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Os de : diáspora africana ou parte integrante do sistema de castas indiano? 1

Andreas Hofbauer (UNESP-Marília)

Resumo: Em pequenas aldeias ou em casas isoladas nas matas virgens do hinterland de Goa, vivem alguns milhares de descendentes de africanos. O mais visível marcador de diferença dos siddis, que vêm sendo tratados por muitos indianos como uma casta inferior, é o cabelo crespo. Internamente, dividem-se em três grupos religiosos (cristãos, hindus e muçulmanos). Tal como as demais castas, os siddis têm evitado, entre si, casamentos inter-religiosos e a comensalidade. Por outro lado, não são aceitos pelos respectivos irmãos de fé “não-negros” como iguais, nem dentro dos seus templos religiosos. Recentemente, o padrão das relações intra- e intergrupais começou a mudar lentamente. Marco importante neste processo foi a conquista do status de Scheduled Tribe , em 2002, que possibilitou aos siddis reivindicarem a inclusão em programas governamentais de ação afirmativa. Os esforços dos líderes siddis, que vêm buscando consolidar um espírito de união para além das fronteiras religiosas, desafiam o poder dos padres, brâmanes e mulas (todos eles não-siddis), que têm exercido forte influência sobre os siddis. Nos poucos escritos existentes sobre os siddis de Karnataka é comum encontrar afirmações, que sustentam não ser a discriminação dos siddis de ordem racial, já que eles enfrentam as mesmas dificuldades que qualquer outra casta inferior, ou ainda que a discriminação dos siddis não se distingue daquela enfrentada por outros “negros” diaspóricos. Para fugir a tais avaliações generalizantes, minha análise se concentra na maneira como os próprios siddis têm vivenciado a questão da diferença e da desigualdade e como, na contemporaneidade, “tradições” de inferiorização e de diferenciação estão sendo reatualizadas e/ou transformadas.

Palavras-chave: casta, raça, diferença e desigualdade

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 2

Pano de fundo para a pesquisa sobre os siddis, desenvolvida ao longo de um estágio de pós-doutorado, entre fevereiro de 2013 e janeiro de 2014, são meus estudos e reflexões sobre racismo e antirracismo. A proposta inicial do projeto visava, acima de tudo, contribuir, à luz de um exemplo empírico concreto, para um aprofundamento da reflexão teórica sobre conceitos como cor, raça, casta, diáspora e, num plano mais abstrato, sobre a relação entre diferença e desigualdade. Foram dois importantes eventos internacionais – a Conferência Mundial contra o Racismo em Durban (2001) e a Conferência sobre Diáspora Africana em Pangim (2006) – e as discussões e os debates em torno deles que me impulsionaram a elaborar uma pesquisa de campo entre os siddis de Karnataka. As primeiras leituras sobre os movimentos dalit e as formas de representação apresentaram, para mim, certo paradoxo que suscitou minha curiosidade: descobri que, por um lado, há uma tradição de luta de longa data que busca aproximar o fenômeno de casta ao de raça – i.e., comparar a situação dos dalits com a dos negros norte-americanos (cf. o pensamento de líderes como Walangkar, Ambedkar) – com o objetivo de combater graves discriminações sofridas pelos “intocáveis”; por outro, parecia existir um grupo pequeno – os siddis –, cuja proveniência africana é inegável, que tem “tradicionalmente” buscado apresentar-se como uma casta e/ou como um grupo religioso. Pesquisas bibliográficas revelaram-me, porém, que na mencionada conferência em Pangim (Goa) a avaliação da história, da situação atual e do tipo de discriminação sofrida por esse grupo começava a ser discutida de forma controversa 2. Sid(d)i3 é o nome atual mais comum dado a grupos que se distinguem e são distinguidos por marcadores de diferença que os relacionam, de um modo ou outro, ao continente africano; até o séc. XIX, o termo habshi4 era mais disseminado. Os sid(d)is

2 Há aqueles pesquisadores que entendem que, pelas características específicas de chegada e inserção dos africanos na Índia, conceitos como diáspora e afro-indianos distorcem a realidade (Campbell); a estes, opõe-se uma postura que busca inserir os sid(d)is numa rede de experiências afrodiaspóricas e contra- hegemônicas (Obeng).

3 Existem diferentes formas de escrita – sidi, siddi, siddhi, sheedi –, que se explicam também por diferenças regionais e pela diversidade linguística interna ao grupo. Sidi é a grafia preferida para descrever os descendentes dos africanos em Gujarat; já em Karnataka atualmente costuma-se utilizar a grafia siddi. A maioria dos autores acredita que o termo sidi surgiu como uma derivação da palavra árabe “sayyid”, que era e ainda é usada como termo de respeito e reverência no norte da África (p. ex., Basu, 1995: 58). Mais recentemente, Lodhi apontou para outra derivação etimológica possível: do termo árabe “saydi”, que significa “prisioneiro de guerra ou cativo” (in: Prasad, 2005: 103). 4 Habshi provém da palavra “habsh”, usada pelos árabes para designar escravos provenientes da Abissínia (Al-Habsh). Na Índia, seria o termo mais usual, a partir do final do séc. XV (antes da disseminação do conceito sidi), e ganharia a conotação de qualquer pessoa vinda da África (na época do tráfico de escravos promovido pelos portugueses, escravos bantos e nilóticos eram chamados também de “habshis”) (Basu, 3 constituem hoje uma pequena minoria e a maioria dos indianos nem sabe de sua existência 5. Há muita divergência entre aqueles que se dizem sid(d)is; vivem espalhados em diferentes regiões (estados de Gujarat, Maharashtra, Karnataka, Andhra Pradesh; além do Paquistão, onde se encontra a maior comunidade) e falam diferentes línguas: gujarati, marati, canada, concanim, sindi, makrani e um dialeto de balúchi. Alguns vivem em pequenas comunidades afastadas em florestas, muitos em espaços urbanos. Além disso, há também divergências religiosas marcantes entre eles (islamismo sunita, sufismo, catolicismo e hinduísmo são influências presentes). Essa grande diversidade explica-se em boa parte por histórias diferentes. É sabido que o contato entre a Índia e a África é de longuíssima data: o tráfico de escravos remonta, no mínimo, ao século III, quando árabes começaram a levar africanos a portos indianos (Campbell, 2008: 22). Com a expansão do islã, essa atividade ganharia uma nova conotação (cf. abaixo). No entanto, o tráfico de escravos que envolveu a região do oceano Índico diferenciava-se, de diversas formas, daquele ocorrido no oceano Atlântico: embora o primeiro tenha começado muito antes do segundo e tido uma duração bem maior (em algumas regiões até o séc. XX), o montante de escravos transportados era menor do que o chegado às Américas 6. Este fato devia-se, sobretudo, a diferentes usos dos escravos: seguindo o padrão muçulmano de escravidão 7, viviam na Índia escravos mercenários, marinheiros especializados e muitos domésticos, sendo raro o trabalho escravo na lavoura (plantações). Ao lado dos escravos africanos trabalhavam também escravos de diversas outras proveniências e, portanto, pessoas com diferentes tonalidades de cor de pele e com diferentes fenótipos, o que levou Campbell a caracterizar esse tráfico de colour-blind em oposição ao tráfico atlântico; de acordo com este renomado historiador originário de Madagascar, os escravos de origem africana constituíram sempre uma minoria em toda a região do oceano Índico (Campbell, 2008: 21; cf. tb. Van Kessel, 2006: 461).

2003: 225, 26; 2005, 3; Oka e Kusimba, 2008: 210). 5 Não há números exatos sobre as populações siddi. Há estimativas que falam de 60.000 a 75.000 sidis no estado de Gujarat (maior comunidade na Índia) e de 20.000 a 30.000 siddis em Karnataka; de qualquer forma, a população sidi não deve chegar a 0,05% da população indiana. O número de 250.000 apresentado por Lodhi (1992: 83) destoa da maioria das estimativas. Este cálculo aproximado pode talvez ser explicado pelo fato de que existem muitos descendentes de sidis que preferem não se identificar como tais. 6 No ápice do tráfico, no início do século XIX, aportavam na Índia cerca de 10.000 africanos por ano (Oka e Kusimba, 2008: 209). 7 Sobre a escravidão muçulmana, cf., p. ex., Segal, 2003. 4

Além disso, havia também, desde épocas muito remotas, africanos livres que viajavam à Índia, aparentemente como mercadores livres, e alguns deles parecem ter decidido fixar-se por lá. Diversos relatos históricos (p.ex., Ibn Batuta, séc. XIV) 8 revelam que, no medievo, os africanos eram vistos como habilidosos navegadores e conhecidos pela competência em cuidar da segurança das embarcações. Diferentes motivações, portanto, levavam africanos a ter contato com a Índia. Alguns chegaram lá livremente, muitos outros como escravos executando diferentes trabalhos e tarefas, num primeiro momento, para árabe-muçulmanos e, posteriormente, para portugueses e ingleses. Uma função exercida por africanos que foram levados à Índia destaca-se, pela sua importância tanto histórica quanto atual, no que diz respeito ao jogo do poder colonial e à formação identitária dos siddis contemporâneos: trata-se da chamada elite de escravos, um elemento característico da escravidão muçulmana. Pesquisas recentes têm mostrado que as elites de escravos, como parte da infraestrutura administrativa do mundo muçulmano em expansão, foram fundamentais no processo de state-building muçulmano na Índia (Oka e Kusimba, 2008: 205; Basu, 2003: 229). Oka e Kusimba chamam a atenção para o fato de que os habshis na Índia foram somente um dos grupos de escravos de elite que o mundo muçulmano produziu (mamluks, ghulams ou kuls são nomes de outros grupos similares que atuavam no Egito, no séc. XIII, e em Sokoto, no séc. XIX). Em diversas situações, a elite de escravos foi incumbida de comandar exércitos e marinhas e controlar territórios; esta conseguiu, por vezes, conquistar uma posição de poder de destaque, usurpando, em alguns casos, o poder constituído. Assim, africanos como Malik Ambar – que, no século XVI, controlou o reino Ahmadnagar e o defendeu contra o avanço dos mogóis – assumiriam posições de lideranças políticas e militares, seguindo o modelo corporativo que marcava as oligarquias de elite de escravos do mundo muçulmano (Oka e Kusimba, 2008: 206, 207, 215). Talvez o auge desse processo na Índia tenha sido a tomada da ilha Janjira por um grupo de sidis que, a partir desse forte, desenvolveu um jogo extremamente habilidoso de alianças com mogóis, maratas e, inclusive, com ingleses e portugueses, mantendo o controle político e militar sobre um feixe importante do litoral da região. No séc. XIX Janjira tornou-se protetorado sob o domínio dos ingleses, mas somente em 1948, com a

8 Cf. o comentário do grande viajante Ibn Batuta depois de ter atravessado o oceano Índico num navio com “cinquenta arqueiros e cinquenta guerreiros abissínios que são os senhores do mar (...)”: “Quando há somente um deles a bordo, os piratas hindus e os infiéis evitam atacá-lo” ( apud Oka e Kusimba, 2008: 208; tradução minha). 5 integração compulsória à Índia independente, o último “nawab” (governador siddi) foi forçado a abdicar. Nem todos os sid(d)is contemporâneos são, evidentemente, descendentes dessa elite de escravos. A maioria deve descender de escravos comuns. No caso de Gujarat, muitos foram traficados por muçulmanos e criaram contextos ritualísticos complexos (em torno do culto a Bava Gor) por meio dos quais se conectam à “história gloriosa” das elites de escravos. Já no caso de Karnataka, há indícios de que a maior parte dos antepassados dos siddis contemporâneos fugiu de traficantes e senhores portugueses residentes em Goa; outra parte, acredita-se, deve ter fugido de reinos muçulmanos situados mais ao norte na região do Decão (Bijapur). Enquanto há alguns trabalhos antropológicos de muito boa qualidade sobre os sidis de Gujarat (Basu), estudos aprofundados sobre os siddis de Karnataka são mais escassos.

Os siddis de Karnataka: diferença e desigualdade Os siddis de Karnataka vivem numa região do norte do estado, chamada (Gates Ocidentais). Esta área, situada no hinterland do litoral de Goa, abrange uma serra, ocupada por uma densa selva tropical, seguida de um planalto, que é climaticamente bem mais seco. Os siddis de Karnataka subdividem-se em três grupos religiosos: católicos (cerca de 45%), hindus (30%) e muçulmanos (25%) (cf. Camara, 2004: 102). Não há estatísticas oficiais; as diversas estimativas feitas em épocas diferentes por autores e entidades diferentes indicam, porém, um nítido crescimento populacional nas últimas décadas 9. Enquanto o planalto é habitado por siddis cristãos e muçulmanos, os siddis hindus vivem majoritariamente nas encostas da serra. Também as estruturas dos povoados diferem. Cristãos e muçulmanos vivem em pequenas aldeias; nelas, as casas estão dispostas geralmente de ambos os lados de uma rua que forma o “eixo” do povoado. Algumas poucas aldeias são formadas exclusivamente por siddis cristãos ou siddis muçulmanos; em diversos outros povoados, siddis cristãos convivem com siddis muçulmanos (ainda que espacialmente segregados) e, não raramente, pode-se encontrar também a presença de não-siddis (geralmente maratas). A situação dos siddis hindus é

9 Na década de 1960, Palakshappa, que escreveu a primeira monografia sobre o grupo, refere-se a menos de 4.000 siddis vivendo na região. No início da década de 1980, o padre jesuíta C. Lobo registrou 5.578 siddis. O antropólogo indiano Hiremath mencionou 7.223 siddis em 1993; e Obeng, pesquisador ganês- estadounidense, referiu-se, em 2007, a 14.000 siddis. Nas minhas conversas com líderes siddis, ouvi estimativas entre 20.000 e 30.000 siddis. 6 diferente. Suas habitações não formam aldeias. Os siddis hindus costumam viver em casas espalhadas no meio da mata fechada; é comum encontrarmos um pequeno número de casas (frequentemente, de três a dez) distantes algumas centenas de metros umas das outras. A maioria dos siddis vive de agricultura (economia de subsistência). Mas, novamente, podemos encontrar diferenças. Enquanto em algumas aldeias habitadas predominantemente por siddis cristãos (p. ex., Gardolli) a maioria dos habitantes é proprietária da terra que cultiva, a maior parte dos siddis hindus (na região de Yellapur) não possui terra e é obrigada a trabalhar para os Havig Brâmanes, principais proprietários de terra na região. Os siddis têm enfrentado condições de vida extremamente duras. Quase a totalidade dos mais idosos conta histórias de escravidão ou, para sermos mais exatos, de bonded labour (“escravidão temporária”). Era comum uma família “dar” um/a filho/a a um proprietário para que trabalhasse durante um período acordado (não raramente, durante vários anos) em troca de um empréstimo de dinheiro ou para quitar uma dívida. Ocorria também que famílias inteiras submetiam-se a essa condição. Distingue-se dois tipos de trabalhadores servis: “jitadalu” ou “palagar”, aquele/a que executa o trabalho nas plantações; e “maneyalu”, servo/a que trabalha na casa do proprietário. As precaríssimas condições de vida levaram muitos siddis a migrar para fora de “sua” área: destinos de migração temporária são Goa e, mais recentemente, a região do Golfo Pérsico. O fluxo mais atual envolve jovens siddis que se mudam para cidades de maior porte (no estado de Karnataka ou, ainda, em Maharashtra) com o objetivo de obter melhor formação em escolas, colégios e até universidades. Trata-se ainda de uma inexpressiva minoria; no entanto, alguns (pouquíssimos) deles voltam após o término de sua formação às aldeias e empenham-se em projetos sociais e políticos, visando transformações, melhorias socioeconômicas, para “seu grupo”. E há ainda diferenças linguísticas substanciais entre os subgrupos siddis. Os siddis cristãos e os siddis hindus falam, como língua materna, uma variante do concanim, língua falada em Goa. Já os siddis muçulmanos expressam-se em urdu. Hoje, quase a totalidade dos siddis fala também canada (língua oficial do estado que é ensinada nas escolas). Tal situação linguística levou à formulação de algumas hipóteses referentes ao surgimento e à origem das comunidades siddis. Os poucos cientistas que estudaram a história deste grupo tendem a concordar que os siddis cristãos e hindus, que não possuem nenhuma narrativa referente à sua origem, fugiram de Goa para os Western Ghats. A semelhança linguística 7 entre a língua falada em Goa e os falares desses dois subgrupos siddis tornou-se argumento central dessa hipótese. A origem da diferenciação entre católicos e hindus é frequentemente atribuída a um processo posterior. Há quem pense que os siddis hindus eram inicialmente cristãos que, ao sofrer forte influência dos Havig Brâmanes, acabaram assumindo hábitos hindus. Para sustentar tal tese, Hiremath (1993: 135) refere-se ao fato de que até cerca de 30 ou 40 anos atrás os siddis hindus teriam enterrado seus mortos, assumindo apenas recentemente a cremação como padrão de funeral (cf. tb. Palakshappa 1976: 17). Diversos estudiosos (Palakshappa, 1976: 11; Hiremath, 1993: 46; Nijagomnavar, 2008: 36) defendem a ideia de que os siddis muçulmanos são originários do reino islâmico de Bijapur do século XVI (situado ao norte dos Western Ghats). Outros autores referem-se ainda ao reino de Bengala, do qual milhares de escravos foram expulsos no final do século XV após a assunção de um novo rei. Acredita-se que uma parte deles migrou para Gujarat, outra para o Decão. Foi, aliás, entre aqueles que dizem ser o islão a sua religião que encontrei os únicos siddis que possuem uma narrativa sobre sua origem. Hunsere, uma senhora siddi muçulmana de 90 anos, residente na aldeia Sambrani, respondeu minha pergunta a respeito da origem do grupo, com muito orgulho e muita convicção, da seguinte maneira: “Nós descendemos de Abu Bakar Siddak Siddi Bilal, que era o primeiro seguidor de Maomé que tocava o “damam” [tambor] para o divertimento das pessoas”. Segundo diversos textos da tradição islâmica, Bilal ibn Rabah ou Bilal al-Habshi, como é lembrado nestes escritos, era “negro”; vivendo como escravo em Meca, foi um dos primeiros homens a se converter à nova religião pregada por Maomé, que o escolheu para ser o primeiro muezim (pregador) do islão. Esta narrativa dá respaldo para que os siddis muçulmanos rejeitem a ideia de que eles seriam conversos (um argumento usado por muçulmanos indianos para justificar o tratamento desigual dado aos siddis) e explica também por que muitos deles entendem que os siddis cristãos e hindus são conversos: de acordo com esta visão, eles teriam abandonado o islão e mudado de religião após sua chegada na Índia. Outro dado que marca a diferença entre os subgrupos siddis são os nomes das pessoas. Tradicionalmente, os siddis católicos possuem nomes e até sobrenomes portugueses, tendo ocorrido, frequentemente, algumas alterações nas terminações (cf. p. ex. os seguintes nomes masculinos: Diog, Caetan, Ambros; e sobrenomes: Fernandes, De Souz). Os hindus possuem, na sua maioria, nomes indianos hindus (Ramnath, Mohan, 8

Praveen), enquanto os muçulmanos assumem nomes e sobrenomes da tradição árabe- muçulmana (p. ex., Abdul, Ismail, Mahbub; Naik, Patel, Halvaldar) 10 . A situação linguística e religiosa diversa sugere que os grupos residem nessa região há muito tempo e tiveram (pelo menos no que diz respeito aos cristãos e aos muçulmanos) pouco contato entre si. Há fortes indícios de que, antes de terem migrado, eles viviam em diferentes regiões da Índia e se encontraram nos Western Ghats fugindo de situações de exploração e/ou discriminação. Tal situação relembra, evidentemente, a história dos quilombos ( maroons , palenques ) no continente americano. Como nas Américas, também na Índia uma das principais razões que impulsionou a fuga para uma região tão remota pode ter sido o fato de que os siddis eram facilmente reconhecíveis como escravos ou descendentes de escravos justamente por causa de suas características físicas particulares. Tal interpretação seria, evidentemente, um argumento a favor da tese segundo a qual o fenótipo teve e tem um papel de diferenciação social mesmo na Índia, ou seja, mesmo num sistema de diferenciação social profundamente marcado pela lógica das castas. De qualquer modo, parece não haver dúvidas de que a discriminação social sofrida pelos diversos subgrupos siddis esteve na origem da migração para uma região como os Western Ghats. Os siddis têm sido tratados geralmente com desprezo pelos indianos não-siddis que vivem na vizinhança. Têm sido vistos como um grupo único, como mais uma casta que costuma ser situada, na hierarquia das castas, entre os maratas e os chamados intocáveis. Os siddis consentem geralmente com tal posicionamento, sentindo-se superiores aos intocáveis (que são também denominados harijans – proposta de Gandhi – ou dalits – nome preferido por movimentos políticos). Ouvi e registrei um grande número de histórias em que os siddis relatam as mais diversas experiências de tratamento degradante e discriminatório. Foi e continua sendo bastante comum que os brâmanes evitem contato físico com os siddis, demonstrando, desta forma, a mesma atitude que assumem em relação aos intocáveis. Os mais idosos relatam muitas histórias sobre tratamento desigual nos ônibus (eram obrigados a sentar-se na última fila), nas feiras (eram frequentemente enganados na

10 Existem também diversos sobrenomes que, seguindo a tradição marata , designam a localidade de onde a família é originária. Hoje, “siddi” – termo que até poucas décadas atrá era percebido não raro como uma designação discriminatória – tornou-se um sobrenome muito disseminado: alguns acrescentam siddi ao seu velho sobrenome; muitos o substituem por siddi. Tal procedimento foi-me explicado como precondição para a aquisição da ration card , que garante a obtenção dos subsídios estatais concedidos àqueles definidos como membros de uma Scheduled Tribe . 9 hora da compra), nas escolas, em delegacias de polícia, igrejas e mesquitas. 11 Os jovens continuam reclamando de atos discriminatórios semelhantes. Um siddi de cerca de 25 anos me contou que, na sua escola, os alunos siddis eram obrigados a sentar-se na última fila; os professores nunca se aproximaram deles para lhes fazer alguma pergunta ou conferir o que escreviam nos seus cadernos (como não havia carteiras, eram obrigados a escrever no chão), passando-lhes a ideia de que seriam incapazes de aprender algo na escola. Mas os jovens falam também de outras experiências mais ambíguas vivenciadas fora da região em que vivem. Como a maioria dos indianos não-siddis que não convive diretamente com os siddis desconhece sua existência, é muito comum que eles sejam confundidos com estrangeiros (africanos): neste caso, dependendo do contexto, os siddis podem ser tratados como seres exóticos, turistas e/ou como estranhos não desejados. Praveen, um jovem siddi católico relatou-me detalhes de uma viagem a Pangim que o deixou apavorado pelo seguinte motivo: dias antes de sua chegada, alguns nigerianos radicados em Goa tinham entrado em conflito com a população local, sendo acusados não apenas por tráfico de drogas, mas também pelo assassinato de um jovem indiano. A reação local foi violenta; houve tentativas de linchamento. Diante dessa situação, Praveen buscava esconder sua cara, sentia profundo medo de ser confundido com os odiados nigerianos e ficou aliviado quando, finalmente, chegou à rodoviária e tomou o ônibus de volta para Karnataka. No entanto, ocorrem também identificações positivas com africanos e afrodescendentes, sobretudo quando os siddis têm a oportunidade de acompanhar – via TV – eventos internacionais esportivos e/ou musicais. Pude constatar diversas vezes que o termo “siddi” é usado para se referir a importantes esportistas, artistas e políticos africanos (sobretudo Nelson Mandela), e, inclusive, para falar, de forma genérica, de todos os africanos e seus descendentes. Tais situações e episódios revelam claramente que características fenotípicas associadas à África atuam, também na Índia, como marcadores de diferença. No sul do país, onde grande parte da população tem tez escura, é, acima de tudo, o cabelo crespo que “faz a diferença”. Os próprios siddis diferenciam entre pessoas com cabelo encaracolado ( curly hair ) e pessoas com cabelo liso e comprido ( long hair ). “Gungur baal”, “gungur kudlu”, “gungur kesa” ou ainda “girgit bal” são expressões nas diversas línguas (canada, hindi,

11 Não há espaço aqui para aprofundar e analisar os muitos e mais variados tipos de discriminação sofridos pelos siddis. 10 urdu e concanim) usadas para referir-se ao cabelo crespo; já “lamb kesa” (“lamba bal”) significa cabelo comprido, termo utilizado para designar todos os não-siddis. Na Índia, expor o cabelo liso e comprido, geralmente ornado com pétalas de flores, é um costume disseminado entre mulheres de todos grupos e todas as castas. É parte fundamental de uma estética feminina altamente valorizada. Como os/as siddis assimilaram a maioria dos hábitos de vestimenta e dos valores estéticos da sociedade na qual estão inseridos, pode-se perceber que as mulheres siddis elaboraram estratégias para adaptar o seu cabelo crespo ao modelo hegemônico. Além da prática de alisamento, buscam amarrar seu cabelo crespo, de forma a parecer mais liso, ou, ainda, entrelaçam ao seu próprio cabelo fios artificiais lisos. Seguindo padrões hegemônicos de estética indiana, os siddis – especialmente as mulheres – utilizam também diferentes métodos para branquear a cor de sua pele. Se, em épocas mais remotas, a aplicação de pó de arroz era popular, podemos encontrar hoje nas mais distantes aldeias o uso de cremes branqueadores ( whitening creams ) que são propagados, frequentemente por atores do cinema indiano (Bollywood), nos comerciais das grandes TVs indianas. No ano de 2010, a BBC publicou um artigo informando que o mercado desses produtos tinha crescido 18% ao ano e superado, em muito, o consumo de Coca-Cola e o de chá. Embora tal fato demonstre que o uso de whitening creams seja muito disseminado na Índia, há pouquíssima reflexão acadêmica sobre o simbolismo whiteness e blackness na história e na atualidade indianas – e, portanto, também sobre a relação entre casta e cor / “raça”. Prevalece, entre muitos intelectuais, a ideia de que a Índia é diferente do Ocidente e que as classificações do sistema de casta não são associadas a nenhum tipo de valorização ou desvalorização de características fenotípicas. Não é difícil mostrar que as concepções portuguesas, inglesas e também árabe- muçulmanas sobre “o negro” resultaram na elaboração de discursos que acabavam justificando a utilização de africanos como escravos; o transporte para a Índia e a integração subordinada daqueles que hoje são chamados de siddis deveram-se, num primeiro momento, a discursos e práticas derivados desses ideários. Mas existem também imagens, ideias, valores que – aparentemente – estão enraizados nas tradições culturais indianas e que associam blackness com status social inferior. Assim, a teoria da invasão ariana, elaborada durante a ocupação colonial britânica por cientistas ocidentais que aplicavam à sociedade indiana concepções raciais da época, tornou-se, há muito, uma 11 narrativa local, que continua agindo como uma força socialmente poderosa 12 . Associações entre a casta dos brâmanes e os arianos, por um lado, e entre as populações mais escuras predominantes no sul do país e a civilização dravidiana, por outro, fazem parte do imaginário de muitos indianos até hoje. Um dos pouquíssimos cientistas indianos que se ateve a analisar concepções hinduístas em relação à valorização de cores / fenótipos é o antropólogo Béteille. Num dos seus estudos, constatou que existe, na sociedade indiana, uma preferência generalizada por tonalidades de cor de pele mais claras. Além de afirmar que “non- Brahmin castes tend to be, on the whole, dark skinned”, chamou ainda a atenção para o fato de que em muitas línguas indianas as palavras fair (claro) e beautiful (bonito) são sinônimos. Para sustentar sua argumentação, Béteille cita alguns provérbios que sugerem uma fusão simbólica entre cor clara e posição social alta: “Nunca confie num brâmane de cor de pele escura [ dark ]”; “Não atravesse o rio com um brâmane de cor de pele escura” (1967: 451, 452). É sabido que o Rig Veda (provavelmente 2.000 a. C.) já falava de uma divisão social em quatro maiores castas (brâmanes [brahmins]: sacerdotes, sábios, professores; xátrias [kshatriyas]: guerreiros, governantes; vaixás [vaishyas]: agricultores, pastores, comerciantes; sudras [shudras]: artesãos, serventes, trabalhadores – os intocáveis eram vistos como um grupo fora deste sistema de casta). O termo em sânscrito para o que viria a ser chamado posteriormente de casta é “varna” 13 , que significa literalmente “cor”. Embora seja possível encontrar referências à valorização de cores claras no Rig Veda (certos hinos projetam um simbolismo que valoriza a branquitude e deprecia a cor negra, criando, portanto, uma oposição de cores que pode eventualmente codificar a luta do bem contra o mal), não há nenhuma prova de que a escolha do termo “varna” tivesse como objetivo principal identificar e justificar o pertencimento a determinadas castas por meio de classificações de grupos humanos em termos de cor de pele. O que me parece possível argumentar é que a sociedade indiana é, há muito tempo, sensível a diferenças de cores (inclusive de pele) e tende a valorizar tonalidades

12 Max Müller é tido como mentor da chamada teoria racial ariana: em meados do séc. XIX, este filólogo defendeu a ideia de que, entre 1.000 e 1.500 a. C., um grupo chamado por ele de ariano, descrito como uma população branca, teria penetrado o noroeste da Índia e, posteriormente, subjugado e empurrado a população dravidiana em direção ao sul do subcontinente. 13 As varnas constituem até hoje um esquema ordenador de referência fundamental; além disso, há as milhares de “jatis”, subcastas, que orientam, na vida cotidiana, as interações sociais (“jati” significa, literalmente, nascimento, vida, ordenamento). 12 mais claras como um ideal estético 14 . Parece que tal “tradição” recebeu novos impulsos a partir do contato com o mundo ocidental desde a ocupação colonial (cf. os estudos antropológicos efetuados por Risley, administrador colonial e responsável pelos primeiros censos na Índia) e está, atualmente, ganhando nova força e assumindo diferentes formas com a disseminação de padrões estéticos via televisão e mídias eletrônicas.

Se voltarmos a olhar para a questão religiosa, podemos perceber que cada subgrupo siddi faz parte de uma comunidade religiosa maior; no entanto, a “integração” dos grupos às comunidades religiosas às quais pertencem ocorreu, nos três casos, de tal maneira que nelas vieram a assumir posições subalternas. Cerca de 40 anos atrás, época em que os padres residiam em (onde existia a única igreja da região), os siddis que queriam assistir à missa aos domingos tinham de caminhar até a igreja, onde eram obrigados a tomar assento na última fileira. Naquela altura, os padres recorriam, por vezes, a métodos de evangelização e disciplinamento muito severos: assim, comportamentos recriminados pelos padres como imorais podiam acarretar punições, desde multas (pagamentos em dinheiro) até expulsões da comunidade (excomunhões). O trabalho missionário visava basicamente a dois objetivos: em primeiro lugar, os padres esforçavam-se em combater aquilo que entendiam como crenças animistas (“bruxarias” etc.). Não há dúvida de que o trabalho missionário tem conseguido reprimir, nas últimas décadas, muitas práticas ritualísticas que os siddis cristãos aparentemente compartilhavam com populações hindus da região. Assim, diversos cultos descritos em dissertações defendidas na Universidade de Dharwad na década de 1960 (p. ex., o culto aos ancestrais da casa, chamados de “jante” ou “hiriyaru”) não são mais praticados pelos siddis cristãos. Em segundo lugar, os padres buscavam impedir possíveis conversões a outras religiões e, sobretudo, casamentos de católicos com pessoas não-cristãs. “Casais mistos” em termos religiosos sofriam fortes pressões: eram ameaçados de serem expulsos da aldeia; havia casos em que os padres pressionavam os membros da comunidade a cortar relações com o “casal misto”; o/a parceiro/a cristã/o podia ser punido/a com a excomunhão. Num caso, relatado por Kashinat (1963: 44), duas mulheres – uma

14 Margaret Alva, membro do Partido do Congresso e também ativista de longa data empenhada na causa dos siddis, sublinhou este fato em sua fala inaugural na Conferência de Goa. Para ilustrar que a Índia é uma sociedade ciosa da cor (“colour-conscious”), ela se remeteu às atitudes das avós indianas no momento do nascimento de um/a neto/a. Quando uma das suas filhas está prestes a dar à luz, a primeira pergunta delas seria se o novo membro da família será menino ou menina; já a segunda pergunta, que vem logo a seguir, é: terá pele clara? ( apud Van Kessel, 2008: 21). 13 muçulmana, outra hindu – que conviviam com siddis cristãos viram-se obrigadas a converter-se ao catolicismo dentro do prazo de um ano e, até que isso acontecesse, nem elas, nem seus companheiros cristãos podiam pisar na igreja. Hoje em dia, casamentos interreligiosos não são mais algo totalmente impossível. Mesmo assim, continuam sendo a exceção e, quando ocorrem, vale a seguinte regra: a mulher há de se converter à religião do marido. Nesse contexto, vale lembrar também que entre os siddis, tal como ocorre entre a maior parte da população indiana (sobretudo no interior do país), a grande maioria dos casamentos é arranjada pelos pais. Os chamados love marriages podem provocar rompimentos com a família (casta) e até atos de agressão física (incluindo assassinatos). Durante minha pesquisa de campo, ouvi muitas reclamações de siddis a respeito de líderes religiosos, padres e mulás (além de brâmanes, é claro), que não são originários da região, mas se arrogariam o direito de criticar a maneira de viver dos siddis e tentariam mudar os hábitos da população local. “Por que precisamos dos mulás quando só vêm aqui para criticar nossa maneira de praticar o islão?”, um ancião de Golehalli questionou. Os siddis muçulmanos de toda a Índia cultuam Bava Gor, concebido como um santo sufi que, em tempos memoriais, teria vindo do norte da África à Índia com a missão de combater o demônio. Os siddis muçulmanos entendem-se como descendentes deste “pir” (“santo”), que é cultuado uma vez por ano durante uma grande festa (“urs”) organizada em torno de um santuário (“dargah”) dedicado a ele. Tal culto teve sua origem em Gujarat e, de lá, aparentemente se espalhou até Karnataka. Numa entrevista, a já mencionada anciã muçulmana que reside em Sambrani reclamou da presença de um grupo “ortodoxo” de muçulmanos (os chamados “Tabligh”, que têm como objetivo o combate a qualquer tipo de culto entendido por eles como sincrético) que, de acordo com ela, promove ataques às festas de Bava Gor. E mais do que isso: não respeitaria as mulheres, tratando-as de forma desigual. Na percepção dessa senhora, a chegada do islão mais ortodoxo (introduzido por mulás provenientes de cidades distantes) levaria a uma desautorização das formas religiosas locais (inclusive dos líderes locais) que ela identifica claramente como “verdadeira” tradição islâmica, além de contribuir ainda para a marginalização das mulheres nos rituais e sua inferiorização na vida cotidiana. Alguns siddis (católicos e muçulmanos) expressam hoje o desejo e a esperança de que, um dia, tenham seus “próprios” líderes religiosos. Alguns jovens siddis muçulmanos já foram mandados pelos seus pais a Bijapur para estudar em renomadas Escolas de 14

Alcorão com o objetivo de se tornarem mulás. E já há dois padres católicos formados, sendo um deles atuante na região. No que diz respeito aos siddis hindus, a situação é diferente: não existe a possibilidade de algum deles vir a fazer parte do grupo de sacerdotes responsável pela execução dos cultos hinduístas mais importantes: inseridos no sistema de castas hindu, nenhum siddi pode tornar-se brâmane. Percebe-se, portanto, que as relações entre siddis e suas comunidades religiosas não primam pelo igualitarismo. Os siddis nunca foram aceitos como iguais pelos seus “irmãos de fé”. Geralmente, muçulmanos não-siddis evitam casamentos com siddis. Alguns recusavam-se a comer juntamente com os siddis – atitude que aponta para a força do preceito hindu da comensalidade, o qual tem funcionado como um critério importante de afirmação da identidade das castas e de manutenção de suas fronteiras. Tradicionalmente, os siddis muçulmanos têm promovido casamentos entre primos cruzados, uma prática considerada tabu pelo islão ortodoxo, que prefere casamentos entre primos paralelos. Pesquisadores como Choukimat (1963: 67) descrevem uma divisão interna à comunidade muçulmana que seguiria o modelo das castas e associam os siddis muçulmanos à mais baixa de todas as “subcastas muçulmanas”, a dos shaikh (ou shek ou sayyad). Ao mesmo tempo, pode-se perceber que muitos siddis muçulmanos contestam tal inferiorização, já que eles se vêem como “muçulmanos originários” que teriam trazido a fé muçulmana da África para a Índia. De acordo com essa visão, os siddis não poderiam ser vistos como “conversos”, um status sempre citado quando católicos ou muçulmanos que se entendem como ortodoxos negam tratamento igual a grupos entendidos como não ortodoxos. E há ainda aqueles que acreditam que vários siddis muçulmanos foram um dia cristãos; teriam optado pela conversão devido ao fato de que o islão não se opõe à prática da poligamia praticada por eles (Palakshappa). Se olharmos para as disputas históricas em torno das classificações e hierarquizações entre os grupos, o que chama a atenção são os critérios e métodos de diferenciação que eram e continuam sendo frequentemente usados. Muitos deles são bem conhecidos em toda a região e, de certo modo, típicos para a sociedade indiana. Trata-se de noções de pureza relacionadas com hábitos alimentares (em toda a região, comida “halal” santificada pelos mulás, consumo de carne de porco ou de boi operam como marcadores de diferença) e com a estratégia hindu fundamental que visa à preservação da integridade comunitária: a imposição de regras endogâmicas rigorosas. Hoje, diversos jovens, especialmente aqueles que se entendem como educated e que buscam trabalhar 15 em prol da melhoria social dos siddis, vêem as regras endogâmicas como uma espécie de resquício (sobrevivência) do passado. Mas há também aqueles que continuam defendendo a escolha tradicional, feita pelos pais, inclusive como a forma de casamento mais firme e segura. Encontrei também um jovem que se referiu à escolha da parceira como um ato político. Este siddi católico afirmou que se casaria, sem dúvida, com uma siddi, mas uma que pertença a um grupo religioso diferente do seu. Tal casamento contribuiria para superar diferenças internas e fortaleceria o grupo. Já a velha geração contou-me que, na sua época, casar com alguém de fora de seu grupo religioso era algo inimaginável. A senhora Husenre, com 90 anos, disse-me o seguinte: “Nós, siddis, pertencentes a diferentes religiões, somos todos amigos. Mas não deve haver ´relações´ [sexuais; de parentesco] entre nós. Isso não é bom. A casta [à qual pertencemos] é a mesma. Mas uns seguem Jesus, outros Maomé e outros são hindus”.

Construindo identidades além das “religiões-castas”? Desde 2002, os siddis de Karnataka são oficialmente considerados uma “Scheduled Tribe” 15 . A conquista deste status pode ser vista (como faz a maioria dos atuais líderes siddis) como o resultado de esforços que visavam a unir os siddis para além das fronteiras religiosas; um processo que envolveu também a participação ativa de agentes sociais que vinham de fora das comunidades. A primeira tentativa de executar tal projeto a que pude encontrar referência foi lançada por Vinoba Bhave. Este líder espiritual, advogado e amigo de Ghandi, lutador pela independência do país, perseguia a estratégia de luta não-violenta com o objetivo de combater a discriminação estrutural dos “harijans” (intocáveis). De acordo com Lambi (1963: 59), Vinoba Bhave apareceu na região dos siddis em 1961 e buscava convencê-los a abandonar suas religiões; eles deveriam unir-se como grupo único e, além disso, assumir uma nova forma de religiosidade pregada por ele, que fundia diferentes tradições locais. Quando ele se retirou, sem ter obtido grande sucesso na execução de seu projeto, o padre de Haliyal foi visitar as aldeias cristãs e discursou furiosamente contra todos

15 Os termos Scheduled Castes e Scheduled Tribes ganharam importância social na Índia logo depois da promulgação da Constituição, em 1950. Já antes disso, o Act de 1935 tinha classificado – pela primeira vez – alguns grupos como “backward tribes” e, no censo de 1931, algumas comunidades tinham sido reconhecidas como “primitive tribes”, outras como “backward classes” (Lobo, 1984: 89). Palakshappa (1976: 14) relata que em 1953 a chamada “Backward Class Commission” incluiu os siddis hindus na categoria de “backward classes”; já os siddis católicos e muçulmanos foram classificados no relatório ( report ) como “forward classes”. 16 aqueles que caíram na tentação de juntar-se a pessoas pertencentes a outras religiões. Teria dito o padre: “Christians Sidis are different from Muslim Sidis and Muslim Sidis are also different from Hindus or Christians. Vinoba Bhave wanted to take the benefit of your ignorance. Christian Sidis should not go anywhere without his [father´s] permission” (in: Lambi, 1963: 60). No início da década de 1980, Cyprian Henry Lobo (que posteriormente mudou seu nome para Kiran Kamal Prasad como sinal de identificação com a cultura hindu) estudava antropologia na Universidade de Karnataka (Dharwad) e atuava como padre jesuíta na região dos siddis. Mostrando-se muito preocupado com a situação social local extremamente precária, produziu um relatório (em 1984) dirigido a autoridades governamentais (presidente da Índia, governador de Karnataka, entre outros), no qual reivindica a inclusão dos siddis na lista dos “Scheduled Tribes”. Num capítulo à parte, Lobo desenvolve uma reflexão sobre o conceito antropológico de tribo, procurando justificar sua aplicação ao grupo em questão. A argumentação a favor do reconhecimento dos siddis como uma tribo tinha um objetivo político claro: deveria garantir aos siddis a possibilidade de adquirir subsídios governamentais. No momento em que Lobo escrevia seu report , o governo parecia seguir as orientações apresentadas no Handbook of Scheduled Castes and Scheduled Tribes (editado em 1968) para definir o que seria uma tribo. Neste manual, quatro critérios básicos são citados: origem tribal; maneira primitiva de viver; povoações situadas em áreas afastadas e de difícil acesso; e, ainda, “general backwardness in all respects” (cf. Lobo, 1984: 90). No seu texto, Lobo buscava, portanto, comprovar a existência dessas quatro características nas comunidades siddis. Chama a atenção o fato de que nem a proveniência específica do grupo, nem práticas culturais particulares são citadas como argumento. Ao contrário, o texto termina com as seguintes palavras: “The Sidis in Karnataka are not that numerous. They are just around 6.000. But building up a small marginalized section of humanity and strengthening and preserving its identity while at the same time helping it to integrate itself in the mainstream of national life will only add to the diversity and richness that is India” (ibid., 102) 16 .

16 Hiremath seguiria, mais de dez anos depois, a linha de argumentação elaborada por Lobo: na sua tese, faz um apelo para que os siddis sejam vistos como “Indian Nationals”, devendo, portanto, receber o mesmo tratamento que o Estado confere a outras “backward tribes”, lembrando ainda que a constituição indiana proíbe atos discriminatórios baseados em “race, caste, creed, colour, religion” (Hiremath 1993: 289). 17

Nas décadas de 1980 e 1990 surgem as primeiras associações e organizações siddis; na maioria das vezes, receberam fundos de instituições nacionais e internacionais (contaram com a colaboração de agentes da igreja e/ou de assistentes sociais) e tiveram vida relativamente curta: não raramente, o fim dos financiamentos resultou também no fim das atividades dos grupos. Os três grupos mais importantes foram: “All Karnataka Sidi Development Association – AKSDA” (fundado em 1984); “Sidi Development Project – SDP” (fundado em 1990); “Siddi Development Society – SDS” (fundado em 1999). A partir da virada do novo milênio, surgiram e ganharam força influências e discursos que buscam criar e fortalecer um nexo entre uma identidade siddi suprarreligiosa e uma identidade africana (“pan-africana”); ou melhor, que visam a criar uma identidade siddi suprarreligiosa por meio da disseminação da ideia (“conscientização”) de que todos os siddis possuem uma origem comum africana e, em decorrência disso, compartilham práticas culturais. Em Haliyal vive, há algumas décadas, um ex-pastor adventista proveniente de Uganda. Bosco Kaweesi foi à Índia em missão, atuou durante muito tempo com jovens siddis, casou-se com uma moça siddi e retirou-se, mais recentemente, das atividades missionárias e educativas por problemas de ordem pessoal. Nas minhas conversas e entrevistas, muitos jovens, autodenominados educated , destacaram a importância que o esforço de Bosco teve para a sua formação. Bosco Kaweesi não apenas organizava encontros educativos e esportivos de jovens siddis, mas também os incentivava a estudar em escolas e colégios em Bangalore ou Puna e conseguiu verbas da igreja para moradia e ensino. Diversos líderes jovens, que atuam hoje em ONGs, passaram pelo “Spicer Memorial College” de Pune, que é mantido pela Igreja Adventista do Sétimo Dia 17 ; outros estudaram em escolas católicas (nas regiões de Haliyal, Yellapur e ) e moraram em casas estudantis financiadas pela Igreja Católica. O centro de educação católica para siddis foi, sobretudo na década de 1980 (enquanto jesuítas como Lobo atuavam na região), a Escola Loyola situada em Mundgod. Outro personagem importante que tem incentivado os jovens a se interessar pela África, pela história de seu grupo e por criar diálogos como outros “negros diaspóricos” é o pesquisador Pashington Obeng. Especialista em estudos religiosos, este intelectual

17 No auge da atuação de Bosco, ocorreram diversas conversões. Mas nem todos os jovens católicos e hindus que frequentaram o colégio em Pune aderiram à Igreja Adventista. E, mais recentemente, pode-se constatar que não poucos convertidos à Igreja Adventista retornaram à sua religião “originária”. 18 originário de Gana e radicado nos EUA (professor de Harvard) vem desenvolvendo estudos sobre os siddis de Karnataka desde a década de 1980. Em 2007 publicou um dos estudos recentes mais detalhados e importantes sobre essas populações que tem como título Shaping membership, defining nation . Um dos objetivos que Obeng persegue nas suas análises é o de comprovar que existe, entre os siddis, um núcleo cultural comum. Para isso, ele frequentemente faz comparações com fenômenos culturais da África banto. Outra preocupação argumentativa desse autor é questionar aquelas análises, que ele localiza na maioria dos estudos feitos por pesquisadores indianos (tais como Palakshappa), que tenderiam a explicar a inferiorização dos siddis unicamente pela inserção subalterna na lógica indiana das castas. Ao opor-se a essa interpretação, Obeng realça o fator “raça” 18 tanto como critério de discriminação quanto como fator de identificação, e busca, dessa forma, trazer à tona aquelas experiências que todos os africanos e seus descendentes teriam em comum. Ele chega à conclusão de que os “indianos africanos” ( African Indians ) – termo que ele prefere para falar dos siddis – “criaram e preservaram aspectos de sua cultura e de sua religião” que têm contribuído para a afirmação de “sua identidade racial”. E Obeng é explícito e enfático em dizer que, com seus estudos, pretende dar um impulso a futuras investigações sobre posicionamentos contra-hegemônicos de africanos diaspóricos comuns que demonstrem que alianças podem ser forjadas em planos regionais, nacionais e globais (Obeng, 2008: 249).

Se olharmos para a rica e multifacetada produção cultural dos siddis podemos, evidentemente, encontrar alguns elementos que são reconhecidos, tanto por eles quanto por pessoas de fora, como “tradições tipicamente siddis”: existem festas, danças e músicas praticadas somente por siddis, que são frequentemente lembradas e realçadas por aqueles que buscam construir e defender uma “perspectiva afrodiaspórica”. Em primeiro lugar, podemos citar o “damam” (tambor), que é tocado em quase todos os encontros e eventos que reúnem populações siddis; alguns vêem o “damam” como uma espécie de

18 Nas minhas conversas com jovens siddis em língua inglesa percebi que a palavra race não é utilizada; a maioria deles até desconhece esse conceito, o que não significa, porém, que diferenças fenotípicas não tenham importância social. Ao mesmo tempo, o termo caste (casta) vem sendo frequentemente utilizado também para discernir grupos – a priori – religiosos (muçulmano, cristão) que, aliás, assumiram também certas características das castas hindus: para delimitar-se do “mundo externo”, seguem os princípios de endogamia e, por vezes, proibições da comensalidade; internamente, diferenciam entre – supostos – não conversos e recém-convertidos, negando aos últimos o mesmo status que é conferido aos primeiros (cf., p. ex., a diferenciação hierárquica entre os grupos Ashraaf e Ajlaaf na comunidade muçulmana).

19 símbolo étnico do grupo. Sempre que siddis encontram-se para celebrar algo (casamento, ato político etc.), no final do evento as pessoas sentam-se em torno do “damam”, cantam e dançam noite adentro. Os tocadores (homens e mulheres) revezam-se no tambor (colocado de forma transversal em cima dos pés do tocador) enquanto o grupo canta e alguns entram na roda e dançam, revezando-se também. Há muita improvisação e muito divertimento. As letras das músicas giram em torno da vida cotidiana: frequentemente têm conteúdo que provoca risos; mas podem conter também comentários críticos e sarcásticos sobre a vida cotidiana 19 . Existe ainda a festa anual de Siddi Nas(h) que, além de possuir importantes características religiosas, vem sendo cada vez mais vista pelos próprios siddis como uma manifestação política que expressa a união e a solidariedade entre todos os siddis. O festival de Siddi Nas é celebrado no interior de uma densa floresta, numa minúscula clareira ao lado de um riacho na região de Sathumbail (zona habitada por siddis hindus). É somente na manhã do dia da festa que o lugar começa a “ganhar vida”, quando alguns siddis aparecem no meio da floresta para montar barracas e um palco e começam a preparar comida para cerca de 400 a 500 pessoas que vêm chegando sobretudo no final da tarde: são siddis pertencentes às três religiões, das mais diversas aldeias localizadas nos Western Ghats. Alguns siddis (líderes) afirmam que Siddi Nas é uma divindade siddi conhecida há mais de 200 anos. Mas há também uma outra versão defendida por um dos primeiros estudiosos dos siddis, Palakshappa, que descreveu – de forma bastante resumida – a cerimônia de Siddi Nas da seguinte maneira: um festival praticado pelos Havig Brâmanes “with the Siddhis in a supporting role, offering coconuts and flowers” (Palakshappa, 1976: 86). Obeng contesta esta análise. Para isso, apoia-se em entrevistas com líderes da atualidade, tais como Sanu Siddi, que insiste no argumento de que Siddi Nash abençoa e protege especialmente os African Indians (termo usado por Obeng, mas nunca registrado por mim em conversas com siddis): “Brahmins do not come to Nash. Nash is specifically for African Indians”, transcreve Obeng a fala de Sanu Siddi (in: Obeng, 2007: 219). Obeng chega à conclusão de que os African Indians , devotos de Siddi Nash, promovem este culto para relembrar e re-encenar importantes aspectos de seu passado (“the construction and devotion of Siddi Nash give form and substance to ´rememory´”, explica Obeng). O pesquisador ganês-estadounidense relaciona a importância crescente dessa

19 Além do “damam”, há ainda as danças de fugidi e sigmo que são também apresentadas, porém com menor frequência, em eventos dos quais participam siddis. 20 festa diretamente com o fortalecimento de uma identidade siddi-africana, com uma espécie de re-descoberta das raízes africanas pelo grupo: “The heightened awareness among African Indians in Karnataka regarding their status and identity in India may account for the increased number of devotees. This site has become an important pilgrimage place, as African Indians use it to build closer ties among themselves” (ibid., 120). Tive a oportunidade de assistir ao festival de Siddi Nas em abril de 2013. A primeira parte da festa era predominantemente religiosa e ocorreu em torno de dois sítios sagrados (situados em dois retângulos cimentados): no primeiro, maior, a divindade Siddi Nas, e, no segundo, a divindade Achakane e seu protetor Bhanta, de menor importância, representados em forma de pedras, são cultuados. Ao observar e dialogar com os participantes, um comentário de Esha, um amigo dos líderes da ONG Siddi Jana Vikas Sanga – que eram meus interlocutores mais importantes –, chamou minha atenção. Crítico do sistema de castas e das dependências e explorações que ele vê como intrinsecamente relacionadas com tal tradição, ele se incomodou com o fato de que a família siddi responsável pela parte cerimonial (“pooja”) sentou-se num lugar distante de todos os outros participantes. Preparava sua própria comida, comia-a sozinha, buscava não se misturar com todos aqueles que vieram cultuar Siddi Nas. Para esse ativista (ele se dedica sobretudo a projetos em defesa do meio ambiente), o “poojari” (sacerdote) e sua família reproduziam o comportamento dos brâmanes; até na escolha de sua vestimenta (o uso de panos de cor de laranja) teriam buscado imitar a estética da casta superior. De acordo com Esha, tratava-se de uma atitude que ele associa àquilo que o sociólogo indiano Srinivas tinha definido, na década de 1950, como processo de “Sanscritização”: “A low caste was able, in a generation or two, to rise to a higher position in the hierarchy by adopting vegetarianism and teetotalism, and by Sanskritizing its ritual and pantheon. In short, it took over, as far as possible, the customs, rites, and beliefs of the Brahmins, and the adoption of the Brahminic way of life by a low caste seems to have been frequent, though theoretically forbidden” (Srinivas, 1952: 30). A segunda parte, após o jantar coletivo, teve características mais explicitamente políticas. Diversos siddis, que se destacaram por trabalhos em prol da comunidade ou obtiveram sucesso em áreas esportivas, musicais etc., foram convidados a subir ao palco (montado, dentro da clareira, no extremo oposto aos sítios sagrados), condecorados e 21 premiados com pequenos presentes. Houve discursos de líderes siddis e, inclusive, de um representante do governo. Na terceira e última parte, que começou perto da meia-noite e não terminaria antes do amanhecer, os mais diversos grupos locais (jovens, homens, mulheres; hindus, cristãos, muçulmanos) fizeram suas apresentações performáticas no palco. Os grupos (cada um representando sua aldeia) subiram ao palco para cantar e dançar, acompanhados, na maioria das vezes, pelo “damam”. Já alguns jovens apresentaram músicas e danças inspiradas num estilo pop; às vezes, incorporaram elementos que lembravam ritmos e performances do rap. E houve também uma performance bem curiosa que pude observar posteriormente em outras ocasiões. Um grupo de jovens vestiu-se com folhas de mamão e pintou seus corpos e rostos com tinta branca – uma estética que choca com os trajes habituais dos siddis e da maioria das populações indianas, que buscam geralmente cobrir o corpo. Por trás da escolha dessa estética está aparentemente a ideia / o desejo de representar-se como uma “tribo”. Expressa-se aqui claramente uma identificação com aquele conceito que teve um papel fundamental na luta pela conquista de direitos especiais ( Scheduled Tribe ). Tal representação parece ter sido desenvolvida primeiro pelos siddis de Gujarat; há grupos de Gujarat que fazem turnês de divulgação de músicas e danças siddis na Índia e até fora do país, utilizando, em partes de suas performances, esse tipo de vestimenta. No auge da encenação, os jovens que imitavam comportamentos de um grupo de “guerreiros africanos” resolveram incluir-me na apresentação performática: cercaram-me, “prenderam-me” e me levaram ao palco. Fiquei agachado no centro do palco, enquanto os “guerreiros selvagens” dançavam em minha volta, olhavam com curiosidade e desconfiança para mim e para minha máquina fotográfica; suas caras expressavam incompreensão e estranhamento. Com a minha máquina na mão, acabei fazendo o papel de um estranho intruso numa “comunidade tribal africana”: o exótico era eu. A plateia deu muita risada. A apresentação foi um grande sucesso e recebeu muitos comentários posteriormente. É difícil descrever meus sentimentos naquele momento. Eu estava envolvido num cenário carregado de símbolos que evocaram em mim associações com ideias e teses que tinham sido elaboradas nos primórdios do pensamento antropológico e com noções de alteridade disseminadas por discursos coloniais e raciais. Surgiram na minha mente imagens e significados que, como críticos pós-coloniais têm argumentado, contribuíram fundamentalmente para negar aos “outros não-ocidentais” o status de sujeito, de cidadão, e, com isso, o direito à igualdade. Ao 22 mesmo tempo, percebi claramente que esta mesma representação suscitou na plateia significados de outra ordem que têm para os siddis, neste momento, uma importância aparentemente muito maior. A representação de si como uma “tribo”, que esteve na origem da conquista do status de Scheduled Tribe , permite-lhes criar um sentimento de solidariedade e de identidade grupal. Dessa forma, fui me convencendo de que essas curiosas “encenações tribais” dos siddis podem ser entendidas também como uma variante daquela estratégia “clássica” de grupos subalternos que Hall chamava de “política de identidade nr. 1”: resolve-se abraçar categorias que vinham sendo usadas para discriminar o grupo e, ao atribuir a tais termos significados positivos, procura-se transformá-los em categorias de autorrepresentação. Diferentemente de Obeng, não entendo esse festival, portanto, “somente” como um revival de uma cultura africana reprimida. Ao conceber que disputas por poder estão, ao mesmo tempo, diretamente relacionadas com disputas sobre a definição de significados culturais, busquei concentrar-me em minha análise na maneira como diferenças e desigualdades são vivenciadas, disputadas, construídas, desafiadas e transformadas pelos próprios agentes. Nesse sentido, foi também extremamente interessante perceber que a parte religiosa do festival (que alguns vêem como um dos eventos que mais fortemente simboliza a união / solidariedade siddi) parece estar imbuída em rituais que são percebidos pela maioria das pessoas da região como semelhantes (senão idênticos) a padrões ritualísticos hindus; e que o “poojari” parece adotar estratégias tidas como “próprias” do sistema de castas que, de acordo com Srinivas, visam a conquistar uma posição mais elevada, sem, ao mesmo tempo, pôr em xeque o sistema de castas como um ordenamento social válido. Contudo, não me parece improvável que a África comece a tornar-se uma referência importante nos discursos políticos em um futuro próximo. Atualmente, muitos jovens ( educated ) siddis demonstram interesse em obter informações sobre a África, sobre africanos e afrodescendentes que vivem em outras partes do mundo. De tudo aquilo que tem ocorrido nas últimas décadas nas Américas, sabemos que um processo de conscientização e/ou de identificação com a África e com “outros mundos afrodiaspóricos” possui o potencial de transformar práticas culturais, religiosas e políticas. Os jovens siddis estão apenas começando a sair das aldeias; procuram entrar em contato com outros grupos (p. ex., estabelecer contatos com os siddis de Gujarat) e começam a disseminar suas opiniões a respeito da história e da cultura siddis, especialmente entre as crianças siddis. Estão buscando meios e caminhos que os 23 conectem a redes trans-locais e até trans-nacionais. No início deste ano (2014), três jovens siddis participaram do Oitavo Congresso Pan-Africanista em Johannesburgo (África do Sul); foi a primeira participação de representantes siddis num evento desse tipo. Em junho de 2014, um membro do comitê organizador deste último Congresso Pan- Africanista faria, pela primeira vez, uma visita aos siddis de Karnataka.

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