A política educacional do governo Itamar Franco (1992-1995) e a questão da inclusão

CAIO AUGUSTO TOLEDO PADILHA *

Resumo Este artigo analisa o período de governo do presidente Itamar Franco (1992- 1995), com vistas a identificar sua atuação no campo educacional, mais precisamente no que se refere à inclusão da pessoa com deficiência no sistema educacional comum. Em função disso, desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa, voltada à análise de conteúdo de fontes primárias (documentos nacionais) e fontes secundárias (produções científicas) que permitiu confirmar a hipótese de que, mesmo em curto espaço de tempo, e desafiado por uma sucessão de problemas políticos, econômicos e sociais, a administração reinseriu a educação ao cerne da agenda governamental, mas não conseguiu avançar em favor da construção de um sistema educacional inclusivo. Palavras-chave : História da Educação; História das Políticas Educacionais; Governo Itamar Franco (1992-1995) Abstract This article analysis the government period of President Itamar Franco, from 1992 to 1995, to identify its actions in the educational field, precisely in which regards to the inclusion of disabled people in the common educational system. For this purpose, a qualitative research was developed, focused on content analysis of primary sources (national documents) and secondary sources (scientific production) which allowed to confirm the hypothesis that, even in short time, the administration reinserted the educational matters as the heart of government agenda, despite political, economic and social turbulence of its time, although developing an inclusive educational system was not achieved. Key words: History of Education; History of Educational Policy; Itamar Franco Government (1992-1995).

* CAIO AUGUSTO TOLEDO PADILHA é Pedagogo, Cientista Político e doutorando em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (UNICAMP).

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Itamar Franco (1930-2011) Introdução a necessidade do aparelho estatal Neste artigo tem-se por objetivo promover a escola pública, laica, analisar as ações do governo Itamar gratuita, universal com ensino de Franco no campo educacional, com qualidade, transdisciplinar; professores vistas a identificar, mais valorizados, respeitados e em formação especificamente, quais foram as contínua; com espaço para a arte, a medidas tomadas por essa criticidade, e a criatividade; que administração para promover a inclusão valorize o direito à igualdade na da pessoa com deficiência no sistema diferença, como afirma Mantoan (2007); e assegure as condições de educacional comum. acesso e permanência de todos os A opção pela análise das políticas indivíduos em seu interior, tal qual públicas do período delimitado se dá em determina a legislação. Em função função do entendimento destas como o disso, é a educação inclusiva uma “Estado em Ação” (JOBERT e concepção pedagógica que desafia o MULLER, 1987), através de políticas, tradicionalismo e a Educação Especial, programas e ações destinadas à pois não mais aceita a inserção do consagração de demandas sociais. A alunado em classes e instituições inclusão, defendida pelos movimentos especiais, na maioria das vezes envolvendo indivíduos (e suas famílias) ofertadas pela iniciativa privada. historicamente alijados das escolas comuns em função da deficiência, é, Essa análise é de caráter histórico – está sem dúvida, uma dessas demandas, e inserida no eixo teórico “história das depende – necessariamente – das políticas educacionais – e, portanto, não intervenções estatais para efetivar-se. é desinteressada, pois, como atenta Saviani (2010, p. 04), “o que provoca o Trata-se de uma concepção que se pauta impulso investigativo é a necessidade no direto de todos à educação e rompe de responder a alguma questão que nos com a dicotomia “opressor-oprimido”, interpela na realidade presente”, de tal denunciada por Paulo Freire (2013). Daí forma que nos provoca a compreender a

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“própria consciência da historicidade A chegada de Itamar Franco ao humana, isto é, a percepção de que o poder: um novo estilo de governar presente se enraíza no passado e se Itamar Franco chegou ao poder depois projeta no futuro”. Dessa maneira, de uma carreira construída, durante boa empreendi uma pesquisa de cunho parte, nas fileiras oposicionistas. qualitativo, voltada à análise de Pertenceu ao MDB (Movimento conteúdo de fontes primárias Democrático Brasileiro), pelo qual foi (documentos nacionais produzidos na prefeito de , cidade do esfera governamental por diferentes interior mineiro, por dois mandatos; e, órgãos), que possibilitaram a em 1974, chegou ao Senado Federal, e identificação daquilo que foi formulado logo se destacou como oposicionista, e implementado pelo governo Itamar defendendo, sobretudo, posições Franco como política educacional, e nacionalistas. Não tardou, portanto, a fontes secundárias (produções reeleger-se e ser cotado a disputar o científicas de diferentes áreas do governo estadual, fato que veio a conhecimento sobre as temáticas acontecer, em 1986, por outro partido, o concernentes ao objeto desta pesquisa), PL (Partido Liberal), ocasião em que foi que me permitiram ter acesso a derrotado. Entretanto, em 1989, às diferentes esforços analíticos. Os dados vésperas de terminar o segundo coletados foram compilados e mandato como senador, foi convidado a analisados criticamente, de acordo com compor a chapa presidencial de as concepções supracitadas de política Fernando Collor, do inexpressivo PRN pública, educação e inclusão, cujos (Partido da Reconstrução Nacional). resultados são apresentados neste artigo, Sem o mesmo prestígio de outrora e dividido em quatro seções. Na primeira, com chances de derrota no pleito para o recontextualizo a trajetória do político Senado, no ano seguinte, Itamar aceitou Itamar, aspectos da crise político- o convite e tornou-se candidato à Vice- institucional que o levou à Presidência e Presidência da República. suas medidas nos campos político, econômico e social, indispensáveis para A campanha ocorreu de forma a compreensão das ações na área conturbada. Itamar não fora a primeira educacional. Na segunda, volto-me, opção para o posto de vice. Além disso, especificamente para a educação, à medida que as posições políticas de identificando as intervenções, exitosas ambos os candidatos eram opostas – ao ou não, do MEC nos diferentes níveis passo que Itamar era um defensor do de ensino e modalidades educacionais. nacional-estatismo, Collor era um Na terceira, concentro-me na atuação entusiasta do neoliberalismo – suas governamental em prol da educação da imagens perante a opinião pública pessoa com deficiência, de modo a também eram recebidas de formas observar as ações que corroboraram distintas pelo eleitorado: o primeiro era, para que se mantivesse a histórica notoriamente, um homem simples, lógica excludente em detrimento da reservado, enquanto o segundo inclusão. Por fim, na quarta e última esforçava-se em tornar público cada ato seção, apresento minha conclusão. de uma vida luxuosa. No entanto, a improvável aliança,

apesar das tentativas de renúncia de Itamar e dos inúmeros confrontos no decorrer da campanha eleitoral,

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alicerçada por uma forte estratégia de sociedade à insatisfação. Todavia, esse marketing político, possibilitou que cenário não era característico somente ambos chegassem ao segundo turno das do Brasil, mas dos países latino- eleições presidenciais e se saíssem americanos de modo geral, que também vitoriosos frente a Luiz Inácio Lula da enfrentavam as mesmas adversidades, Silva, o então candidato do PT (Partido enquanto as grandes potências se viam dos Trabalhadores). diante de um amplo processo de reestruturação política, econômica, A administração Collor resultou numa cultural e social, resultante da sucessão de catástrofes em nome da globalização e da propagação do ideário proposição de uma agenda neoliberal: neoliberal. Daí, a pressão externa planos econômicos despropositados, advinda de organismos internacionais destruição dos direitos sociais, péssimo como o FMI (Fundo Monetário relacionamento com o Congresso Internacional) e o Banco Mundial para Nacional e recrudescimento da que os países em crise se adequassem corrupção. A consequência foi um rapidamente às diretrizes neoliberais era inédito (CARVALHO, cada vez mais incisiva. 2014) e a ascensão de Itamar ao poder. A partir de então, o novo presidente, O Brasil já vinha se adequando, “carente de apoio, teve o bom senso de paulatinamente, às novas normas do propor um governo de união nacional, sistema capitalista de produção desde com todas as forças de expressão meados da década de 1980. Durante o nacional” (REIS, 2014, p. 116), governo Collor é que o processo foi reunindo um amplo espectro de forças intensificado devido à reforma do políticas que iam desde o PMDB ao Estado, que previa o abandono das PPS (Partido Popular Socialista), antigo funções estatais reguladoras e PCB (Partido Comunista Brasileiro), assistencialistas, a extinção de órgãos passando pelo PFL (Partido da Frente públicos, a privatização de empresas Liberal) e o PSDB (Partido da Social estatais, o corte de gastos sociais e Democracia Brasileira). Permaneceu severas restrições à intervenção na distante apenas o PT, “por considerar economia e no mercado de trabalho. Por obscuros o programa e a política de conseguinte, o Estado de Bem-Estar- alianças de Itamar Franco” (REIS, Social, sequer instaurado integralmente 2014, p. 116). no país, seria completamente abandonado, priorizando-se na agenda Essa postura permitiu ao governo governamental a área econômica em compartilhar as responsabilidades de detrimento da social. conduzir um país que não enfrentava somente a instabilidade no cenário Apesar do perfil nacional-estatista do político-institucional, mas uma situação presidente, o novo governo não caótica em termos socioeconômicos. conseguiu resistir às tendências Inflação, alto endividamento interno e neoliberais em andamento. O que se viu externo, descontrole das contas foi uma tentativa de conciliar essas públicas, desemprego, baixa medidas com avanços na área social. competitividade econômica, péssima Para tanto, mantinha-se o compromisso qualidade dos serviços públicos e com a implementação de medidas descumprimento dos direitos sociais descentralizadoras, desburocratizantes e eram apenas alguns dos fatores que desregulamentadoras; o levavam os diferentes setores da encaminhamento do programa de

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privatizações das empresas estatais ficavam desajustados, provocando como meio de redução do déficit nova rodada de elevações e assim público; e a transferência de atribuições, por diante. Desde que a quantidade no campo social – através da de mercadorias colocadas à venda formulação de convênios e parcerias – fosse igual à quantidade desejada pelos compradores, a inflação aos estados e municípios (FRANCO, inercial poderia ser reduzida pela 1994). Contudo, esse conjunto de sincronização dos ajustes dos medidas, ainda que correspondesse ao preços e demais valores: se todos que fora preconizado pelos organismos estivessem mutuamente ajustados, multilaterais, não fora suficiente para não haveria motivo para alterá-los. solucionar o maior problema do governo: a grave crise econômica que Dado o diagnóstico, o plano previa o acometia o país desde o final dos anos combate à inflação por meio de medidas 1970. como o ajuste das contas públicas, (facilitado pela criação do Fundo Social O problemático quadro fazia com que de Emergência (FSE), responsável por ministros da Fazenda se revezassem no permitir a desvinculação de parte da cargo em curtos espaços de tempo por receita oriunda de impostos e não encontrarem soluções para os contribuições federais para facilitar a problemas – somente durante os ação estatal em determinar a alocação mandatos de Sarney, Collor e Itamar de recursos para diferentes áreas passaram doze titulares pela pasta. conforme as necessidades Entretanto, após a exoneração de Eliseu identificadas); a elevação da taxa de Rezende, o presidente Itamar Franco juros; e, por fim, a medida mais radical: optou pela nomeação de Fernando a criação de uma nova moeda. Saía de Henrique Cardoso, então ministro das circulação o Cruzeiro e entrava a Relações Exteriores, como substituto, e Unidade Real de Valor, unidade este, com sua equipe, se incumbiu de monetária transitória, que logo seria elaborar um novo plano com vistas a substituída pelo Real. acertar o compasso da política econômica. Houve sucesso inicial do Plano Real. Os A solução encontrada pelo novo preços logo baixaram, sobretudo pela ministro, em meio às altas expectativas alta concorrência industrial imposta pela do próprio governo e dos diferentes abertura de mercado, todavia houve setores da sociedade, foi a elaboração elevação do custo de vida e do de um novo plano econômico, o Plano desemprego, sendo este, um fenômeno Real, que, segundo Singer (2014, p. causado especialmente pela queda da 221), partia do seguinte diagnóstico: produção industrial e pelo aumento da especulação financeira (SINGER, Passou-se a considerar que a 2014). Os grandes capitalistas passaram inflação era causada pela a ver o Brasil como uma opção assincronia do incessante interessante para seus investimentos em reajustamento de preços, salários, um ambiente econômico globalizado. aluguéis e demais valores Apesar de seus efeitos em longo prazo, contratuais: a cada momento, um certo número de preços subia para a primeira impressão exitosa do Real se ajustar aos custos elevados de deu a entender à maior parte da antes (grifo do autor). Tão logo se população que o país encontrara, completava a rodada de finalmente, o caminho da estabilização reajustamentos, outros preços econômica e poderia, então, investir de

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forma mais efetiva no combate aos do arranjo político determinante para problemas sociais. Foi o que ocorreu, a promover a governabilidade. partir de então, com a adoção de medidas que tornariam complementares O foco da atuação governamental na as políticas econômica e social área social, definido logo no início do (FRANCO, 1993, p. 27). mandato, foi o combate à miséria. Em função disso, o governo determinou a Apesar da diferente visão conjuntural, o união de esforços por parte de todos os governo Itamar não teve tempo e órgãos públicos federais para atender a recursos econômicos suficientes para população mais pobre, através de uma empreender políticas sociais formuladas agenda que considerava a família, a por técnicos mais próximos ao criança e o adolescente como “grupos presidente e à sua base política. Daí a sociais prioritários” para as ações opção pela promoção de alterações estatais e incluía diretrizes específicas pontuais 1 – pautadas na austeridade – , nos programas governamentais para as áreas de saúde; previdência; elaborados pelo antecessor, assistência social; habitação; modificando apenas certos conceitos e saneamento; alimentação e nutrição; e a práticas pouco exitosas. O diferencial educação (FRANCO, 1993). estava na postura de Itamar que, ao O combate à fome tornou-se prioritário. contrário de Collor, compartilhava o Desde o momento da posse, presidente poder e a responsabilidade sobre esses e equipe de governo abriram diálogo programas com a coalizão que o com movimentos sociais, sindicatos, apoiava, fato que se traduziu na associações de classe, partidos políticos constituição de gestões mais e setores da Igreja Católica para, participativas e democráticas (CASTRO conjuntamente, formularem uma agenda e MENEZES, 2003) e no fortalecimento de ações emergenciais aos desnutridos. Dessas iniciativas surgiram a 1 Embora Itamar Franco e sua equipe tenham aproximação com o movimento Ação optado por alterações mais pontuais, é preciso da contra a Fome, a Miséria e destacar os esforços governamentais no pela Vida, liderado pelo sociólogo encaminhamento da Revisão Constitucional de 1993 e, por conseguinte, na realização do Herbert de Souza, e a adesão às teses Plebiscito para a escolha sobre as formas e defendidas pelo PT em sua Política sistemas de governo do país. Nessa direção, por Nacional de Segurança Alimentar , ocasião da Revisão “foram admitidas e aditadas criada pelo “governo paralelo” liderado à Constituição Federal de 1988 as propostas: a) por Lula em função da crise política que criação do Fundo Social de Emergência (FSE); b) a permissão de dupla nacionalidade; c) novas então assolava o país. Por conseguinte, condições de elegibilidade aos candidatos, o governo Itamar deu andamento à introduzindo as exigências de ‘probidade criação do CONSEA (Conselho administrativa’ e ‘moralidade para o exercício Nacional de Segurança Alimentar), do mandato, considerada a vida pregressa do órgão instituído com a finalidade de candidato’” (VIEIRA, 2015, p. 534). Ademais, “foram inseridas na Constituição as propostas: responder pela realização de ações de d) permissão ao Congresso para convocar combate à miséria e, durante os dois titulares de órgãos subordinados à presidência, anos de mandato, esse conselho definiu pois anteriormente só ministro podia prestar seis programas direcionados ao combate esclarecimentos aos congressistas; e) suspensão à fome — alimentação e nutrição da renúncia de parlamentar submetido a investigação que possa causar a perda do infantil; alimentação do trabalhador; mandato; f) redução do mandato presidencial de reforma agrária; geração de emprego e 5 para 4 anos [...]” (idem). renda; distribuição emergencial de

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alimentos e merenda escolar (PAIVA, pesquisa, o FNDE também o foi 2, e o 2009). Censo Educacional, importante instrumento de diagnóstico, foi Na esteira das ações de combate à fome, retomado em todo o país a partir de o então governo também se dedicou a 1993 (FRANCO, 1994). “aplicar e montar a legislação Outra importante alteração na estrutura complementar à Constituição Federal, administrativa consistiu na que é formada por um conjunto de Leis transformação do Conselho Federal de Orgânicas – da Previdência Social, da Educação em Conselho Nacional de Assistência Social, da Função Social da Educação, fato que conferiria maior Propriedade Fundiária” (CASTRO e autonomia ao MEC, sobretudo no que DELGADO, 2004, p. 148); diz respeito à gestão do Ensino implementar a nova legislação da Superior, e reverteria o histórico Previdência Rural, ampliando o número processo de lobbies envolvendo a de beneficiários; e comprometer-se com representação das escolas particulares as discussões acerca da elaboração de “visando a influenciar as decisões no reformas da educação básica, atendendo sentido do favorecimento de seus tanto a pressões internas quanto interesses” (SAVIANI, 2011, p. 53). externas. Tão logo se elaborou a reforma administrativa, o ministro, de acordo A educação no governo Itamar com Cunha (1997, p. 30), “se Franco manifestou desde logo favorável ao apoio ao setor público de ensino, apesar A primeira ação do presidente na área de desenvolver um generoso programa educacional foi a promoção da troca de de compra de vagas em escolas de 1º comando do Ministério. Foi nomeado grau de uma rede nacional Murílio Hingel, professor da comunitária”, ocupando a maior parte Universidade Federal de Juiz de Fora, do tempo de sua gestão com a homem de confiança do presidente, que elaboração do Plano Nacional de fora secretário municipal de Educação Educação para Todos , principal fruto nos governos de Itamar à frente da da participação do país, em 1990, na prefeitura desta cidade. Tratava-se, Conferência de Educação para Todos portanto, de algo incomum: a nomeação realizada na Tailândia, pela UNESCO e de um quadro técnico em substituição a pela UNICEF com apoio do Banco um quadro político no MEC, visto que Mundial, e da Declaração de Nova raramente os ministros possuem Délhi sobre Educação para Todos, ligações estreitas com a área. assinada pelos nove países mais populosos do mundo – dentre os quais, Na sequência, deu-se início a uma o Brasil –, que reiterava, entre outras reforma administrativa no MEC, por coisas, as dificuldades dos países em força da Lei n. 8.490, de 19 de cumprir as metas traçadas em solo novembro de 1992, que incorporou ao Ministério da Educação a Secretaria dos Desportos e a Secretaria de Projetos 2 Foi o que se viu nas Resoluções FNDE nº 02 e Educacionais Especiais da Presidência nº 08 de 1993, além do decreto que eliminou o “trânsito dos recursos do Salário-Educação no Da República (FRANCO, 1993). Tesouro Nacional, representando um ganho real Ademais, o INEP foi reestruturado, expressivo para os Estados e Municípios” intensificando suas atividades de (FRANCO, 1994, p. 109).

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tailandês devido, sobretudo, ao gerou o Compromisso Nacional de comprometimento de suas finanças com Educação para Todos – assinado por a dívida externa (ORGANIZAÇÃO representantes das três esferas DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A governamentais, da UNESCO e da EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A UNICEF – responsável por, dentre CULTURA, 1993) outras coisas, elevar a qualidade na prestação dos serviços educacionais; Apesar dos apelos dos países em institucionalizar políticas de médio e desenvolvimento, inaugurava-se, longo prazo; assegurar eficiência na naquele momento, segundo Pinto (2002, aplicação de recursos; atribuir p. 110), a política “patrocinada por esse autonomia organizativa e didático- banco, de priorização sistemática do pedagógica às unidades escolares; e ensino fundamental, em detrimento dos valorizar o magistério. Por sua vez, o demais níveis de ensino, e de defesa da texto final do “Plano Decenal de relativização do dever do Estado com a Educação para Todos” se incumbiria, educação”, cujos efeitos danosos seriam em suas metas globais, de criar observados, sobremaneira, no governo condições para a implementação dessas Fernando Henrique Cardoso (1995- medidas no decorrer da década 1993- 2003). 2003. Todavia, ainda que a priorização de um No entanto, a execução do Plano acabou nível de ensino em detrimento dos sendo prejudicada pelo avanço demais fosse prejudicial para a solução neoliberal. Não se conseguiu alcançar o das mazelas educacionais do país, propósito de “viabilizar o esforço instaurou-se à época um intenso clima integrado das três esferas de governo no de mobilização em prol da educação, enfrentamento dos problemas da justamente em função daquilo que educação” (SAVIANI, 1999, p. 129), preconizavam tanto a Declaração de nos levando a crer que o documento Jomtien quanto a Declaração de Nova parece ter sido “formulado mais em Délhi: o Estado deveria compartilhar função do objetivo pragmático de suas responsabilidades sobre o setor atender a condições internacionais de com a sociedade – uma diretriz que financiamento para a educação” apelava não somente à participação, (SAVIANI, 1999, p. 129), do que o de mas abria prerrogativa à futura garantir a universalização da educação privatização do setor. básica. Isso fez com que a ação entrasse No Brasil, assim como nos demais para o extenso rol de fracassos estatais países signatários, houve o no campo educacional, apesar de o compromisso com a realização de um governo Itamar tê-lo priorizado. Isto plano decenal, cujo objetivo era garantir posto, sem ter tido tempo hábil para a universalização “do acesso à educação executar um projeto educacional básica a todas as crianças, jovens e próprio, o presidente apostou na adultos, assegurando-se a equidade na “organização de um movimento em prol distribuição dos recursos e um padrão da valorização da educação no contexto mínimo de qualidade” (PINTO, 2002, p. das reuniões organizadas pela Unesco, 110). Cabe ressaltar que o processo em geral com financiamento e envolvendo a elaboração do Plano teve assessoria do Banco Mundial” (SILVA contornos de ineditismo: inicialmente, JR., 2005, p. 42), e viu malsucedida a realizou-se a Semana Nacional de sua intenção de romper completamente Educação para Todos, em 1993, que com a política elaborada por Collor.

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Também foram preservadas iniciativas pedagógicos, entre outros – estendeu a como o Programa Nacional de Saúde oferta para o público de 0 a 6 anos de do Escolar , o Programa Nacional do idade e empenhou-se na discussão Livro Didático , o Programa Nacional acerca da formulação uma política de Salas de Leitura e o Programa nacional para a modalidade, o que, Nacional de Alimentação Escolar , que infelizmente, não veio a se concretizar. sofreram adequações, de modo a O Ensino Fundamental, por sua vez, contemplar os pressupostos da teve suas matrículas aumentadas em descentralização e o estabelecimento de todo o país e a carga horária estendida, critérios para a transferência de recursos passando a ser de quatro horas mínimas aos municípios e às escolas, tendo como diárias tanto no meio urbano quanto no condicionalidade para a obtenção de rural. Afora isso, técnicos e professores recursos o número de alunos foram, nas palavras do governo, matriculados e a implantação de “treinados” (FRANCO, 1993); conselhos de educação, por exemplo construídas e reformadas escolas; (CASTRO e DUARTE, 2008, p. 10). construídas e ampliadas salas de aula; Essa nova lógica de gestão foi o distribuídos módulos didáticos e embrião daquilo que se tornaria a base apoiadas instituições privadas 4. dos mecanismos de financiamento Contudo, duas iniciativas se criados pelo governo federal, destacariam dentre as inúmeras voltadas posteriormente – vide FUNDEF e ao atendimento educacional à infância: FUNDEB. Inicialmente, foram a reestruturação dos CIACs (Centros contemplados pelo processo de Integrados de Atendimento à Criança), descentralização os programas de um dos principais motes de propaganda alimentação do escolar, distribuição de da administração Collor, através do livro didático e material escolar , e PRONAICA (Programa Nacional de idealizado o Programa Nacional de Atenção Integral à Criança e ao Transporte do Escolar , cujo objetivo Adolescente) e a criação do Projeto seria o de garantir o acesso do alunado Nordeste de Educação Básica , um dos às instituições escolares (CASTRO e primeiros frutos do Plano Decenal de MENEZES, 2002). Todas essas Educação para Todos . iniciativas lograriam relativo sucesso, A primeira ação teve como objetivo mas, ressaltam os autores, que se assegurar nova roupagem ao projeto já manteve a chamada “fragmentação existente. O PRONAICA tinha como institucional” no interior do MEC. objetivo o atendimento integral à No bojo dessas ações, o governo procurou intervir em diferentes níveis 4 Além da distribuição de livro didático, de ensino e modalidades educacionais. material e escolar e demais recursos Na Educação Infantil, além de assegurar complementares, o governo federal investiu, investimentos para o setor 3 – somente em 1992, no treinamento de 54.469 qualificação de professores, compra e professores e técnicos treinados; na construção distribuição de materiais didático- de 1.482 escolas; na reforma de 908; no fornecimento de equipamentos a 1180 escolas; na construção de 8.500 salas de aula e na 3 Foram treinados, em 1992, 3.003 professores e ampliação de outras 9.809; no fornecimento de técnicos, equipadas 777 salas de aula, equipamentos a 16.246 salas de aula; na distribuídos 38.988 módulos de material distribuição de 26.226 módulos didáticos; e no didático e adquiridos 1.858 exemplares para 58 apoio a 1.758 instituições educacionais bibliotecas (FRANCO, 1993). (FRANCO, 1993).

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criança mediante a articulação de relegar ao segundo plano a Educação de serviços e equipamentos sociais dos Jovens e Adultos. entes federativos. Nesse arranjo, o O Ensino Médio permaneceu governo federal diretamente ou em dicotomizado – “enquanto suporte para cooperação com estados e municípios, o prosseguimento de estudos ou para a ficaria encarregado de apoiar técnica e inserção no mercado de trabalho do financeiramente a execução do trabalho” (FRANCO, 1993, p. 82), programa, que previa, também, a recebendo investimentos escassos 5. participação da iniciativa privada. O Nesse contexto, o governo optou por carro-chefe do programa permaneceu massificar a educação tecnológica, sendo o centro de educação integral voltando-se à “criação de novas escolas, implantado nos anos Collor, formação e desenvolvimento de transformado em CAIC (Centro de recursos humanos, e pela manutenção e Atenção Integral à Criança), mas aperfeiçoamento das escolas devidamente reestruturado - foram agrotécnicas federais” (FRANCO, elaborados novos desenhos 1993, p. 82), mediante a criação do arquitetônicos e novos modelos de Sistema Nacional de Educação operacionalização, visando, sobretudo, a Tecnológica; a reativação do Programa redução dos gastos e o aumento da de Construção de Escolas Técnicas ; e a eficácia das ações que contemplavam modernização da rede tanto no plano não só a educação, mas a cultura, a pedagógico quanto nos aspectos promoção da saúde, do esporte e do materiais com a compra de lazer. Posto isso, novas construções – equipamentos e a atualização de 150 unidades – desse centro laboratórios. Desse modo, a opção educacional foram conduzidas pelo governamental acabou se dando no governo federal entre 1993 e 1994 sentido de contemplar, sobretudo, os (FRANCO, 1993; 1994). setores mais pobres da população, que foram mantidos alijados do ensino Já a segunda, tinha por propósito propedêutico, historicamente privilégio aumentar o número de vagas escolares, das elites. expandir a oferta de serviços O Ensino Superior recebeu especial educacionais e melhorar a qualidade do atenção governamental no decorrer do ensino na região Nordeste (FRANCO, curto mandato presidencial. No que 1994) e, para isso, contava com o apoio tange ao setor público, a primeira técnico-financeiro do Banco Mundial, proposta, que acabou não sendo bem- fato que se tornaria cada vez mais sucedida, foi a revisão do processo de comum no decorrer dos anos 1990, o distribuição de recursos para as que caracterizava não só uma evidente universidades federais. Conforme demonstração da interferência dos Cunha (1997), o governo Itamar organismos internacionais na pretendia alocar 90% do orçamento de implementação das políticas educacionais dos países 5 Para o Ensino Médio, os investimentos foram subdesenvolvidos, mas um péssimo escassos. Em 1992 “foram treinados 2.227 negócio para o país (FONSECA, 1998; professores e técnicos; matriculados 13.669 FIGUEIREDO, 2009), visto que, além alunos; construídas 33 escolas novas; distribuídos 7.400 exemplares para o acervo de elevar seu endividamento, bibliográfico; adquiridos 463 equipamentos; e reafirmava – sob o pressuposto da apoiadas financeiramente 19 instituições” focalização – a exclusão educacional ao (FRANCO, 1993, p. 82).

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acordo com a série histórica, 9% com setor ao cerne da agenda base nas diferentes necessidades governamental, reduzindo o dirigismo, comprovadas das instituições de ensino por meio das medidas de e 1% na produtividade. Posteriormente, descentralização, e garantindo abertura a avaliação institucional das à “maior participação da sociedade na Universidades também deveria ser definição dos rumos das políticas modificada e foi o que acabou públicas” (CASTRO e MENEZES, ocorrendo com a constituição da 2002, p. 85) via a concepção de proposta do Programa de Avaliação inúmeros fóruns e seminários Institucional das Universidades “concebidos e realizados no intuito de Brasileiras (PAIUB), um modelo ampliar os canais de discussão da avaliativo que deveria ser conduzido problemática e das sugestões de pelas instituições de educação superior, encaminhamentos adequados para de forma contínua e sistemática, pela contornar os graves problemas da área” comunidade acadêmica (ZAINKO, (idem, p. 86). 2008). Um olhar mais atento à questão da Afora essas medidas, o MEC investiu inclusão: a Educação Especial no em ações de “melhoria da qualidade do período ensino, da pesquisa e da extensão, no apoio aos campi universitários, e no O governo Itamar Franco reestruturou a treinamento e capacitação de recursos Educação Especial no MEC ao reinserir humanos 6” (FRANCO, 1994, p. 112), na estrutura organizacional a Secretaria além de intervir diretamente em favor de Educação Especial, cujas ações se do setor privado, expandindo o crédito caracterizariam pela “[…] centralização estudantil 7 para alunado, retirando a do poder de decisão e execução, por exigência de fiador, o que provocou uma atuação marcadamente terapêutica aumento das matrículas. e assistencial ao invés de educacional, dando ênfase ao atendimento segregado Apesar do pouco tempo de mandato, realizado por instituições especializadas Itamar procurou intervir, nem sempre particulares” (MAZZOTTA, 1990, p. com êxito, em todos os níveis de ensino 107 apud MENDES, 2010, p. 102). e modalidades educacionais, trazendo o Assim, pautado nos princípios da integração, reabilitação e normalização, o MEC se voltou à manutenção das 6 Aumento da capacitação de professores, a partir das melhorias de operacionalização do ações promovidas pelas gestões FNDE, de 30 mil professores em 1992 para 460 anteriores e à criação de dois novos mil professores em 1993 (FRANCO, 1994). marcos: a Política Nacional para a 7 Em 1993, o governo regulamentou a Lei n. Integração da Pessoa Portadora de 8.436 de 1992, de modo a institucionalizar o Deficiência, de 1993, e a Política programa de crédito estudantil para o Ensino Superior. Uma das consequências da Nacional de Educação Especial, de institucionalização foi a ampliação dos recursos 1994. orçamentários que possibilitou, dentre outras coisas, a democratização do acesso, pois retirou Ao optar pela formulação de uma nova a exigência de fiador e cadastro financeiro e política – a Política Nacional para a distribuiu vagas pelas diferentes unidades da Integração da Pessoa Portadora de federação, “com base em verificação da oferta Deficiência (de 1993) –, o governo de ensino público, renda per capita, demanda e necessidades regionais, o que fez aumentar o Itamar reafirmou, em contraposição às atendimento de 85.000 para 125.000 alunos” legislações anteriores, o principio da (FRANCO, 1994, p. 113). integração, promotor da inclusão

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parcial, que prevê a incorporação do fortalecer o assistencialismo, aluno com deficiência à escola comum característica marcante na história das conforme a sua capacidade de adaptação políticas públicas voltadas à pessoa com a esta. deficiência. Essa política se notabilizou, O caráter generalista desta política inicialmente, pelo caráter generalista em suscitou a necessidade de uma nova relação ao seu poder de intervenção no intervenção governamental, voltada campo educacional, pois se afirmava especificamente ao campo educacional. que a pessoa com deficiência — então Daí o surgimento da Política Nacional denominada “portadora de deficiência”, de Educação Especial (de 1994), que um conceito no mínimo retrógado, para teve como principal meta garantir o não mencionar sua desumanidade — atendimento educacional ao aluno com deveria ter acesso a todos os serviços deficiência. Para tanto, pretendia prestados pelo Estado, entre eles a expandir em 25 por cento, até o final do educação. Para isso, o aparelho estatal século XX, o número de indivíduos deveria se incumbir de garantir a atendidos pelos serviços educacionais, o qualificação dos profissionais que que era pouco, após décadas de viessem a atendê-las, além de auxiliar, omissão. Como objetivos específicos conjuntamente com a sociedade civil, a essa política elencou, entre outras promoção de sua integração no coisas, o “desenvolvimento global das “contexto socioeconômico e cultural” potencialidades dos alunos”; a (BRASIL, 1993b)8; estimular a criação aquisição, por parte dos alunos, de de empregos; atrair a participação dos “hábitos intelectuais, de trabalho movimentos sociais de pessoas com individual e em grupos” e do “saber” e deficiência na implantação da política; “saber fazer”; a preparação dos alunos e, finalmente, mas não menos para participarem ativamente da vida importante, prover a “articulação entre social; o ingresso dos alunos na escola instituições governamentais e não comum; a defesa da estimulação governamentais […] visando garantir a essencial; a preparação para o mercado efetividade dos programas de de trabalho; e a promoção de ações prevenção, de atendimento articuladas entre saúde, educação, ação especializado e de integração social […] social e trabalho (BRASIL, 1994). evitando ações paralelas e dispersão de Para satisfazer as metas, essa política esforços e recursos” (idem). determinou ao Estado uma série de Incentivavam-se mais uma vez, diretrizes, dentre as quais apareciam portanto, duas perigosas prerrogativas: a como as mais importantes o incentivo à de transferir serviços e formação de recursos humanos e à responsabilidades estatais para a iniciativa privada 9 e, finalmente, a de Integradas de Atendimento Especializado, por exemplo, beneficiou, em 1993, 1,4 milhão de 8 Na linha da integração à vida em sociedade, o pessoas através do trabalho de 103 agências governo também promulgou a Lei n. 8.859 de não-governamentais e apenas 11 órgãos do 23 de março de 1994, que estenderia aos alunos governo (FRANCO, 1994). Outro aspecto de de “ensino especial” o direito à participação em destaque na agenda governamental é o fato de atividades de estágio. que muitas das ações não estavam no âmbito da 9 Cumpre ressaltar que os programas de maior Educação, mas da Assistência Social, como é o alcance elaborados pelo governo federal na área caso do Programa de Apoio ao Cidadão, à de Educação Especial tiveram o protagonismo Família e ao Deficiente, que beneficiou 94 mil da iniciativa privada. O Programa de Ações pessoas/mês em 1993 (idem).

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promoção de estudos e pesquisas em instrumento estatal que procurou dar Educação Especial através de parcerias continuidade ao que delimitava a com as instituições de Ensino Superior; Política Nacional de Educação Especial o apoio aos programas de prevenção da como objetivo. deficiência e geração de empregos; a Isto posto, em meio a inúmeros melhoria da rede física; e, por último, problemas conceituais 10 , abria-se mas não menos importante, a realização caminho para a multiplicação de de parcerias com ONGs especializadas. instituições de Educação Especiais A Política Nacional de Educação voltadas ao atendimento específico de Especial acabou não se consolidando cada deficiência, fato que acabou por como um instrumento governamental de enfraquecer o movimento social pró- transformação do sistema educacional. inclusão construído no início dos anos Seus objetivos e diretrizes não foram 1980, pois recrudesceu a disputa entre além de um protocolo de intenções que os grupos de pessoas com diferentes acabou sendo completamente ignorado tipos de deficiência pela legitimação de pelas posteriores, dado o fato de não variados projetos educacionais, visto serem associados, por exemplo, a metas que ia à contramão da construção de e mecanismos de financiamento. Seus uma escola inclusiva no país, cujas primeiras bases a controversa fundamentos axiológicos também não 11 foram transformadores: embora seu Declaração de Salamanca — texto afirmasse o respeito às diferenças elaborada pela ONU em 1994, e logo individuais, a legitimação da reconhecida pelo Brasil — já trazia em participação e entendesse as pessoas seu conteúdo: com deficiência como “seres integrais”, [...] todas as crianças devem manteve-se a integração, em suas aprender juntas, sempre que diferentes formas – temporal, possível, independentemente de instrucional e social – como princípio, quaisquer dificuldades ou fato que corroborou para o isolamento diferenças que elas possam ter. de grande parte do alunado com Escolas inclusivas devem reconhecer e responder às deficiência da escola comum. necessidades diversas de seus alunos, acomodando ambos os Ainda no mesmo ano, em 1994, o MEC estilos e ritmos de aprendizagem e relançou uma série de documentos, assegurando uma educação de elaborados pelo antigo CENESP, dez qualidade a todos através de um anos antes, intitulados “Subsídios para currículo apropriado, arranjos Organização e Funcionamento de Serviços de Educação Especial”, com o 10 Um dos maiores problemas dessa política foi objetivo de atualizar os conceitos e a determinação daquilo que se denominou reafirmar os princípios que então “condutas típicas”. Ao apresentar uma definição norteavam a atuação estatal no tocante à genérica, qualquer indivíduo que não se adequasse aos padrões de “normalidade” Educação Especial. Os documentos impostos pela instituição escolar poderia ser reafirmaram a necessidade de os encaminhado, sem a necessidade de indivíduos com deficiência receberem diagnósticos precisos, a classes especiais ou uma educação “diferenciada”, sem mesmo instituições de Educação Especial. dispor sobre possíveis transformações 11 Não se pode afirmar que a Declaração de Salamanca fosse fundamentada somente na no sistema educacional para o perspectiva da inclusão. Ao contrário, em atendimento de todos os alunos pela algumas disposições reafirmava-se a integração escola comum. Foi, portanto, mais um como princípio.

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organizacionais, estratégias de apoio técnico e financeiro –, ensino, uso de recurso e parceria estabelecendo objetivos e metas para com as comunidades. que isso viesse a ocorrer, apenas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES dispunha genericamente sobre a UNIDAS, 1994, s/p) celebração de alianças e parcerias e o Na esteira dessas ações, o Plano cumprimento sistemático tanto das Decenal de Educação Para Todos disposições legais quanto dos também veio a incorporar a Educação dispositivos orçamentários em vigor. Especial em suas disposições. Seu Desse modo, a municipalização da conteúdo apenas reafirmou a Educação Especial resultou inviável, ao importância de o governo oferecer menos naquele momento, atenção especial às “necessidades permanecendo apenas no plano básicas de aprendizagem das pessoas discursivo. portadoras de deficiências”, de modo a O governo Itamar Franco chegou ao fim garantir a “[…] igualdade de acesso à sem conseguir implementar programas educação aos portadores de todo e de relevo na área da Educação Especial, qualquer tipo de deficiência, como parte se atendo a legislar na área através da integrante do sistema educativo” formulação de políticas que não (BRASIL, 1993, p. 75), sem estipular, conseguiram pautar as ações porém, metas, objetivos ou fontes de educacionais nas diferentes esferas – financiamento para tal. Mesmo assim, apenas se previa, por exemplo, em acabou por influenciar na elaboração do 1994, o “amplo atendimento documento “Expansão e Melhoria da educacional, médico e odontológico em Educação Especial nos Municípios 91 municípios brasileiros” às pessoas Brasileiros”, responsável pela definição com deficiência, sem qualquer tipo de — consoante à lógica da planejamento sistemático para tal. Por descentralização defendida pelo Banco consequência, o Estado permaneceu Mundial — de estratégias para a adotando ações excludentes, ao “isolar municipalização da Educação Especial. os indivíduos em ambientes O documento reconhecia que, na grande educacionais segregados, rotulando-os parte das cidades brasileiras, o de deficientes e tratando-os como atendimento educacional às pessoas crianças pré-escolares” e fortalecer “o com deficiência era “bastante precário rótulo e estigma da deficiência com a em termos de quantidade e qualidade” consequente exclusão social, além da (BRASIL, 1994b, p. 8), devido à “falta minimização de suas potencialidades de compromisso político com o […]” (MENDES, 2010, p. 104), alunado, resultante do desconhecimento frustrando as expectativas dos quanto ao papel da Educação Especial e movimentos sociais pró-inclusão, de seus objetivos” (BRASIL, 1994b, p. ansiosos pelo pleno cumprimento de 11). O governo, portanto, aproveitou o suas demandas e a construção de uma movimento favorável à municipalização sociedade mais justa, num ambiente que e à universalização do acesso ao Ensino se mostrava frutífero para a participação Fundamental para sugerir aos e as mudanças no campo educacional. administradores municipais a realização de parcerias junto ao MEC com o objetivo de expandir a Educação Especial. Entretanto, ao invés de garantir as condições necessárias –

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Conclusão Mantoan (2004), preservando históricas injustiças. Itamar Franco deixou o poder com o Entre avanços e retrocessos, o legado de ter conseguido não somente presidente – sem a possibilidade de superar uma grave crise político- reeleição, e com alta aprovação popular institucional – decorrente do processo – reuniu os componentes necessários de impeachment do presidente Collor – para lançar um candidato situacionista à como realizar, em curto espaço de sucessão em condições de obter um tempo, um governo que, em meio a bom desempenho eleitoral. A escolha inúmeras contradições, retomou recaiu sobre o nome de Fernando gradativamente a capacidade de Henrique Cardoso, que, eleito, faria promover políticas sociais e instituiu avançar, ainda mais a agenda neoliberal um programa de estabilização no país, mas essa é uma outra história... econômica, cujos resultados tornaram possível ao país retomar a agenda de crescimento e diminuição da Referências desigualdade nos vinte anos posteriores. BRASIL. Plano Decenal de Educação para Todos 1993-2003. 1993. Disponível em: A educação voltou a ser prioridade na agenda governamental, recebendo http://www.dominiopublico.gov.br/download/te intervenções em todos os níveis de xto/me001523.pdf Acesso em: 15 jan. 2014. ensino e modalidades. Os programas _____. Decreto n. 914, de 06 de setembro de foram remodelados, a participação 1993b. Institui a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. social foi ampliada e o governo Diário Oficial [da] República Federativa do mostrou-se disposto a dialogar com os Brasil, 06 de set. 1993. Disponível em: diferentes setores educacionais tanto no http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0 momento de formular quanto 914.htm Acesso em: 15 jan. 2014. implementar suas ações. Os resultados _____. Secretaria de Educação Especial. só não foram mais profícuos devido a Política Nacional de Educação Especial. pelo menos três fatores: diminuto tempo Brasília: SEESP, 1994. de mandato – pouco mais de dois anos – _____. Secretaria de Educação Especial. ; escassez de recursos financeiros; e Expansão e melhoria da Educação Especial nos manutenção do ideário neoliberal, municípios brasileiros/MEC/SEESP. Brasília: derivada da pressão dos organismos SEESP, 1994b. 33p. multilaterais. CARVALHO, José M. de. Cidadania no Brasil: O longo caminho . 18. ed. : Todavia, no tocante à inclusão da Civilização Brasileira, 2014. pessoa com deficiência no sistema CASTRO, Jorge A. de; MENEZES, Raul M.. A educacional comum, o governo manteve gestão das políticas federais para o ensino fundamental nos anos 90. Em Aberto , Brasília, a integração como princípio norteador v. 19, n. 75, pp. 78-97, jul. 2002. em detrimento à inclusão. Não avançou. Elaborou duas novas políticas que se CASTRO, Jorge A. de; DUARTE, Bruno de C.. Descentralização da Educação Pública no contrapuseram às legislações anteriores Brasil: Trajetória dos Gastos e das Matrículas. e tornaram a exigir que apenas os Texto para Discussão , Brasília, IPEA. n. 1352, alunos “aptos” viessem a participar da pp. 01-33. escola comum. Ignorou-se, portanto, o CUNHA, L. A. Nova reforma do ensino direito de todos à educação e à superior: a lógica reconstruída. Cadernos de igualdade na diferença, sem preconceito Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, ou discriminação, como bem afirma n. 101, p. 20-49, 1997.

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