OLHARES CONTEMPORÂNEOS SOBRE O MEDIEVO: A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS DO PASSADO A PARTIR DOS FIGURINOS DA DEUS SALVE O REI

Marcelle Lopes de Souza Universidade Federal de Juiz de Fora [email protected]

Resumo: Esse artigo foi desenvolvido a partir do projeto de mestrado “Um acervo que veste histórias: Memória e Historicidade em figurinos de telenovela”, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora. A partir da análise dos figurinos das protagonistas Catarina e Amália, busco pensar a telenovela Deus Salve o Rei como uma mídia de consumo em dois sentidos: como um meio que dialoga com as ditas tendências medievais que vão se inserir no mercado da moda, como também com a produção de conhecimento histórico despertada tanto na temática da trama quanto nos elementos da cultura material apresentados ao telespectador.

Palavras-chave: mídia, memória, moda, figurino, telenovela

Introduzindo a arte do vestir A produção de figurinos para uma telenovela de época demanda muita criatividade e pesquisa histórica. O traje de cena deve estar de acordo com o período histórico escolhido, a trama desenvolvida, a identidade visual da personagem, o desejo estético do diretor e o cenário construído. Mais do que apenas um conjunto de tecidos com seus cortes e costuras, ao vestirem os corpos de seus atores e adentrarem nas tela do telespectador, o traje deixa de ser apenas uma expressão artística da cena dramatúrgica e passa a ser consumido como uma cultura visual. Logo, ele possui a capacidade de atender às demandas do ofício, como também de dialogar com quem está do lado de fora da cena. Com o objetivo de remeter a um tempo histórico que não foi vivenciado pelo telespectador, o figurino histórico apresenta uma narrativa fantasiosa sobre o passado.

Como o traje de cena não possui a obrigatoriedade de assumir compromisso com o real, o figurinista possui uma certa liberdade para introduzir a sua marca como artista. No entanto, isso não quer dizer que o profissional não tenha que prestar contas ao longo do seu processo criativo. O livro Entre tramas, rendas e fuxicos, produzido pela Memória Globo, elenca uma série de premissas que devem ser seguidas durante o fazer artístico. Dentre elas estão: “o compromisso com a unidade da obra, a coerência com o projeto estético e o desafio de produzir individualizações, diferenciando cada um dos personagens” (2007, p.22). Ou seja, o figurinista acima de tudo tem que estar a serviço da obra e do personagem. Apesar de haver tal liberdade de criação, é preciso salientar que ela apenas se sustenta quando se tem um amplo conhecimento sobre a indumentária do período abordado. Mais do que sustentar a história dos personagens que o vestiu, o figurino carrega a historicidade da sua produção. Ele remete tanto ao fazer artístico quanto à pesquisa histórica do figurinista. Desta forma, a pesquisa é imprescindível para o processo artístico do figurinista. Pesquisa essa que ocorre tanto no campo artístico quanto histórico, pois muitas peças não são inspiradas apenas na indumentária histórica, como também em pinturas, gravuras, fotografias, exposições artísticas, produções literárias e audiovisuais. Outra característica pertinente ao campo é a comunicação com o telespectador em primeiro plano. O figurinista precisa desenvolver um projeto que seja um tanto mais agradável aos olhos de quem vai consumi-lo. Fugindo de uma representação fiel da indumentária presente nas fontes históricas, Beth Filipecki relata que “o figurino deve existir em função da cena, não de um documento histórico” (MEMÓRIA GLOBO, 2007, p.182). De acordo com a figurinista, muitas vezes a indumentária histórica não serve para aquela cena, necessitando ser ressignificada. O forro da saia pode acabar ficando muito pesado para a movimentação da atriz, ou até mesmo a falta de brilho e cores pode atrapalhar no destaque da personagem em determinada cena. Nesse sentido, a atualização e a glamourização estabelecida pelo figurinista é tida como essencial para compor a identidade visual das personagens. Para além do diálogo com o público e a exposição da individualidade das personagens, as distintas propostas de figurino devem se adequar aos diversos modos de narrar. A visualidade da trama é ditada pelo seu estilo narrativo. Logo, produções mais lúdicas favorecem o exercício da criatividade, enquanto projetos realistas demandam um

cuidado redobrado com as formas, cores e texturas adequadas para a época retratada. Isso vai se dar independente da trama ser de época ou contemporânea, uma vez que a projeção da luz, a vestimenta e o cenário precisam estar de acordo com a realidade do período retratado. No caso da novela medieval Deus Salve o Rei, alguns figurinos fogem da proposta realista que a temática histórica carrega ao apresentar peças com cortes e caimentos que remetem à contemporaneidade. Como proceder nesse caso? Podemos dizer que houve um descuido por parte dos figurinistas ao apresentarem vestimentas que não condizem com o medievo? O intuito deste artigo é pensar como as referências contemporâneas do figurino de Deus Salve o Rei se inserem em uma lógica que perpassa o campo histórico e adentra na concepção imaginária que a medievalidade carrega consigo. Muito mais que um período da História, a Idade Média se tornou um sinônimo de fantasia no meio artístico. São inúmeras as produções audiovisuais que recorrem a esse recorte para trazer tramas permeadas de antagonismos históricos e ficcionais. No caso da novela global, esse debate antagônico é demarcado pelas vestimentas das protagonistas da trama. Entretanto, os figurinos da vilã Catarina e da mocinha Amália não trazem apenas a questão da ficcionalidade e do anacronismo, eles também transpassam o universo ficcional ao se lançar no mercado de consumo como tendências da moda.

Velhas histórias contam novas memórias Exibida entre 9 de janeiro a 30 de julho de 2018, a novela medieval Deus Salve o Rei aborda a história de dois reinos ficcionais, Montemor e Artena. Durante anos, os reinos mantinham um acordo de fornecimento de água, recurso abundante em Artena, mas escasso em Montemor. Em troca de água, Montemor fornece sua produção de minério. Havia a promessa de construção de um aqueduto em Montemor, mas o lago que serviria como fonte para o reino secou, e o fracasso da obra culminou em uma expedição por novas fontes de água. Ao saber da situação delicada do reino vizinho, a princesa Catarina (Bruna Marquezine) se aproveita da situação e passa a planejar acordos mais vantajosos para o seu reino, além de fortalecer o exército para possíveis batalhas. O plano final da vilã Catarina é assumir o controle de Artena, se casando com o rei Afonso (Rômulo Estrela), para governar as terras do norte e do sul. Entretanto, a trama se complica quando Afonso faz uma expedição em busca de novos recursos de água e se

apaixona pela plebéia Amália (). Como representante de Artena, Catarina carrega em seus trajes as cores cinza, azul e lilás em referência ao seu reino. Conforme a Figura 1 apresenta, na primeira metade da trama, o figurino da personagem é marcado por tecidos leves, permeados de transparência e decotes. Os acessórios são tidos como essenciais para destacar a nobreza da filha do monarca, permeados de muitos anéis, colares e cintos. O traje de Catarina traz alguns elementos que de acordo com James Laver, eram muito utilizados no século XIV: vestidos pouco extravagantes, com mangas longas e justas, marcado na cintura e com um caimento que abria em saia ampla (2014, p. 64). Entretanto, devemos nos atentar que os tecidos com transparência e o corte acentuado no decote da personagem não são referências medievais, mas sim extraídas da alta costura.

Figura 1. Princesa Catarina, interpretada por Bruna Marquezine. Foto: Artur Meninea/Gshow1

Ao analisar alguns desfiles como o primavera-verão 2016 da alta-costura de Valentino2, podemos perceber muitas referências à transparência, aos detalhes metalizados e sobretudo ao decote em V profundo. Já o desfile outono-inverno 2017 da

1 Disponível em: https://gshow.globo.com/novelas/deus-salve-o-rei/noticia/qual-o-vestido-da-catarina-e- o-seu-preferido-em-deus-salve-o-rei-vote.ghtml 2 Ver: Valentino alta-costura primavera-verão 2016. Disponível em: https://www.lilianpacce.com.br/desfile/valentino-alta-costura-primavera-verao-2016/

alta-costura de Elie Saab3, traz muitos elementos presentes no segundo momento da personagem de Catarina, como os bordados dourados, veludos, e capas. Apesar do decote profundo ser o que mais aproxima o figurino da personagem da contemporaneidade, é importante ressaltar que a nudez não é era um tabu para o medievo. Segundo, Jacques Le Goff: A nudez cortês é ambígua. Ela pode ser um hino à beleza física, mas também um aguilhão da sexualidade e da luxúria. É entre a beleza do corpo nu e a beleza da roupa, entre a inocência e o pecado, que o homem e a mulher da Idade Média se servem de adornos ou do despojamento de seus corpos. (2006, p. 142) Desta forma, ter uma personagem que representa a nobreza trajando vestes que mostram partes do seu corpo de forma sensual, não é algo tão distante assim da concepção de sexualidade e luxúria da Idade Média. Entretanto, devemos ressaltar que para além da concepção histórica, a novela também se baseia em muitos elementos que permeiam o imaginário medieval. Produções audiovisuais de grande sucesso como Game of Thrones, o qual ainda estava em alta quando a novela estava no ar, são vistos como referência do período para o público leigo. Logo, para não causar estranheza por fugir dessa concepção imaginária apresentada nos filmes, Deus Salve o Rei mescla o histórico e o ficcional com a contemporaneidade do mercado de moda. As referências ao seriado da HBO se apresentam, sobretudo, na segunda fase da personagem de Bruna Marquezine. Em entrevista ao site Purepeople, a figurinista da novela, Mariana Sued, fala sobre as mudanças no figurino de Catarina após o seu casamento com o Rei Rodolfo (Johnny Massaro): "Os decotes continuam, porém com forma um pouco diferente. Todo o figurino dela fica mais pesado. Não veremos mais os vestidos de seda. No lugar deles, teremos vestidos de veludo para ela usar no castelo"4. A figurinista da trama também relata que a nova monarca de Montemor passa a usar somente as cores do reino do seu marido. Agora, como representante de outro reino, ela perde as referências de Artena e passa a utilizar apenas tons de vermelho, preto, dourado e cobre. As jóias de Catarina também são ressignificadas com a virada da personagem. Nesta nova fase, ela deixa de usar prata e passa a usar ouro.

3 Ver: Elie Saab alta-costura outono-inverno 2017/18. Disponível em: https://www.lilianpacce.com.br/desfile/elie-saab-alta-costura-outono-inverno-201718/ 4 GOMES, Marilise. Figurinista conta mais detalhes de novos looks de Catarina em 'Deus Salve o Rei' Disponível em: https://www.purepeople.com.br/noticia/em-deus-salve-o-rei-catarina-muda-figurino-apos- casamento-mais-pesado_a221889/1

Na Figura 2 podemos perceber a mudança nos trajes da personagem em comparação à primeira figura. Já no seu segundo casamento com um rei de Artena, Catarina permanece utilizando o dourado e abusa até mesmo de cores mais quentes, como o vinho e o vermelho. Um fator interessante que a imagem apresenta, é o buquê de rosas brancas em contraste com o vestido de noiva vermelho. Para alguns telespectadores, o tom vermelho pode ser interpretado como uma referência à vilania da personagem, contudo, conforme a Figura 3 demonstra, a cor era predominante nos trajes de gala e em eventos oficiais do medievo. A imagem abaixo é uma iluminura do casamento entre Henrique V de Inglaterra e Catarina de França, ocorrido no ano de 1420. A princesa da França é representada com um vestido de casamento vermelho, assim como muitas outras iluminuras do período trazem noivas com vestidos dessa cor.

Figura 2. Catarina (Bruna Marquezine) Figura 3. O casamento de Henrique V e em seu casamento com o Rei Afonso. Catarina da França. Volume 5, livro 2, Fol. 65r, Foto: João Miguel Júnior/TV Globo5 [Sem data]. Iluminura: 205x220 6

Outra cor muito utilizada pela vilã em sua segunda fase, é o preto. De acordo com Joan Huizinga, “o preto, empregado sobretudo em veludo, representa incontestavelmente

5 Disponível em: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/novelas/deus-salve-o-rei-catarina-se-livra-de- princesa-e-se-casa-com-afonso-veja-foto-21043 6 Disponível em: https://manuscripts.kb.nl/zoom/BYVANCKB%3Amimi_133a7%3Adl3_065r_min_tekst

a pompa orgulhosa e sombria que a época tanto adorava, a arrogante distância de todo o alegre colorido à sua volta” (2013, p. 471). Não por acaso Catarina trazia características como o orgulho e a arrogância expressas tanto em seus atos quanto em sua vestimenta. Em contraposição, a mocinha Amália é o completo oposto de Catarina. Como a Figura 4 demonstra, a personagem traz vestimentas mais simples, tecidos rústicos permeados de cores mais escuras e intensas, marcada por um corset fechado na frente, avental e a divisão do traje em blusa e saia rodada. Apesar de buscar uma concepção mais histórica, o figurino de Amália acaba remetendo mais ao imaginário coletivo dos contos de fadas. A plebéia de Deus Salve o Rei se aproxima da ideia figurada em torno da camponesa medieval, na qual se tem uma bela moça de longos cabelos vestindo trajes simples mas marcados pela sensualidade do corset.

Figura 4. Plebéia Amália, personagem Figura 5. LANTÉ, Louis-Marie. Laure de Noves, interpretada por Marina Ruy Barbosa7 wife of Count Hugues de Sade, and muse of Francesco Petrarch, 1827: 292 mm x 200 mm. Collection Royal Academy of Arts8

7 Disponível em: http://quadrofeminino.com/cabelos-de-amalia-deus-salve-o-rei/ 8 Disponível em: https://www.royalacademy.org.uk/art-artists/work-of-art/laure-de-noves-wife-of-count- hugues-de-sade-and-muse-of-francesco-petrarch-1

Ao analisar a Figura 5, podemos perceber que muitos elementos presentes na indumentária de Amália se aproximam das vestes italianas do século XIV, sobretudo o corset fechado na frente e a abertura nos cotovelos. Como o desenho de Louis-Marie Lanté se refere Laura de Noves, esposa do conde Hugues de Sade, devemos destacar o aspecto mais sofisticado do traje, em comparação ao de Amália. Outro fator importante é em relação a cor azul, muito presente nas saias da personagem. Segundo Huizinga, “o azul é usado pela gente do campo e pelos ingleses. Ele também cai bem em meninas jovens, assim como o rosa” (2013, p. 471). Tal análise é muito pertinente à Amália, pois assim que ela deixa a vida do campo e passa a ter acesso ao castelo, o azul deixa de estar presente em suas vestes, predominando mais o verde e o vinho. A partir da análise dos figurinos de ambas as personagens, podemos perceber que a novela de época é um tipo de mídia que proporciona a produção de uma memória cultural midiatizada9. Tanto a televisão quanto o figurino tem que lidar com questões e limitações próprias do seu meio quanto se trata de uma produção histórica, uma vez que a dimensão imaginativa abordada está condicionada ao senso estético do período. No entanto, quando aproximamos esse debate do campo da História, não podemos deixar de evitar as consequências que a midiatização gera no consumo de referências históricas. De acordo com Luciana Andrzejewski, o figurino histórico faz sucesso porque rompe com a “mesmidade” em que vivemos e cria uma memória afetiva com o público10. Nesse sentido, os trajes históricos costumam cair no gosto popular, menos pela questão da identificação e mais por remeter a um tempo histórico diferente do telespectador. Mesmo funcionando tal qual um espelho dos modos de vida, da cultura e da estética de uma época, esses trajes não são completamente verossímeis com a realidade. Tais vestuários possuem efeitos estéticos, que ao se sobrepor ao dado histórico, acaba emergindo um imaginário no telespectador que dialoga a realidade histórica com a ficcionalidade. Logo, ao apresentar representações do passado dentro do jogo da ficção, as novelas estariam contribuindo com a produção de uma memória histórica fantasiosa.

O figurino em diálogo com o consumo de moda

9 Ver: ERLL, Astrid. Memory in culture. New York: Palgrave Macmillan, 2011 10 ANDRZEJEWSKI, Luciana. O papel da memória no figurino afetivo. Disponível em: http://mimo.org.br/biblioteca/o-papel-da-memoria-no-figurino-afetivo/.

Com o intuito de criar um universo ficcional que transmite emoções e desejos a partir da identidade visual das personagens, os figurinistas vão construir e recodificar novas peças que são capazes de abarcar a personalidade da personagem. Ao construir uma roupa de época, esta não possui a historicidade referente ao seu tempo, pois não seria um documento histórico, no entanto, ela ainda sim se tornaria um indicador de memória histórico-cultural. No caso dos figurinos de época, além de carregarem as referências memorialísticas de um determinado contexto histórico-social, eles também detêm elementos indumentários de outras temporalidades que vão auxiliar na composição das personagens. Desta forma, ao analisar como o figurino vai se reapropriar da moda e de elementos da história para criar uma vestimenta própria do meio ficcional, precisamos buscar compreender a historicidade da criação artística, ou seja, o enlaçamento existente entre o ato criador do figurinista e da referência histórica, a fim de determinar os seus reflexos na produção de uma memória histórica e cultural no telespectador. Ao abordar a historicidade do têxtil, devemos ter em mente o que o conceito histórico nos remete quando posto em diálogo com o campo da moda. De acordo com François Hartog, “o regime de historicidade não pretende falar da história do mundo passado, muito menos do que está por vir” (2013, p.37). Tal categoria de análise do historiador se refere à organização do tempo histórico com e pelos sujeitos. Ela remete à sobreposição de experiências do presente, passado e futuro. Ou seja, quando nos referimos à historicidade do têxtil, queremos destacar as marcas do tempo histórico que estão presentes naquela peça. Sendo um pouco mais precisa, podemos dizer que é uma forma categórica para se referir às referências históricas que o traje apresenta. Por exemplo, uma blusa pode apresentar as mangas bufantes da Era Vitoriana, tendo como acabamento os inúmeros babados do Rococó, tudo isso sob um corte mais contemporâneo. Logo, uma única peça situada no nosso presente carrega pelo menos duas referências de costumes vestimentares do passado consigo. Outro aspecto que o conceito de historicidade nos remete é o de “condição de ser histórico” (RICOUER, 2007, p.381). Segundo Paul Ricouer, tal condição seria uma forma do sujeito histórico se sentir e ser no tempo. O sujeito histórico é tanto agente quanto sujeito do seu tempo. Ao nascer, ele é lançado em determinado espaço-tempo, se tornando parte ativa de um desencadeamento de acontecimentos. A partir desse momento, o sujeito passa a assumir a agencia dos seus atos. O posicionamento ativo se dá de tal forma que

um grupo organizado de pessoas possui a capacidade terminar ou começar um novo ciclo a partir do seu posicionamento político, proporcionando, assim, novas formas de pensar e se mobilizar que podem se tornar referência no futuro. Algo muito semelhante acontece com a indumentária e a indústria da moda. No caso do traje de cena, as peças são desenvolvidas por (figurinistas) e para pessoas (atores e público). A vestimenta é tanto a expressão dos figurinistas como agentes históricos, como também um objeto-documento que conta em que período ela foi produzida. A maneira do traje de se expressar no tempo vai se dar a partir das marcas de uso que ele carrega: a escolha de novos tipos tecidos, uso de novas tecnologias de costura, descobertas de novas formas do vestir; como também da costura artesanal, dos furos, remendos, (re)costuras e adaptações pertinentes a determinada pessoa e situação que o vestiu. O figurinista como agente ativo vai se posicionar artisticamente, trazendo o seu olhar individual em coerência com a proposta da obra, podendo revolucionar o mercado de consumo de moda. É o caso da famoso pulseira da Jade, da novela . Datada dos anos 2001, época da exibição da novela, a pulseira se tornou febre em todas as lojas do comércio brasileiro. A escolha do figurinista de trazer esse acessório para a protagonista da trama, fez com que o objeto se tornasse um marco do começo dos anos 2000 e referência às jóias do Oriente. A escolha de O clone como exemplo de novela repleta de figurinos que carregam um debate interessante em torno da historicidade não é por acaso. Tanto a protagonista Jade, quanto a vilã Catarina, de Deus Salve o Rei, possuem figurinos que perpassam a caracterização das personagens. Os elementos estéticos de ambas as novela trazem elementos indumentários que “parecem ter sido concebidos em termos de consumo de moda, resultando em produtos constituídos por imagens tecidas na contemporaneidade que não se limitaram ao tempo e espaço, mas misturaram inúmeras referências recriando novos significados” (WAJNMAN; NAVARRO, 2002, p.2). Antes mesmo da novela estrear, o estilo das personagens já estava sendo tema em alguns sites. O figurino de Catarina se tornou tendência pelas cores neutras e linhas retas, que valorizavam o decote da personagem. Mas o grande destaque eram os anéis, colares e gargantilhas de prata. As joias traziam uma abordagem mais contemporânea, sem perder o luxo que a o poder monárquico denotava. Apesar da plebéia Amália ter um figurino mais simples, ela não deixou de chamar a atenção das telespectadoras pelas sobreposições

de peças e os detalhes em couro. As joias da personagem também foram alvo pelos seus “pingentes redondos e os anéis de prata envelhecida, principalmente usados no indicador e no polegar”11. Por meio do site do Gshow, a própria Rede Globo trouxe tendências ditas “medievais” que poderiam inspirar looks do dia a dia. A figurinista Lara Ildefonso foi convidada pela produção para trazer tendências de Deus Salve o Rei que poderiam ser utilizadas pelas espectadoras da novela. As cores mais quentes do reino de Montemor, como o coral e o vermelho; e o azul, o roxo e o cinza como os tons frios de representantes do Reino de Artena; o decote alongado, de Catarina, acompanhado de maxi colares; os corsetes de Amália; as sobreposições de peças e as pochetes12, foram os destaques que a figurinista Cearense trouxe para referenciar o figurino da novela na rede de consumo de moda. Contudo, vale ressaltar que a ditas tendências não remetem de fato à medievalidade, mas sim à uma leitura contemporânea em torno do imaginário do medievo. Logo, podemos dizer que ao serem vistos como referência do período, a contemporaneidade presente no figurino medieval permitiu a aproximação da moda com a mídia, se tornando alvo de consumo das telespectadoras.

Considerações finais A argumentação em torno do presente artigo teve como finalidade debater três questões: O figurino de época como uma forma de representação do passado ao abordar trajes que não tem o compromisso de se relacionar com o real, mas sim com a expressão da subjetividade da personagem; A historicidade da criação artística do figurinista como meio determinante na produção de uma memória histórico-cultural no telespectador; E, por fim, a midiatização da moda como mediação que auxilia tanto na construção de sentidos quanto na configuração da linguagem, sendo esta referente à dimensão tecnológica dos meios de comunicação e à narrativa histórica.

11 Ver em: Deus Salve o Rei: o estilo das personagens. Disponível em: https://blog.prataearte.com.br/deus-salve-o-rei-o-estilo-das-personagens/ 12 CAMÂRA, Andressa. Figurino de ‘Deus Salve o Rei’ inspira looks que podem ser usados no dia a dia. Disponível em: https://gshow.globo.com/TV-Verdes-Mares/Se-Liga-VM/noticia/figurino-de-deus-salve- o-rei-inspira-looks-que-podem-ser-usados-no-dia-a-dia.ghtml

A partir da ideia de mídia como uma “matriz configuradora de sentido”13 que demarca e modela processos de apropriação e construção de significações (MATA, 1999 APUD, SCHMITZ, 2018, p. 17), podemos dizer que a mediação da tela se torna uma forma de exposição de informações e do consumo. A televisão se apresenta como uma vitrine de loja de longo alcance. As novelas enquanto produtoras de uma narrativa histórica ficcional repleta de signos e significados vão aproximar a lógica midiática da moda, a fim de difundir novas tendências que dialoguem com a novela em exibição. Os telespectadores como indivíduos inseridos em uma sociedade midiatizada, se tornam “participantes ativo no processo de recepção”, não se resumindo apenas ao papel de “receptor passivo e admirador solitário” (BORTHOLUZZI, 2018, p. 37). Desta forma, o processo de midiatização da moda vai ser desenvolvido em conjunto com as múltiplas mediações culturais e sociais interpostas nos processos de consumo e recepção midiática. Tão logo, as peças ditas medievais vão fazer sucesso porque a novela traz referências que estão de acordo com o gosto da cultura ocidental. Como esses figurinos se caracterizam por produzirem uma memória histórica que se aproxima mais de uma produção ficcional midiática, o público que não conhece o tempo histórico apresentado acaba atrelando a imagem da novela a um imaginário histórico medieval. Nesse sentido, a novela proporciona o consumo de uma cultura visual que mantém uma visão deturpada sobre os código indumentários e costumes medievais. A partir dos elementos indumentários apresentados, a novela passa a ser vista como uma referência de conteúdo, contribuindo, assim, para a produção de um mercado de moda permeado de estereótipos culturais.

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CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2ª ed. Lisboa: DIFEL, 2002

13 Ver: MATA, Maria Cristina. De la cultura massiva a la cultura mediática. In: Diálogos de la Comunicación, Lima, n. 50, 1999

Entre tramas, rendas e fuxicos - Figurino na teledramaturgia da TV Globo. São Paulo: Globo, 2007.

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WAJNMAN, Solange; NAVARRO, Elisa Fajolli. Configurações Culturais e figurino da telenovela O Clone. Anais. 3º Colóquio de Moda, Belo Horizonte: 2007. Disponível em: http://www.coloquiomoda.com.br/coloquio2017/anais/anais/edicoes/3-Coloquio-de- Moda_2007/3_13.pdf