inaba

Fonte: creativeuncut.com

Ela parece querer afastar a sua imagem dessa hipersexualização, de colocar o seu corpo, a sua forma física, em primeiro plano, evitando assim os julgamentos sobre a sua postura, uma vez que a personagem é chamada de “piranha” e “chave de cadeia” por outras pessoas. Ao começar a esconder essa figura pública, Rise passa a reconhecer que nunca teve amigos de verdade, pois as pessoas só se aproximavam dela por conta da sua fama, e que, nesse seu novo momento, ela gostaria de ser conhecida por sua essência, e não pela imagem que aparece na televisão. Essa mudança de figurino tem relação com esse movimento da

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personagem de tentar não chamar atenção para a sua aparência, para a Risette, e sim para a pessoa que ela é fora das câmeras, vivendo uma vida longe dos holofotes, semelhante ao que é mostrado na narrativa de Chie, se afastando dessa relação de obrigatoriedade entre a feminilidade a beleza (WOLF, 2019), e buscando o seu valor em outras características não relacionadas à aparência.

Ao aparecer no Canal da Meia-Noite, no entanto, a sombra de Rise volta a exibir um visual semelhante ao da sua personalidade midiática, usando apenas um biquíni dourado (Figura 54). Com o entendimento do que é a sombra para o universo de Persona 4, podemos entender que Rise, depois de se afastar do show business, passou a reprimir, a negar a existência de Risette, o seu lado mais ligado à aparência. É como se para Rise fosse impossível a coexistência dessas suas duas faces, uma que busca manter uma boa aparência e a outra que quer ser conhecida, e reconhecida, por suas virtudes, e não a sua beleza e forma física, o que nos faz voltar ao ponto apontado por Wolf (2019) e já discutido anteriormente nesta dissertação sobre não importar o quão competente seja uma mulher, se ela não for bonita, tende a ser vista automaticamente como inferior.

Ao assumir a sua verdadeira forma, a sombra de Rise se torna uma grande figura feminina, completamente desnuda e com cores vibrantes, cujo rosto é coberto por uma antena e painéis, semelhantes a um satélite (Figura 55). Em cima de um palco e dançando em uma barra usada para a prática de pole dance, a verdadeira forma da sombra de Rise desfere ataques enquanto faz poses sensuais e movimentos pélvicos em direção à barra, mostrando como a forma cristalizada de sua sombra representa essa preocupação com a aparência e a personalidade paqueradora da personagem. A cobertura do rosto da personagem com uma estrutura semelhante a uma antena ou satélite está relacionada tanto com o fato de ela ser uma personalidade midiática, como também ao fato de pouco importar quem ela é de fato, contanto que ela esteja no padrão pronto para a divulgação, contanto que a sua imagem seja agradável para a transmissão, novamente apagando a identidade, a verdadeira Rise.

É possível notar o contraste entre o cenário e as formas da sombra em comparação com as de Rise. Enquanto a personagem usa cores discretas, simbolizando essa postura discreta que agora ela assume, o cenário e a sua sombra possuem cores vibrantes e chamativas, como Risette, a garota propaganda que deve chamar a atenção do público.

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Figuras 54 e 55 – As formas da sombra de Rise Kujikawa

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Ao ser derrotada, a sombra de Rise se transforma em sua persona, Himiko (Figura 56). Em oposição à sombra, a persona usa um longo vestido branco, deixando de fora apenas os braços e o pescoço, ambos pretos, simbolizando essa volta de Rise a uma fachada que expõe menos a sua figura e em uma paleta de cores menos chamativa. Se na verdadeira forma de sua sombra, as cores estão espalhadas e distribuídas de maneira aleatória, criando um efeito psicodélico e difícil de distinguir, a persona de Rise possui uma silhueta clara e sóbria, representando o autoconhecimento da personagem. A estrutura em forma de antena fica ainda maior, tendo extensão maior do que a altura da figura de Himiko. Apesar de também não possuir rosto, Himiko segura um visor que se encaixa sobre os olhos de Rise para que ela possa rastrear as criaturas do mundo da televisão (Figura 57) dando à personagem os poderes de análise e rastreamento de inimigos nesse universo paralelo.

Figuras 56 e 57 – Rise aceitando a sua persona e utilizando seus poderes, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Por ter trabalhado com a sua imagem em veículos midiáticos, esse visor que Himiko carrega pode ser entendido como o conhecimento adquirido por Rise sobre os bastidores da televisão, sendo capaz de identificar mais facilmente os aspectos negativos. Entretanto, essa

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oposição entre a sombra e a persona de Rise ainda conserva um ideal de pureza para o virtuoso e devassidão para o desviante. Isso ainda recorre ao mesmo ideal sexista presente em toda a narrativa da personagem, que a desqualifica por causa da sua assertividade, enquanto valoriza Yukiko pela sua retração e pureza.

Partindo para os aspectos visuais de Naoto, o detetive é outro personagem que aparece antes mesmo de ser nomeado e que demora a integrar o Time de Investigação, sendo o último a se juntar à composição. Em sua primeira aparição, o jovem aparece trajando um sobretudo e uma boina, da mesma cor do seu cabelo, azul escuro (Figura 58), sendo visto por todos como um jovem detetive muito talentoso. Naoto se apresenta, e é reconhecido, como homem, e usa roupas normalmente associadas à vestimenta masculina. Ao entrar para a escola Yasogami, o jovem usa também o uniforme masculino (Figura 59), abotoado até o pescoço, mantendo ainda uma silhueta semelhante à anterior.

Ele ainda tem um terceiro figurino, dessa vez em cores mais claras, que se assemelha à roupa usada na delegacia de Inaba, composta por uma camisa social, gravata e calças compridas (Figura 60). Comparado aos demais personagens masculinos do jogo, Naoto possui traços mais delicados, com o nariz menos definido e o queixo mais fino, semelhante aos traços de Yukiko. Mesmo depois de revelada a “verdadeira identidade” de Naoto (entre aspas pois é assim que, embora não concordemos, a revelação é tratada), não há uma mudança de figurino, de tom de voz, de penteado, ou de nada do tipo. O visual e o comportamento do personagem continua o mesmo, mudando apenas a maneira com que as pessoas se referem ao jovem, utilizando pronomes femininos.

Figuras 58, 59 e 60 – Visuais de Naoto

Fonte: creativeuncut.com

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Ao aparecer no Canal da Meia-Noite, a sombra de Naoto traja o mesmo figurino da gravata amarela, com um jaleco de tamanho visivelmente maior do que o personagem, como se fosse uma criança usando roupas de adulto. Esse visual da sombra de Naoto está mais relacionado à imitação dos adultos, do que necessariamente sobre a relação do personagem com a sua identidade de gênero. Já a verdadeira forma da sombra de Naoto apresenta a figura do personagem, no mesmo figurino, porém apresentando metade do seu corpo num formato robótico (Figura 61). Lembrando da narrativa do personagem, essa sua transformação em um ciborgue representa esse procedimento de alteração corporal que vai, finalmente, possibilitá- lo exercer a sua função como detetive.

Se no mundo comum, Naoto enxerga esse impeditivo como o seu sexo biológico, no mundo da televisão, é essa transformação para além da figura puramente humana que representa essa virada. Após ser derrotada e aceita, a sombra de Naoto se transforma em sua persona, Sukuna-Hikona (Figura 62), que possui forma de criança, com roupas e paleta de cores semelhantes às de Naoto. A persona possui grandes asas e antenas, o que a faz ser semelhante a uma borboleta ou mariposa, animais que passam pelo processo de metamorfose.

Figuras 61 e 62 – A verdadeira forma da sombra e a persona de Naoto, respectivamente

Fonte: capturas de tela do jogo Persona 4

Assim, a persona, a fachada que Naoto projeta, representa essa metamorfose, mesmo que com pouca idade. A manutenção dos mesmos motivos no visual e na persona não são necessariamente aspectos negativos, no caso de Naoto. Ao contrário de Kanji, cuja recorrência aos elementos do início da quest volta a esconder a verdade sobre o personagem, no caso de Shirogane, a incorporação desses elementos simboliza a consolidação da sua identidade e expressão de gênero.

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Podemos perceber alguns elementos em Naoto que, se comparados com os demais personagens masculinos, já dão indícios de que o personagem possui um corpo biologicamente tido como feminino. No estilo artístico do jogo, as mulheres possuem traços mais finos e delicados, como narizes menos marcados, rostos mais finos e redondos, queixos pontiagudos, entre outras características. Já os personagens masculinos possuem um rosto mais quadrado, narizes mais proeminentes e maxilares marcados. Comparando o rosto de Naoto com outros personagens, como Kanji e Yosuke, podemos perceber essas diferenças. Além disso, o detetive possui altura semelhante a de Yukiko. Todas as personagens femininas do jogo, que possuem idades semelhantes às dos protagonistas, são menores que os homens do jogo, o que pode ser entendido como outro indício. Apesar dessas evidências baseadas no estilo artístico do jogo, nenhum personagem parece desconfiar que Naoto é transgênero (ou, para se assemelhar ao que é apresentado no jogo, que o personagem é, na verdade, mulher), só havendo a mudança no tratamento para com o personagem a partir do momento em que é feita a revelação da identidade do jovem detetive.

4.3 Dimensão mecânica: atributos funcionais e gênero em Persona 4

Prosseguindo com as análises, nesta seção contemplaremos a dimensão mecânica e o modo como os elementos pertencentes a esta categoria são utilizados em Persona 4 para a construção da identidade de gênero e orientação sexual dos personagens. Para tal, analisaremos o combate e as estratégias de jogo, contemplando os seguintes elementos: (a) atributos e funções dos personagens, (b) vantagens e desvantagens no combate contra os inimigos do jogo e (c) dinâmica de batalha do chefe final da quest.

Cada um dos personagens de Persona 4 possui um conjunto de atributos que alteram, por exemplo, as chances de desviar de um ataque, de sofrer ou provocar dano, a ordem de prioridade ao realizar suas ações, entre outras possibilidades. Esses atributos são divididos em três grupos: HP e SP, stats e a natureza do dano. A partir dessas configurações, é possível definir a função dos personagens no combate. Começando pela natureza do dano, Persona 4 conta com os seguintes tipos: físico (physical), fogo (fire), gelo (ice), vento (wind), eletricidade (electricity), luz (light), trevas (dark) e todo-poderoso (almighty).

Com exceção do tipo físico, todos os outros danos só podem ser causados com a invocação de magias, vindas da persona. Além disso, cada personagem conta com cinco stats: força (strength), resistência (endurance), magia (magic), sorte (luck) e agilidade (agility). A

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força diz respeito à força dos ataques do tipo físico, enquanto a resistência é a defesa dos ataques também do tipo físico. A magia diz respeito tanto ao dano quanto à defesa mágica. O atributo sorte está relacionado às chances do personagem de causar um dano crítico, acima do normal, Por fim, a agilidade define a ordem dos ataques e as chances de evasão de ataques dos inimigos.

O último grupo tem como componentes o HP (Health Points, ou Pontos de Saúde, em tradução livre), que representam a vida do personagem e também são utilizados para usar as habilidades do tipo físico, e o SP (Special Points, ou Pontos Especiais, em tradução livre), pontos usados para usar as habilidades mágicas. As funções dos personagens, como causar dano físico, causar dano mágico, suporte, entre outras, estão relacionadas de acordo com a configuração desses elementos supracitados (por exemplo, personagens do tipo suporte precisam ter muitos Pontos Especiais para soltar magias, mas não precisam de tanta força, por não desempenharem a função de causador de dano físico), sendo necessário observar a disposição desses atributos em cada personagem para então entender o papel desempenhado por cada um deles nas batalhas contra os inimigos.

Chie é uma personagem cujos ataques mágicos usados por sua persona são do tipo gelo, mas as principais habilidades são do tipo físico. Os principais stats de Chie são Força e Agilidade, tornando-a uma personagem que causa grande dano físico e sempre sendo uma das primeiras a atacar, além de conseguir se desviar dos ataques com maior facilidade que os demais. O HP de Chie é um dos maiores entre os personagens, mas, em compensação, o seu SP é muito baixo. Essa configuração torna Chie uma personagem focada nos golpes físicos, causando grande dano aos adversários. Ela possui, ainda, a habilidade de aumentar o dano causado por ela e devolver os golpes sofridos. Isso a torna uma personagem que luta a frente de batalha, além de ser muito duradoura no combate, tanto pela sua agilidade, que a faz desviar mais facilmente dos ataques dos inimigos, como também por revidar o dano aos inimigos.

Isso faz com que a principal função de Chie no combate seja causar dano físico, o que combina com a narrativa da personagem, fã de artes marciais e que sempre defendeu Yukiko, sendo temida pelos demais colegas de classe, em virtude de sua força física. Dowling (2000) afirma que é propagada a [falsa] ideia de que a mulher não possui tanta força quanto o homem, chamado pela autora de O Mito da Fragilidade. Por mais que haja diferença em níveis hormonais e de desenvolvimento de musculatura nos corpos (formatados ou

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biologicamente tidos como) masculinos ou femininos, essas características não levam a uma obrigatoriedade dessa suposta fragilidade feminina; o mito ignora, por exemplo, o condicionamento físico desenvolvido ao longo do tempo, as diferentes formatações físicas que uma mulher pode ter, entre outras variáveis que levam a uma configuração diferente dessa afirmação fatalista.

Yukiko usa magias do tipo fogo, o que encontra sentido também em sua narrativa, já que a personagem considera fugaz como o seu nome, relacionado com neve, e deseja ser exatamente o oposto disso. Diferente de Chie, a persona de Yukiko não possui habilidades de ataque físico, tendo o foco em magias de dano e de cura. O stat de Magia de Yukiko é muito maior do que os demais, sendo assim uma personagem que possui um alto poder e resistência mágica. Em compensação, o stat de Força da personagem é muito baixo, se comparado ao seu atributo mágico, qualificando-a assim uma personagem de pouca força, limitada a provocar o menor dano físico entre os personagens. Além de causar o maior dano e ter a maior resistência mágica do jogo, Yukiko domina diversas magias de cura, que por conta do seu alto stat Magia, tem maior capacidade de regenerar a vida do que os demais personagens que possuem as mesmas magias, dando à Yukiko a função tanto de causar muito dano mágico, como também de suporte do time, que é responsável pela manutenção dos aliados.

Yukiko possui o SP mais alto do jogo, por ser a personagem com o maior poder mágico, em compensação, possui HP um pouco menor que os demais. Apesar de ser a personagem com a menor Força do jogo, o que poderia ser um indicativo imediato da recorrência ao Mito da Fragilidade descrito por Dowling (2000), podemos pensar a configuração de Yukiko com base em uma outra lente. Em toda a sua narrativa conjunta com Chie, as duas são mostradas como opostos, tanto na paleta de cores, quanto na definição de suas personalidades. A parte mecânica do jogo também se insere nesta mesma lógica, mostrando as diferentes configurações de feminilidade de Chie e Yukiko e como elas permeiam as dimensões de um jogo digital em Persona 4. Assim, apesar de desempenhar o papel de suporte do Time de Investigação, Yukiko é a personagem do jogo que mais causa dano mágico, o que a tira do lugar comum em que ocuparia uma posição indefesa, associada ao Mito da Fragilidade.

Kanji Tatsumi é o exato oposto de Yukiko, apresentando a Força muito superior e a Magia muito inferior à média dos seus stats, o mesmo valendo para o seu HP, alto, e SP, o mais baixo do jogo. Apesar de ter habilidades do tipo elétrico, o foco de Kanji, assim como

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Chie, são as habilidades do tipo físico, por conta do seu alto valor de Força. Essa representação é coerente com a narrativa de Kanji, um personagem conhecido por se envolver em brigas com membros de gangues de Inaba e por desejar ser, sobretudo, um exemplo de masculinidade, sempre associado à força física e à não demonstração de vulnerabilidades.

Se aproximando de Chie, a função de Kanji em combate é provocar dano físico. Entretanto, diferente de Chie, que se esquiva com maior facilidade por conta da agilidade mais alta e das habilidades de refletir os golpes inimigos, Kanji leva menos dano por conta da sua resistência, seu segundo atributo mais alto. Essa configuração de Kanji mostra o papel do personagem da mesma forma que o masculino é apresentado no Mito da Fragilidade, associando o homem à força física, à resistência. Entretanto, assim como o jogo apresenta uma mulher fisicamente forte (Chie) e outra que possui os atributos mágicos elevados e magias de cura (Yukiko), outro personagem masculino ocupa um papel semelhante ao de Yukiko. Yosuke, outro membro do Time de Investigação (que não entrou na análise por não trazer, em sua narrativa, questões referentes à identidade de gênero e/ou orientação sexual), também possui especialização em magias de dano e de cura; apresentando, assim, alternativas equilibradas para os personagens de ambos os gêneros72. Apesar de apresentar essas configurações diferentes, Persona 4 ainda recorre ao lugar comum de colocar a força não somente em relação ao masculino, mas em oposição ao feminino. Isso se mostra justamente nos dois personagens mais fortes do jogo: Kanji, sempre preocupado em se mostrar como másculo, e Chie, que, apesar de mulher, não é vista como feminina. Então, apesar de um equilíbrio da função dos personagens, ainda há essa ligação entre, por exemplo, a força e a masculinidade (e a não-feminilidade), que se embasa em uma argumentação biológica, onde o gênero não encontra a sua finalidade (BUTLER, 2003), visto que a identidade de gênero de um indivíduo não possui relação de obrigatoriedade com a formatação do seu corpo.

Rise é a única personagem que não possui habilidades ofensivas, de qualquer tipo, ou participação direta no combate, atuando assim exclusivamente como suporte do Time de Investigação. Além das magias de cura que a personagem possui, restaurando a vida dos aliados ao final de cada combate, Rise, através da sua persona, consegue usar uma série de habilidades para ajudar os aliados no combate, como identificar fraquezas e as habilidades dos inimigos. Como não participa ativamente do combate, Rise é a única personagem que não possui HP ou SP. Apesar disso, seus stats são bem equilibrados, tendo a Magia como o maior

72 Usamos “ambos os gêneros” pois em Persona 4 não há, em sua narrativa, a compreensão de gênero fora do binário masculino-feminino.

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deles, visto que esse atributo está diretamente relacionado às magias de cura por ela usadas. Nesse ponto, reiteramos a importância dessa diversidade de perfis, de papéis designados às personagens femininas nas batalhas de Persona 4, em vez de enquadrá-las todas em uma mesma categoria, reduzindo-as a uma única função.

Por fim, Naoto é o único personagem, com exceção do protagonista, que pode usar magias dos tipos todo-poderoso, luz e trevas. O fato de Naoto poder usar o tipo luz e trevas pode ser pensado com base na oposição entre o masculino e o feminino. Naoto se junta ao time depois do seu verdadeiro “sexo” (que no jogo eles tratam como o gênero, tendo em vista uma relação indissociável com a formatação do corpo) ser revelado, e, conforme discutido, apesar disso, a sua expressão de gênero continua situada na posição oposta (considerando o binário masculino-feminino) do seu sexo biológico. Assim, colocar esse tipo de magia no personagem pode representar essa dualidade entre a expressão de gênero e a formatação do corpo. Pensando nessas forças opostas, também é possível pensar nas magias do tipo todo- poderoso como a união desses dois universos diametralmente opostos, representando assim essa natureza dual de Naoto em combate. Essa relação também se mostra nos stats, os mais equilibrados do jogo, tendo a Agilidade e a Magia levemente superiores à Força, Resistência e Sorte. Essa configuração torna Naoto um personagem equilibrado e versátil nas batalhas, causando uma boa quantidade de dano. Além disso, ele é agil para desviar de ataques inimigos e ser um dos primeiros a poder realizar as ações; esse equilíbrio também se repete no HP e SP.

De posse dessas informações, podemos pensar nas vantagens e desvantagens desses personagens no combate. Como Rise não participa ativamente, apenas dando suporte aos aliados, ela não será contemplada nessa parte da discussão. O sistema de natureza do dano de Persona 4 (Físico, Fogo, Gelo, Vento, Eletricidade, Luz, Trevas e Todo-Poderoso), além de caracterizar o tipo de dano, é responsável por marcar quais são as resistências e fraquezas dos personagens e inimigos, que podem ser ser neutros, fracos, fortes, bloqueados, absorvidos ou refletidos dependendo da natureza do ataque. Cada um dos personagens possui uma ou mais fraquezas específicas, que independem do tipo de magia utilizado. O primeiro fato a ser apontado é o fato de que Yukiko, que usa magias de fogo, é fraca (ou seja, leva o dobro de dano) contra magias de gelo, e resiste (leva dano reduzido) às magias de fogo. Chie, que usa magias de gelo, é fraca contra magias de fogo e resiste às de gelo. Por mais que, via de regra, os aliados não possam se atacar, é importante pontuar essa informação de que uma é fraca ao

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elemento característico da magia da outra, pois associada à quest que envolve as duas personagens, fortalece a ideia de que as personagens são complementares, e pode ser interpretado também como um indicativo do possível interesse romântico entre as duas personagens, o que não fica claro no jogo.

Já Kanji Tatsumi resiste ao elemento eletricidade, e é fraco às magias do tipo vento, característico de outro personagem que não consta na análise, Yosuke. Da mesma forma que a fraqueza, associada à narrativa, pode ser um indicativo da orientação sexual da personagem, se aliarmos essa fraqueza ao elemento vento (de Yosuke, um personagem homem), podemos associar também à construção da quest de Kanji, que possui como fator inicial o interesse romântico por Naoto, até então, tratado como um personagem masculino. Além disso, Yosuke é o personagem que, ao longo do jogo, mais traz à tona o que aconteceu durante o resgate de Kanji no Mundo da Televisão, deixando-o visivelmente irritado e constrangido. Naoto não tem nenhuma fraqueza em específico, e resiste aos ataques do tipo Luz e Trevas. Curiosamente, dos personagens que participam ativamente das batalhas, a quest de Naoto é a única que não envolve, diretamente, nenhum interesse romântico, concentrando-se bem mais as questões pessoais, individuais de Shirogane, sem ter relação direta com qualquer outro personagem do jogo.

Partindo para o último tópico dos elementos da dimensão mecânica, analisaremos as dinâmicas de batalha contra os chefes da quests. O primeiro chefe a aparecer é a sombra de Chie, cujo visual já foi apresentado previamente. Como é um dos primeiros chefes do jogo, a dinâmica da batalha é uma das mais simples deste. A sombra de Chie é fraca contra os golpes de vento, elemento característico de Yosuke. Lembrando do conceito de sombra para o jogo, isso pode representar a mágoa que Chie guarda de Yosuke por preferir Yukiko a ela (conforme explicado na seção 3.4.1). As habilidades desse inimigo são: (a) uma barreira que cria uma resistência temporária aos ataques do tipo vento, fortalecendo a sombra de Chie contra os ataques de Yosuke; e (b) e um ataque fortalecido, que a sombra escolhe um alvo para atacar, normalmente Yosuke. Tanto a resistência contra os ataques do tipo quanto a preferência de Yosuke como alvo podem ser relacionadas com o sentimento de rejeição de Chie. Ao derrubar Yosuke, a sombra de Chie usa um segundo golpe, chamado “Bottomless Envy” (Inveja sem fim, em tradução livre), que deixa o personagem atordoado, o que colabora ainda mais para essa interpretação.

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Já a batalha de Yukiko é um pouco mais complexa, por encerrar a quest do Castelo de Yukiko. Um dos primeiros elementos a ser destacado na luta é o fato da sombra invocar um inimigo chamado Charming Prince (Príncipe Encantado, em tradução livre) para defendê-la. Esse inimigo é resistente aos ataques do tipo vento (usados por Yosuke) e fraco contra os golpes de gelo (elemento de Chie). Isso pode estar relacionado ao fato de Chie ser o verdadeiro príncipe de Yukiko, e não os demais personagens, já que a narrativa de Yukiko traz a melhor amiga como uma personagem central (e vice-versa), enquanto rejeita as investidas dos seus pretendentes. O príncipe invocado pela sombra de Yukiko ainda pode curar a princesa e usar uma habilidade que deixa os seus adversários com medo, impedindo-os de atacar a sombra de Amagi. Se pensarmos na figura de Chie, que sempre amedrontava os possíveis pretendentes de Yukiko, esse príncipe desempenha esse papel, que antes era de Chie, até a princesa perceber que não seria Satonaka que a salvaria do seu terrível destino. Novamente, há a repetição da temática de Yukiko se enxergar como ser incapaz de agir por conta própria, ficando atrás de uma figura masculina para se proteger. A sombra de Yukiko alterna entre ataques físicos e ataques de fogo, com o intuito de atingir principalmente Chie, vulnerável ao ataques dessa natureza. Ela ainda pode usar uma habilidade que dá a um aliado (normalmente ao Charming Prince) resistência aos ataques de gelo, impedindo, assim, que Chie seja plenamente efetiva em batalha.

A batalha contra a sombra de Kanji é uma das mais complicadas do jogo, visto que ela conta com outros dois inimigos, Tough e Nice Guy. Tough Guy (Cara Durão, em tradução livre) é um inimigo, como o nome sugere, ofensivo, tendo todas as suas habilidades direcionadas a causar dano nos inimigos. Já Nice Guy (Cara Bonzinho, em tradução livre) possui habilidades de suporte, curando e fortalecendo a sombra de Kanji A natureza antagônica dos dois, que se manifesta não só em seu visual, mas também nos seus ataques, aparece também nas fraquezas do personagem. Tough Guy absorve (regenera vida, em vez de sofrer dano) o dano sofrido por habilidades do tipo fogo, característico de Yukiko, enquanto Nice Guy absorve o dano de tipo Gelo, típico de Chie. Relembrando a narrativa das duas personagens, Yukiko representa o feminino, o delicado, enquanto Chie representa a força. Na quest de Kanji, o personagem deseja incorporar a masculinidade por completo, ultrapassando os limites estabelecidos para o que é considerado másculo.

Absorver o dano de uma natureza oposta pode simbolizar a complementaridade desses aspectos, que não atuam, nessa batalha, como antagônicos, mas como partes de um todo. A

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sombra de Kanji possui duas habilidades peculiares, Roar of Wrath e Forbidden Murmur (Rugido de Ira e Murmúrio Proibido, respectivamente, em tradução livre). A primeira enfurece os adversários femininos (no caso da quest, Chie e Yukiko), enquanto a segunda envenena os adversários masculinos (Yu e Yosuke). Em Persona 4, quando um personagem fica enfurecido, o jogador não pode mais escolher que ações serão realizadas, causando apenas dano físico aos inimigos. O uso dessa habilidade por Kanji tem ligação com o relato do personagem sobre os comentários maldosos que ouviu das garotas ao longo de sua vida. Já o envenenamento faz com que os personagens percam uma parcela dos seus pontos de vida (HP) ao longo do tempo. Como o próprio nome indica, esse murmúrio proibido está ligado ao fato da não-abertura da sexualidade de um indivíduo por conta das prováveis violências sofridas ao se declarar abertamente uma pessoa que foge de uma cis-heterossexualidade (SEDGWICK, 1990), e que enquanto não há a libertação, essa sensação de enclausuramento consome aos poucos as forças de um indivíduo, como se Kanji projetasse a sua dor, essa repressão, nos demais homens.

A dinâmica da batalha contra a sombra de Rise possui relação com a narrativa da personagem, no que diz respeito às questões da docilidade de uma celebridade feminina. Isso se manifesta a partir das habilidades da sombra, que pode usar magias de eletricidade, vento, fogo e gelo, além de diminuir as resistências dos inimigos e causar confusão. Quando um personagem está confuso, ele se volta contra os seus aliados. Assim, por mais que a mecânica em si não esteja diretamente relacionada com as questões de feminilidade da personagem, podemos pensar nessa confusão como um efeito do choque ao conhecer a Rise verdadeira, em contraste ao que é mostrado na televisão. Entretanto, assim como no embate contra a sombra de Chie, essa é uma batalha relativamente rápida e sem muita complexidade mecânica. O mesmo vale para a batalha contra a sombra de Naoto. Apesar do alto grau de dificuldade, por ser uma das quests do final do jogo, a luta não conta com invocações ou inimigos de suporte, como nas batalhas de Yukiko e Kanji.

Entretanto, alguns aspectos das mecânicas do chefe da quest de Naoto devem ser ressaltadas. A primeira é que a sombra é resistente (ou seja, sofre menos dano) a ataques do tipo fogo e levemente vulnerável ao tipo elétrico. Se lembrarmos dos personagens cujas habilidades são características desses elementos, Yukiko e Kanji, podemos estabelecer uma relação com a narrativa de Shirogane. Naoto ser resistente a fogo, elemento associado a Yukiko, à feminilidade, está relacionado ao fato de Shirogane não se enxergar no seu lado

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feminino, tendo crescido às voltas com a admirado referências masculinas, opostas a Yukiko. Além disso, o fato de ser apenas levemente vulnerável aos golpes elétricos (elemento de Kanji, que representa essa masculinidade) pode ser em referência ao fato do único impeditivo para que Naoto desempenhe plenamente a sua função de detetive é a formatação do seu corpo, o “sexo biológico”. Entretanto, isso não chega a ser uma fraqueza em sua plenitude (ou seja, Naoto sofre um dano levemente maior, mas não o dobro de dano quando é atingido por golpes elétricos), por conseguir esconder bem essa informação ao ganhar reconhecimento em sua profissão. Além disso, a sua sombra, assim como a de Rise, pode usar golpes dos elementos fogo, gelo, eletricidade e vento, além de ataques físicos e habilidades de aumento de aumento de ataque e barreiras que devolvem os ataques sofridos. Essas habilidades reforçam o caráter versátil do personagem, justamente por ocupar esses dois lugares distintos, a masculinidade pela sua atuação, pela sua profissão e expressão de gênero, e a feminilidade, levando em consideração a finalidade biológica do gênero.

Terminadas as análises, podemos seguir para as considerações finais do trabalho, onde podemos sintetizar as principais conclusões feitas ao longo dos capítulos no entendimento de como a identidade de gênero e orientação sexual dos personagens de Persona 4 são construídas com base nos elementos mecânicos, estéticos e narrativos de um jogo digital.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: RECOMPENSAS DA QUEST

Escrever sobre Persona 4 foi um tanto quanto desafiador por ser uma obra tão querida e tão importante para a minha trajetória. Debruçar-me sobre uma obra tão extensa, totalizando mais de 70 horas de jogo, fora as consultas pontuais e as gravações de determinadas partes da gameplay, modificou também minha relação com a obra. O processo de análise tornou visível diversos problemas em relação ao tratamento dado à identidade de gênero e à orientação sexual dos personagens que, possivelmente, hoje atrapalhem a fruição. Ao mesmo tempo, poder investigar o uso dos recursos de um jogo digital, de ver como estes são aplicados e como estão relacionados aos personagens, me faz enxergar o grande potencial que o entendimento desses elementos tem. O uso desses recursos permite que, cada vez mais, seja trazida uma maior complexidade dos aspectos individuais dos personagens, que não residam em apenas uma dessas dimensões, seja ela estética, narrativa, mecânica ou tecnológica, mas no jogo digital como um todo.

Como um RPG (Role-Playing Game, ou Jogo de Interpretação de Papéis, em tradução livre), Persona 4 é um jogo digital que demanda um pensamento estratégico do que uma rápida resposta aos comandos mostrados na tela. Esse tipo de jogo valoriza o raciocínio lógico para a tomada de decisões, e não os reflexos rápidos. Por conta do foco extensivo na narrativa, característico desse tipo de videogame, a trama do jogo está organizada em quests, que funcionam como episódios de jogo. Cada uma dessas missões representa uma etapa importante para a conclusão do jogo, podendo ser entendidas como partes-chave para a compreensão de Persona 4 como um todo.

Ao considerarmos o uso desses recursos para a construção da identidade de gênero e orientação sexual dos personagens, podemos concluir que Persona 4 utiliza amplamente tais recursos, sendo possível fazer as conexões entre esses elementos tendo por base o que é fornecido na obra, como as quests individuais, os diálogos, o visual dos personagens e as estratégias de combate. O amplo uso desses recursos, no entanto, não implica em uma precisão ou qualidade dos assuntos abordados.

Por mais que os elementos contidos em apenas uma das dimensões de um jogo digital já formem uma extensa base para a análise, entender como esses recursos estão integrados dentro de uma mesma produção audiovisual nos ajuda a enxergar as especificidades desse tipo

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de mídia para a construção do seu universo e a estruturação de sua narrativa, que não se limita apenas ao que foi analisado neste trabalho.

Partir de uma divisão em camadas, recorrendo ao modelo tetrádico de Schell (2008) para categorizar os recursos, e para estudar como são construídas a identidade de gênero e orientação sexual dos personagens de Persona 4 nos permitiu observar os elementos que compõem cada uma dessas dimensões de modo mais minucioso. Uma análise dos elementos que compõem a dimensão narrativa, principalmente em jogos cujo enredo tem muita relevância, ajuda a nortear o processo analítico. Como Persona 4 possui uma história recursiva73, a seleção de recortes do enredo que continham os eventos obrigatórios do jogo permitiu uma organização do movimento analítico, possibilitando a identificação de elementos importantes para o desenvolvimento das questões referentes à identidade de gênero e/ou orientação sexual de cada um dos personagens.

A análise dos diálogos do jogo, muito presentes no gameplay, nos possibilitou entender os sentimentos dos personagens, não só para com eles mesmos, mas para com os outros personagens. A partir desses diálogos, pudemos captar, por exemplo, os sentimentos confusos de Kanji por Naoto, a dubiedade entre amizade e interesse romântico entre Yukiko e Chie, a insatisfação de Rise com a sua carreira e a disforia de Naoto acerca do seu gênero. Entendemos também como estes personagens estão situados e são enxergados dentro do universo de Persona 4. Kanji e Chie como amedrontadores, Yukiko e Rise como figuras femininas e belas, e Naoto despertando a curiosidade dos demais colegas. Por conta da estrutura da obra em questão, se torna observável o ponto de partida para a quest de cada um dos personagens e como esse processo os altera. Essa dimensão narrativa permitiu enxergar Chie, Yukiko, Kanji, Rise e Naoto como personagens suscetíveis aos movimentos da trama, sendo modificados por esta.

Entretanto, conforme problematizamos anteriormente essa classificação, nem sempre um personagem redondo é sinônimo de qualidade. Ao se tratar de questões referentes ao gênero e à orientação sexual dos personagens, é importante entender as bases sobre as quais esses conteúdos são construídos em jogo. Personagens como Bridget, de Guilty Gear, e Flea, de Chrono Trigger, considerados planos, têm a sua identidade de gênero construída sobre

73 Narrativa que possui acontecimentos-chave alternados com percursos narrativos ramificados (ADAMS, 2010). Esse tipo de jogo dá maior liberdade ao jogador para determinar certos acontecimentos durante o jogo, mas sempre recorre a eventos obrigatórios para guiar e dar continuidade ao enredo.

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uma base, que não recorre à estereótipos ou ideais preconceituosos para a sua formulação. Da mesma forma, os personagens de Persona 4, redondos por definição, apesar de estarem suscetíveis aos movimentos da trama, por vezes recorrem, em sua formulação, a ideias imprecisas sobre as questões relacionadas à identidade de gênero e orientação sexual dos personagens.

Um exemplo disso é Kanji, cuja narrativa se torna confusa, justamente por conta dessa fragilidade ao tratar da orientação sexual do personagem. Partindo de diversos argumentos, que passam por homossexualidade reprimida, misoginia e uma exaltação de um modelo de masculinidade agressivo e distante emocionalmente, a quest de Kanji termina sendo resumida a um medo de ser rejeitado, não explorando ou se comprometendo com a sexualidade do personagem.

O mesmo acontece com Naoto. O jogo inicia a sua quest com base em uma narrativa sobre identidade e papéis de gênero, para, por fim, voltar à argumentação de que o sexo biológico é determinante do gênero, além de furtar ao personagem a chance de ter o seu próprio entendimento, sendo apontado pelos outros personagens do jogo como mulher, depois de feita a revelação da sua forma física, do seu sexo biológico. Talvez por isso, tenha havido uma resistência em nos referirmos ao personagem no feminino, pensando em sua narrativa e nessa ausência de uma percepção clara do personagem em relação à sua identidade de gênero. Ao tratar questões relacionadas à feminilidade, já transparece um maior tato [por parte dos desenvolvedores do jogo], contanto que não esbarre em questões de uma sexualidade que não seja a heterossexual. No caso de Yukiko e Chie, por mais que seja discutida importância da independência de uma mulher e de encontrar o seu valor em outros aspectos que não apenas a sua aparência, quando as questões recaem sobre um possível interesse romântico entre as personagens, o comprometimento com essa possibilidade, com essa interpretação, volta a ser fugidio, assim como na narrativa de Kanji.

A análise dos elementos estéticos e mecânicos do jogo fortalece essas interpretações que, se dependessem apenas da dimensão narrativa, talvez não encontrassem tanta sustentação. Para a análise desses elementos foi necessário distinguir o que são atributos cosméticos e atributos funcionais. Enquanto os primeiros interferem apenas na dimensão estética do jogo, mas não modificam o jogo a nível de gameplay, os últimos modificam diretamente as atividades que podem ser desempenhadas no jogo, estando relacionados principalmente com a dimensão mecânica do jogo.

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A exemplo da relação de Chie e Yukiko, quando analisamos o sistema de vantagens e desvantagens, elementos mecânicos do jogo, vemos que as personagens possuem vantagem uma sobre a outra na hora do combate. O mesmo vale para Kanji, que possui fraqueza a golpes do tipo vento, que só podem ser desferidos por personagens do gênero masculino. Isoladas, essas informações contidas na dimensão narrativa e mecânica podem funcionar como evidências para entendermos a orientação sexual dos personagens. Combinadas, elas se fortalecem e se confirmam, encontram correspondência uma na outra.

A dinâmica da batalha final da quest também nos ajuda a entender os sentimentos do personagem. A sombra de Yukiko, por exemplo, é protegida por uma figura masculina, que usa as suas habilidades para regenerar a vida da princesa. Já a sombra de Rise pode usar habilidades para confundir os seus adversários. Esses elementos, que tratam mais diretamente do funcionamento do jogo, também podem ser utilizados para a construção dos personagens, fortalecendo fatos ou ideias apresentadas na narrativa, em vez de limitar a sua atuação apenas a aspectos funcionais de um jogo digital.

A dimensão estética de um jogo, a primeira com a qual o jogador entra em contato, nos permite, de pronto, fazer uma série de inferências, por não demandar um contato prolongado com a obra. Limitando-nos a observar apenas os aspectos visuais de Persona 4, poderíamos estabelecer uma série de relações entre o que é mostrado no jogo e fatores exógenos, a verossimilhança externa apontada por Isbister (2006). Poderíamos pensar na feminilidade de Yukiko e Rise com base na recorrência a elementos como os longos cabelos ou os traços delicados apontados por estudos como os de Wolf (2019) e Fonseca (2013). O mesmo vale para Naoto e Kanji. Com base em seu visual, isolado, seria possível a interpretação de Naoto como uma personagem feminina (pela semelhança dos traços faciais das demais mulheres do jogo) que se veste com roupas masculinas. Kanji poderia ser interpretado como um personagem punk, pela recorrência a elementos como caveiras, correntes e piercings, tanto em seu figurino quanto em sua persona. Entretanto, o entendimento dos personagens, por completo, só se dá quando aliamos essa análise às demais dimensões de um jogo digital.

Pensar o jogo a partir das dimensões propostas por Schell (2008) foi, e é, fundamental para o entendimento do jogo digital como uma obra complexa, que integra diversos elementos que estão entrelaçados. Como o próprio autor afirma, todas as dimensões são igualmente importantes para a composição de um jogo digital, por mais que algumas abordagens teóricas

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e práticas tendam a supervalorizar uma dimensão, em detrimento das demais. Trata-se de um olhar interno à estrutura do jogo, que não se limita a um olhar externo, cuja abordagem se apoia em aspectos da linguagem de outros meios, como televisão, cinema ou literatura.

Como mídia, o jogo digital possui as suas particularidades. A principal delas é a sua interatividade inerente ao ato de jogar. Ao jogador é dada a função de dar andamento aos eventos do jogo. Johnson (2005) afirma que, em estudos iniciais feitos sobre videogames, acreditava-se que essa interatividade só era possível por conta da supressão da narrativa; que a interferência direta do jogador só poderia se realizar plenamente caso o enredo do jogo não fosse complexo, como o de um filme ou série de televisão. Jogos como Persona 4, que possuem uma trama extensa e bem definida, mostram a riqueza de conteúdo que um jogo pode conter e que vai além dos gráficos chamativos e de sua jogabilidade frenética. E, para incorporar uma longa narrativa, não foi necessária a supressão de características específicas dos jogos digitais, ou vice-versa.

Da mesma forma, quando um jogo se propõe a inserir um personagem que enfrente questões relacionadas à sua sexualidade ou à sua identidade de gênero, é importante entender em que elementos, em que dimensões do jogo, essa informação pode, ou vai, encontrar sentido. Longe de dizer que a abordagem de gênero em jogos digitais sempre tem de ser holística. Pelo contrário, conhecer o jogo digital em sua complexidade torna possível uma melhor aplicação, um melhor entendimento, de como (ou se) a orientação sexual ou a identidade de gênero de um personagem vai modificar a experiência de jogo, e como ela se manifestará.

Quando analisamos, por exemplo, personagens como Zhang He, Amane Nishiki e Kuja (na seção 4.1), problematizamos a representação queer tão somente a partir dos aspectos visuais desses personagens. Nesses casos, a estética é a única dimensão em que, nos seus jogos de origem, essas questões se manifestam. Em outros jogos, como Overwatch, também já citado, a orientação sexual aparece apenas de maneira externa ao jogo, visto que o jogo em si não possui, em sua ideação, espaço para o desenvolvimento dessas questões. Da mesma forma, em Persona 4, a dimensão tecnológica não é considerada para a análise por não ter relação com a identidade de gênero ou a orientação sexual dos personagens. Além disso, nem sempre é necessário que todas as categorias sejam contempladas na análise de todos os personagens de uma mesma obra. Uma das personagens analisadas, Rise, acaba gerando uma

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discussão menos aprofundada, quando analisamos os elementos mecânicos, por não ter participação ativa nas batalhas contra os inimigos do jogo.

Como uma pessoa queer, enxergo as falhas de Persona 4 no tratamento de diversas questões, como a identidade de gênero de Naoto e a homossexualidade de Kanji. É um tanto amargo, como estudioso, ver que o eleito Melhor Jogo de 2008 pelo Metacritic, também integra preconceito em diversos pontos de sua narrativa. Dentre eles, a associação direta entre a homossexualidade masculina e a misoginia, e a recorrência à biologia para definir o [sexo e o] gênero dos personagens, desconsiderando a identificação de um indivíduo para além da formatação do seu corpo. Essa abordagem imprecisa (e preconceituosa) se mostra presente não somente na dimensão narrativa, mas também são reafirmadas nas dimensões mecânica e estética do jogo, integrando esses ideais também nos visuais dos personagens e nos combates contra os inimigos. Tais aspectos parecem ter sido minimizados e/ou ignorados na avaliação, embora algumas matérias, como as da Vice e da GameSpot (citadas na seção 2.1), discordem fortemente desse tratamento às questões de gênero.

Nesse percurso metodológico, muitas categorias de análise surgiram do próprio jogo. Por mais que alguns elementos possam se repetir para a análise de outras obras, como os diálogos, a expressão de gênero dos personagens e os atributos, outros elementos são específicos de Persona 4, como a carta de tarô associada ao personagem, a sombra e a persona. Pensar a divisão de um jogo digital a partir das dimensões nos permitiu uma maior maleabilidade para a definição das categorias que contemplam os elementos encontrados em Persona 4 pertencentes às dimensões que nos propusemos a analisar.

Tendo noção da complexidade dos jogos digitais, gostaríamos também de sugerir outros aspectos que podem ser desenvolvidos para estudos na área. A exemplo da presente dissertação, muitos elementos poderiam ser incorporados à análise, como as vozes dos personagens, a trilha sonora, o gestual, a interface do jogo, enfim, uma série de outros elementos (não só) estéticos que poderiam contribuir, ainda mais, para a compreensão dessas construções no jogo em questão.

Por termos valorizado uma abordagem que concentra os esforços na análise da obra em questão, pudemos entender como é construída a identidade de gênero e a orientação sexual dos personagens de Persona 4 com base nos elementos estéticos, narrativos e mecânicos de um jogo digital. No método de Petry et al. (2013), contudo, é proposto, ainda, um terceiro

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pilar para o estudo dos jogos digitais: observar o jogador. Essa etapa não foi contemplada no presente trabalho, por fugir ao escopo que delimitamos para a análise. Essa perspectiva projeta um outro olhar (ou diversos outros olhares) sobre a mesma obra, enriquecendo ainda mais o movimento analítico. Observar o jogador permite, ainda, que confrontemos a nossa análise com a percepção do público, adicionando novos elementos que, por conta das diferentes vivências, passam despercebidos quando focamos a análise apenas na obra. Como os jogos digitais, interativos por sua natureza, colocam o jogador como protagonista de suas narrativas, cremos que estudar a relação entre o jogo e quem o joga pode expandir a análise. Compreendendo não só uso dos diferentes recursos de um videogame para a construção de personagens e narrativas, mas também como estes são percebidos por quem joga.

Por fim, outra possibilidade para enriquecer a análise é a de comparação entre Persona 4 e a animação baseada no jogo (Persona 4: The Animation), buscando compreender como é feita a tradução entre as linguagens de um jogo digital e de uma série televisiva animada. No caso do escopo do presente trabalho, poderia ser feita uma comparação entre a construção da identidade de gênero e orientação sexual dos mesmos personagens nas duas obras, entretanto esse percurso analítico poderia se estender para os mais diversos conteúdos, não estando limitado às questões de gênero. Essa abordagem permite, ainda, uma extensão, que observe a relação do público com a animação e o jogo Persona 4, buscando entender como cada uma das obras é percebida pelos jogadores e espectadores.

Assim, trilhamos um caminho que nos permite entender não só as especificidades técnicas de um jogo digital, a partir de um olhar interno, mas explorar como determinado conteúdo (no caso da presente dissertação, identidade de gênero e orientação sexual de personagens) pode ser construído a partir dos recursos deste tipo de mídia. Assim, apresentamos uma maneira que os jogos digitais podem ser estudados, cientes de que esta não é a única possibilidade frente de análise e que, por conta da sua origem recente, esta mídia e as narrativas dos jogos digitais estão em constante processo de transformação.

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