INTERESSE NACIONAL ano 11 • número 41 • maio – junho 2018 • R$ 30,00 www.interessenacional.com.br e www.interessenacional.com

PT-PSDB: É Possível Uma Coalizão em Torno de Valores Civilizatórios? Diálogo entre José Gregori e Maria Helena Tachinardi Intervenção no Rio de Janeiro e os Desafios da Segurança Pública Raul Jungmann

Segurança Pública: O “Plano Colômbia” e a Intervenção Federal no Rio Ricardo Vélez Rodríguez

Intervenção Federal no Rio. Polarização ou Despolarização? Sergio Abreu e Lima Florencio Mudança de Governo, Lava Jato e Intervenção Federal: Alguns Aspectos Geopolíticos Marcelo Zero A Hora e a Vez da Produtividade e da Competitividade Jorge Arbache Crenças, Instituições e as Reformas do Estado no Brasil Bernardo Mueller ISSN 1982-8497 INTERESSE NACIONAL ano 10 • número 40 • fevereiro – março – abril 2018 • R$ 30,00 www.interessenacional.com.br e www.interessenacional.com

Das Redes às Urnas: o Avanço dos Novos Movimentos Suprapartidários Michael Freitas Mohallem O Partido Novo: Origens, Ideias e Objetivos Christian Lohbauer

A (Urgente) Mobilização da Sociedade Pelas Causas Estruturais do Brasil Luana Tavares

Raps: Uma Rede de Lideranças Políticas Para Um Brasil Sustentável André Previato Marcos Vinícius de Campos Agenda da Frente Pela Renovação Miguel Nicácio Balanço da Política Externa dos Governos Petistas Rubens Barbosa ISSN 1982-8497

IN_40.indd 1 02/02/2018 14:24 INTERESSE NACIONAL

A Revista Interesse Nacional oferece o seu conteúdo impresso na plataforma tablet. Essa inovação digital beneficia o leitor, pois permite o acesso aos artigos Interesse com total mobilidade e interatividade. Nacional A atualização no formato é necessária para acompanhar nossos leitores onde eles estiverem. Para nós, o importante é a qualidade do conteúdo, sem descuidar dos recursos visuais inovadores. INTERESSE NACIONAL Ano 11 • Número 41 • Maio–Junho de 2018

Editora Maria Helena Tachinardi

Editor Responsável Rubens Antonio Barbosa conselho editorial

André Singer José Luis Fiori Carlos Eduardo Lins da Silva Leda Paulani Cláudio Lembo Luis Fernando Figueiredo Claudio de Moura Castro Luiz Bernardo Pericás Cláudio R. Barbosa Luiz Carlos Bresser-Pereira Daniel Feffer Miguel Lago Demétrio Magnoli Raymundo Magliano Eugênio Bucci Renato Janine Ribeiro Fernão Bracher Ricardo Carneiro Gabriel Cohn Ricardo Santiago João Geraldo Piquet Carneiro Ronaldo Bianchi Joaquim Falcão Roberto Pompeu de Toledo José Gregori Sergio Fausto

interesse nacional é uma revista trimestral de debates focalizada em assuntos de natureza política, econômica e social. Copyright © dos trabalhos publicados pertence a seus autores.

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Printed in 2018 www.interessenacional.com • ISSN 1982-8497 Imagem da capa: www.sxc.hu Sumário

ANO 11 • NÚMERO 41 • MAIO–JUNHO DE 2018

6 Apresentação ciedade brasileira, superar as diver- gências entre PT e PSDB, duas das ARTIGOS maiores agremiações partidárias do País, que eram aliadas nas lutas pela 9 PT-PSDB: É Possível Uma Coalizão em redemocratização, mas cuja relação se Torno de Valores Civilizatórios? deteriorou nos governos de FHC, Lula Diálogo entre José Gregori e Dilma? e Renato Janine Ribeiro Maria Helena Tachinardi 42 A Intervenção Federal no Na reunião do Conselho Editorial da Rio de Janeiro e os Desafios Interesse Nacional que pautou os arti- da Segurança Pública gos desta edição, o conselheiro Eugê- Raul Jungmann nio Bucci sugeriu uma conversa entre o A constituinte de 1988 não vislumbrou o jurista, ex-ministro da Justiça no go- cenário atroz de descontrole da segu- verno FHC, José Gregori, e o filósofo, rança pública que hoje conhecemos. Há ex-ministro da Educação no governo 30 anos, não havia a previsão de multi- , Renato Janine Ribeiro. plicação do poder das facções de um Eles não só tiveram experiências admi- crime que se integrou nacionalmente – nistrativas em governos desses dois nem, muito menos, sua transnacionali- partidos como se empenharam na defe- zação, como hoje se verifica. Os proble- sa dos direitos humanos e já defende- mas nefastos das drogas e do tráfico de ram modos de tornar possível uma coa- armas foram subestimados – ou se lhes lizão entre as duas legendas. O diálogo escaparam mesmo – pelos fundadores e aconteceu no dia 22 de março, em São artífices da Constituição Cidadã. A fra- Paulo. A pauta não poderia ser mais se do autor põe em evidência a necessá- atual e realista, pois trata-se de res- ria alteração na Constituição por meio ponder à questão aguda: é possível, de uma PEC, o que somente poderá ser nos tempos atuais de violência, radica- feito no próximo governo. “Enquanto lização, ódio, preconceito, intolerância não for aprovada a PEC, o Ministério e extremismos na vida política e na so- Extraordinário da Segurança Pública,

...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... 3 criado pelo presidente , 46 Intervenção Federal no Rio. busca fazer com que a União possa efe- Polarização ou Despolarização tivamente dividir com os estados fede- Sergio Abreu e Lima Florencio rados o ônus da segurança pública, O autor é diplomata e serviu no Méxi- dando materialidade à ordem constitu- co e no Equador como embaixador do cional que a estabelece como direito e Brasil. Acompanhou de perto as políti- dever de todos". cas de segurança pública e de combate ao narcotráfico e à violência em terras 34 Segurança Pública: mexicanas e colombianas. Essas duas O “Plano Colômbia” e a experiências, diz, cristalizam uma Intervenção Federal no Rio crescente preocupação com os desca- Ricardo Vélez Rodríguez minhos da política de segurança públi- O autor sintetiza os principais pontos ca no Rio de Janeiro nos últimos anos do Plano Colômbia, conjunto de polí- e condicionam a sua percepção sobre ticas públicas de pacificação imple- a recente intervenção federal. Segundo mentadas no país vizinho e, com isso, o autor, muitos equívocos cercam as dá a sua contribuição ao debate sobre avaliações dessa iniciativa. Uma delas a intervenção federal no Rio de Janei- é que não se justifica uma intervenção ro. O artigo aborda três aspectos da militar há apenas três décadas em que experiência colombiana que poderão o País sepultou o regime autoritário de ser úteis para o caso do Rio: o históri- 21 anos. O outro argumento equivoca- co da violência na Colômbia nas últi- do é que as operações anteriores do mas décadas; as políticas de seguran- Exército na área de segurança na ci- ça pública em Bogotá e Medellín; e a dade foram ineficazes. Outros pontos influência da experiência colombiana que ele rebate: as Forças Armadas fo- no Brasil e como poderá ser dinamiza- ram preparadas para a guerra; e a de- da aqui a política de segurança públi- cisão de autorizar a intervenção fede- ca. Algumas lições que se podem tirar ral foi de ordem político-eleitoral, e do caso colombiano: urgência de sa- não de segurança pública. near os organismos policiais, a fim de recuperar a credibilidade deles entre 56 Mudança de Governo, Lava Jato e os cidadãos; e necessidade urgente de Intervenção Federal: Alguns Aspectos revisar a legislação existente, a fim de Geopolíticos que se assinalem os caminhos pelos Marcelo Zero quais as Forças Armadas podem par- O autor parte do pressuposto de que a ticipar de ações contra o terrorismo intervenção federal no Rio de Janeiro imposto pelo narcotráfico. aponta para um contexto de influência

4 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... externa em decisões brasileiras, entre mo esta possam prosperar em razão da pro- elas o golpe militar de 1964, o golpe par- funda crise fiscal e da necessidade de resul- lamentar de 2016 e, mais especificamen- tados mais imediatos. Logo, teremos que ser te, a Lava Jato e seu modus operandi. pragmáticos e buscar alternativas, entre “Em relação à guerra judicial (lawfare) elas, identificar e atacar gargalos críticos contra o ex-presidente Lula e ao próprio em cadeias de produção e em infraestrutura, golpe de 2016, crescem as evidências de desburocratização, privatização, aprimora- que houve e há ingerências norte-ameri- mento das agências regulatórias, ajustes re- canas nos acontecimentos, especialmen- gulatórios pontuais, treinamento profissio- te mediante a denominada operação La- nal na empresa e melhor relação com forne- va Jato, propiciada por uma cooperação cedores e clientes. bilateral judicial entre Brasil e EUA. De fato, já há a forte suspeita, consubstan- 73 Crenças, Instituições e as Reformas ciada em fatos, de que a Operação Lava do Estado no Brasil Jato foi politicamente instrumentalizada, Bernardo Mueller de forma a produzir efeitos objetivamen- Ao realizar uma reforma de Estado, ou seja, te nocivos no Brasil”, diz o autor. ao optar por mudar as instituições, os gru- pos dominantes sabem quais resultados que- 68 A Hora e a Vez da Produtividade e rem obter para o país e para si, porém não da Competitividade há qualquer forma inequívoca de saber quais Jorge Arbache instituições levariam àqueles resultados. Como crescer? Qual modelo adotar? São Eles têm, portanto, de lançar mão de suas muitos os nossos constrangimentos para crenças de como funciona o mundo, isto é, de crescer, incluindo o fiscal, o demográfico, o qual seria a verdadeira relação de causa e da poupança, o do crédito e o da inseguran- efeito entre instituições e resultados. O con- ça jurídica. Por isso, é pouco provável que o teúdo e o impacto de mudança institucional modelo de crescimento, que perdurou por dependem fundamentalmente das crenças décadas no Brasil, baseado na colocação de dominantes de cada país. Baseado nessa mais gente no mercado de trabalho e no fi- análise, o autor especula sobre quais as nanciamento dos investimentos majoritaria- crenças dominantes atualmente no Brasil e o mente com recursos públicos e externos, pos- que poderemos esperar em termos de refor- sa seguir funcionando. Aumento dos investi- ma do Estado nos próximos anos. Embora a mentos públicos em áreas como infraestrutu- análise não permita prever quais reformas ra, educação e inovação e redução da carga serão priorizadas e quais os seus detalhes, tributária poderiam contribuir significativa- ela pode indicar quais serão as característi- mente para a produtividade. No entanto, é cas gerais de qualquer reforma que vier a improvável que, no curto prazo, agendas co- ser realizada.

...... sumário...... 5 Apresentação

s leitores de Interesse Nacional cus de ação (Congresso, tribunais, ministé- têm acompanhado, nos últimos rios, ruas, etc.)? O dez anos da Revista, debates sobre A edição 41, que marca o início do 11º ano segurança pública, violência, crime organi- da Interesse Nacional, tem sete artigos. O pri- zado, discriminação racial e de classe, crises meiro é, em verdade, um diálogo entre dois econômica, política e dos partidos, combate conselheiros da Revista – José Gregori, que à corrupção, reformas econômica e política, foi ministro da Justiça no governo FHC, e Re- papel do Estado na economia, política exter- nato Janine Ribeiro, que foi ministro da Edu- na e comércio exterior, entre outros assun- cação no segundo governo de Dilma Rousse- tos. Nesta edição, revisitamos quatro impor- ff. Eles foram convidados pelo Conselho Edi- tantes temas já tratados aqui e os atualiza- torial a conversar sobre se é possível o PT e o mos à luz da conjuntura atual: 1) é possível PSDB superarem certas divergências e cons- uma reaproximação entre o PT e o PSDB, truírem uma agenda mínima com temas con- dois dos principais partidos políticos que go- vergentes. Muitos acham isso um sonho. vernaram o País em quase 22 anos e compar- Mas, por que não sonhar pensando no pós- tilharam princípios e valores comuns no -eleição caso novamente PSDB e PT dispu- combate à ditadura? 2) no contexto da re- tem o segundo turno? Nesse caso, algum tipo cente intervenção federal na capital flumi- de convergência seria importante para o inte- nense como ficará a política de segurança resse nacional, em especial nas políticas de pública no Rio, o combate à violência e ao inclusão social. O texto é da editora Maria narcotráfico?; 3) o que fazer para aumentar a Helena Tachinardi. produtividade e a competitividade da econo- Diz José Gregori: “O objetivo da conver- mia brasileira?; 4) é possível uma reforma sa não é só o conteúdo estimulador que ela do Estado, envolvendo não só instituições possa ter para o leitor, mas comprovar que econômicas, mas também as instituições po- pessoas que não têm o mesmo percurso par- líticas, que estabeleçam para cada área de tidário estão habilitadas, numa época de cri- atuação quem pode iniciar um processo, se, que já dura cinco anos no Brasil, a senta- quem tem voz, quem tem voto, quem tem rem em torno de uma mesa e buscarem uma veto, como cada grupo participa, qual o lo- saída comum para comungar valores. Pesso-

6 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... as que, apesar de suas diferenças políticas, Michel Temer, busca fazer com que a União nasceram, viveram e vão morrer acreditando possa efetivamente dividir com os estados fe- na democracia, no pluralismo, nos valores derados o ônus da segurança pública, dando humanistas”. materialidade à ordem constitucional que a Renato Janine questiona se é possível que estabelece como direito e dever de todos. os valores civilizatórios voltem a prevalecer. Na sequência, o professor emérito da Es- “É possível recuperá-los no seu sentido mais cola de Comando e Estado-Maior do Exército amplo? Ou ficou um poço de mágoa tão gran- (Eceme), Ricardo Vélez Rodríguez, escreve de, um ódio tão grande entre PT e PSDB que sobre a influência da experiência colombiana mais ou menos tanto faz”? Ele expressa sua no Brasil e como poderá ser dinamizada aqui preocupação com o racha cada vez mais a política de segurança pública. “É inconcebí- acentuado: “O extremo disso seria se chegas- vel que a polícia de um importante estado se o momento em que Bolsonaro (deputado brasileiro, como o Rio de Janeiro, não tenha Jair Bolsonaro, de direita) estivesse no segun- aplicado em políticas de inteligência pratica- do turno e houvesse pessoas que preferissem mente nada ao longo dos últimos anos. O ser- deixar a coisa assim, não votar nele, mas tam- viço de informações é, na guerra contemporâ- bém não votar contra ele. Seria se no segundo nea contra o narcoterrorismo urbano, um item turno houvesse alguém de esquerda, pessoas de primeira necessidade”, diz. de direita moderada que não votassem no O diplomata Sergio Abreu e Lima Floren- candidato do PT. Ou se o PSDB estivesse no cio, que foi embaixador do Brasil no México segundo turno contra Bolsonaro e pessoas da e no Equador, também analisa a intervenção esquerda não votassem no candidato tucano. federal no Rio de Janeiro a partir de quatro Nesse caso, corremos um risco extraordiná- óticas: um paralelo com a Guerra às Drogas, rio, que é diferente do que ocorreu na eleição no México, e com a guerra civil, protagoniza- do Trump (Donald Trump, republicano, pre- da sobretudo pelas Farc, na Colômbia; a sidente dos EUA), quando houve só dois can- identificação dos principais equívocos de in- didatos (Hillary Clinton, do partido Demo- terpretação a respeito da intervenção federal crata, era a oponente). No Brasil, o risco se no Rio; uma análise de sua dimensão institu- agrava, por causa do aumento extraordinário cional e técnica; e um exame de sua vertente da voz dos extremistas.” política e do potencial da intervenção federal O artigo do titular do Ministério Extraor- como fator de despolarização política – uma dináro da Segurança Pública e ex-ministro da Terceira Via. Defesa, Raul Jungmann, abre o bloco sobre a Marcelo Zero, assessor de bancadas do intervenção federal no estado do Rio de Ja- PT em política externa na Câmara dos De- neiro. Ele destaca a necessidade de se refor- putados e no Senado Federal, é autor do arti- mar a Constituição de 1988, por meio de uma go “Mudança de governo, Lava Jato e inter- Proposta de Emenda Constitucional (PEC), a venção federal: alguns aspectos geopolíti- ser feita no próximo governo. Enquanto esta cos”. Ele diz que, “muito embora a motiva- não for aprovada, o Ministério Extraordinário ção imediata da intervenção militar no Rio da Segurança Pública, criado pelo presidente de Janeiro tenha sido claramente a de buscar

...... apresentação...... 7 popularidade e legitimidade para um gover- rer, inevitavelmente, muitos sacrifícios e es- no com níveis altíssimos de rejeição na opi- colhas difíceis. Visão de futuro, ousadia, es- nião pública, voltamos a enfatizar que não se pírito público, liderança política, transparên- pode descartar, a priori, que existam motiva- cia, muito diálogo e comunicação serão ele- ções de ordem mais ampla, inseridas em co- mentos cruciais para que possamos abreviar nhecidas pressões geopolíticas hemisféricas a jornada e embarcar num modelo de cresci- e em mudanças que vêm ocorrendo nas polí- mento sustentado e socialmente mais justo”. ticas externa e de defesa do Brasil”. Bernardo Mueller acredita que “o novo Os dois artigos finais são de autoria dos governo que assumirá em 2019 terá legiti- economistas Jorge Arbache e Bernardo midade política conferida pela eleição po- Mueller, ambos professores do Departamen- pular e provavelmente será beneficiado por to de Economia da Universidade de Brasília. uma economia mundial ascendente, após Arbache, que é secretário de Assuntos Inter- uma década de estagnação. Estas condições nacionais do ministério do Planejamento, serão altamente propícias para uma forte conclui que a “mudança para um novo mo- aceleração das reformas de Estado de que o delo de desenvolvimento, com foco na pro- país precisa”. dutividade e na competitividade, vai reque- os editores

8 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... PT-PSDB: É Possível Uma Coalizão em Torno de Valores Civilizatórios? Diálogo entre José Gregori e Renato Janine Ribeiro

Maria Helena Tachinardi

Introdução dos petistas, nas administrações Lula e Dil- ma, que duraram quase 14 anos? a reunião do Conselho Editorial da Renato Janine aprofunda a questão: “É Interesse Nacional que pautou os possível que os valores civilizatórios voltem Nartigos desta edição, o conselheiro a prevalecer? É possível recuperá-los no seu Eugênio Bucci sugeriu uma conversa entre o sentido mais amplo? Ou ficou um poço de jurista, ex-ministro da Justiça no governo mágoa tão grande, um ódio tão grande entre FHC, José Gregori, e o filósofo, ex-ministro PT e PSDB que mais ou menos tanto faz?”. da Educação no governo Dilma Rousseff, Ele expressa sua preocupação com o racha Renato Janine Ribeiro. Eles não só tiveram cada vez mais acentuado: “O extremo disso experiências administrativas em governos seria se chegasse o momento em que Bolso- desses dois partidos como se empenharam naro (deputado Jair Bolsonaro, de direita) es- na defesa dos direitos humanos e já defende- tivesse no segundo turno e houvesse pessoas ram modos de tornar possível uma coalizão que preferissem deixar a coisa assim, não vo- entre as duas legendas. tar nele, mas também não votar contra ele. Se O diálogo aconteceu no dia 22 de março, no segundo turno houvesse alguém de es- em São Paulo. A pauta não poderia ser mais querda, pessoas de direita moderada não vo- atual e realista, pois trata-se de responder à tassem no candidato do PT. Ou se o PSDB es- questão aguda: é possível, nos tempos atuais tivesse no segundo turno contra Bolsonaro e de violência, radicalização, ódio, preconcei- pessoas da esquerda não votassem no candi- to, intolerância e extremismos na vida políti- dato tucano. Nesse caso, corremos um risco ca e na sociedade brasileira, superar as di- extraordinário, que é diferente do que ocorreu vergências entre PT e PSDB, duas das maio- na eleição do Trump (Donald Trump, republi- res agremiações partidárias do País, que cano, presidente dos EUA), quando houve só eram aliadas nas lutas pela redemocratiza- dois candidatos (Hillary Clinton, do partido ção, mas cuja relação se deteriorou após o Democrata, era a oponente). No Brasil, o ris- exercício de poder dos tucanos, nos dois go- co se agrava, por causa do aumento extraordi- vernos de Fernando Henrique Cardoso, e nário da voz dos extremistas”. Se PT e PSDB não conseguem fazer uma

Maria Helena Tachinardi, jornalista, é editora da aliança programática para o exercício do po- Interesse Nacional der de um ou de outro, restaria uma aproxi-

...... pt-psdb: é possível uma coalizão em torno de valores civilizatórios? . . . . . 9 mação em torno de valores civilizatórios ou, ção de pessoas de tendências diferentes, par- ao menos, uma tentativa de recuperá-los, já tidárias e ideológicas. Acordamos que o ter- que os dois partidos já pensaram de forma reno comum que poderia nos unir seriam os semelhante no passado. José Gregori con- direitos humanos, a sua concepção moderna, corda com Janine: “O objetivo desta conver- que não se ficasse só na garantia dos direitos sa não é só o conteúdo estimulador que ela clássicos, mas que se enveredasse pelos di- possa ter para o leitor, mas comprovar que reitos econômicos, sociais e culturais. Essa pessoas que não têm o mesmo percurso par- identidade se estabeleceu, mas encalhou em tidário estão habilitadas, numa época de cri- certas especificidades conjunturais que cada se, que já dura cinco anos, no Brasil, a senta- grupo ainda tinha. E que só seriam supera- rem em torno de uma mesa em busca de uma das na medida em que os que encarnavam saída comum para comungar valores demo- essas diferenças tivessem a grandeza de não cráticos, humanistas e pluralistas”. colocar os seus interesses acima dos interes- Em seus dez anos de existência, esta Re- ses coletivos”, lembra. vista tem contribuído, por meio de opiniões contraditórias, com artigos mostrando que FHC e Haddad na Folha de S. Paulo o interesse nacional é uma construção polí- tica. “É uma meta, sempre fugidia, a ser assunto é de tal importância, que en- constantemente perseguida pelo exercício O trou recentemente na pauta da Folha do debate público e da deliberação demo- de S. Paulo. O jornal abriu manchetes com crática, que se especifica concretamente entrevistas de Fernando Henrique Cardoso e nas diversas áreas da ação política”. Assim, em que valorizam o diálo- Interesse Nacional se firmou com pioneiris- go entre os dois partidos, apesar das diver- mo na promoção do debate sobre se ainda é gências. possível uma convergência ideológica e Haddad, ex-prefeito de São Paulo pelo programática entre as duas legendas. No PT e cotado para encabeçar a chapa do parti- número 7 (outubro-dezembro de 2009), o do nas eleições à Presidência da República, professor de filosofia da USP, Renato Jani- se a candidatura do ex-presidente Lula for ne Ribeiro, escreveu o artigo “PT-PSDB: É impedida, declarou: “Na hora que os EUA Possível uma Grande Coalizão?”. A respos- estão em risco, os presidentes todos se unem. ta foi dada pelo ex-ministro da Casa Civil Não importa se é democrata, republicano, do primeiro governo Lula, José Dirceu, que tem uma questão maior, a saúde da nação”. assinou o texto “PT-PSDB: Por Que as Di- (FSP – Pág. A12 Poder – 22/3/2018) vergências São Inconciliáveis”, na edição 8 O ex-presidente Fernando Henrique se (janeiro-março de 2010). expressou em tom conciliatório: “Se eu pu- Recém-chegado ao Conselho Editorial, desse reviver a história eu tentaria me apro- José Gregori aporta uma iniciativa cujo con- ximar não só do Lula, mas de forças políti- teúdo poderia preencher várias páginas des- cas que eu achasse progressistas em geral. ta publicação. Para debater os limites de Que ajudassem a governar. E acho que o PT uma reaproximação entre os dois partidos, deveria ter feito a mesma coisa. Eu gosto Gregori promoveu várias reuniões em sua de Fernando Haddad, vou votar no Fernan- casa, no começo de 2017, “com a participa- do Haddad se ele for candidato? Não vou,

10 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... mas eu estou dizendo que ele é uma pessoa estimulador que ela possa ter para o leitor, correta”. (FSP – Pág. A8 Poder – 7/3/2018) mas comprovar que pessoas que não têm o Uma grande aliança do centro para a es- mesmo percurso partidário estão habilitadas, querda, no Brasil, não deu certo. Na verdade, numa época de crise, que já dura cinco anos a oposição entre os dois partidos se radicali- no Brasil, a sentarem em torno de uma mesa zou. Esta já era a percepção de Renato Janine e buscarem uma saída comum para comungar em seu artigo no número 7 (2009) da Interes- valores. Pessoas que, apesar de suas diferen- se Nacional. “Foi muito bom, porém, mesmo ças políticas, nasceram, viveram e vão morrer para quem desejasse essa aliança, que ela não acreditando na democracia, no pluralismo, desse certo. Isso porque, caso funcionasse, nos valores humanistas. A identidade nesses ela se defrontaria com uma aliança de direita valores permanentes é suficiente para aportar, (....). Com a divisão entre os dois partidos, numa hora de irracionalidades, um pouco de que foi negativa para quem neles via ou vê o clareza em benefício do Brasil. melhor da política brasileira, conseguiu-se assim excluir do proscênio político a direita”. Renato Janine “A vantagem”, destaca Janine no artigo, “foi que esses dois partidos assumiram a li- Para entender a crise atual, é preciso derança política do País. Alternaram-se no remontar ao impeachment do Collor poder, que ocuparam em quatro eleições su- cessivas. Desde a normalização do País, a emos uma crise que, para entendê-la, é presidência da República esteve com um dos Tbom remontar ao impeachment do Collor. dois lados. A desvantagem foi que cada um Até esse momento, houve uma grande união deles teve de se aliar a partidos bastante cri- das pessoas que tinham combatido a ditadura e ticados pela opinião pública. Numa frase ficaram perplexas com a subida ao poder do atribuída a Fernando Henrique, eles têm dis- José Sarney, que era um fiel e leal seguidor da putado quem irá liderar o atraso”. ditadura. Ficaram indignadas, talvez, com a A íntegra da conversa entre José Gregori eleição de Collor, que também tinha trabalha- e Renato Janine Ribeiro, ambos conselhei- do com a ditadura e fez um governo agressivo, ros da Interesse Nacional, pode ser lida na autoritário. O impeachment de Collor lembra o íntegra, como segue: momento final em que essas pessoas, que eram contra a ditadura, por valores democráticos, José Gregori por valores dos direitos humanos, estiveram unidas. Muitos lamentamos que o PT e o PS- ideia do Eugênio Bucci foi feliz, no sen- DB tivessem tomado caminhos diferentes des- Atido de marcar a demonstração prática de o governo , que era para ser de que não há nada mais importante no Brasil um governo de união nacional. atual do que o diálogo; o diálogo é possível entre pessoas que têm percursos políticos e, Em 20 anos, o País foi governado por às vezes, partidários diferentes, mas têm inte- dois dos melhores partidos políticos ligência e patriotismo suficientes para procu- rar convergências criativas e produtivas. O ouve no PT e no PSDB pessoas que objetivo desta conversa não é só o conteúdo Hmilitaram para lançar candidaturas

...... pt-psdb: é possível uma coalizão em torno de valores civilizatórios? . . . . . 11 comuns e houve também aqueles que fo- outros chamam de golpe, o clima de ódio fi- ram contra, e consta que Fernando Henri- cou extremamente forte. que e José Dirceu foram contra. Cada um Nós temos hoje, no Brasil, duas divisões – insistiu em que os caminhos fossem dife- uma que opõe a esquerda ou centro-esquerda, rentes. Isso talvez tenha sido uma lástima, à direita como um todo, tanto a direita consti- talvez fosse uma necessidade do destino, tucional democrática quanto a extrema-direi- mas trouxe algo, a meu ver, muito positi- ta. Essa divisão foi muito forte e se manifes- vo: o embate político do Brasil, nestes úl- tou para promover o impeachment. Já comen- timos 20 anos, esteve entre dois dos me- tei várias vezes que, para afastar Dilma, Aé- lhores partidos políticos, que têm valores, cio Neves levou o PSDB a se subordinar a ideais, dois partidos capazes de enfrentar grupos de extrema-direita, o que além de pre- as coisas que têm em comum, entre outros judicar o País prejudicou seu partido. pontos, o dos direitos humanos. Ninguém da direita, da extrema direita concorreu Direitos humanos: esquerda e direita nesse período com chances de ganhar. En- contra a extrema-direita tão você teria um partido social-democra- ta, mais ao estilo europeu, e um partido outra divisão que temos é a divisão quanto mais democrata cristão, para falar em ter- Aaos direitos humanos. Nesse sentido, tanto mos europeus, meritório. Na Europa, vê- a esquerda como uma parte substancial dos -se que a alternância no poder se faz sem partidos mais à direita estão do mesmo lado, grandes dramas, sem traumas, e todos eles em face da extrema-direita. Mas, é preocupante dão continuidade a certos valores funda- que uma parte mais conservadora do eleitorado mentais, como os direitos humanos e bem- do PSDB, que antes calava a boca, simples- -estar social, na maior parte dos casos. mente votava, não era eleita, não se manifesta- Contudo, essa briga durou tempo demais. va, começou a fazer um discurso muito conser- Em 2009, eu escrevi nesta Revista um artigo vador. O que resultou na eleição de deputados sugerindo um diálogo, um plano comum en- do PSDB que representam corporações da PM tre PT e PSDB. ou militares, como temos na Assembleia Legis- lativa, ou também deputados federais, que mili- Impeachment de Dilma Rousseff tam pela escola sem partido, algo que vai total- acirrou clima de ódio mente contra o DNA do PSDB. O próprio pre- feito de São Paulo (João Dória), que está dei- or volta de 2008, tive a impressão de que xando o cargo, deixa claro em suas ações que Po racha já tinha durado muito tempo e dei- os direitos humanos não são uma grande preo- xado claro que cada um desses partidos teria cupação dele. O problema é que nós, que so- que ter como suporte, no governo, o que ha- mos a favor dos direitos democráticos, dos di- via de menos bom na nossa política, no caso, reitos humanos, deixamos que a grande divisão o PMDB e vários outros partidos, fazendo ex- civilizatória, que seria entre a defesa dos direi- ceções a alguns membros deles, que são pes- tos humanos e da democracia, por um lado, e o soas de qualidade. O pior é que o conflito foi descaso ou mesmo hostilidade aos direitos hu- se acirrando, se acirrando, a tal ponto que manos, de outro, que deveria ser a grande divi- desde o que uns chamam de impeachment e são nossa – política – fosse substituída por uma

12 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... divisão em questões de economia, que acabou aliança contra o regime militar. Na mesma ce- tornando o Brasil praticamente tripartite – te- la de vários departamentos prisionais esta- mos hoje uma centro-esquerda centrada no PT, vam pessoas que depois vieram a ser do PS- uma direita que preza os valores civilizatórios DB e do PT. Isso tudo aproxima projetos, sen- (basicamente o PSDB) e uma extrema-direita timentos, que só são possíveis quando há uma que faz extraordinário alarido: são pessoas que identidade fundamental, que é o apreço à de- antes tinham vergonha de dizer no que acredi- mocracia e aos valores dos direitos humanos. tam, que não tinham candidatos próprios, mas votariam em candidatos de valores civilizados Interesse Nacional: Mas, esse discurso e que, agora, estão tendo uma presença própria dos direitos humanos parece estar fora sem nenhuma contenção. da pauta dos dois partidos. Pelo menos é A nossa pergunta: é possível que os valo- o que aparece no discurso público. res civilizatórios voltem a prevalecer? É pos- sível recuperá-los no seu sentido mais amplo? José Gregori Ou ficou um poço de mágoa tão grande, um ódio tão grande entre PT e PSDB que mais ou exatamente esse o esforço que pessoas mesmo tanto faz? O extremo disso seria se É como nós e revistas como a Interesse Na- chegasse o momento em que Bolsonaro (de- cional devem fazer: mostrar que enquanto o putado Jair Bolsonaro, de direita) estivesse Brasil se dedica apenas aos problemas eco- no segundo turno e houvesse pessoas que pre- nômicos nunca sai dos impasses. ferissem deixar a coisa assim, não votar nele, mas também não votar contra ele. Seria se no Plano Real e direitos humanos segundo turno houvesse alguém de esquerda, pessoas de direita moderada não votassem no Acho que a boa aceitação do Plano Real candidato do PT. Ou se o PSDB estivesse no não foi só porque ele foi feliz na linha técni- segundo turno contra Bolsonaro e pessoas da ca e econômica. É que ao mesmo tempo em esquerda não votassem no candidato tucano. que nascia o Plano Real, no Brasil, nascia a Nesse caso, corremos um risco extraordiná- política dos direitos humanos. Essa dualida- rio, que é diferente do que ocorreu na eleição de deve ser encarada como um binômio, ca- do Trump (Donald Trump, republicano, pre- da vez mais os direitos humanos têm de en- sidente dos EUA), quando houve só dois can- tender de economia e os economistas têm de didatos (Hillary Clinton, do partido Demo- entender dos direitos humanos. crata, era a oponente). No Brasil, o risco se Está provado no mundo, e o Brasil não é agrava, por causa do aumento extraordinário exceção, que só uma ênfase em um desses da voz dos extremistas. dois caminhos não é suficiente para o desen- volvimento social necessário. José Gregori Retomada progressista após a crise? Renato Janine fez bem de fazer essa O síntese histórica para relembrar que cho que se essa crise brasileira terminar houve um momento em que a identidade en- Aconvencendo a todos da necessidade de tre o PSDB e o PT estava rigorosamente em atacar esses dois campos, como acontece

...... pt-psdb: é possível uma coalizão em torno de valores civilizatórios? . . . . . 13 com outras crises, depois de um passivo que, a meu ver, é quando começa um Bra- enorme deixa a possibilidade de uma reto- sil melhor, desse período até o final do go- mada mais progressista. verno Dilma, vejo o Brasil seguindo uma trilha positiva. Nesses 24 anos, fizemos Renato Janine muita coisa pela educação básica, e ainda é insuficiente, porque o buraco é extrema- oncordo. Não podemos pensar nos direi- mente fundo. A economia tem de estar as- Ctos humanos sem pensá-los de uma for- sociada a isso. Se a economia for demasia- ma ampliada. Direitos humanos ficaram mui- damente autônoma, se for considerada um to associados, no Brasil, à defesa dos direitos fim em si, ela atropela muita gente. Se os dos cidadãos pobres contra a repressão poli- direitos humanos não tiverem uma estru- cial, o que acaba trazendo toda uma hostilida- tura de desenvolvimento econômico, é di- de. Há pessoas que dizem que isso é defesa fícil efetivá-los. dos direitos dos bandidos: usam essa expres- são horrorosa dos “direitos dos manos”, ou União contra a barbárie “direitos humanos só para os humanos direi- tos”, que chegaram a ser ditas por pessoas as, quero colocar um aspecto positi- que jamais esperávamos que fossem falar tais Mvo, dentro da tragédia horrorosa que bobagens. Na verdade, se você não tiver aces- foi o assassinato, dias atrás, da vereadora so fundamental, por exemplo, a uma educa- Marielle Franco (PSOL-RJ): o fato de que ção de qualidade, se não tiver igualdade de houve uma reação extremamente forte oportunidades, se não tiver emprego ou traba- contra o crime cometido. Uma pesquisa da lho, os direitos humanos ficam muito mutila- FGV mostrou que 88% das postagens so- dos, ficam nas nuvens. Isso significa que eles bre o caso foram de solidariedade à líder têm de estar traduzidos nas políticas econô- assassinada e só 7% foram hostis. Esse é micas. Então, se não houver dinheiro, se o Es- um dado positivo, que por outro lado di- tado não tiver dinheiro, aplicar os direitos hu- verge do que dizem os leitores que comen- manos fica difícil. No final do governo Dilma tam os jornais. Se você olhar os comentá- e sobretudo no governo Temer, a falta de di- rios na Folha, no Estadão, é a barbárie, a nheiro levou a danos fortes aos direitos hu- pura barbárie... manos. Duas coisas acontecem aí: uma é a Estamos numa curta janela, no momento, militância ativa da extrema-direita contra os de união contra a barbárie. Penso que, se direitos humanos, outra é a dificuldade dos conseguirmos recuperar essa união contra a governos brasileiros, nos últimos anos, para barbárie e restabelecermos pontos de diálo- tornar efetivos os direitos humanos. go, pode ser um começo.

Um Brasil melhor: desde o governo José Gregori Itamar Franco houve evolução da educação básica u concordo inteiramente e me associo à Eideia do Janine de que os direitos huma- esde o ministro (da Educação) Muri- nos, à medida que se expandiram e penetra- Dlo Hingel, no tempo de Itamar Franco ram na área econômica, social e cultural,

14 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... necessitam de recursos. Mas, a outra parte Essa agenda social não poderia ser “des- fundamental aos direitos humanos não im- politizada” no sentido da partidarização e plica nenhum tipo de despesa. Quando o ter também uma base maior que não seja só Estado assegura o direito à liberdade de ex- em direitos humanos, que tenha o apoio pressão, o que ele precisa fazer apenas é amplo para facilitar as medidas sociais com cruzar os braços. Da mesma maneira, a vi- que todo mundo está de acordo, mas, que da sem a radicalização que o Brasil ganhou por questões partidárias, acabam não sendo nos últimos tempos, sem preconceito, de- apoiadas nem por um lado nem por outro. pende de um ato gratuito que cada um tem que fazer consigo mesmo. Essa parte do José Gregori Brasil que se entregou à radicalização, que se expressa, sobretudo, pelas redes sociais, cho que a Revista, pelo prestígio e pe- devia compreender que isso não vai levar a Ala qualidade dos seus colaboradores e qualquer tipo de melhora individual ou co- dirigentes, poderia apoiar três pontos: todo letiva. Nenhum país que se divide em pre- candidato democrático deveria assinar um conceitos vai longe. documento se comprometendo com a pre- Interesse Nacional, eu, o Janine e o edi- servação da democracia, com o Estado De- tor responsável Rubens Barbosa deveríamos mocrático de Direito e com a prevalência ver que pacto fundamental poderíamos fa- do diálogo sobre a disputa estéril. zer, no sentido de defender os valores que nós tivemos antes que esses partidos se fun- ONU e a expansão do desenvolvimento dassem e que vão continuar quando esses sustentável partidos virarem folhas amarelecidas nos ar- quivos empoeirados. do ponto de vista mínimo, comprome- E, ter-se com um programa que siga as li- Redução da pobreza nhas do que a ONU divulgou há dois anos para substituir as metas do milênio que são Interesse Nacional: quais os aspectos 17 objetivos de uma expansão do desenvol- mais práticos poderiam ser acrescenta- vimento sustentável. Isso seria fundamen- dos a essa agenda do pacto? tal para uma tradução prática do que esta- mos fazendo por meio desse diálogo que, a Rubens Barbosa meu ver, é seminal e pioneiro. E só é possí- vel porque existe um trabalho anterior des- uando se fala em direitos humanos se ta Revista, que procurou esse objetivo. Qpoderia incluir também a redução da pobreza e, dentro de uma visão de médio e Interesse Nacional: Renato Janine, um longo prazo, independentemente de quem dos conselheiros mais antigos da Revista, ganhe a eleição, haveria área de convergên- poderia recapitular edições passadas cia. Há um consenso de todos de que é pre- que mostraram uma visão pioneira pela ciso persistir na redução da desigualdade aproximação entre os dois partidos, com que o PT aprofundou no governo do Lula e o textos de expoentes do PT, como José FH começou, com bolsa escola, etc. Dirceu e Marco Aurélio Garcia?

...... pt-psdb: é possível uma coalizão em torno de valores civilizatórios? . . . . . 15 Renato Janine tualmente a direita pode fazer concessões à pauta deles. O que será muito ruim. Não sei A Revista e os valores universalizados se um pacto como o que Gregori e Rubens propuseram é viável num período eleitoral, sse é um ponto que, infelizmente, mostra explicitamente. Para o PT, o impeachment Euma involução do Brasil, porque a Revis- de Dilma foi um golpe. Pior ainda, o gover- ta surgiu da iniciativa do embaixador Ru- no Temer surgiu para executar exatamente a bens Barbosa de fazer dialogar, em torno de política que foi derrotada nas urnas em 2014 uma meta comum, que era o interesse nacio- – e executá-la com o apoio do PSDB. Para a nal, pessoas que defendiam meios diferen- esquerda, isso suscita dúvidas quanto ao tes. Esses valores são universalizados e uns compromisso tucano tanto com a democra- vão dizer: precisa-se de mais empreendedo- cia quanto com os direitos humanos. Não se rismo, de menos controle do Estado. Outros, pode ignorar essa desconfiança da esquerda só o Estado democrático pode promover po- em relação à direita não extremista. líticas sociais de igualdade. Mas, apesar dos meios diferentes, tendo um consenso de que Segundo turno: PT-PSDB, melhores devem produzir os mesmos fins, e de que os partidos do País meios serão corrigidos quando estiverem gerando efeitos indesejados, o que pode ara o PT, a diferença entre um voto na acontecer, muitas vezes, com o excesso de Pdireita e na extrema-direita pode pare- liberdade de empresa ou o excesso de con- cer pequena. Para o PSDB, há a possibili- trole estatal. Eventualmente, pode-se produ- dade de garimpar votos nos extremistas de zir o contrário do que se almeja. O problema direita, o que pode levar, e já aconteceu em é que, com o passar dos anos, a Revista foi vários países, a caminhar para uma política tendo muito mais presente a visão do PSDB, mais rígida, a exemplo do que o próprio se- à medida que os ânimos foram se acirrando nador José Serra fez na campanha de 2010, no País, e seria muito importante recuperar o quando usou a expressão “direitos huma- diálogo na própria Revista. nos para os humanos direitos”, uma expres- Tomo a Revista como sintoma. Seria são infeliz, e quando utilizou a questão do muito importante recuperar valores básicos, aborto. Temos um risco grande disso tudo. como os que o Gregori apontou, como a O cientista político Alberto Carlos Almei- questão do pacto. Isso está ligado às eleições da, que já colaborou com a Revista, está deste ano, que é um horizonte muito obscu- convencido de que o segundo turno será ro, mas a gente não errará se disser que há PT-PSDB ou, pelo menos, entre gente que três forças disputando as eleições no segun- tenha apoio forte desses dois partidos. Ele do turno. Há uma força correndo por fora, diz que são os partidos organizados, estru- mas muito forte, da extrema-direita, há uma turados. Bolsonaro não vai ter palanque su- força de centro-direita e direita e uma força ficiente. Essa é uma visão um pouco mais de centro-esquerda. Como são só duas vagas otimista. Queria insistir que, apesar da des- no segundo turno, não sabemos aonde isso moralização pela qual esses dois partidos vai dar. E é claro que numa luta desse tipo, passaram, são os melhores partidos que o para conquistar os votos extremistas, even- Brasil tem na sua escala, os melhores! E es-

16 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... tão entre os três ou quatro partidos melho- pelos direitos humanos no seu sentido mo- res que esse País já teve em sua história. derno, que não só não tolera nenhum tipo de violência, como a que vitimou Marielle, mas Rede, um partido aparentemente como outras, que podem surgir ainda. fracassado. O Novo assume uma agenda Acho que a desradicalização é muito im- quase de extrema-direita portante que seja feita por pessoas como nós, que somos capazes de distinguir as coi- uando ouço duas pessoas que não co- sas, separá-las e saber que uma coisa não Qnheço pessoalmente, e bem diferentes anula a outra. na posição política, hoje, o cineasta José Pa- dilha e o sociólogo Boaventura de Sousa San- Se o Brasil fosse hoje um país nazista, tos, dizerem que é preciso criar novos parti- vocês iriam para a mesma cela dos, fico preocupado. Criar um partido não é um ato voluntarista, é algo que exige muito ara os meus jovens alunos, quando eles trabalho, haja vista o que se vê na criação da Ptêm filiação partidária do PSDB e do PT, Rede, um partido aparentemente fracassado, e estão brigando no pátio da universidade, eu demasiado personalista, demasiado carente interfiro e digo: parem já essa briga, pensem de rumo. Ou o Partido Novo, que surge e logo que, se o Brasil, por desgraça, se tornasse assume uma agenda quase de extrema-direi- neste momento um país nazista, vocês dois ta, uma agenda que não é positiva. Um ponto iriam para a mesma cela. É isso que temos de que deveria estar muito claro é que estamos saber, que a nossa divergência favoreceu ex- condenados a ter esses dois partidos, e se os traordinariamente a direita. Ela se sente feliz, outros que temos se tornarem protagonistas, como vai se sentir infeliz com esse diálogo haverá provavelmente uma piora. Temos de atual. Ela adoraria, por exemplo, que no tem- melhorar esses dois partidos (PT-PSDB), fa- po da minha militância nos direitos humanos zer que consigam assumir a responsabilidade eu tivesse brigado com o Hélio Bicudo. En- que têm em vez de ficarem à deriva. tretanto, nomeamos o Hélio Bicudo (que per- tencia aos quadros do PT) como representan- José Gregori te do Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Essa procura da conver- uitas questões brasileiras que estão di- gência básica daquilo que nos uniu nos pri- Mvidindo as discussões são fatos ocorri- mórdios da redemocratização é que temos de dos. A gente deveria deixar que a pesquisa restabelecer, porque dela depende a vitória histórica se encarregasse disso e nós nos ati- das forças progressistas em 2018. véssemos a medidas que pudessem melhorar a nossa conjuntura. Nesse sentido, acho per- Divergência não pode levar ao feitamente possível superar essas dúvidas destempero, à falta de diálogo mencionadas pelo Janine e nos encaminhar- mos a alguma coisa fundamental que possa cho que este nosso diálogo não tem mostrar à extrema-direita que, tirando ela, o Asentido crítico, mas não deixa de ter que sobra do Brasil é a favor da democracia, uma ambição de paradigma em relação ao do Estado Democrático de Direito e da luta próprio Supremo (STF). O Supremo tem

...... pt-psdb: é possível uma coalizão em torno de valores civilizatórios? . . . . . 17 obrigação constitucional de não ser uma enfraquecimento do Congresso, a perda de unanimidade; só nos países de ditadura o respeito tributado ao poder que seria demo- Supremo é unânime nas suas decisões. Mas, crático por excelência, que é o Legislativo, a divergência não pode levar ao destempero que representa a diversidade, diferente- e à falta de diálogo entre seus integrantes. mente do Poder Executivo. Nesse esvazia- mento dos dois poderes constitucionais Renato Janine eleitos, o Judiciário se agigantou, mas tam- bém se precipitou no abismo. A gestão da Haraquiri dos poderes constitucionais presidente Cármen Lúcia é totalmente sem Parlamentarismo seria uma aventura, sem rumo e culmina no espetáculo patético de grandes mudanças nos costumes políticos ontem (21 de março), em que não se pode elogiar qualquer dos dois protagonistas sso traz uma questão que não está exatamente nem a própria presidente, que só lembrou Ino foco do que estamos tratando, mas que de pedir que parassem a briga quando os afeta toda a nossa vida social e política. O que dois ministros já tinham falado longamen- está acontecendo é o haraquiri (ritual japonês te, primeiro Gilmar, depois Barroso1. de suicídio) dos poderes constitucionais. Eles foram se autodestruindo. O Poder Executivo, Queima dos poderes constitucionais nos no segundo mandato da presidente Dilma, in- coloca no chão felizmente estava se mostrando incapaz de tourear o Brasil. Minha experiência, tanto co- ssa situação toda de queima dos pode- mo observador como enquanto ministro, du- Eres constitucionais e que começa a afe- rante uns poucos, mas decisivos meses, foi tar o Ministério Público Federal, que teve triste. Percebi que se você não tiver um Poder durante um tempo o papel de mocinho, to- Executivo eficaz, o Congresso pinta e borda – da essa queima dos poderes que nos repre- e pinta e borda o pior que existe. É o Poder sentam, dos poderes democráticos, dos Executivo que consegue dar uma certa racio- poderes constitucionais, toda essa queima nalidade ao Congresso, o que, ao meu ver, tor- é um ponto que nos coloca praticamente naria o parlamentarismo no Brasil uma aventu- no chão. Parece que temos de partir prati- ra, caso seja implantado sem grandes mudan- camente do zero. ças nos costumes políticos, e torna também es- sa dependência do Poder Executivo muito vin- José Gregori culada à capacidade de articulação política, ao verbo, como tiveram Fernando Henrique e Lu- Ninguém tem hegemonia para se la, mas Dilma não teve –, e à verba, que eles arvorar em salvador da Pátria também tiveram – e ela parou de ter. 1. Na sessão de 21 de março de 2018, do Supremo Tribunal Federal, ao proferir seu voto o ministro Gilmar Mendes Gestão da presidente (do STF) Cármen atacou indiretamente seu colega Luís Roberto Barroso, Lúcia é totalmente sem rumo que prontamente tomou a palavra e o acusou de ser “uma pessoa horrível”. A presidente do STF, Cármen Lúcia, tentou interromper a sessão – mas apenas depois de esse autoesvaziamento do Poder Exe- trocados os desaforos entre os ministros – e mesmo assim o secretário do tribunal teve que lhe perguntar se estava, A cutivo sucedeu um esvaziamento, um mesmo, suspensa.

18 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... u concordo. Realmente, a crise brasileira das na medida em que os que encarnavam Eterá tido esta vantagem, ela expôs os ma- essas diferenças tivessem a grandeza de não les brasileiros de uma maneira tão crua, que colocar os seus interesses acima dos interes- não deixou qualquer setor como exceção ses coletivos. De lá para cá, cada uma des- que possa ser apresentada como tendo saído sas personalidades e entidades tem percebi- bem na fotografia. Todos nós não saímos do a necessidade de uma luta ecumênica bem na foto. Então, o que o Renato está fa- que não tem o direito de colocar os interes- lando é fundamental. É uma reconstrução ses pessoais acima dos interesses coletivos. daquele ponto em que ninguém tem uma au- Por isso, vim para esse diálogo com mais toridade hegemônica para se arvorar em sal- otimismo do que na última reunião na mi- vador da Pátria. E como é um esforço con- nha casa. Sei que é um processo e como to- junto de todos e de todas, ninguém faz essa do processo tem altos e baixos, momentos abrangência melhor do que os direitos hu- de esperança e de desânimo. manos. Por isso, eu recomendei como base desse pacto a declaração da ONU, porque STF e Ministério Público não substituem ela foi capaz de colocar em volta de uma a política mesa todos os países por mais diferentes que sejam em matéria ideológica e política. o momento, apesar do mau exemplo Nhavido ontem (21 de março) no Supre- Interesse Nacional: O senhor contou mo, muito bem condenado pelo Renato, que tentou reunir na sua casa pessoas existe a vantagem de se mostrar ao Brasil de várias tendências políticas... que o Supremo não substitui a política, as- sim como já se tinha precedente de que o José Gregori Ministério Público não substitui a política. Essa equalização das virtudes e dos de- Luta deve ser ecumênica, com os feitos torna o momento ecumênico e, como interesses coletivos acima dos pessoais tal, um momento em que todos devem cola- borar igualmente. sse procedimento foi numa hora de difi- Eculdade, no começo do ano passado, Interesse Nacional: vamos colocar essa num momento que batia uma desesperança visão que vocês deram de necessidade total, e conseguimos colocar na minha casa de se fortalecer o PT e o PSDB, e não da pessoas de tendências diferentes, partidárias criação de novos partidos no contexto e ideológicas, e acordamos que o terreno da existência de movimentos apartidá- comum que poderia nos unir seriam os di- rios na sociedade voltados, entre outras reitos humanos e a sua concepção moderna; funções, a preparar candidatos em busca que não se ficasse só na garantia dos direitos de renovação na política. clássicos, mas que se enveredasse pelos di- reitos econômicos, sociais e culturais. Essa José Gregori identidade se estabeleceu, mas encalhou em certas especificidades conjunturais que cada pertinente ligar isso ao que eu estava fa- grupo ainda tinha. E que só seriam supera- É lando. Dessas reuniões na minha casa,

...... pt-psdb: é possível uma coalizão em torno de valores civilizatórios? . . . . . 19 que foram pioneiras, vimos que, ou por tele- Renato Janine patia ou porque souberam que elas estavam João Dória não tem compromisso com acontecendo, muita gente se reuniu em ou- os direitos humanos tros lugares para ver como superar as difi- culdades, como poderiam agregar vontades ou um pouco mais pessimista do que o para se apresentar nas eleições de 2018 de SGregori porque fico muito preocupado uma maneira diferente da expectativa geral. com o candidato do PSDB ao governo do es- E isso é mais útil para o Brasil – queria dizer tado (João Dória), que tem fortes chances de que mais uma vez concordo com o Renato – ganhar. Ele não tem compromisso com os do que tentar formar partido novo. Acho que direitos humanos. Ele se associou a grupos fortalecer e dar musculatura de ideias, de como o MBL, que tem um discurso muito convergências e de boas alianças aos parti- contrário aos direitos humanos. Preocupa- dos atuais é muito mais inteligente e produ- -me profundamente que um dos dois gran- tivo do que tentar novo partido. des partidos brasileiros tenha perdido, nessa situação específica, um elemento fundamen- Interesse Nacional: então esses movi- tal de seu DNA. Por isso, não sou tão otimis- mentos são positivos para canalizar forças ta quanto o Gregori nesse assunto. Voltando e visão de renovação para os partidos mais um pouco à questão dos partidos, os EUA sedimentados que existem, o PSDB e o PT? têm primárias nas quais os aspirantes se ofendem de maneira muito agressiva, como José Gregori foi na indicação do Trump, e oito anos antes, Setores progressistas devem se na indicação do Obama pelos democratas. empenhar mais No caso do partido Democrata, apesar de to- das as críticas de Clinton a Obama e de todas cho que sim. Pelo menos um dos ob- as críticas de Obama a Clinton, puderam os Ajetivos nas reuniões na minha casa dois trabalhar juntos e não passou pela cabe- era conclamar os jovens com propensão ça de nenhum criar um novo partido. política a que se candidatem nestas elei- Aqui no Brasil, por muitíssimo menos, ções com boa plataforma. Acho que a lei- por uma disputa de acesso ao fundo partidá- tura desta nossa entrevista já será uma for- rio, você cria um novo partido. Consta até ma de colaborar com ideias para a plata- que alguns pequenos partidos teimam em forma de cada um. lançar candidato a presidente, porque a fatia Acho que só será surdo e mudo à nossa do fundo partidário pode garantir uma boa conversa aquele que tiver, infelizmente, vida a alguns poucos líderes. Temos uma corporificado uma tendência de um lado e proliferação grande de partidos. E aí vai ba- de outro, mas sobretudo da direita. Porque ter naquilo que eu disse sobre os comentá- realmente a direita tem um candidato forte, rios de Boaventura e Padilha, que é essa muito bem cotado nas pesquisas, e isso de- crença brasileira muito forte de que o passa- ve fazer com que os setores progressistas, do não pesa, de que o futuro pode ser obra de que acreditam nos direitos humanos, te- voluntarismo: “então vamos criar um novo nham ainda mais dedicação e juízo do que partido!”... Isso não é uma coisa trivial, mas tinham até então. uma coisa complicada.

20 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... É preocupante que o PT tenha o Lula radical de esquerda. Nenhum tentou acabar como único nome forte com o capital privado, nenhum tentou tirar isso, e mesmo as políticas de Dilma na eco- stamos de acordo que os dois grandes par- nomia eram inspiradas pela convicção de Etidos deveriam se reformular e se fortale- que a empresa privada seria protagonista, cer, o que passa muito pela renovação de qua- com o Estado criando a infraestrutura forte dros de liderança. É preocupante que quase 40 de que o País precisa. anos depois de sua fundação, o PT tenha o Lu- la como o único grande nome fortíssimo e que Direitos humanos, a pedra de toque de o PSDB não tenha nenhum nome forte para a qualquer futuro positivo para o Brasil presidência da República. Alckmin está con- correndo simplesmente como resto, não como erminei agora de escrever um livro so- uma opção forte. Isso é preocupante. No caso Tbre minha experiência ministerial, que do PT, todos os grandes nomes estão na mes- vai se chamar “A Pátria Educadora em Co- ma faixa etária, em torno dos 70 anos, tirando lapso”. Faço um parêntese para dizer que a o Haddad, 15 anos mais novo. No PSDB, o grande referência de economia para a Dil- nome mais jovem que surgiu, o Aécio, come- ma é o livro da Mariana Mazzucato, “O Es- teu um haraquiri tão terrível politicamente, ca- tado empreendedor”. Muita gente não co- so clássico da soberba, da desmedida que os nhece isso, mas há um jogo entre as duas - a gregos chamam de hybris e que faz surgir a autora se inspirava no que a Dilma fazia e a Nêmesis (segundo a mitologia grega, deusa da Dilma se reconhecia no que a Mariana Mazzu- vingança e da justiça equitativa) para castigar, cato escrevia. bom exemplo de tragédia antiga. Penso que os movimentos de renovação política podem ser muito positivos, mas não Compartilhar metas comuns, aceitar sei em que medida eles têm colocado como fins diferentes sine qua non a questão dos direitos huma- nos, que é para nós o que interessa, é para obre a criação de novas lideranças, esses nós a pedra de toque de qualquer futuro po- Smovimentos de renovação política, não sitivo para o Brasil e requer políticas econô- conheço suficiente para poder dizer a respei- micas que promovam a inclusão social. to. Andei conversando com gente do movi- mento. Agora, me pareceram realmente inte- José Gregori ressados em algo novo e tive a impressão, pelo pouco balanço que me fizeram, que dão Estrada de Damasco virá, mas depende apoio às políticas sociais que o PT instalou, muito da nossa luta junto com uma política econômica mais li- beral. É inteiramente legítimo e atenderia, u continuo otimista, porque acho que ao que eu e Gregori temos insistido, à razão Eas coisas avançam dialeticamente e não de ser desta Revista, que é o compartilha- há dúvida que essa crise apresentou uma mento de metas comuns, mas aceitando série de deficiências, mas mostrou - tam meios diferentes. É o mesmo que, no fundo, bém que fatos, como esse da repercussão Lula e Dilma fizeram: nenhum dos dois foi nacional de indignação com a violência

...... pt-psdb: é possível uma coalizão em torno de valores civilizatórios? . . . . . 21 que sofreu Marielle, há 30 anos era canto quando a imprensa mente, você pode fazer de página num jornal. Isso mostra que a um desmentido que ela própria tem que en- consciência do que ela simbolizava cres- golir. Eu vi uma experiência dessa quando ceu e o que ela simbolizava – pelo menos a TV Globo, no meu tempo de ministro, di- o que foi destacado até agora – é a sua luta vulgou ataques ao programa Sem Frontei- pelos direitos humanos. Aquilo que ainda ras. Uma das moças entrevistadas foi ao não me satisfaz, em uma ou outra declara- Facebook, minutos depois, dizer que ti- ção de algum líder do PT, que às vezes me nham deturpado a entrevista dela. Durou assusta por um certo sentido revanchista, uma hora a entrevista e pegaram só o mo- em uma ou outra declaração do líder do mento em que ela criticava e nada do que PSDB, que também assusta e desagrada ao ela elogiou. Daí o Chico Pinheiro (âncora Janine, é que a nossa caminhada ainda está da TV Globo) teve de fazer uma retificação. começando e que a estrada de Damasco No passado, ela mandaria uma carta que se- (expressão bíblica que pode significar mu- ria jogada em uma gaveta e pronto. danças profundas de rumo) virá, mas ain- da depende muito da nossa luta. Com tanto tempo de crises, não desenvolvemos estratégias de como Renato Janine lidar com elas

Aspecto positivo: toda a podridão ós temos hoje uma visão muito maior vindo à tona Ndo país, mas essa visão é muito feia. Talvez um problema seja essa nossa dificul- Gregori levantou uma questão muito dade de lidar com a crise. Eu fiz um balan- O importante que seria o aspecto positi- ço dos anos de minha vida consciente, de vo de toda essa podridão vindo à tona, que 1960 para cá. O que tivemos de esperança e é o Brasil poder olhar a sua cara e que ela até euforia, sem fazer nenhum juízo de va- não é tão bonita quanto a gente gostaria, e lor, foram a ditadura na fase Médici, o pri- que certas coisas não podem ser mais tole- meiro mandato de Fernando Henrique, os radas. Essas coisas são muitas, passam pela dois mandatos de Lula e dois anos do pri- corrupção, passam pelo caráter extrema- meiro mandato de Dilma. A maior parte do mente injusto da nossa desigualdade social, tempo foi de crises, tempos de pessimismo, passam pela inadequação estrondosa dos de não enxergar caminho. E com tanto tem- poderes constitucionais à sociedade, pas- po de crises não desenvolvemos estratégias sam pela percepção forte de que as chama- psíquicas, políticas, humanas, de como li- das elites não têm a menor ideia de como dar com elas. Quando se abate uma crise pensam, sentem e vivem os mais pobres. sobre nós ficamos totalmente desarticula- São muitos pontos que estão surgindo, al- dos, arvorados, não sabemos o que fazer e guns devido à liberdade de imprensa, ou- pensamos que o fim do mundo se aproxima. tros, devido à tomada de palavra por outras vozes, via redes sociais. Hoje, é fácil des- Vejo poucas forças à altura dos desafios. mentir uma mentira da imprensa. Antiga- Gente indo para o exterior, pessoas se mente, não havia condições para isso. Hoje, alijando da política

22 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... como nós tivemos, desde o Plano Real, não vão resolver nada. É preciso, além de os Emais anos bons do que ruins, ficou um oti- partidos ganharem musculatura, a sociedade mismo que agora se sente ceifado, sem saber ganhar musculatura. o porquê, qual a causa dos nossos males e co- mo enfrentá-los. Parece que a solução cai do José Gregori céu, Plano Real com Itamar e FHC, inclusão social com Lula. O que faremos? Esse é um Aproveitar a crise para dar outro desafio gigantesco. O problema é que todas sentido à eleição de 2018 as chagas estarem à mostra é um desafio mui- to grande. Agora vejo poucas forças à altura odo nosso esforço para mim foi prazeroso. desse desafio, pouca gente fazendo um balan- TVamos aproveitar esta crise para dar outro ço que consistiria em dizer que o problema no sentido à eleição de 2018, como prova, em pri- fundo é muito sério, mas temos meios de en- meiro lugar, de que a política é insubstituível. frentá-lo. Vejo gente querendo ir para o es- Em segundo lugar, como prova de que o Brasil trangeiro, gente se alijando da política ou pro- não tem dono e, em terceiro, que cada um nes- curando soluções supostamente fáceis que te instante é tão importante quanto cada um.

Resumos Biográficos

• José Gregori três anos e meio na França, sem ser exilado político”. Em É bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Lar- depoimento à Revista, ele relata: “Foi uma fase em que o go de São Francisco. Dedicou grande parte da sua vida a Brasil estava péssimo, no fim de 1972. Voltei em 1976, já uma atividade que ele chama mais de cívica do que propria- contratado pela USP, e essa experiência francesa foi ex- mente política, no campo dos direitos humanos. “Na minha tremamente importante para mim: ver a democracia em geração, quando se começou a praticar um certo ativismo, o funcionamento, ver os jornais de extraordinária qualidade, Brasil era democrático sob a égide da Constituição de 1946. o Le Monde, provavelmente, naquela época, o melhor jor- Depois, veio a deposição da ditadura Vargas e se tinha a im- nal do mundo, e assistir a aulas no Collège de France, ter pressão de que o Brasil finalmente se alinhava como um país contato com a filosofia francesa no momento talvez de seu democrático. Porém, veio logo a surpresa de 64. Ficamos 20 maior esplendor, com Foucault, Deleuze, Lyotard, outros anos sob o regime autoritário”. José Gregori conta que nessa autores importantes”. Sobre sua formação acadêmica, diz época se dedicou “a Dom Paulo Evaristo Arns e a uma resis- que sempre foi da filosofia política, o que o levou, depois tência ao regime, em São Paulo, que teve o nome de Comis- de fazer um mestrado e um doutorado sobre Thomas Hobbes, são Justiça e Paz”. De lá para cá, inclinou-se predominan- a entender que filosofia política só tem sentido se ela se temente a interesses e lutas em favor dos direitos humanos. confrontar com as políticas atuais. “Nessas várias décadas, Em depoimento a Interesse Nacional, Gregori afirmou: 40 anos, aprendi como se utilizam os clássicos e hoje, para “É nessa condição que eu, como homem de fé, quero me mim, o mais importante é Maquiavel. Eles ajudam a pensar apresentar lá em cima com essas credenciais. Quero dizer: como a política está funcionando e os fatos ajudam a rever entendo um pouco dos direitos humanos. Tem muita signi- os filósofos. Isso está presente nos meus livros, sobretudo ficação para mim a luta com Mario Covas, Geraldo Alck- no “Sociedade contra o Social” e “A Boa Política”, que min, Fernando Henrique, , João Sayad e com lancei no ano passado”. o diretor dos presídios, João Benedito de Azevedo Marques. Renato Janine foi diretor de Avaliação da Capes (Coor- A luta que todos nós empreendemos para detonar a antiga denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), penitenciária (Carandiru) onde houve o massacre de 111 onde ficou quatro anos e meio cuidando da avaliação dos prisioneiros e que hoje abriga um jardim público com uma doutorados e mestrados do Brasil. Depois, teve um período biblioteca em vias de ser considerada a melhor do mundo”. de seis meses no governo Dilma, como ministro da Educa- José Gregori foi ministro da Justiça e embaixador do Bra- ção, “o que me permitiu ver e aprender muita coisa. Todas as sil em Portugal. Considera-se um tucano moderado. situações foram de aprendizado. Esse período no ministério foi muito difícil, porque a crise estava terrível. No tempo da • Renato Janine Ribeiro reeleição, a presidente talvez não tivesse ideia do tamanho É professor de filosofia na USP e professor visitante na do rombo que o Brasil tinha. Pouco depois da reeleição, a Unifesp. No primeiro ano do curso de filosofia na Faculda- popularidade dela tinha despencado, movimentos de protes- de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Janine to estavam extremamente fortes, foi o começo dessa devas- conta que houve um bombardeio pelo comando de caça aos tação que assola o Brasil e que, acho, torna nossa discussão comunistas. “Foi um marco terrível, poucos meses antes ainda mais importante, porque em meio a isso tudo os direi- do golpe, que foi o AI-5. Como eu estudava na Aliança tos humanos estão pagando um preço bastante alto”, comen- Francesa, ganhei uma bolsa pelo meu desempenho e passei ta. Renato Janine diz que nunca se filiou a partido algum.

...... pt-psdb: é possível uma coalizão em torno de valores civilizatórios? . . . . . 23 A Intervenção no Rio de Janeiro e os Desafios da Segurança Pública

Raul Jungmann

intervenção federal no estado do vernador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Rio de Janeiro, decretada no dia Pezão2, este é o primeiro caso de aplicação 16 de fevereiro de 2018 pelo presi- concreta do instituto da intervenção previsto A 1 dente Michel Temer , com vigência até 31 pelo Art. 34 da Constituição Federal. Uma de dezembro deste ano, objetiva pôr termo medida extrema, paradigmática e histórica, ao grave comprometimento da ordem pú- destinada à reversão do estado de metástase blica naquele estado. Com anuência do go- da segurança pública no Rio. A imagem da metástase traduz uma sé- rie de falências: desrespeito a autoridades e Raul Jungmann é ministro de Estado da Segurança Pú- blica. Nasceu no Recife, em 1952. Anteriormente, exerceu instituições, crise econômica e financeira, o cargo de Ministro da Defesa. Na Câmara dos Deputados, corrupção policial, política e administrativa em dois mandatos consecutivos, atuou como membro efe- de vários setores do governo estadual, dra- tivo da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania mática reversão da funcionalidade do siste- (CCJC), da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) e da Comissão Externa de acompanha- ma prisional, expansão nacional e transna- mento da crise política na Venezuela (CEXVENE). Presidiu cionalização do crime organizado, ocupação a Frente Parlamentar pelo Controle de Armas, pela Paz e territorial de áreas urbanas por facções em pela Vida, que tem como objetivo a defesa do Estatuto do confronto permanente, aumento estarrece- Desarmamento. Na CCJC, foi relator da PEC 430/2009, que trata da reforma das polícias e da implantação do Ciclo dor das estatísticas de violência em suas di- Completo de Polícia. Além disso, atuou como vice-líder da versas formas e assim por diante. Minoria na Câmara dos Deputados e vereador da cidade do A falta de verba para o pagamento dos Recife. Começou sua vida política aos 25 anos, combatendo servidores públicos, sobretudo policiais, e a ditadura militar, ao lado de companheiros do antigo Par- tidão, como era chamado na época o PCB, posteriormente para os necessários investimentos em se- PPS. Ainda na juventude, foi consultor e presidiu organi- gurança, levou o Rio a decretar estado de zações não governamentais. Em 1990, exerceu o cargo de calamidade pública em 2016. A situação se secretário de Planejamento do Governo de Pernambuco. Seu primeiro cargo de projeção nacional foi ocupado no 1. O fundamento jurídico do Decreto nº 9.288, que impôs governo do presidente Itamar Franco, em 1993, quando as- a intervenção no Rio de Janeiro, encontra-se no Art. 84, sumiu a Secretaria Executiva do Ministério do Planejamen- caput, inciso X, e no Título V, Capítulo III da Constituição Federal, bem como no Título V da Constituição do estado to. O presidente Fernando Henrique Cardoso o convidou do Rio de Janeiro. para assumir a presidência do Ibama (1995-1996) e do Incra 2. A Câmara dos Deputados aprovou a intervenção por (1996-1999) e, em seguida, o cargo de Ministro da Reforma ampla maioria: 340 votos a favor e 72 contra. Da mesma Agrária (1999-2002), deixando como legado o maior pro- forma, o Senado a endossou de forma inequívoca: 55 grama de reforma agrária da história do Brasil. votos favoráveis, 13 contrários e uma abstenção.

24 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... deteriorou em 2017, com aumento significa- GLO, as Forças Armadas agem de forma tivo do número de assassinatos e de crimes excepcional e episódica, em área restrita e violentos – a taxa de homicídios no Rio foi por tempo limitado, nos casos em que há es- de 29 a 32 por 100 mil habitantes em 2017 –, gotamento, insuficiência ou indisponibilida- incluindo a morte de 134 policiais militares de das forças tradicionais de segurança, em (este ano, já perdemos mais 36 policiais). A graves situações de perturbação da ordem. dramática continuação da tendência no iní- cio de 2018, especialmente durante o Car- Acões de Garantia da Lei e da Ordem naval, levou o presidente a tomar a decisão de intervir. intervenção, por sua vez, transcende o Com a intervenção, a competência es- A emprego episódico das Forças Armadas tadual – primária, segundo a Constituição e de forças federais, e determina a gestão fe- – em matéria de segurança passou para a deral de uma área antes coordenada pelo po- esfera do governo federal, representada pela der estadual. Nesse sentido, as competências figura do interventor. O general de Exército são mais amplas, exercidas sobre o espaço Braga Netto, comandante militar do Leste e jurisdicional e administrativo primário do um dos responsáveis pela segurança dos Jo- estado, e a atuação é mais profunda e dura- gos Olímpicos do Rio de 2016, foi nomeado doura, com maior capacidade operacional e interventor militar. Diretamente subordina- integração entre entidades envolvidas. do ao presidente da República, suas atribui- Em meu mandato de quase dois anos co- ções foram limitadas à segurança, incluindo mo ministro da Defesa, registrei 11 GLOs, o controle operacional de todos os órgãos instrumento excepcional mediante o qual a estaduais competentes pela matéria no es- União, a pedido do governador do Estado, tado do Rio de Janeiro – Polícia Militar, socorre para reverter a perda de controle da Polícia Civil e Corpo de Bombeiros. A re- ordem pública ou a escalada do crime orga- organização desses mesmos órgãos e forças nizado, até que se restabeleça a normalidade. de segurança está entre seus desafios mais Em várias ocasiões assinalei o equívoco prementes. da “banalização” do emprego das Forças A intervenção vai além do emprego das Armadas em ações de GLO, que configu- Forças Armadas nas chamadas ações de Ga- ram um verdadeiro epitáfio de um modelo rantia da Lei e da Ordem (GLOs)3 decretadas de segurança pública de três décadas ainda no Rio: operações de pacificação em comu- vigente no país – sobre o que discorrerei lo- nidades e megaeventos, como a Conferência go abaixo. A mesma percepção foi comparti- das Nações Unidas “Rio + 20”, em 2012, lhada pelo comandante do Exército, General Copa das Confederações e visita do Papa Villas Bôas, que manifestou sua preocupa- durante a Jornada Mundial da Juventude, ção com o constante emprego do Exército em 2013, Copa do Mundo 2014, Olimpíadas em GLOs nos estados. 2016 e a atual GLO, que continua vigente Se, por um lado, as GLOs resolviam em em paralelo à intervenção. Nas missões de caráter de urgência situações específicas, em nada solucionavam suas causas profundas, que 3. As operações de GLO são reguladas pela Constituição residem na incapacidade dos estados federados Federal (Art. 142), pela Lei Complementar 97, de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001. em lidar de forma eficaz com a insegurança.

...... a intervenção no rio de janeiro e os desafios da segurança pública...... 25 O diagnóstico de falências múltiplas a décadas de um regime militar tenha enfati- que me referi acima trouxe à tona uma fratu- zado aspectos ligados ao desenvolvimento, ra estrutural: o colapso da concepção cons- ao bem-estar social, à cidadania e à constru- titucional de 1988 em matéria de segurança ção institucional democrática, em detrimen- pública. O modelo de segurança pública bra- to da vertente coercitiva da ordem pública. sileiro pensado pelos deputados constituin- Em outras palavras, a ênfase constitucional tes há três décadas está falido. Foi vencido no “progresso” reduziu o espaço da “or- pelo tempo e atropelado pela acelerada de- dem”, dada a memória recente das teses au- terioração da ordem pública provocada pelo toritárias de segurança nacional, associadas crescimento e penetração do crime organi- à repressão, da qual a sociedade desejava se zado na sociedade e em segmentos locais desvencilhar. do poder público, com arraigada presença A arquitetura minimalista da Lei Maior e territorial em comunidades e fortalecimento de seu novo pacto federativo em matéria de de meios e condições operacionais, cada vez segurança pública concentrou nos estados mais letais. quase todo o ônus do sustento e da capaci- O caso mais visível e dramático, pela re- dade operacional nesse tema. A preservação percussão, é o do Rio de Janeiro – embora, da ordem pública e o policiamento ostensivo estatisticamente, estados do Nordeste, como foram reservados às polícias militares esta- Sergipe, Rio Grande do Norte e Alagoas, duais. Além disso, o modelo de segurança tenham incidência relativa muito maior de estabelecido pela Constituição não contem- homicídios. plou os municípios, apesar de estes serem Dos 250 artigos da Constituição Federal essenciais no combate ao crime. Limitou-se de 1988, acrescidos de mais 114 artigos das a Carta Magna a sugerir que os municípios disposições transitórias, que tratam dos mais poderiam constituir guardas municipais des- variados assuntos, é impressionante constatar tinadas à proteção de seus bens, serviços e que apenas um único artigo discorre sobre instalações. o tema vital da segurança pública: o artigo 1444, que concentra em si todo um capítulo Separação entre segurança pública e (III) do Título V (Da Defesa do Estado e das segurança nacional Instituições Democráticas) da Carta Magna. Teria o legislador constituinte negligen- urante o regime militar, as questões da ciado a segurança? O cenário vislumbrado Dsegurança nacional e da segurança pú- pelo constituinte da evolução do País pare- blica estavam imbricadas. Em reação a isto, ce, hoje, demasiadamente otimista. a Constituição Federal de 1988 decretou a Compreende-se que a Magna Carta de separação rígida entre segurança pública, de uma República que se reinventava após duas um lado, e segurança nacional – ou defesa –, ficando esta última reservada às Forças Ar-

4. O Art. 144 da Constituição Federal estabelece que a segurança madas. Nos últimos anos, entretanto, tal se- pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de paração estanque entre segurança e defesa, e todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio por meio dos entre as ações das polícias militares e civis e seguintes órgãos: polícia federal; polícia rodoviária federal; das Forças Armadas, passou a ser relativiza- polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares. da na prática com a integração gerada pelas

26 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... operações conjuntas nas operações de GLO somaram cerca de R$ 270 bilhões (aumento e nos megaeventos acima mencionados – e, médio de mais de 4% por ano desde 1996), agora, com a intervenção no Rio de Janeiro. dos quais dois terços recaem sobre o setor A constituinte de 1988 não vislumbrou privado. Nessa espiral perversa, os valores o cenário atroz de descontrole da segurança subtraídos à sociedade e ao empresariado pública que hoje conhecemos. Há 30 anos, financiam o crime organizado, o tráfico de não havia a previsão de multiplicação do drogas e armas e a corrupção. poder das facções de um crime que se in- tegrou nacionalmente – nem, muito menos, Custos intangíveis, sendo o mais sua transnacionalização, como hoje se veri- vultoso, a perda de vidas fica. Os problemas nefastos das drogas e do tráfico de armas foram subestimados – ou se ara além dos custos financeiros impostos lhes escaparam mesmo – pelos fundadores e Pao Estado e à sociedade, há custos intan- artífices da Constituição Cidadã. gíveis, que diminuem a qualidade de vida e Entretanto, no longo hiato entre a Cons- o bem-estar da população: perda de produti- tituição de 1988 e o presente ano de 2018, vidade ocasionada por morbidade física ou a estrutura de segurança pública brasileira psicológica, prejuízos engendrados por in- assistiu quase que passivamente ao cresci- terrupção dos negócios e dias de trabalho e mento da violência em níveis intoleráveis. de escola perdidos, custo na logística, trans- Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança portes e seguros, desestímulo à acumulação Pública 2017 (dados de 2016), o Brasil te- de capital em face de incertezas, diminuição ve 7 pessoas assassinadas por hora em 2016 do turismo e assim por diante. Esses custos (mais de 1 a cada 10 minutos); mais de 61 intangíveis são uma perda exorbitante para mil mortes violentas intencionais, maior a sociedade brasileira, que corresponderia a número da série histórica no País; 2.666 la- um imposto anual de R$ 1.800,00, pago por trocínios (crescimento de 50% em relação a cada cidadão. O custo mais vultoso, entre- 2015); um carro roubado/furtado por minuto tanto, é a perda de vidas, sobretudo de jo- (mais de 1 milhão em 2015); uma mulher as- vens, contra o futuro do País. sassinada a cada 2 horas. Por não ter, ainda, um orçamento vincu- O impacto econômico dessa violência lado, como ocorre com a saúde e a educação, também é estarrecedor. Em 2015, as perdas a segurança pública foi tragada na deterio- materiais em decorrência da criminalidade ração da crise fiscal dos últimos anos. Para superaram os R$ 25 bilhões (incluindo au- elevar o patamar do combate à violência, é tomotivo, patrimonial e carga), chegando a preciso discutir o financiamento da seguran- quase 0,4% do PIB. Segundo a Confedera- ça nos moldes previsíveis da saúde e da edu- ção Nacional do Transporte, em 2017, o va- cação, e estabelecer metas e regras claras a lor subtraído em roubos de carga ascendeu serem observadas. A aplicação de novos re- a mais de R$ 1,5 bilhão. Os custos econô- cursos no setor será anunciada em breve. micos totais da criminalidade (somando-se Como o governo central permanece sem encarceramento, perda da capacidade pro- mandato para atuar efetivamente na segu- dutiva, gastos com segurança privada, per- rança pública, salvo em aspectos residuais das materiais, seguros e segurança pública) já referidos, impõe-se como passo inicial e

...... a intervenção no rio de janeiro e os desafios da segurança pública...... 27 decisivo para um processo de reversão da o crime organizado. Mais que mera troca de violência uma mudança constitucional. comandos, houve condenações – entre elas, Essa mudança é tarefa para o próximo a do ex-diretor da Secretaria de Assistência governo, não havendo condição política e Penitenciária do Rio, que, em conluio com parlamentar para aprovar uma Proposta de fornecedores de presídios, representava parte Emenda Constitucional (PEC) este ano. En- do organismo contaminado daquele estado. quanto não for aprovada a PEC, o Ministério Para além das milhares de mortes e da Extraordinário da Segurança Pública, criado dilapidação do patrimônio em larga escala, pelo presidente Michel Temer, busca fazer a gravidade do avanço do crime organizado com que a União possa efetivamente dividir representa uma verdadeira ameaça ao Es- com os estados federados o ônus da segu- tado Democrático de Direito. O regime de rança pública, dando materialidade à ordem terror imposto pelos criminosos e suas fac- constitucional que a estabelece como direito ções nas ruas, bairros e comunidades torna e dever de todos. a população assolada pela violência diária e O contraste entre, de um lado, um crime a impede de exercer seus direitos civis mais organizado eficiente, conectado nacional e elementares garantidos pela Constituição. internacionalmente e, de outro, um sistema O crime suprimiu, na vida de mais de um de segurança defasado, em parte corrompido milhão de cariocas, residentes nas mais de e com instituições e sistemas não integrados 850 comunidades sob o domínio do tráfico, levou gradativamente o País àquelas exce- os mais básicos direitos, incluindo o de ir e ções previstas na Constituição: de início, co- vir e até o de escolher seus representantes mo já dito, com as GLOs utilizadas em larga livremente, sem a tutela dos comandantes escala, a ponto de se banalizarem, até o ápi- locais do crime. ce da excepcionalidade, com a intervenção federal no Rio de Janeiro. Com a interven- Crime organizado se beneficiou ção, o governo federal abre passagem para da globalização agir extraordinariamente em socorro àquela que é o cartão postal brasileiro no mundo. sse quadro de aparente impotência do A intervenção permite que o Rio se bene- EEstado e de desespero da cidadania, num ficie de forma singular da união de esforços ambiente de disputa eleitoral, leva ao surgi- de todas as forças de inteligência e operacio- mento de plataformas políticas autoritárias nais do País para reverter o quadro de violên- de candidaturas que ganham espaço com cia que infelicita a população. Mais que isso, fórmulas tanto simplistas quanto comprova- a experiência de intervenção antecipa um damente ineficazes no longo prazo. O discur- modelo de reforma no sistema de segurança so de força e supressão de direitos encontra pública mais integrado entre União e estados. eco fácil na busca desesperada por salvação, Um dos primeiros passos na direção da re- compreensivelmente presente nos cidadãos forma no Rio foi iniciar a reestruturação das vítimas do crime ou potencialmente vulne- polícias estaduais – que, em apenas um mês ráveis a ele. O combate à criminalidade deve de intervenção, já tiveram seus comandos tro- resultar no fortalecimento da democracia e cados de forma a estancar a cadeia de trans- da cidadania, e jamais na regressão de con- missão de segmentos dessas estruturas com quistas históricas da sociedade brasileira.

28 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... Soluções autoritárias para a violência, A questão das fronteiras é crucial nesse embora alcancem fácil adesão em um mo- debate. Um dos aspectos mais criticados pe- mento de crise como o que vivemos, não po- la sociedade, nos meios de comunicação e dem tornar o País mais perigoso e violento na voz dos especialistas na matéria, consiste do que já é. As soluções não podem seguir em uma suposta ineficiência no controle das apenas a via da coerção, sendo insuficientes nossas fronteiras, portas de passagem de ar- se não forem complementadas pela valori- mamentos e drogas. Cabe aqui enfrentar o zação do profissional das polícias e de medi- que se tornou uma lenda – a de que nossas das socioeconômicas que levem desenvolvi- fronteiras são “queijos suíços”. Não é bem mento e bens e serviços públicos de qualida- assim. Há um permanente e tenaz trabalho de às comunidades mais duramente afetadas de vigilância das Forças Armadas, Polícia pela criminalidade. Federal e Polícia Rodoviária Federal, com Diante desse contexto, não se podiam apoio tecnológico cada vez mais sofisticado, mais adiar medidas excepcionais como a apoiado por satélites e equipamentos de sen- intervenção no Rio, medidas essas sempre soriamento remoto, para detectar e obstruir a respaldadas na Constituição, para deter o passagem de vetores do crime. avanço do crime e iniciar um processo de reversão do quadro de violências. Dimensões e atipicidade Há um outro aspecto que precisa ser dis- de nossas fronteiras cutido e tratado de forma coordenada e arti- culada entre as áreas competentes do gover- uas questões se impõem de forma in- no brasileiro: a dimensão internacional das Dcontornável nas reflexões sobre esse as- ameaças à segurança pública. pecto da questão. O primeiro diz respeito às O crime organizado não só acompanhou dimensões e atipicidade de nossas fronteiras. a globalização, mas se beneficiou de suas fa- O Brasil tem 17 mil quilômetros de frontei- cilidades, de suas redes e de sua velocidade, ras, o que equivale a uma linha reta entre São aproveitando a interconexão entre atores atra- Paulo e Tóquio. Desses, perto de 9 mil quilô- vés das fronteiras por meio das tecnologias metros são compostos de rios e florestas. No de comunicação e informação. Com audácia arco Norte, essa malha hidrográfica vem de e ferocidade, e uma eficácia e senso de opor- fora para dentro, penetrando no Brasil pela tunidade de causar inveja às empresas mul- bacia amazônica, o que torna extremamente tinacionais mais competitivas e globalizadas, difícil seu policiamento, que tem sido feito as facções lograram integrar cadeias de pro- pelas Forças Armadas e policiais. dução e comercialização de drogas, armas e Para se ter um parâmetro comparativo, contrabando. Passaram do comércio à produ- os Estados Unidos investiram bilhões de dó- ção e ao financiamento. De meros receptado- lares na proteção de sua fronteira de 3 mil res e intermediários de venda, inclusive para quilômetros com o México. Nossa fronteira outros continentes, criminosos transnaciona- com a Bolívia, por exemplo, é mais extensa lizados passaram a comandar parte da produ- que a dos Estados Unidos com o México! ção de drogas em países vizinhos e consolida- Esses 17 mil quilômetros são comparti- ram um circuito financeiro poderoso susten- lhados com dez países e a Guiana Francesa. tado em produtos e operações ilegais. Quatro desses vizinhos estão entre os maiores

...... a intervenção no rio de janeiro e os desafios da segurança pública...... 29 produtores mundiais de drogas e origem de pretender combatê-lo apenas no ambiente na- contrabando, flagelos que geram violência e cional, circunscrito às fronteiras e mecanis- criminalidade em suas próprias sociedades. mos jurídicos exclusivamente domésticos. Na minha gestão à frente do Ministério Estruturas do crime como PCC e Comando da Defesa, pus foco na construção de uma Vermelho já se fazem presentes nos países diplomacia de segurança com esses países, vizinhos, ampliando suas bases de comando. no marco de um mecanismo de coordenação O enfrentamento ao crime organizado requer e de agenda convergente com o Ministério organização e integração de governos. das Relações Exteriores. Foram realizadas Os setores do governo brasileiro respon- diversas reuniões bilaterais com ministros sáveis pela segurança e pela política externa de Defesa e Segurança e altas autoridades estão se coordenando mais estreitamente pa- civis e militares de países vizinhos, em- ra trabalhar, em cooperação com os países preitada organizada conjuntamente com o vizinhos, sobretudo produtores de drogas e Itamaraty e o Gabinete de Segurança Insti- exportadores de armas e contrabando, para tucional (GSI) da Presidência da República. realizar ações integradas, concretas e efi- No plano multilateral regional, o Mer- cientes contra o crime transfronteiriço, in- cosul e a Unasul dispõem de mecanismos cluindo perseguição e repressão aos ilícitos e normativas em matéria de segurança in- e modernização legislativa. ternalizadas no ordenamento jurídico bra- Nesse sentido, em novembro de 2016, sileiro, mas se verifica certo déficit de im- ainda como ministro da Defesa, participei, plementação efetiva. É necessário assegurar juntamente com o ministro-chefe do GSI, a eficácia de entendimentos importantes al- general Sergio Etchegoyen, da primeira reu- cançados nesses foros. nião do Cone Sul sobre segurança fronteiri- Concluí que é preciso ir além dos encon- ça, liderada pelo então ministro José Serra. tros bilaterais e reuniões formais regionais: A iniciativa será retomada em breve pelo devemos caminhar no sentido de consolidar chanceler Aloysio Nunes. uma iniciativa sul-americana de defesa, um Outro aspecto crucial é a discussão séria fórum ou plataforma específica, não buro- sobre o sistema penitenciário. Aqui, uma das cratizada, que articule de forma eficaz as fontes da tragédia brasileira. Não por acaso respectivas autoridades e estruturas de segu- este é um dos primeiros focos de minha ges- rança nacionais desses países para o comba- tão à frente da pasta da segurança. A situa- te ao crime organizado de forma integrada. ção é absurda: nosso sistema penitenciário, Pretendo dar início à concertação com mi- espaço em que o Estado deveria exercer seu nistros de Segurança de países vizinhos, em máximo grau de imposição, tem sido, na estreita coordenação com o Itamaraty, para a prática, em larga medida, gerenciado pelo conformação dessa iniciativa sul-americana. crime organizado. Muitas providências precisam ser toma- Coordenação entre as áreas de das para reverter esse quadro, mas segura- segurança e de política externa mente a primeira delas é reduzir a população carcerária, cujo excesso está exatamente no razão é tão simples quanto óbvia: se o enorme contingente de presos temporários Acrime se transnacionalizou, não se pode ou ainda já com direito à liberdade. Esse

30 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... contingente, seja pelo baixo grau de pericu- sem antecedentes preso com determinada losidade, seja pela primariedade, ausência quantidade de drogas vai para regime fe- de antecedentes de violência, detidos por chado não só pela falta dessa definição, mas delitos menores, não deve ser encarcerado também por faltar ao juiz opção para uma em regime fechado. pena adequada. Sem prisão aberta, resta-lhe A insuficiência de prisões de regime deixar de punir ou trancafiar o cidadão no aberto faz com que acabem no regime mais reino dos comandos do crime. duro, convivendo com os comandos do cri- Tenho investido também na redução do me organizado, o que lhes deixa sem opção: tempo de construção de presídios, na qualifi- é aderir ou morrer. Assim, pelo sistema de cação da gestão do sistema e na inteligência encarceramento, o Estado funciona na práti- para distribuí-los no País na proporção e re- ca como recrutador para o crime, ampliando gime que atendam à demanda real. seu contingente em escala geométrica. Passo agora a tratar da percepção de inse- Tenho conversado com a OAB para que gurança no Rio de Janeiro, que não mudou, nos ceda advogados dativos que possam fil- o que é compreensível. Um mês e meio após trar esses casos e reduzir, desde logo, essa decretada a intervenção, persistem questio- população, fazendo justiça aos presos víti- namentos com relação à sua eficácia. Quero mas de erros do próprio sistema penitenciá- afirmar, entretanto, que a ansiedade por re- rio e reduzindo as fileiras do crime. sultados ofusca os avanços já obtidos. Segundo o Instituto de Segurança Pública Evitar o inchamento dos presídios (ISP), ligado à Secretaria de Estado de Segu- rança Pública do Rio de Janeiro, indicadores om a mesma OAB insisto em uma so- de fevereiro último já registram reduções em Clução para os advogados que acabaram relação a fevereiro de 2017 que merecem ser envolvidos com o crime organizado – uma conhecidas pelo público em geral em maté- minoria de efeito danoso para a sociedade, ria de homicídio doloso (redução de 13,1%) na medida em que serve à preservação das e letalidade violenta (redução de 9,2%). comunicações entre os comandos encarcera- Embora tenha havido melhora nesses dos e seus subordinados fora dos presídios. itens, o número evidentemente é alto: no es- A introdução dos parlatórios nos presídios se tado, há 19 mortes violentas por dia, e, em inscreve nesse contexto. fevereiro, houve 100 mortes em operações Também temos tratado junto ao Poder policiais – alta de 17,6% em relação ao mes- Judiciário e ao Ministério Público para evi- mo mês de 2017. tar o inchamento dos presídios com casos Além disso, o ISP registrou importantes que não se adequem ao regime fechado. melhorias nos indicadores de produtividade Junto ao Supremo Tribunal Federal, te- policial em relação a fevereiro de 2017: Ar- nho buscado que se defina qual a quantidade mas apreendidas: aumento de 19%; apreen- de droga em posse de uma pessoa a definirá são de drogas: aumento de 25,4%; recupera- como usuária ou traficante. Por incrível que ção de veículos: aumento de 42,7%; e cum- pareça, essa é uma questão ainda em aberto primento de mandados de prisão: aumento no Brasil, diferentemente dos países mais de 36,3%. desenvolvidos nessa matéria. Um jovem Vale destacar, ademais, que o Exército

...... a intervenção no rio de janeiro e os desafios da segurança pública...... 31 e o ISP deram início a um trabalho de ma- direta; e planejar, coordenar e administrar a peamento por meio de fotos de satélite em política penitenciária nacional. 3D das rotas de fuga do tráfico (caminhos de A agenda e os órgãos singulares do Mi- favelas ligadas por trilhas, de Rocinha a São nistério da Justiça dedicados à segurança Conrado e Tijuca). migraram para o novo Ministério, que pas- Esses resultados positivos da intervenção sou a comandar a Polícia Federal, a Polícia no Rio de Janeiro contrastam com a percepção Rodoviária Federal, o Departamento Peni- cética transmitida pela imprensa. É importan- tenciário Nacional, o Conselho Nacional de te ressaltar, porém, que a população mantém Segurança Pública, o Conselho Nacional de apoio quase absoluto à intervenção no Rio de Política Criminal e Penitenciária e a Secreta- Janeiro, o que a faz portadora de expectativas ria Nacional de Segurança Pública (Senasp). positivas. Mesmo a mídia parece unânime no Caberá ao Ministério da Segurança Pú- diagnóstico de que a intervenção precisa de blica impulsionar o Sistema Único de Segu- tempo para apresentar resultados. rança Pública, ora em tramitação no Con- Por outro lado, houve aumento de policiais gresso, e liderar iniciativas como integração civis e militares mortos em serviço (uma víti- de sistemas de inteligência, padronizar equi- ma em fevereiro de 2017 e duas em fevereiro pamentos, formas de treinamento, comando, de 2018) e de roubos de veículos (aumento de formação e doutrinas, entre outras formas de 11,8% em relação a fevereiro de 2017). apoio às polícias e ao sistema penitenciário. Nesse contexto, a opinião pública e a mí- Em conclusão, o Rio de Janeiro neces- dia têm assinalado que o novo Ministério da sita do que a ONU chama de “missão de Segurança Pública, apesar de formalmente estabilização”, com a intervenção de for- ainda qualificado de “Extraordinário”, veio ças capazes de restabelecer a paz. Mudan- para ficar, independentemente do processo ças significativas na situação de segurança sucessório. do Rio de Janeiro demandarão tempo, mas já é possível apresentar os primeiros resul- Sistema único de segurança pública em tados positivos. Se estes são relativamente tramitação no Congresso modestos no plano estatístico, posso afirmar que têm sido importantes no plano da inte- s ações do Ministério Extraordinário gração e articulação de setores do governo, Ada Segurança Pública, criado pela Me- no sentido amplo – Executivo (polícias, sis- dida Provisória no. 821, de 26 de fevereiro tema penitenciário, interação entre União e de 2018, contam com esse apoio para o pleno Estados), Judiciário, Legislativo e Ministé- exercício de suas competências: coordenar e rio Público. Ainda como ministro da Defesa, promover a integração da segurança pública e agora, com maior afinco, como ministro da em todo o território nacional em cooperação Segurança Pública, tenho incentivado uma com os demais entes federativos; exercer as força-tarefa integrada pela Procuradoria Ge- competências constitucionais previstas no ral da República e pelos ministérios da Se- artigo 144 por meio da Polícia Federal e da gurança Pública e da Defesa, para que atuem Polícia Rodoviária Federal; a defesa dos bens de forma coordenada, integrada e eficaz no e dos próprios da União e das entidades inte- combate ao crime organizado. grantes da administração pública federal in- Além da articulação de Estado, estou

32 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... empenhado em convidar a sociedade civil a de igrejas para que cada setor possa aportar participar do esforço nacional em favor da sua contribuição em uma mobilização na- segurança pública, tendo presente a deter- cional em prol da segurança. minação constitucional de que a segurança, A atual tragédia da segurança pública além de “dever do Estado”, é “responsabi- reflete uma deterioração de décadas, e sua lidade de todos”. Nesse sentido, estou ini- solução não pode ocorrer de forma milagro- ciando um processo de aproximação entre o samente instantânea. Mas, a reversão desse Ministério e entidades como a OAB, sindi- quadro já se iniciou. Não há segunda opção catos, ONGs, empresários e representantes para o Brasil.

...... a intervenção no rio de janeiro e os desafios da segurança pública...... 33 Segurança Pública: o “Plano Colômbia” e a Intervenção Federal no Rio

Ricardo Vélez Rodríguez

Intervenção Federal no Rio, decretada Em 2007, os governadores dos estados pelo presidente Michel Temer e apro- de Minas Gerais (Aécio Neves) e do Rio de Avada pelo Congresso no final de feve- Janeiro (Sérgio Cabral) estiveram na Co- reiro de 2018, abriu as portas para a efetivação lômbia, visitando as realizações sociais que, de um Plano Nacional de Segurança. Isso por- nas cidades de Bogotá e Medellín, tinham que o decreto de Intervenção Federal veio ajudado a restabelecer a paz, diminuindo acompanhado da criação do Ministério da Se- sensivelmente os índices de violência. gurança Pública. A decisão foi motivada, ini- No Rio de Janeiro, foram empreendidos cialmente, pelo aumento expressivo da violên- projetos que se inspiraram nas políticas pú- cia praticada por narcoterroristas no Rio. Mas, blicas desenvolvidas nas metrópoles colom- certamente responde, também, ao fato de que bianas. As “Unidades de Polícia Pacificado- mais de 60 mil pessoas são assassinadas por ra” implantadas pelo governador do Rio mu- ano no Brasil, o que nos coloca no topo das na- daram para melhor o convívio dos cidadãos, ções mais violentas do mundo. A situação é ca- em áreas onde antes dominavam os trafican- tastrófica. Medidas excepcionais devem ser to- tes. Estes tinham constituído redutos onde madas em face de problemas igualmente ex- imperava a vontade dos criminosos com a cepcionais. O potencial de violência contra a quase absoluta ausência do Estado. A inicia- sociedade civil só tende a aumentar, se levar- tiva mencionada, contudo, não foi efetivada mos em consideração a disseminação do cra- de forma completa, tendo dado ensejo, as- ck, o refugo mais tóxico da cocaína, em 97% sim, a contínuas reclamações de moradores, dos municípios brasileiros. Em face dessa rea- estudiosos, agentes pastorais, policiais, etc. lidade, a Intervenção Federal no Rio é a ponta Com a finalidade de dar uma contribui- de lança para a implantação de uma Política ção ao debate, desenvolverei aqui dois itens Nacional de Segurança Pública. relacionados à política de Segurança Pública que foi implantada na Colômbia entre 2002 e 2012, levando em consideração que se tra- Ricardo Vélez Rodríguez é professor na Universidade ta de uma solução que deu certo num país Positivo, Londrina. Coordenador do Centro de Pesquisas Es- que possui muitas semelhanças culturais, tratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Professor emérito econômicas e políticas com o Brasil. Sinteti- da ECEME. [email protected] zarei os pontos marcantes do “Plano Colôm-

34 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... bia”, como foi denominado pelo presidente as nascidas a partir de 2002. A maior parte Álvaro Uribe Vélez o conjunto de Políticas das armas que circulavam, no período com- Públicas de Pacificação implementadas no preendido entre 1996 e 2006, era ilegal. O vizinho país. Esse processo foi objeto do número de armas em poder dos particulares, meu livro publicado em 2010 e intitulado: legal e ilegalmente (sem contar as perten- Da guerra à pacificação – A escolha colom- centes às Forças de Segurança do Estado), biana1. Num terceiro item analisarei o que se era calculado entre 2,3 milhões e 3,9 mi- poderia aproveitar dessa experiência no Bra- lhões, o que apresentava uma taxa de posse sil de hoje. de armas entre 5,05 e 8,42 por 100 habitan- Desenvolverei, portanto, os seguintes as- tes. As estatísticas oficiais indicavam que pectos: havia apenas 1,53 armas de fogo legais por • I- A violência na Colômbia: alguns dados 100 habitantes, uma taxa baixa, em compa- das últimas décadas. ração com outros países latino-americanos. • II - Políticas de Segurança Pública em Bo- Os homens constituíam mais de 90% das gotá e Medellín. mortes por armas de fogo. Mais de um terço • III - A influência da experiência colombiana dessas mortes abarcava homens jovens, en- no Brasil e como poderá ser dinamizada, en- tre 20 e 29 anos de idade. Entre 1985 e 2006, tre nós, a Política de Segurança Pública. houve uma perda de mais de 342 mil anos de vida produtiva no país. I – A violência na Colômbia: alguns A prática da extorsão mediante sequestro dados das últimas décadas tornou-se o maior flagelo social. Há 15 anos, havia na Colômbia 4 mil sequestrados. A egundo pesquisa da Universidade de Ge- guerrilha das Farc era a grande responsável Snebra2, pelo menos 475 mil civis e com- por esse flagelo: 60% dos seus ingressos batentes morreram vítimas do conflito arma- provinham dessa modalidade delituosa. Juí- do na Colômbia, entre 1979 e 2005. Os gru- zes, vereadores, prefeitos, intelectuais, pro- pos guerrilheiros e paramilitares foram os fessores, religiosos e jornalistas, profissio- principais responsáveis pelas mortes de ci- nais geralmente alinhados com a defesa dos vis. Os paramilitares tiveram grande partici- direitos humanos, figuravam entre as princi- pação no transporte e distribuição de drogas, pais vítimas da violência armada. enquanto a guerrilha participou do processo Só para dar um exemplo: nos anos 1980 produtivo. e 1990, os traficantes assassinaram aproxi- O impacto da violência armada na Co- madamente 200 funcionários públicos liga- lômbia foi tão grande que fez diminuir em dos ao Judiciário (magistrados, juízes e até 40 meses a expectativa de vida de pesso- agentes judiciais), incluindo entre essas víti- mas vários membros da Corte Suprema de

1. VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Da guerra à pacificação Justiça e do Conselho de Estado, que foram – A escolha colombiana. Campinas: Vide Editorial, 2010, sacrificados na tomada do Palácio da Justiça 165 p. em Bogotá, por um comando de guerrilhei- 2. Cf. “As múltiplas caras da violência armada”, pesquisa divulgada em abril de 2006 pelo Centro de Recursos para ros do grupo M-19 pagos por Pablo Escobar, Análise de Conflitos (CERAC) e Small Arms Survey em novembro de 1985. Finalidade desse (projeto de pesquisa independente da Universidade de Genebra, na Suíça). golpe contra as instituições democráticas:

...... segurança pública: o “plano colômbia” e a intervenção federal no rio...... 35 derrubar o Tratado de Extradição firmado ideia da profundidade da limpeza efetivada entre a Colômbia e os Estados Unidos, que no seio dos organismos policiais, lembre- afetava diretamente os chefões dos cartéis mos que somente na capital colombiana, no da cocaína. Entre 1984 e 2009, foram assas- decorrer de um ano, foram excluídos 2 mil sinados 75 religiosos (dois bispos, 62 sacer- agentes. Hoje, a polícia colombiana consti- dotes, oito membros de comunidades reli- tui uma força de 50 mil homens, com forma- giosas e três seminaristas). Em 2006, 17 bis- ção superior e muito bem treinada, remune- pos da Igreja Católica recebiam proteção po- rada de forma satisfatória e com armamento licial permanente do Agrupamento de Segu- moderno. A reforma foi profunda e morali- rança Eclesiástica da Polícia colombiana. zadora. A população, em contrapartida, pas- sou a confiar mais na corporação policial. II – Políticas de Segurança Pública em 3) As Forças Armadas constituíram duas Bogotá e Medellín unidades especializadas3 de combate urbano e na selva contra focos de narcotraficantes, pontadas como as cidades mais violen- paramilitares e guerrilheiros, desde início Atas do mundo, Bogotá (7 milhões de ha- dos anos 1990. Essas unidades oscilavam bitantes) e Medellín (2,5 milhões), na Co- entre 1 mil e 1,5 mil homens. No caso da pa- lômbia, transformaram-se em avançados la- cificação em áreas metropolitanas, entravam boratórios para a prevenção da criminalida- em ação a pedido do prefeito. Os comandan- de, em especial dos homicídios. Apesar de tes militares mantinham uma linha de co- ainda manterem altos níveis de pobreza – mando unificado com os prefeitos e gover- cerca de 40% da população —, essas duas nadores e com o Estado Maior das Forças cidades conseguiram reduzir suas taxas de Armadas. É importante destacar que os pro- homicídio em 79% (Bogotá) e 90% (Medel- jetos de pacificação empreendidos nas cida- lín), entre 1993 e 2007. des de Bogotá e Medellín inseriram-se no Qual foi a estratégia desenvolvida para a contexto mais amplo da estratégia do “Plano redução da violência em Bogotá e Medellín? Colômbia” (assinado entre os Estados Uni- As principais medidas adotadas foram as se- dos e a Colômbia em 2000), que o presiden- guintes: te Álvaro Uribe Vélez colocou em pleno 1) Com a finalidade de unificar o comba- funcionamento ao longo dos seus dois man- te à criminalidade, as reformas constitucio- datos, entre 2002 e 2010. nais feitas em 1993 atribuíram aos alcaides As condições de sobrevivência das insti- (prefeitos) das áreas metropolitanas a mis- tuições do estado democrático de direito são de coordenar as políticas públicas que eram muito negativas quando Uribe assumiu visavam à segurança cidadã. O prefeito, nes-

sas regiões, passou a desempenhar as fun- 3. As duas Unidades Especializadas das Forças Armadas ções de chefe de polícia. colombianas eram a Afeur (Agrupación de Fuerzas Especiales Antiterroristas Urbanas), com 14 Unidades 2) A Polícia Nacional experimentou uma distribuídas no Território Nacional e aproximadamente forte modernização, bem como a depuração 450 homens, e o Gaula (Grupo de Acción Unificada por la Libertad Personal), com 21 Unidades, 253 oficiais e dos maus elementos. Em Bogotá e Medellín 944 homens. Um intenso trabalho de inteligência precedia foram extintas as bandas podres que davam qualquer ação desses agrupamentos de Forças Especiais. O primeiro agrupamento visava às ações antiterroristas e cobertura aos meliantes. Para se ter uma o segundo focava nos sequestros de pessoas.

36 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... o poder. A Colômbia estava praticamente di- apoiando de forma clara a política pacifica- vidida em três grandes áreas: no Norte, do- dora posta em execução pelo governo. Isso minavam os paramilitares. No Centro, o go- ficou patenteado nos pronunciamentos da verno mal conseguia governar a região de Conferência Episcopal colombiana. Bogotá. No Sul, dominavam as Farc. Trata- 4) Os prefeitos das Áreas Metropolitanas va-se de uma situação de balkanização que e os seus assessores passaram a identificar as ameaçava seriamente a sobrevivência da áreas mais violentas das cidades e a definir Colômbia como país democrático. Diante as ações que deveriam ser feitas para erradi- dessa situação extremada, os três ramos do car os focos de narcotraficantes, paramilita- poder público fecharam fileiras ao redor do res e guerrilheiros ali instalados. A ação da Executivo. O Legislativo colaborou votando Força Pública foi rápida e, uma vez desarti- uma legislação que visava dar ao Estado ins- culados os focos violentos, a Polícia passou trumentos para combater o terrorismo das a ocupar, de forma permanente, as áreas que Farc e dos narcotraficantes, com um tratado foram objeto da intervenção. Foi garantido, de extradição de líderes dos cartéis da coca- em todas as áreas ocupadas, o policiamento ína habilmente negociado pelos líderes co- ostensivo. lombianos com os Estados Unidos.4 O regi- 5) Num prazo de 120 dias, após a erradi- me penitenciário foi modificado, sendo apli- cação dos focos armados, a Prefeitura entre- cadas penas mais duras contra os que fossem gava à comunidade uma série de obras so- condenados por crimes de narcoterrorismo. ciais, que visavam elevar a autoconfiança dos Prisões especiais, como a de Cómbita (no cidadãos, mostrando-lhes, eficazmente, que o Departamento de Boyacá), tornaram-se o Estado veio para ficar e que não os abandona- terror dos meliantes, sem visitas íntimas, ria. Essa ação de presença do Estado abarcou sem celulares e sem nenhum outro tipo de a instalação dos seguintes itens: posto de saú- regalia. O Judiciário colaborou também, de, escola municipal, delegacia de polícia, mediante a rápida concretização das novas banco popular (denominado de Megabanco, modalidades de aplicação da justiça (magis- cuja finalidade consistia em fazer emprésti- trados e legisladores se inspiraram nas refor- mos com juros baixos para pequenos comer- mas que foram efetivadas na Itália para com- ciantes e prestadores de serviços), parque-bi- bater a máfia e o poder dos grupos terroris- blioteca com área de lazer (vale a pena lem- tas, na década de 1980). Sem essas medidas brar que as construções e as áreas públicas fo- que comprometeram o alto governo, a políti- ram desenvolvidas com recursos de última ca pacificadora dos municípios teria sido in- geração em arquitetura e urbanismo) e siste- suficiente para restabelecer a tranquilidade ma local de transporte urbano que conectava nas áreas metropolitanas. A Igreja Católica, o bairro com a rede pública. de outro lado, deu a sua contribuição, O eixo principal de transporte de massa em Medellín é constituído até hoje pelo me- 4. O Tratado de Extradição contemplava a prisão, em penitenciárias americanas, dos traficantes que liderassem trô e, em Bogotá, pelo sistema de ônibus em a exportação de entorpecentes, notadamente cocaína e faixa rápida denominado de Transmilênio heroína, para os Estados Unidos. A Colômbia deixou claro, nas negociações, que um tratamento eficaz contra a violência (que se inspirou na modalidade de ônibus ar- do narcotráfico deveria incluir esse item. A colaboração ticulado de Curitiba). Como Medellín é uma da agência americana antidrogas, a DEA, foi decisiva na eliminação em Medellín, em 1993, de Pablo Escobar. cidade de relevo irregular, com muitos mor-

...... segurança pública: o “plano colômbia” e a intervenção federal no riol. . . . . 37 ros, o sistema de integração dos bairros com de ocupadas as áreas mais problemáticas de o metrô foi o bondinho, com seis linhas que ambas as cidades, outras áreas foram objeto atendem às mais remotas comunidades. Em da intervenção militar e social, com a cria- virtude do fato de Bogotá ser uma cidade ção, em Bogotá e Medellín, de mais par- plana, o sistema integrado passou a ser a ci- ques-bibliotecas, que hoje somam meia dú- clovia (a cidade conta, atualmente, com 480 zia em cada uma dessas cidades. quilômetros de vias para essa modalidade de 7) Todas as obras foram financiadas pelas transporte, integradas ao Transmilênio). respectivas prefeituras, mediante parcerias Salientemos que o sistema de transporte público-privadas (90% do investimento) ou serve às comunidades que buscam os par- ajuda internacional (10%). Os empreendi- ques-biblioteca, de forma tal que os habitan- mentos sociais chamaram a atenção de go- tes dos bairros carentes contam com acesso vernos estrangeiros. Os espanhóis, por rápido e barato a essas áreas de cultura e la- exemplo, financiaram integralmente o -Par zer, pois é possível a um passageiro percorrer que-Biblioteca Espanha, em Medellín. Nes- vários desses lugares com um só bilhete. A sa mesma cidade, os franceses ajudaram ideia dos parques-bibliotecas era proporcio- transferindo a tecnologia para os bondinhos nar, aos jovens das áreas carentes, oportuni- que atendem às comunidades carentes e para dade para que tivessem lazer de qualidade os veículos leves sobre trilhos que transitam junto às suas famílias, a fim de afastá-los do pela área central. consumo de entorpecentes. Uma medida que Os colombianos se convenceram de que hoje, na Finlândia, está dando certo no com- deveriam pagar pelas políticas de segurança bate à drogadição entre adolescentes. pública: foi criado um “imposto de guerra” 6) Com a finalidade de restabelecer a con- para financiar a luta contra o cartel das Farc, fiança da população nas autoridades, tanto que tinha presença em quase todas as regi- em Bogotá quanto em Medellín foram ocu- ões do país. Para o financiamento das obras pados pelo poder municipal os lugares mais de inclusão social nas cidades, os empresá- problemáticos da cidade. Em Bogotá as rios locais foram chamados a participar em ações ocorreram, inicialmente, em três áreas parcerias público-privadas. O prefeito de onde o poder público não estava presente e Medellín em 2007, Sérgio Fajardo, declara- que tinham sido tomadas de assalto pelos va que, para o financiamento das obras de marginais: El Cartucho (reduto das Farc, no pacificação na cidade, convocou os empre- centro velho da cidade), El Tunal e El Tintal sários que tinham ido morar em Miami e (na periferia, sendo que estas localidades ti- ponderou se não seria mais racional eles co- nham virado núcleos atacadistas de narcotrá- laborarem no financiamento das obras de in- fico e outras formas de criminalidade). clusão que a prefeitura desenvolvia, a fim de Em Medellín foram ocupados, inicial- resgatar a paz na cidade. A resposta foi posi- mente, o conjunto de favelas Santo Domin- tiva, com a volta de muitos empresários e go (na parte Leste-Norte da cidade, que ti- das suas famílias. nha se convertido em praça forte de guerri- 8) Resultados: entre 1993 e 2007 a taxa lheiros e milicianos), a perigosa Comuna 13 de homicídios caiu 79% em Bogotá, passan- (dominada pelas Farc) e a Comuna 6 (con- do de 80 por 100 mil habitantes para 17. A trolada por milicianos e traficantes). Depois taxa, em Medellín, caiu 90%, passando de

38 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... 380 por 100 mil habitantes para 26. Em a praça central da cidade, exigiam a presen- 2006, essa taxa era de 21. Além de transpor- ça do alcaide (prefeito) e do seu secretariado te público e ciclovias, as duas cidades inves- e os obrigavam a assinar um documento em tiram no ensino fundamental, tornando-se que se comprometiam a repassar à guerrilha epicentros, na América Latina, da ideia de 10% do orçamento municipal, a título de Cidades Educadoras. “segurança democrática”. Se algum prefeito Papel importante coube, nesse esforço, à ousasse se opor à proposta dos guerrilheiros, rede de bibliotecas públicas de Bogotá e seria fuzilado diante de todos. Foram vários Medellín (existem 30 delas na primeira cida- os funcionários municipais assim sacrifica- de e 40 na segunda) e a sua principal finali- dos pelas Farc. Os municípios chantageados dade consiste em recuperar o espaço público ficavam praticamente nas mãos da guerrilha. deteriorado e facilitar a convivência. O im- Porém, em alguns municípios de áreas pacto visual dessas construções é semelhan- indígenas assaltados pelos guerrilheiros co- te ao dos CEUs, as modernas e amplas esco- meçou a aparecer um fenômeno inusitado.5 las públicas na periferia de São Paulo, sendo Após a noite de bombardeio, os habitantes, que algumas delas são verdadeiras jóias ar- acompanhados do prefeito e dos seus secre- quitetônicas, como a Biblioteca Virgílio tários sentavam-se, desarmados, na praça Barco em Bogotá, ou a Biblioteca Espanha, pública e não falavam uma palavra com os em Medellín. seus agressores. Diante dessa manifestação 9) Essas políticas públicas de ocupação e passiva, que reunia entre 1 mil e 5 mil pesso- resgate de áreas marginais foi precedida, em as, os guerrilheiros ficavam sem saber o que Bogotá e Medellín, pela participação cidadã fazer. Seria difícil, para eles, assassinar a na luta contra a violência, no movimento cí- sangue frio todas essas pessoas (embora, em vico “Como Vamos”. Este Movimento sur- alguns casos, como em Bojayá, no Departa- giu, nas principais cidades colombianas, ao mento de Chocó, nos anos 1990, os guerri- longo da década de 1990, inspirado na resis- lheiros tivessem incinerado 300 pessoas in- tência cívica dos indígenas contra guerri- defesas – mulheres, velhos e crianças – que lheiros e paramilitares. Os habitantes de pe- se refugiaram na Igreja da localidade). quenas cidades do interior não se deixaram A perplexidade que os indígenas produ- intimidar pela extorsão do denominado ziram nos seus agressores com métodos de “clientelismo armado” das Farc. protesto à la Gandhi, acordaram o sentimen- Essa modalidade criminosa foi ampla- to cívico em outros municípios de maior ta- mente utilizada pelos guerrilheiros para sub- manho, até que essa atitude de luta pacífica meter ao seu controle aproximadamente 600 se tornou presente nas grandes cidades. municípios colombianos, ao longo dos anos Lembro-me de que, após um atentado a 1980 e 1990. Os meliantes atacavam a cida- bomba que matou várias pessoas, perpetrado de com um forte bombardeio durante a noi- 5. Convém esclarecer que, na Colômbia, como em outros te. Eram utilizados canhões fabricados pelo países da América espanhola, os indígenas conservaram a IRA (o Exército Republicano Irlandês), que sua autoridade local, elegendo o prefeito, que por sua vez indica os seus secretários dentre os habitantes do município. lançavam botijões de gás carregados de di- Nessas regiões (que o direito espanhol denominava de namite e metralha. Após a noite de terror, os Resguardos), também passaram a ser eleitos deputados estaduais e federais, bem como alguns senadores, segundo a guerrilheiros ocupavam, na manhã seguinte, nova Constituição colombiana, que foi aprovada em 1991.

...... segurança pública: o “plano colômbia” e a intervenção federal no rio...... 39 pelos terroristas na cidade de Medellín, no jardo, Enrique Peñalosa e Lucho Garzón in- “Parque Lleras”, num bairro de classe média tegraram as duas chapas mais votadas). De alta (em 2001), no dia seguinte, os jovens outro lado, aumentou a autoestima dos habi- voltaram ao mesmo lugar, limparam os des- tantes de ambas as cidades, bem como a par- troços e ficaram ali, para passar aos violen- ticipação cidadã. tos a mensagem de que os cidadãos não se O Movimento Como Vamos passou a ser rendiam aos métodos terroristas. adotado por outras cidades colombianas, 10) Em meados da década de 1990 con- dando ensejo ao Projeto “Rede de Cidades solidaram-se os movimentos “Bogotá como Como Vamos”. No início de 2007, cinco ci- vamos” e “Medellín como vamos”. O movi- dades integravam esse movimento: Bogotá, mento, nas duas cidades, foi organizado a Medellín, Cali, Barranquilla e Cartagena de partir das Câmaras de Comércio. Somaram- Índias. -se a essa iniciativa as universidades, bem como algumas fundações mantidas pela In- III – A influência da experiência colom- dústria e pela Imprensa. A finalidade do mo- biana no Brasil e como poderá ser vimento consistia em fazer um balanço men- dinamizada, entre nós, a Política de sal do estado da gestão municipal, levando Segurança Pública em consideração a qualidade de vida dos ha- bitantes da cidade, bem como a percepção a experiência colombiana, com certeza, que eles tinham acerca da gestão urbana. Dpodemos tirar algumas lições práticas, Passaram a ser avaliados, mensalmente, 12 em face dos projetos de pacificação denomi- indicadores, a saber: educação, saúde, sane- nados de UPPs, no Rio de Janeiro, e que, se amento básico, habitação, meio ambiente, forem complementados com as ações so- áreas públicas, transporte público, responsa- ciais que não foram efetivadas, poderão ser- bilidade cidadã, segurança cidadã, gestão vir de vitrine para projetos de pacificação pública, finanças públicas e desenvolvimen- em outras cidades. Eis as principais reco- to econômico. Os resultados das avaliações mendações: mensais eram divulgados, no final de cada 1 – Urgência de sanear os organismos po- mês, por um jornal de ampla circulação na liciais, a fim de recuperar a credibilidade de- cidade correspondente (El Tiempo, de Bo- les entre os cidadãos. No Rio de Janeiro, o gotá, e El Colombiano, de Medellín). grande problema ainda existente reside, jus- As avaliações efetivadas pelo movimen- tamente, na presença da denominada “banda to se tornaram pauta para os governantes podre” da polícia, que esvazia ações tenden- municipais e para as plataformas dos novos tes a erradicar o narcotráfico, beneficiando candidatos, dando ensejo à continuidade de os bandidos com informações prévias e, o projetos, entre uma administração municipal que é pior, achacando-os para favorecer e outra. Passaram a ser eleitos novos atores agentes corruptos, fazendo com que a popu- políticos, desvinculados dos partidos tradi- lação passe a desconfiar sistematicamente cionais (Liberal e Conservador), provenien- dos homens da lei. Falhas dessa natureza ter- tes do meio empresarial, operário ou univer- minaram por empanar uma ação excelente- sitário. (Na última campanha presidencial, mente bem planejada, como foi a que se rea- os ex-prefeitos Antanas Mockus, Sérgio Fa- lizou no Complexo do Alemão em 2010.

40 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... 2 – Necessidade urgente de revisar a legis- pasta base de coca. Os repetidos pedidos dos lação existente, a fim de que se assinalem os chefes militares no sentido de que se aumen- caminhos pelos quais as Forças Armadas po- tem os recursos para investimento em vigi- dem participar de ações contra o terrorismo lância de fronteiras, (como os relativos ao imposto pelo narcotráfico. As condições de projeto Sisfron, do Exército), foram contin- luta contra o inimigo mudaram radicalmente genciados de forma criminosa pelos sucessi- no final do século passado e no início deste vos governos, especialmente os petistas. As- milênio, com a presença, na atual conjuntura, sim, as nossas fronteiras terrestres são mais de novos atores internos, ligados a redes ter- uma esponja do que uma efetiva barreira pa- roristas. Tal é o caso dos narcotraficantes que, ra a entrada de armamentos e narcóticos. pela sua capacidade de fogo e pela mobilida- Nesse mesmo item entra o descaso para com de nas nossas fronteiras e no interior do país, a criação e provimento de pessoal de postos deixaram de ser apenas um inimigo da polícia fronteiriços da Polícia Federal, para vigiar e se transformaram em núcleos terroristas a os rios amazônicos e outros pontos por onde serem combatidos com força maior. Ouço de entram armamentos, entorpecentes e insu- muitas pessoas a seguinte queixa: se as nos- mos para o refino de cocaína. sas Forças Armadas participam, com eficácia, 3 – Falta definir, no Brasil, uma política de ações de combate aos marginais em países de alcance nacional que identifique e equa- como o Haiti, por que não podem fazer o cione o deslocamento interno dos crimino- mesmo no nosso país, quando isso se tornar sos. Ações tópicas, como as desenvolvidas necessário? O episódio de ocupação do Mor- na última década no Rio de Janeiro (e em ro do Alemão mostrou que a presença das outras áreas metropolitanas), conduziram, Forças Armadas, em certas circunstâncias, é de fato, a uma interiorização da criminalida- necessária. Falta, porém, definir, na atual In- de. A Zona da Mata mineira, o interior nor- tervenção Federal, um quadro legal que dê destino, o interior amazônico, o interior pau- sustentação a essas ações. lista, o interior paranaense, bem como os Os governos civis que se seguiram ao re- municípios interioranos de Santa Catarina e gime militar não cumpriram a contento com Rio Grande do Sul têm sido vítimas dessa as exigências de vigilância de fronteiras, a mobilidade dos narcoterroristas que, comba- fim de coibir a entrada de armas e entorpe- tidos nas áreas metropolitanas, passaram a centes provenientes dos países vizinhos. No migrar para áreas menos policiadas. O au- caso das armas, o freio às importações irre- mento acelerado do índice de criminalidade gulares de armamento moderno proveniente causado pela migração dos traficantes de dos Estados Unidos ainda não tem um es- crack e cocaína, nas pequenas e médias cida- quema realmente eficiente. des do interior brasileiro, mostra que algo há É essencial, para garantir a proteção de de falho na atual situação das políticas de se- fronteiras, equacionar as medidas essenciais gurança pública. A fronteira de exportação que as Forças Armadas identificaram como de narcóticos desde o Brasil se transferiu das urgentes para vigiar a imensa fronteira seca, regiões Sul e Sudeste para o Norte e o Nor- de 16 mil quilômetros, que separa o Brasil deste, com a consequente onda de violência dos seus vizinhos hispano-americanos, nota- em cidades que não tinham infraestrutura de damente os da área andina, produtores da segurança pública.

...... segurança pública: o “plano colômbia” e a intervenção federal no rio...... 41 4 – Na estratégia desenvolvida para apli- também, as cidades brasileiras mencionadas car políticas públicas de pacificação em áre- anteriormente. as urbanas, é importante levar em considera- Essa participação é fundamental, notada- ção que a ação policial tem de estar acompa- mente no terreno do estudo das políticas de nhada, ao mesmo tempo, das intervenções segurança por parte de universidades e cen- sociais que visem devolver aos cidadãos a tros de pesquisa. Ainda é modesta a colabora- autoestima. O exemplo de Bogotá e Medel- ção dos nossos centros de estudos superiores lín, nesse aspecto, é fundamental e constitui nesse terreno. Em face de uma questão polê- um caso eficiente de educação para a cidada- mica como a legalização de determinadas nia a serviço da pacificação. A ação policial, drogas, fazem falta estudos que esclareçam a sozinha, não é suficiente para devolver às população acerca da forma em que essas po- pessoas o sentimento de segurança. Deve líticas têm sido implementadas em outros haver um conjunto de ações eficientemente contextos (Europa, Estados Unidos, Canadá, coordenadas, como aconteceu nas cidades Austrália, Nova Zelândia, Finlândia, Portu- colombianas. A respeito, frisava o prefeito gal, Espanha e Uruguai), para evitar que solu- de Medellín Sérgio Fajardo: “As pessoas ções inadequadas tornem o problema de con- precisam entender, com estas políticas, que sumo de tóxicos ainda mais complexo. o Estado veio para ficar e para servi-los”. 6 – É necessário, outrossim, que todos os 5 – É necessária a colaboração efetiva da poderes públicos, no plano estadual, federal sociedade civil na concretização das políti- e municipal, bem como as três ramas do po- cas de segurança pública e de pacificação. der, executivo, legislativo e judiciário, assu- No que tange à influência do “Movimento mam uma posição coordenada, em face do Como Vamos” no Brasil, foi criada, em combate ao narcoterrorismo, de acordo com 2008, a Rede Social Brasileira por Cidades a defesa do estado de direito e dos direitos Justas e Sustentáveis. Fazem parte dela: Be- humanos. É grave, para a sociedade, a posi- lém (PA), Belo Horizonte (MG), Brasília ção díspar dos poderes públicos em face de (DF), Curitiba (PR), Florianópolis (SC), tão importante questão. A anistia concedida Goiânia (GO), Holambra (SP), Ilha Bela pelo ex-presidente Lula a notório terrorista, (SP), Ilhéus (BA), Januária (MG), Maringá já condenado pela justiça de um Estado es- (PR), Niterói (RJ), Peruíbe (SP), Porto Ale- trangeiro, no qual são respeitados os direitos gre (RS), Recife (PE), Salvador (BA), Ri- humanos, constitui um vexame para a opi- beirão Bonito (SP), Rio de Janeiro (RJ), nião pública civilizada e endereça uma men- Santos (SP), São Luis (MA), São Paulo (SP), sagem aos terroristas, no sentido de que as Teresópolis (RJ) e Vitória (ES). nossas instituições toleram esse tipo de cri- No âmbito dos países hispano-america- me. Na Colômbia, em face da agressividade nos, a rede “Como Vamos” também recebe o do terrorismo, houve uma sintonia dos pode- nome de Rede Cidadã por Cidades Justas e res públicos. Somente assim a sociedade co- Sustentáveis. Integram a rede na América lombiana conseguiu se sobrepor aos violen- Latina: Barranquilla, Bogotá, Cali, Cartage- tos, na guerra contra os narcotraficantes. na e Medellín (Colômbia), Buenos Aires 7 – A sociedade civil precisa se conven- (Argentina), Lima (Peru), Quito (Equador) e cer, no Brasil, de que uma adequada política Santiago (Chile). Participam dessa rede, de segurança pública é cara e precisa ter fun-

42 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... dos claramente destinados, com duração Nesse ponto, a atual intervenção federal no continuada. Os colombianos pagaram para Rio trabalha certamente com muito cuidado. ter forças armadas e policiais competentes. O serviço de informações é, na guerra con- Hoje, elas chegam a um número realmente temporânea contra o narcoterrorismo urba- grande de profissionais da defesa, bem arma- no, um item de primeira necessidade. dos, bem remunerados e treinados, que chega 9 – É inaceitável que, no Brasil, os mar- perto dos 400 mil efetivos, incluindo os 50 ginais do PCC e de outras siglas sanguiná- mil membros da Polícia Nacional. A Colôm- rias sejam os que efetivamente controlam os bia organizou o maior exército das Américas, presídios. Uma ação forte e rápida de inteli- depois do norte-americano. Um “imposto de gência e de repressão deve ser deslanchada guerra” foi aprovado no início da década pelas forças da ordem para tolher o abuso passada para cobrir os gastos necessários. Os praticado pelos criminosos no sistema pri- fundos são geridos com transparência me- sional brasileiro. Uma organização crimino- diante a vigilância continuada da “Fiscalía” sa como o PCC tem bala na agulha: consti- (que na Colômbia desempenha as funções do tui, em rendimentos anuais milionários, a 6ª Ministério Público). As Forças Armadas co- “empresa” brasileira, acima da Volkswagen. lombianas, no contexto do “Plano Colôm- Isso é fruto do descaso das autoridades em bia”, passaram a dispor de apoio de satélites face do sistema prisional e do combate ao americanos para garantir a vigilância de crime organizado. Uma ação complexa de fronteiras, bem como a segurança interna. E inteligência é necessária para desmontar es- contam com armamento de última geração, sa empresa da morte e retornar para o Estado como os helicópteros de combate Black Hawk. o controle eficaz das prisões. A legislação Destacam-se, no que tange às aeronaves de penal deve também ser revisada. O regime combate, os Tucanos T29 brasileiros, apare- de progressão de penas no Brasil é muito be- lhados com aviônica israelense. néfico para os criminosos, que se benefi- 8 – Um item mereceu especial dedicação ciam, também, com a retórica pseudodemo- na Colômbia, tanto de parte do governo cen- crática dos defensores dos direitos humanos, tral, quanto dos governadores e prefeitos: a que num suicídio cultural só olham para os instauração de uma rede nacional e local de bandidos sem enxergar os direitos tolhidos inteligência a serviço da Polícia Nacional e dos cidadãos pela marginalidade. A refor- das Forças Armadas. Os golpes espetacula- mulação do sistema prisional é urgente. Co- res desferidos pelo Exército colombiano e mo urgente é também o plano para dotar de pela Polícia contra os guerrilheiros das Farc, recursos necessários a renovação nessa área. nas últimas duas décadas e meia, são fruto 10 - Por último, levando em consideração da paciente organização das redes de infor- que já há várias cidades brasileiras que inte- mação no seio do Estado colombiano. É in- gram a experiência iniciada na Colômbia com concebível que a polícia de um importante o Movimento “Como Vamos” (Rede Social estado brasileiro, como o Rio de Janeiro, Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis), não tenha aplicado em políticas de inteligên- seria interessante que houvesse eventos que cia praticamente nada ao longo dos últimos avaliassem essa experiência e divulgassem os anos. Os meliantes, decerto, estão muito resultados obtidos, a fim de que essas realiza- mais informados do que as forças da ordem. ções pudessem servir a outras cidades preocu-

...... segurança pública: o “plano colômbia” e a intervenção federal no rio...... 43 padas com as questões da segurança pública. por parte dos jovens tem sido levantada no seio Alguma entidade de alcance nacional (como a do Movimento “Como Vamos”, na Colômbia, Confederação Nacional do Comércio, por sendo que lideranças cívicas assinalaram saí- exemplo), poderia, com a colaboração dos mi- das para esse problema, tanto na prevenção do nistérios da Segurança Pública e das Cidades, consumo com campanhas de comunicação se tornar a força aglutinadora das experiências que alertam para o perigo das drogas, como na urbanas em relação ao movimento “Como Va- revisão dos índices de tráfico e micro tráfico de mos”. A questão do consumo de entorpecentes drogas nos bairros.

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www.riocomovamos.org.br

www.nossabh.org.br

www.bogotacomovamos.org

www.medellincomovamos.org

...... segurança pública: o “plano colômbia” e a intervenção federal no rio...... 45 Intervenção Federal no Rio. Polarização ou Despolarização?

Sergio Abreu e Lima Florencio

“O fanatismo está em quase toda parte, O bárbaro, brutal e chocante assassinato e suas formas mais tranquilas, mais da vereadora Marielle Franco e do motoris- civilizadas estão presentes em nosso redor, ta Anderson Gomes culminou nesse quadro talvez também dentro de nós mesmos”. de grave instabilidade e insegurança urbana. “Como curar um fanático”. Militante de direitos humanos, negra, mora- – Amoz Oz dora da favela da Maré, socióloga graduada com bolsa integral na PUC do Rio, mes- omo brasileiro e carioca, identifico- tre pela Universidade Federal Fluminense -me com milhões de pessoas que (UFF), quinta vereadora mais votada (46 mil Cveem como um enorme risco à popu- votos), Marielle era síntese e símbolo da de- lação e às instituições a escalada do tráfico, sigualdade e da exclusão social em nosso pa- da violência e da criminalidade no Rio de ís. Esses atributos, somados ao consequente Janeiro. Um ambiente de caos na segurança retorno de multidões às ruas das principais pública permeia a cidade: três ex-governado- cidades do país e à imensa repercussão in- res presos; assombroso saldo de assassinatos ternacional de seu assassinato introduzem de civis; mais de uma centena de policiais um potencial imponderável de tensão social mortos no ano passado; envolvimento de e política na tragédia da violência no Rio. comandantes da polícia militar com facções Este texto procura avaliar a crise na se- criminosas, segundo o ministro da Justiça, e gurança pública e a intervenção federal no reconhecimento, pelo governador do estado, Rio a partir de quatro óticas: (i) um paralelo da incapacidade de garantir a ordem pública. com a Guerra às Drogas, no México, e com a guerra civil, protagonizada sobretudo pe- las Farc, na Colômbia; (ii) a identificação Sergio Abreu e Lima Florencio é diplomata de carreira. Mes- dos principais equívocos de interpretação a tre em Economia pela University of Ottawa. Professor Ad- junto de Latin American Studies da Simon Fraser University respeito da intervenção federal no Rio; (iii) (Canadá). Embaixador em Quito, Genebra (ONU) e México. uma análise de sua dimensão institucional e Pesquisador e diretor de Economia e Política Internacional técnica; e (iv) um exame de sua vertente po- do Ipea (2013 - 2017). Atualmente, é professor de História lítica e do potencial da intervenção federal da Política Externa Brasileira no Instituto Rio Branco (IRBr/ MRE) e vice-presidente da Banca Examinadora do Curso de como fator de despolarização política – uma Altos Estudos (CAE) do IRBr. Terceira Via.

46 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... O olhar de fora bia (27) e muito inferior à da Venezuela (57) e El Salvador (60). Entretanto, como outros ivi três anos no México, como embaixa- indicadores são relevantes para medir a vio- Vdor, na segunda metade dos anos 2000, lência, o International Institute for Strategic quando a criminalidade passou a crescer de Studies classificou o México como o segun- forma acelerada, apesar da violenta repres- do país mais violento do mundo em 2017, são. No mandato de seis anos do presidente logo após a Síria, e na frente do Afeganistão. Calderón (2006-2012), registraram-se mais O presidente Peña Nieto promulgou, de 60 mil mortes associadas ao narcotráfico. em dezembro de 2017, a Lei de Segurança Um jornal local assim sintetiza o resultado Interior, destinada a definir com clareza os da chamada guerra contra as drogas: entre- parâmetros de atuação das Forças Armadas gou muitas mortes, mas poucas soluções. no combate ao crime organizado em escala O narcotráfico no México é tradicional- nacional e, assim, superar 12 anos de impro- mente dominado pelos poderosos cartéis – visação. Um propósito central é o de habi- Los Zetas, Sinaloa, Golfo, entre outros. O litar as Forças Armadas, a Polícia Federal e governo empreendeu violento combate, com os serviços de inteligência a identificarem a participação direta das Forças Armadas. ameaças à segurança e a ter acesso a infor- Uma nova lógica ficou, então, evidente: o mações junto a entidades civis. Opositores declínio de um cartel implicava luta violen- à iniciativa presidencial contestaram sua ta pelo controle do território anteriormente constitucionalidade, e a Lei de Segurança por ele ocupado, tendo como consequência Interior encontra-se sob exame da Corte Su- sua fragmentação, acompanhada do surgi- prema do México. mento de uma miríade de novos cartéis. Esse Vivi também como embaixador no Equa- aumento era também estimulado por outros dor (2002-2006), período em que acompa- fatores ligados à desvirtuada governança da nhava a trajetória da violência na vizinha luta contra a drogas, tais como: vínculos das Colômbia, onde as Farc chegaram a dominar diversas instâncias do aparato policial com o um terço do território do país, com a atuação tráfico; corrupção no seio das próprias For- paralela dos paramilitares, apesar do envol- ças Armadas; crescimento de práticas tradi- vimento direto dos EUA, por meio do Plano cionais de extorsão, roubo e tráfico de seres Colômbia, que injetou US$ 10 bilhões no humanos. país, durante 15 anos. Diversas avaliações da guerra contra as O histórico de guerra civil e conflitos drogas no México tendem a apontar para a armados na Colômbia tem uma longa traje- ineficácia da estratégia governamental nes- tória, iniciada no alvorecer da Guerra Fria sa área. Os indicadores de violência no país (1948), quando o político socialista Jorge corroboram esse diagnóstico desalentador. Gaitán passou a protagonizar o fenômeno O ano de 2017 foi o mais violento no país conhecido como “La Violencia”. Os liberais nas duas últimas décadas, quando se inicia- emprestaram apoio aos socialistas durante ram essas estatísticas, com uma média de uma década e meia, com o propósito de al- 20,5 homicídios por cada 100 mil habitan- cançar hegemonia sobre os conservadores, tes. É verdade que essa média é inferior à de seus adversários históricos. países da região, como Brasil (27) e Colôm- Entretanto, a partir de 1964, com o receio

...... intervenção federal no rio. polarização ou despolarização? ...... 47 de um excessivo crescimento dos socialistas, tação Nacional (ELN), parece pavimentada vitaminados pelo êxito da Revolução Cuba- boa parte do caminho para a construção da na, os liberais articularam uma composição paz e, assim, para a superação da histórica com os conservadores e articularam forte re- polarização política do país. pressão ao movimento socialista, que passou Essas duas experiências de vida e obser- a atuar como uma guerrilha rural, que foi o vação do combate à violência, à criminali- embrião das Forças Armadas Revolucioná- dade e ao narcotráfico em países vizinhos rias de Colômbia (Farc). cristalizam uma crescente preocupação com Nos anos 1980, essa equação sofre forte os descaminhos da política de segurança inflexão, com o ingresso de uma nova variá- pública no Rio de Janeiro nos últimos anos vel – o tráfico – e dos vínculos estreitos com e condicionam minha percepção sobre a re- as Farc. Novos atores fortalecem o clima de cente intervenção federal. conflagração: de um lado, a guerrilha de ins- piração marxista – Exército de Libertação Os equívocos de interpretação Nacional (ELN) e, de outro, as Autodefesas Unidas de Colômbia (AUC) – principal gru- uitos equívocos cercam as avaliações po paramilitar de extrema direita, criado em Mda intervenção federal. Por isso, me- 1997 e destinado a combater as Farc. recem ser revisitados e contraditados, com o Diante da escalada do conflito, os Esta- objetivo de promover reflexão, talvez mais dos Unidos lançam o Plano Colômbia, que isenta e construtiva, sobre uma decisão que injetou US$ 10 bilhões no país, num período simboliza, no seu ineditismo, a extrema gra- de 15 anos, com o propósito de fortalecer vidade do caos social instalado na cidade as Forças Armadas do país, aparelhando o pela coabitação do crime com as forças poli- Exército com equipamentos mais eficientes ciais e as autoridades públicas. para combater o narcotráfico. O plano conta com o apoio quase irrestrito do presidente (i) Não se justifica, em um país que há ape- Uribe, que galvanizou vigoroso apoio da po- nas três décadas sepultou 21 anos de re- pulação – aprovação em 2006 atingiu 95% gime militar, reeditar uma intervenção –, impulsionado pela bandeira de combate militar no Rio de Janeiro. impiedoso à guerrilha e ao tráfico. O enfraquecimento militar da guerrilha, Evidentemente não se trata de intervenção acompanhado de crescente rejeição por par- militar, mas sim de iniciativa do governo fe- te da população, contribuíram para levar deral, que utiliza as Forças Armadas (FFAA), esses movimentos opositores à mesa de ne- apenas na área de segurança pública, para gociação. O corolário foi o Acordo de Paz tornar mais eficiente o combate à violência entre o governo e as Farc, que simbolizou o nesse estado. O general Braga Neto, na quali- ingresso de seus membros na vida política dade de interventor nesse setor, não substitui e o fim de mais de meio século (54 anos) o governador, embora exclua de seu mandato de confrontação armada, mais de 260 mil a política de segurança pública. mortos, e quase 7 milhões de deslocamen- tos forçados no país. Embora subsista ainda (ii) As operações anteriores do Exército na a rivalidade por parte do Exército de Liber- área de segurança na cidade foram ine-

48 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... ficazes. Os níveis de violência se reduzi- (iv) A decisão de autorizar a intervenção fe- ram apenas no breve período das opera- deral foi de ordem político-eleitoral, e ções e voltaram a subir. não de segurança pública.

Esse argumento não diferencia o mandato É bem provável que a motivação do pre- anterior do Exército para efetuar operações sidente da República ao autorizar a inter- de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) do venção tenha tido motivações muito mais mandato atual. No primeiro caso, o Exército políticas do que de segurança pública. Ou se subordinava às decisões sobre segurança seja, elevar sua ínfima margem de apoio emanadas da Secretaria de Segurança Públi- popular, e não planejar uma sustentável re- ca e operacionalizadas pelas Polícias Militar cuperação da segurança pública no Rio de e Civil. No caso atual, a equação se inverte. Janeiro. Entretanto, o fato de ter motiva- Inclui competência para demitir e nomear ções menos nobres não implica que seu re- chefes e demais autoridades responsáveis sultado venha a ser necessariamente inócuo pela segurança do Rio de Janeiro. ou contraproducente. Boas políticas nem sempre emergem de boas intenções. Muitas (iii) As Forças Armadas são preparadas pa- vezes resultam de composições possíveis ra a guerra, inspiradas na lógica amigo de interesses divergentes. versus inimigo. O combate à criminali- dade não obedece ao mesmo princípio (v) Violência, criminalidade e tráfico de dro- nem visa à eliminação do rival. gas no Rio de Janeiro têm causas estrutu- rais que não podem ser superadas por uma Sem dúvida, a formação do militar é intervenção no curto espaço de dez meses. distinta daquela do policial. Mas, as FFAA brasileiras, com contingente de milhares de É inegável a herança socialmente perver- militares, adquiriram substancial experi- sa: desigualdade; baixo nível educacional; ência na Missão das Nações Unidas para a concentração de renda; desemprego; trans- Estabilização do Haiti (Minustah), ao longo porte altamente ineficiente; violações siste- de 13 anos. Os resultados foram comprova- máticas de direitos humanos; políticas so- damente exitosos e reconhecidos pelos paí- ciais regressivas. Esse quadro não pode ser ses membros das Nações Unidas. Esse reco- revertido com uma intervenção de menos de nhecimento se refletiu na recente decisão da um ano de duração. As causas da violência ONU de escolher o Brasil para comandar as são estruturais e multidimensionais. Entre- operações de paz no Congo. Apesar da in- tanto, essa causalidade crônica não invalida discutível distância entre estágios de desen- a estratégia de combater os sintomas e as volvimento do Brasil e do Haiti e do prota- manifestações mais imediatas igualmente gonismo assumido pelo tráfico na violência perversas. A cirurgia não elimina a doença, no Rio de Janeiro, a experiência da tropa e mas pode contribuir para sua cura. do comando do Exército brasileiro no Haiti configurou uma tarefa típica de política de (vi) A intervenção federal não conta com segurança pública – certamente muito pró- recursos federais compatíveis com seus xima do mandato atual no Rio de Janeiro. amplos objetivos.

...... intervenção federal no rio. polarização ou despolarização? ...... 49 Sem dúvida, recursos substanciais serão ventora precisa ser dotada de credibilidade, necessários, mas seria prematuro antecipar a autoridade, poder e inteligência para encami- impossibilidade de que isso venha a ocorrer. nhar possíveis formas de superação da crise. Recursos públicos da ordem de R$ 1 bilhão No caso específico, diante da profunda foram recentemente anunciados, embora com crise de autoridade do Rio de Janeiro, du- o hiato de mais de um mês em relação ao lan- as possíveis alternativas seriam o recurso ao çamento da intervenção. Se o atraso reflete Judiciário ou às Forças Armadas. Embora certa improvisação da iniciativa, a liberação nenhuma das duas tenha formação especia- traduz a prioridade atribuída à intervenção. lizada para lidar com problemas de seguran- Além desse quadro de avaliações equivo- ça pública, a alternativa das Forças Armadas cadas, um conjunto de fatores – de ordem parece mais plausível, inclusive pela expe- técnica e política – condicionam o potencial riência exitosa, de 13 anos, no comando da de efetividade da intervenção e merecem ser Missão das Nações Unidas para a Estabiliza- examinados para uma compreensão mais ção do Haiti – a Minustah. abrangente de seus possíveis efeitos. Um dos propósitos fundamentais da in- tervenção foi contribuir para a superação da A dimensão institucional e técnica da inoperância, do imobilismo e da ineficácia intervenção federal da política de segurança pública no Rio de Janeiro. As Forças Armadas, além de serem ma dimensão nuclear marca a crise de um ator exógeno, revelam atributos essen- Usegurança no Rio de Janeiro – a inefi- ciais para uma missão com tal formato, tais cácia da política de segurança pública. Es- como: não envolvimento em acusações de sa resulta, em grande medida, dos conflitos corrupção; credibilidade junto à população entre as corporações policiais no âmbito do do Rio de Janeiro (diferentemente da polícia Estado, bem como dos vínculos espúrios e da classe política); redes de inteligência entre comandantes da Polícia Militar, repre- voltadas para o trinômio violência-crimi- sentantes das milícias, lideranças do tráfico nalidade-tráfico; experiência operacional e autoridades públicas. Ao mesmo tempo, advinda das ações de Garantia da Lei e da o combate à violência se torna mais com- Ordem e do trabalho semelhante de mais de plexo com as redes de comunicação inte- uma década no Haiti; e relativa capacidade restaduais e internacionais de organizações de se situar acima do jogo político e das ri- criminosas hegemônicas, como o Primeiro validades partidárias. Comando da Capital (PCC), com sede em Apesar da magnitude dos desafios ine- São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), rentes à intervenção federal, uma instituição criado no Rio de Janeiro. com o perfil das Forças Armadas parece exi- Aquela vertente da crise – conflitos cor- bir razoáveis chances de êxito no desempe- porativos – exige, para sua superação, a in- nho de mandato restrito, delimitado à políti- terveniência de instituições ou corporações ca de segurança pública no Rio de Janeiro. situadas fora e acima dos esquemas de segu- Êxito deve aqui ser compreendido não como rança e do jogo local. Essa parece ser uma “a solução do problema”, mas sim como regra quase consensual no tema da gestão de contribuição para reduzir os descaminhos da conflitos. Além de externa, a entidade inter- política de segurança atual, romper esque-

50 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... mas espúrios envolvendo instituições locais o CV, tem origem em penitenciárias, onde e, assim, reduzir a explosiva criminalidade dirigentes desses grupos operam com am- que assola a cidade. pla autonomia. É preciso também promover O argumento acima só se sustentará se maior coordenação entre o Poder Judiciário, algumas condições forem satisfeitas. É es- o Ministério da Justiça e o atual Ministério sencial assegurar flexibilidade às atividades da Segurança, de molde a introduzir refor- de formulação, gestão e operacionalização mas no sistema de gradação de penas, que das Forças Armadas, em conjunto com as no Brasil é de ampla liberalidade. Polícias Militar, Civil e Federal, agentes As expectativas da população deverão ter penitenciários e representantes do Ministé- forte impacto sobre os resultados da inter- rio Público e do Judiciário. No comando da venção federal. A liderança política do go- Missão de Paz no Haiti, o Exército brasileiro verno tende naturalmente a magnificar tais dispunha de ampla flexibilidade operacional resultados, com o objetivo de capitalizar – outorgada pela ONU não só àquela Mis- ganhos político-eleitorais. A diretriz mais são, mas a todas as chamadas operações de construtiva seria reduzir aquelas expecta- paz das Nações Unidas. tivas, de forma a torná-las mais realistas e, No contexto do alcance operacional das assim, evitar a frustração da população. forças federais envolvidas na intervenção no A recente concessão ao Paraguai de um Rio se inclui o chamado poder de polícia das espaço privativo no Porto de Santos trans- tropas do Exército. Eventualmente, poderão formou-se em instrumento de fortalecimen- ser examinadas alternativas jurídicas aos to das facções criminosas em nosso país. mandatos de busca e apreensão coletivos, Segundo revelado por autoridade militar, até agora considerados inconstitucionais. armas e munições originárias da América do De acordo com o general Augusto Hele- Norte ou Europa entram no Paraguai, sendo no, ex-comandante de nossas tropas no Hai- internalizadas no Brasil através do espaço ti, essa flexibilidade diz respeito, primeiro, a no Porto de Santos, fenômeno agravado por regras de engajamento que não se limitem ao acordos firmados pelo PCC com fornecedo- comandante geral, mas cheguem ao oficial no res de armas de países vizinhos, tais como comando da cena da operação. Em segundo Paraguai, Colômbia, Venezuela e Equador. lugar, a mobilidade das tropas também preci- Essa dimensão transnacional do crime sa assegurar recursos de deslocamento aéreo, organizado é considerada por muitos es- com helicópteros, de forma a acelerar a che- pecialistas como o mais grave e complexo gada das forças. Em terceiro, é preciso contar aspecto do combate ao narcotráfico. Cortar com o aporte de Tropas Especiais do Exército a logística do ilícito internacional constitui não residentes no Rio de Janeiro, de forma a um dos maiores desafios para a intervenção. evitar os vazamentos provocados por tropas Apesar de uma estrutura eficiente e altamen- locais, que buscam avisar a população da imi- te especializada, inclusive em guerra eletrô- nência de uma operação. nica, é preciso dotar as Forças Armadas de Outra condição considerada fundamen- recursos humanos e materiais ainda mais tal por especialistas diz respeito à gestão robustos. Isso se faz muito necessário em do sistema carcerário. Boa parte das ações função dos 15 mil km de fronteira terrestre de facções criminosas, tais como o PCC e com dez países, dos 7,5 mil km de costa e

...... intervenção federal no rio. polarização ou despolarização? ...... 51 dos graves problemas de fornecimento de Isso nos leva a avaliar a dimensão política armas, com trânsito nos quatro países acima da intervenção federal. mencionados. O exame do protagonismo de facções A vertente política da intervenção federal criminosas – sobretudo PCC e CV – e seu diferenciado perfil de atuação em São Paulo ois questionamentos a respeito da inter- e no Rio de Janeiro podem esclarecer algu- Dvenção federal na segurança pública no mas raízes da situação caótica prevalecente Rio de Janeiro merecem atenção mais deti- na capital fluminense. da. O primeiro diz respeito à necessidade ou Criado como instrumento de vingança não de uma medida extraordinária e inédita do massacre de 111 presos do Carandiru nos desde o fim do regime militar. O segundo se anos 1980, o PCC passou a atuar em dife- refere às motivações políticas para o lança- rentes estados, teve diversas de suas ações mento da iniciativa. ditadas a partir de presídios, mas manteve a A instabilidade política e o descontrole sede principal em São Paulo. econômico no Rio de Janeiro atingiram nos Diferentemente da capital paulista, no últimos anos proporções alarmantes, a ponto Rio de Janeiro prevalece o CV. Aí o crime é de vir o Estado a ser o símbolo do desgover- mais fracionado, mais espacialmente disper- no entre as entidades da federação e merecer so e convive com o poder local das milícias. empréstimos prioritários do governo fede- Foi nesse cenário que proliferaram territó- ral. Três ex-governadores presos e déficit rios urbanos dominados pelas facções crimi- fiscal fora de controle (ausência de serviços nosas. Essas coabitam com as milícias, que básicos e incapacidade de pagar salários do têm suas rendas originárias de atividades funcionalismo) sintetizam aqueles dois fe- inerentes ao Estado ou a empresas de utili- nômenos. Embora não caiba aqui analisar dade pública: cobrança de taxas de proteção esse triste quadro, é inescapável registrar a moradores; distribuição de gás; ligação que seus efeitos agravam substancialmente clandestina de energia elétrica; e até mesmo a crise na segurança pública no Rio. cobrança de transações imobiliárias. Esse Segundo dados do Instituto de Segurança paralelo entre o perfil distinto entre organi- Pública (ISP), foram 6.731 mortes violentas zações criminosas no Rio e em São Paulo em 2017, ou seja, uma taxa de 40 mortes elucida, de certa forma, o contraste entre o violentas por 100 mil habitantes, a maior declínio robusto da taxa de homicídios em desde 2009. De 2010 a 2016, essa taxa es- São Paulo e a forte ascensão no Rio. teve abaixo de 40, como reflexo das UPPs Outro problema grave diz respeito à de- (Unidades de Polícia Pacificadora), criadas bilidade da cadeia de comando das polícias em 2008, que tiveram efeito positivo (em Militares do Rio de Janeiro, onde os oficiais 2008 a taxa foi de 28,2 por 100 mil habitan- têm reduzida liderança sobre a tropa. Além tes) e posteriormente perderam eficácia. de maior atuação e visibilidade demonstra- A letalidade policial triplicou num perí- das pelas milícias no Rio, essas facções cri- odo de quatro anos. A taxa de homicídios minosas exibem um modelo de coabitação decorrentes de intervenção policial em 2017 com campanhas eleitorais que tem poucos (6,7 por 100 mil habitantes) foi também a paralelos em outros estados da federação. mais alta nos últimos nove anos. Uma vez

52 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... mais, a ascensão e o declínio do projeto das da reforma da previdência), seria recomen- UPPs explica, por exemplo, que em 2013 te- dável lançar um projeto capaz de projetar a nha ocorrido taxa de apenas 2,5 por 100 mil, imagem de um governo decidido a adotar a mais baixa do período 2010-2016. políticas públicas efetivas, com resultados Apenas em 2017 houve elevação exponen- visíveis e imediatos, em área de grande im- cial em alguns indicadores de violência: 30,4% pacto como a da segurança pública. em roubo de veículo; 43,5% em sequestro re- Essa decisão, de inspiração sobretudo lâmpago; 24,7% em roubo de aparelho celular político-eleitoral, necessitava contar com (UOL Notícias. 18.01.2018). Em 2017, foram o apoio das Forças Armadas, o que gerou assassinados 134 policiais militares no Rio, o divergências. De um lado, situava-se o co- maior número em dez anos. mandante do Exército, general Eduardo Com base nesses indicadores quantita- Villas Boas, com um contingente de 215 mil tivos e na percepção generalizada de medo militares sob seu comando e, naturalmente, da população diante da onda de violência na mais sensível às resistências da instituição cidade, é lícito concluir que “alguma coisa em apoiar um projeto potencialmente des- precisava ser feita” para quebrar o ciclo as- gastante para a imagem pública das Forças cendente de violência e criminalidade. Armadas. De outro, o chefe do Gabinete de A pergunta que subsiste é se seria neces- Segurança Institucional da presidência, ge- sária medida tão excepcional como uma in- neral Sergio Etchegoyen – mais sensível às tervenção federal. Ora, uma das causas mais preocupações de ordem política. ponderáveis da ascensão da violência foi o Além do argumento de potencial des- desmonte das políticas de segurança públi- gaste da imagem da instituição, os militares ca, corolário das crises política e econômica, se preocupavam com a falta de preparação, do declínio do projeto das UPPs, dos confli- planejamento, estratégia, bem como com tos entre corporações na área de segurança e questões de ordem legal e orçamentária para de envolvimento dessas últimas (e de autori- a intervenção. dades políticas) com facções criminosas, co- Essas preocupações são de fato muito mo PCC e CV. Nossa avaliação é no sentido fundamentadas e começam a ser respondi- de respaldar esse diagnóstico e, portanto, de das à medida que se implementa a interven- apoiar a intervenção federal, uma vez que ção. O exemplo mais claro foi a alocação de apenas uma instituição – Forças Armadas – cerca de um R$ 1 bilhão somente há poucas situada acima dos conflitos corporativos e semanas aprovada pelo governo federal. dos embates políticos estaduais poderia ter O ambiente político em torno da interven- eficácia em sanear a gestão da segurança pú- ção foi profundamente impactado pela mor- blica no Rio. te trágica da vereadora Marielle Franco e do O segundo questionamento – os motivos motorista Anderson Gomes, que provocou políticos da intervenção – parece ter como compreensível comoção nacional, responsá- resposta a estratégia compensatória por parte vel por multidões de manifestantes em diver- do governo. Diante da crise de legitimidade, sas capitais do país e surpreendente repercus- da queda de popularidade em função das re- são internacional. A biografia de Marielle lhe formas, do eventual declínio de apoio do se- confere a condição de síntese e símbolo da tor empresarial (incapacidade de aprovação marcante desigualdade social em nosso país.

...... intervenção federal no rio. polarização ou despolarização? ...... 53 Que cenários podem emergir para a inter- ragem e retidão das atitudes da magistrada. venção federal na segurança pública do Rio Ainda no plano pessoal, tive também de Janeiro? Com um mês de implantação, a desencanto diante de outro grupo de ami- intervenção está envolta num ambiente po- gos que consideraram o trágico episódio da lítico tenso, tanto no plano nacional (o jul- morte de Marielle como a expressão da ine- gamento do habeas corpus do ex-presidente ficácia da intervenção – impotente diante de Lula e o tema da prisão após condenação policiais ou milícias – e da necessidade de em segunda instância), como no plano local priorizar a promoção dos direitos humanos (o enorme impacto do brutal assassinato de em relação à segurança pública. Essa visão, Marielle e do motorista Anderson). ao classificar a intervenção federal como É reveladora a visível ambivalência de militar, já buscava deslegitimá-la com base atitudes por parte das mídias a respeito do as- em argumento anacrônico, uma vez que as sassinato da vereadora Marielle. De um lado, Forças Armadas se distanciam hoje da aspi- a cuidadosa atitude de evitar a politização e a ração hegemônica que nutriram em outros partidarização da tragédia, por parte de parti- momentos de nossa história. dos políticos, da imprensa escrita, do rádio e da televisão. De outro, a polarização das men- Jogo polarizado de soma zero no Brasil sagens em curso nas redes sociais. Em certo sentido, essa ambivalência é natural e frequen- par dessas considerações particulares, te. Entretanto, no caso em tela, ela assumiu A vale tentar avaliar os possíveis desdo- uma intensidade merecedora de reflexão. bramentos da intervenção federal no Rio e Em uma nota de ordem bem pessoal, não do assassinato de Marielle, sobretudo diante posso deixar de registrar meu espanto diante do atual clima de polarização política. Vale de reações de muitos amigos e pessoas pró- deixar bem clara sua firme oposição à in- ximas que se manifestaram de forma a con- tervenção federal no Rio, postura que com- denar a ampla repercussão do assassinato de preendemos como natural e coerente com a Marielle. A atitude prevalecente era estig- trajetória de uma líder cuja biografia e mili- matizar aquilo que consideram exagerada tância sintetizam muito da enorme desigual- reação, e contrastá-la com a pouca atenção dade em nosso país. que mereceu a morte de outra figura dedica- É evidente que a intervenção não poderá da à causa dos direitos humanos e do comba- “resolver o problema da violência no Rio”. te à corrupção – a juíza Patrícia Acioli, ini- A questão relevante é se ela poderá ou não miga das milícias e cruelmente assassinada contribuir para atenuar a tragédia da crimina- com 21 tiros em Niterói. lidade e do tráfico na vida das pessoas. Ou Essas manifestações de virulenta conde- seja, se poderá tornar mais eficaz a gestão das nação ao impacto da morte de Marielle reve- entidades de segurança pública, ao romper lavam a incapacidade de reconhecer na ve- seus vínculos espúrios com o poder político, readora do PSOL, eleita com 46 mil votos, o crime organizado e as facções criminosas. a imagem de síntese e símbolo das desigual- Caso venha a intervenção a ser caracte- dades no país, o que explicava a amplitude rizada como exitosa em seu propósito maior muito maior do impacto de sua morte, em de reduzir os níveis de violência e criminali- relação à de Patrícia, apesar de toda a co- dade, duas leituras se abrem.

54 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... A primeira reforçaria a visão de que é que exigem aprovação pelo Congresso ou preciso apoiar um regime de força no país, endosso do Judiciário, é grave o risco de entendido como o abandono de princípios ineficácia. democráticos, da proteção aos direitos hu- Entretanto, não se pode excluir a hipó- manos e a emergência de instrumentos re- tese de que sejam superados os embates pressivos. político-partidários inerentes à polarização A segunda leitura tenderia a não reconhe- acima descrita, pelo menos no que se refe- cer os eventuais resultados positivos da in- re às aprovações de medidas essenciais ao tervenção, pois atribuiria maior prioridade a funcionamento da intervenção. Assim, não é seus efeitos político-eleitorais em benefício impossível que venham a convergir visões do governo. Preservaria o tom crítico tam- – situadas acima de interesses partidários bém com o argumento de que a intervenção – que priorizem o imperativo de mudan- é um instrumento de militarização das polí- ças robustas na atual gestão da política de cias e do processo político. segurança pública no Rio. Nesse cenário, a A prevalência de uma ou outra leitura intervenção federal poderá contribuir, ainda dependerá da percepção de ganhos político- que modestamente, para a despolarização da -eleitorais da intervenção para cada grupo. política em nosso país O primeiro – “à direita “do espectro político São irrefutáveis os argumentos em defesa e identificado com opções personalizadas da preservação do Estado de direito, do res- pelo candidato Jair Bolsonaro. O segundo peito aos direitos humanos e aos princípios situado “à esquerda” – identificado com o da democracia liberal. Tais argumentos não PSOL – parte da premissa de que a interven- apresentam incompatibilidade com a inter- ção é “militar” e, por isso, ao fortalecer uma venção federal no Rio de Janeiro, desde que reedição do regime autoritário inaugurado sua implementação continue a contar com o em 1964, deve ser combatida. apoio da população, o acompanhamento da No polarizado jogo de soma zero do Bra- mídia e o papel apolítico e suprapartidário sil de hoje, são muitos os imponderáveis das Forças Armadas. nesse tabuleiro político-estratégico-eleito- A esperança é que essa arrojada decisão ral. É possível que amplos segmentos mais de promover uma intervenção restrita à área pobres venham a se dissociar dos grupos de segurança pública possa evitar que o Es- que condenam a intervenção, uma vez que tado do Rio de Janeiro venha a atingir os ní- esses seriam identificados muito mais com veis de conflito armado generalizado e fora os embates político-partidários do que com do controle visível nas trajetórias descritas o drama concreto e diário das populações do México e da Colômbia. Caso venha, em ameaçadas pela violência e pelo crime. alguma medida, a reduzir a carga de sofri- É natural que partidos e candidatos – e mento diário das populações mais pobres do várias colorações ideológicas – distanciem- Rio diante da violência, a intervenção poderia -se de um governo com ínfimo nível de in- contribuir para despolarizar o ambiente polí- tenções de voto e, nesse sentido, venham a tico e, embora em terreno inóspito e hostil, adotar táticas de boicote à intervenção. Co- lançar esperançosa semente da Terceira Via. mo a efetividade dessa depende de regras de engajamento e de flexibilidade operacional Brasília, 25 de março de 2018.

...... intervenção federal no rio. polarização ou despolarização? ...... 55 Mudança de Governo, Lava Jato e Intervenção Federal: Alguns Aspectos Geopolíticos

Marcelo Zero

os últimos anos, o Brasil vem pas- e direita que competiam pelo voto do centro sando por transformações drásticas político e dos indecisos. Havia uma carac- Ne súbitas. A deposição da presidente terística marcante nessas disputas: todas as Dilma Rousseff, a profunda crise do sistema forças davam apoio explícito à consolidação de representação propiciada, entre outros da democracia no Brasil. fatores, pela operação Lava Jato, a célere Configurou-se, assim, uma espécie de pac- implantação de uma agenda economicamen- to implícito pelo qual todas as forças políticas te conservadora e socialmente regressiva e, relevantes reconheciam a democracia como mais recentemente, a aberta militarização valor universal e imprescindível para fazer da segurança pública, que trouxe de volta as avançar o desenvolvimento do país. Mesmo forças armadas ao cenário nacional, confi- com as limitações estruturais óbvias da de- guram quadro político radicalmente distinto mocracia brasileira, que alijava a maior parte daquele que havia predominado até 2014. da população de direitos sociais e políticos Do nosso ponto de vista, essa nova reali- básicos, havia essa disposição praticamente dade política representa clara ruptura com o consensual para aprofundá-la e consolidá-la, status quo político-institucional que havia se sentimento natural num país que havia acaba- criado com a Constituição de 1988. do de sair de décadas de ditadura. No Brasil pós-ditadura, as disputas em A chegada do PT ao poder, nas eleições geral envolveram forças de esquerda e cen- de 2002, representou teste significativo pa- tro-esquerda contra forças de centro-direita ra as instituições democráticas consolidadas após a Constituição de 1988. Apesar das ex- periências trágicas do segundo governo de Marcelo Zero, nascido em Lisboa, em 1955, é sociólo- Getúlio Vargas e do governo João Goulart, go, formado e pós-graduado na Universidade de Brasília muitos acreditaram que a democracia bra- (UnB). Especializou-se em política externa a partir da sua experiência profissional como coordenador da Comissão sileira havia amadurecido o suficiente para de Emprego e Migrações do Mercosul, quando trabalhava lidar com um governo, que, na prática, era no Ministério do Trabalho, no início da década de 1990. bastante moderado e conciliador, dedicado à Desde 1995, trabalha no Congresso Nacional, assessorando promoção da inclusão social e à erradicação as bancadas do PT em política externa, Mercosul, defesa nacional e política de inteligência, além de outros temas. da pobreza e das desigualdades, sem afetar, Publica artigos regularmente em diversos sites de notícias. porém, os interesses das classes dominantes.

56 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... Por um breve momento histórico parecí- sistema de representação e instituir crescente amos emular, mutatis mutandis, as experiên- Estado de exceção, necessário à imposição de cias exitosas da socialdemocracia europeia uma agenda bastante impopular. clássica. Houve maciça ascensão social, er- Tal quadro de ruptura institucional e de- radicação da pobreza extrema, aumento da mocrática, agressões aos direitos humanos participação dos salários no PIB, diminui- e à soberania popular e crise do sistema de ção da informalidade laboral e ampliação do representação foi agravado, recentemente, acesso à educação. Ao mesmo tempo, elimi- pela intervenção militar no Rio de Janeiro, nou-se a vulnerabilidade externa da econo- que traz de volta à cena nacional as forças mia e iniciou-se um ciclo de crescimento ba- armadas, numa tentativa de buscar legitimi- seado na dinamização do mercado interno. dade para um governo com alta rejeição e de Assim, a nossa democracia aparentava ter resolver o complexo problema da segurança amadurecido e ser capaz de lidar e de nego- pública pela via autoritária. ciar com os conflitos distributivos inerentes Essas profundas, céleres e drásticas mu- às economias capitalistas. danças foram ocasionadas, fundamentalmen- Contudo, esse quadro mudou drastica- te, por fatores econômicos, sociais e políticos mente quando a crise começou a afetar os internos. Apesar disso, não podemos descar- interesses de nossas oligarquias e dos seus tar, a priori, que existam também interesses setores políticos aliados. Num átimo, a ilu- internacionais empenhados na desestabiliza- são com o amadurecimento da democracia ção da democracia do Brasil e na afirmação brasileira se desfez com o impeachment sem da agenda econômica conservadora propi- crime de responsabilidade. Rompeu-se com ciada pelo golpe de 2016. Tampouco se deve a alternância democrática entre as forças po- descartar liminarmente a hipótese de que haja líticas e com o pacto político-institucional interesses geopolíticos de outras nações que plasmado na Constituição de 1988. influenciem operações como a da Lava Jato e Tal ruptura permitiu que fosse implantada a decisão de usar as forças armadas brasilei- ampla agenda econômica e social conserva- ras no combate à criminalidade. dora, a qual dificilmente teria sido aprovada pelas urnas, tal como ficou demonstrado no Ingerências externas em assuntos pleito de 2014, que elegeu a agenda oposta de internos continuidade do processo de distribuição de renda e de combate à pobreza e à exclusão. empre que se tenta fazer essa discussão, Ressaltam-se, nessa agenda conservadora Smuitos tentam desqualificá-la, a priori, implantada à margem da soberania popular, como mera “teoria da conspiração”. Isso não largas medidas de privatização e desnaciona- é adequado. Afinal, a história da América lização de “tudo o que for possível” e mudan- Latina e do Brasil mostra que as ingerências ças significativas, tanto no âmbito da política externas em assuntos internos foram, e ainda externa quanto na área da política de defesa. são, abundantes em nossa região. Paralelamente, a chamada operação Lava Em estudo publicado na Harvard Re- Jato, que teve papel central na geração do cli- view of Latin America1, em 2005, menciona- ma político propício ao golpe parlamentar de 1. https://revista.drclas.harvard.edu/book/united-states- 2016, contribuiu para erodir a legitimidade do interventions

...... mudança de governo, lava jato e intervenção federal: alguns aspectos geopolíticos...... 57 -se que, apenas entre 1898 e 1994, os EUA contra o ex-presidente Lula e ao próprio gol- conseguiram êxito em mudar governos da pe de 2016, crescem as evidências de que região 41 vezes, o que dá uma média de houve e há ingerências norte-americanas uma mudança de governo a cada 28 meses. nos acontecimentos, especialmente median- Ressalte-se que, nesse estudo publicado na te a denominada operação Lava Jato, propi- Universidade de Harvard, não se analisam ciada por uma cooperação bilateral judicial as possíveis intervenções recentes, como entre Brasil e EUA. De fato, já há a forte as ocorridas em Honduras (2009), Paraguai suspeita, consubstanciada em fatos, de que (2012) e Brasil (2016). a Operação Lava Jato foi politicamente ins- Há, pois, um longo histórico de interven- trumentalizada, de forma a produzir efeitos ções, no qual se inclui o golpe militar brasi- objetivamente nocivos no Brasil. leiro de 1964, que recomenda análises mais No campo econômico, tal operação con- abrangentes e aprofundadas sobre o golpe tribuiu para destruir a cadeia de petróleo e parlamentar de 2016 e, mais especificamen- gás, ensejou a venda, a preços aviltados, das te, sobre a Lava Jato e seu modus operandi, reservas do pré-sal, solapou a nossa compe- bem como sobre a intervenção militar no Rio titiva construção civil pesada e comprome- de Janeiro. Evidentemente, não é intenção teu projetos estratégicos na área da defesa, deste artigo fazer análise abrangente dessas como o relativo à construção de submarinos. possíveis implicações. Queremos aqui ape- Conforme estudo da consultoria GO Asso- nas listar algumas evidências que apontam ciados, a Lava Jato teria ocasionado uma para a existência de influências externas na diminuição do PIB da ordem de 2,5%, em conformação desses fenômenos. 2015, contribuindo para desempregar cente- nas de milhares de brasileiras e brasileiros. Ingerência externa na Lava Jato e na No campo político, a operação Lava Jato consequente perseguição judicial teve papel significativo no golpe parlamentar (lawfare) contra o ex-presidente Lula de 2016, que depôs a presidenta Dilma Rous- seff, sem a devida comprovação do cometi- m geral, as intervenções dos EUA nos mento de qualquer crime de responsabilida- Eassuntos internos dos países da região de, como exige a Constituição. Ademais, tal se dão de forma indireta. Assim, das 41 in- operação vem tendo destaque na denominada tervenções exitosas mencionadas no estudo guerra judicial contra o ex-presidente Lula, a publicado em Harvard, somente 17 foram qual visa ao objetivo político de impedir a sua diretas, mediante uso aberto da força. candidatura para as eleições de 2018. No caso das intervenções indiretas, o Pois bem, essa operação foi gerada no mecanismo mais usual da ingerência é o da âmbito de uma estreita cooperação judicial “cooperação”, em diversas áreas. Com efei- bilateral entre EUA e Brasil. O aprofunda- to, os mecanismos de cooperação, aparente- mento dessa cooperação judiciária e de se- mente inocentes, prestam-se, muitas vezes, gurança entre Brasil e EUA começou a se a atividades de cooptação ideológica e po- dar na década de 1990, mais especificamen- lítica e de influência indevida em assuntos te ao longo do governo do ex-presidente internos de outros países. Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Em relação à guerra judicial (lawfare) Datam dessa época a abertura de escritó-

58 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... rios da DEA e do FBI no Brasil, órgãos que peitadas, mas também que as autoridades passaram a cooperar ativamente com a Po- norte-americanas conduziram a construção lícia Federal brasileira e outros órgãos, com da Lava Jato e o processo relativo ao aparta- investimentos vultosos em capacitação e mento triplex. treinamento de nossos policiais. Tais inves- Com efeito, em manifestações públicas timentos criaram uma inevitável relação de proferidas em 19 de julho de 2017, o Sr. dependência e possibilitaram a progressiva Kenneth Blanco, então vice-procurador ge- incorporação da agenda da “guerra às dro- ral adjunto do Departamento de Justiça dos gas” e outros temas de interesse maior dos Estados Unidos (DOJ), e o Sr. Trevor Mc EUA aos objetivos da segurança púbica do Fadden, então subsecretário geral de Justiça Brasil. Também data dessa época o aprofun- e adjunto interino daquele país, explanaram damento da cooperação entre as procurado- sobre cooperação baseada em “confiança”2 rias de ambos os países, não apenas visando e, por vezes, fora dos “procedimentos ofi- ao combate ao narcotráfico, mas outros de- ciais”, realizada entre as autoridades norte- litos internacionais, como corrupção, evasão -americanas e os procuradores da República de divisas e lavagem de dinheiro. da Lava Jato. Com o objetivo de fundamentar juridi- Afirmou o procurador Blanco que “tal camente essa cooperação, foi firmado, em confiança, como alguns aqui dizem ‘con- 1997, o “Acordo de Assistência Judiciária fiança’, permite que promotores e agentes em Matéria Penal entre o Governo da Repú- tenham comunicação direta quanto às pro- blica Federativa do Brasil e o Governo dos vas. Dado o relacionamento íntimo entre Estados Unidos da América”. o Departamento de Justiça e os promoto- Esse acordo ditou regras estritas para a res brasileiros, não dependemos apenas de cooperação. Entre elas, destaca-se a do Arti- procedimentos oficiais como tratados de go II do acordo, a qual prevê que cada Parte assistência jurídica mútua, que geralmente designará uma Autoridade Central para en- levam tempo e recursos consideráveis para viar e receber solicitações em observância serem escritos, traduzidos, transmitidos ofi- ao presente Acordo e que, para a República cialmente e respondidos”. (grifos nossos) Federativa do Brasil, a Autoridade Central Ora, tal cooperação informal, feita com será o Ministério da Justiça. Também se base em “relacionamento íntimo”, se dá a deve salientar a do Artigo III, o qual prevê revelia do texto do acordo, pois ele prevê, que a assistência poderá ser negada, caso o como vimos, que tudo teria de ser aprova- atendimento à solicitação prejudicar a se- do e conduzido pelo Ministério da Justiça gurança ou interesses essenciais semelhan- (MJ). Mas, não há qualquer registro oficial tes do Estado Requerido. mostrando que o MJ tenha sequer tomado No entanto, essas regras previstas no conhecimento dessas atividades informais. acordo vêm sendo sistematicamente vio- Assim, alguns juízes e procuradores, princi- ladas, nas atividades de cooperação. Isso palmente os da Lava Jato, não prestam con- foi dito publicamente por altas autoridades norte-americanas envolvidas nessas ativida- 2. Vídeo1 - pronunciamento, com legendas, de Kenneth Blan- co, então vice-procurador geral adjunto do Departamento de des. Tais “confissões” mostram não apenas Justiça dos Estados Unidos (DOJ)- https://youtu.be/tbPL- que as regras do acordo vêm sendo desres- M5onjLk, aos 8m8s.

...... mudança de governo, lava jato e intervenção federal: alguns aspectos geopolíticos...... 59 tas a ninguém. Ignoram a norma do acordo tos nos EUA contra empresas brasileiras, o com os EUA. Atuam conforme suas idios- que causa muita estranheza. Alguns argu- sincrasias pessoais e ideológicas, numa es- mentam que os processos nos EUA contra pécie de cooperação pessoal, que não tem empresas brasileiras (Embraer, Petrobras, sustentáculo jurídico. etc.) decorrem do fato de que essas firmas Aqui é necessário fazer uma observação abriram seu capital nas bolsas daquele país, importante. A ordem jurídica interna do Bra- submetendo-se, automaticamente, à legis- sil funciona com base em princípios diferen- lação de mercado de capitais operada pela tes da ordem jurídica interna norte-america- Securities and Exchange Commission. na. Em nosso direito positivo, o agente pú- Mas, isso é apenas uma meia verdade. As blico não é apenas proibido de fazer o que a multas geradas pelos norte-americanos às lei veda. Ele é proibido de fazer tudo aquilo empresas brasileiras somam até agora cerca que a lei não preveja de forma explícita. Ele de R$ 7 bilhões. As maiores da história. Tra- só pode atuar no marco estreito da letra da ta-se de multas por delitos cometidos no Bra- lei. Ora, essa cooperação informal, fora das sil por pessoas e empresas brasileiras. Como vias oficiais, viola o texto do acordo firma- agravante, o Tesouro é o principal acionista do com os EUA, o qual, na ordem jurídica da empresa mais demandada, a Petrobras. interna do Brasil, tem força de lei. Trata-se, portanto, de uma cooperação ilegal. Ademais de violar abertamente o texto Cooperação por interesses do acordo de cooperação, tais atividades in- norte-americanos formais agridem também princípios consti- tucionais. A Constituição Federal brasileira ortanto, estamos lidando com recursos estipula que é prerrogativa constitucional Pque estão ou poderiam estar na admi- exclusiva do presidente da República cele- nistração pública brasileira, mas que estão brar tratados internacionais e conduzir as re- sendo transferidos para o exterior. A título lações externas do país. Trata-se de princí- de quê? Quais os critérios para fazer essa pio comezinho das relações internacionais, distribuição de valores (asset sharing), que que exige que a voz do país no exterior seja nunca foi prática no Brasil? Como se che- uma só. Não se admite que um país tenha gou a esses valores? O Ministério da Justiça, vários órgãos independentes que determi- “autoridade central” do Brasil, aprovou? O nem políticas externas distintas. Por tal ra- Ministério do Planejamento brasileiro pre- zão, qualquer atividade de cooperação teria viu esse gasto esdrúxulo no orçamento? O de ser ao menos comunicada ao Itamaraty Itamaraty concordou? Todas essas perguntas e por ele supervisionada. Obviamente, isso pertinentes continuam sem resposta. não acontece. Desse modo, nossos procura- Mais ainda. Cabe privativamente ao Se- dores e juízes estabeleceram, em desafio cla- nado Federal, pela Constituição do Brasil ro à Constituição, política externa específica (artigo 52, inciso V), autorizar operações e independente para com os EUA. externas de natureza financeira, de interesse As autoridades nacionais e o Congresso da União, dos Estados, do Distrito Federal, Nacional do Brasil sequer tomaram conheci- dos Territórios e dos Municípios. Ora, é ób- mento, por vias oficiais, dos processos aber- vio que essas operações financeiras são de

60 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... interesse da União, pois tangem a recursos Pontes”3. Trata-se de uma Conferência Re- do Tesouro ou potencialmente do Tesouro. gional de cooperação, realizada em outubro Entretanto, o Senado brasileiro só tomou co- de 2009, com a presença de membros seletos nhecimento do tema pela imprensa. da PF, Judiciário, Ministério Público e auto- Note-se que, em janeiro deste ano (2018), ridades norte-americanas, no Rio de Janeiro. a Petrobras apresentou proposta para que os O informe diz que os agentes norte-ame- investidores norte-americanos desistam da ricanos influenciariam brasileiros a criar ação legal contra a empresa, a qual prevê pa- uma força-tarefa para trabalhar em um caso gamento de US$ 2,95 bilhões (quase R$ 10 factual, que receberia assessoria externa em bilhões). Tal oferta é 6,5 vezes superior ao “tempo real”. total de recursos recuperados até agora pela Segundo um dos comunicados, após o Lava Jato (R$ 1, 4 bilhão). sucesso da Conferência sobre “crimes fi- Embora a Constituição brasileira assegu- nanceiros ilícitos” promovido pelo “Pro- re ao Ministério Público autonomia, essa au- jeto Pontes” (financiado com recursos dos tonomia não lhe dá a prerrogativa de usurpar EUA), cursos de formação em São Paulo e competências constitucionais privativas do Curitiba foram solicitados por juízes, pro- Senado Federal e do Presidente da Repúbli- motores e policiais brasileiros interessados ca. Também não lhe dá o direito de desres- em aprofundar o conhecimento sobre como, peitar regras de acordos internacionais e a por exemplo, arrancar, de maneira prática, legislação interna do Brasil. confissões de acusados de lavagem de di- Mas, não se trata apenas aqui de coope- nheiro e outros crimes. ração informal, sem nenhum amparo legal. O sucesso do seminário, segundo a vi- Trata-se também de uma cooperação que são dos norte-americanos, foi medido pelo foi construída essencialmente por interesses pleito dos profissionais brasileiros por novos norte-americanos. De fato, numa relação in- treinamentos. formal, feita sem a supervisão de autoridades “Os participantes elogiaram a ajuda em centrais, acabam predominando inevitavel- treinamento e solicitaram mais treinamento mente os interesses da parte mais preparada, para coleta de provas, interrogatório e en- experiente e que dispõe de maiores recursos. trevista, habilidades em situação de tribu- Na mesma palestra aqui referida, o pro- nal e o modelo de força-tarefa. (…) vários curador Blanco afirma que a Divisão Crimi- comentaram que desejavam aprender mais nal é composta por cerca de 700 advogados sobre o modelo proativo de força-tarefa; espalhados por 17 setores e escritórios, prin- desenvolver melhor cooperação entre pro- cipalmente em Washington D.C., e muitos curadores e polícia e ganhar experiência em escritórios no exterior, inclusive no Bra- direta no trabalho sobre casos financeiros sil. Assim, o procurador confessa que há es- complexos de longo prazo.” critórios de procuradores norte-americanos Para os agentes do EUA envolvidos no que atuam livremente em nosso país. projeto, “(…) há necessidade continuada de A influência dos EUA nas procuradorias assegurar treinamento a juízes federais e es- brasileiras é objeto de várias mensagens di- taduais no Brasil e a autoridades policiais plomáticas norte-americanas, vazadas pelo 3. http://operamundi.uol.com.br/dialogosdosul/wikileaks-eua- Wikileaks, as quais mencionam o “Projeto criou-curso-para-treinar-moro-e-juristas/15072017/

...... mudança de governo, lava jato e intervenção federal: alguns aspectos geopolíticos...... 61 para enfrentar o financiamento ilícito de sivos”, de “alto risco” e exagerados. As cortes conduta criminosa. (…) Idealmente, o trei- superiores norte-americanas acabaram rever- namento deve ser de longo prazo e coincidir tendo vários casos da força-tarefa da Enron, com a formação de forças-tarefa de treina- em razão das táticas utilizadas, que violavam mento. Dois grandes centros urbanos com direitos humanos. O mais rumoroso deles foi suporte judicial comprovado para casos de o da firma Arthur Andersen LLP, que teve to- financiamento ilícito, especialmente São das as acusações retiradas pela Suprema Cor- Paulo, Campo Grande ou Curitiba, devem te, em 2005. Ainda há juízes em Washington. ser selecionados como locação para esse ti- Antes da Lava Jato, os procuradores brasi- po de treinamento.” (grifamos) leiros não se utilizavam desses métodos que As anotações vazadas pelo Wikileaks in- violam direitos constitucionais. dicam, ainda, que os agentes americanos A influência norte-americana é também pretendiam não só ensinar como se daria a política. O procurador Blanco fez referên- formação de uma força-tarefa para um caso cia específica, em seu pronunciamento, à específico, mas incentivar que esse caso fos- sentença condenatória proferida contra Lu- se transformado em “investigação real”, com la e ressaltou também neste caso a parceria “acesso” aos treinadores norte-americanos. norte-americana com os membros do MPF. Assim sendo, torna-se claro que a força-ta- No vídeo, o procurador afirma que: “na refa da Lava Jato foi formada com participa- verdade, na semana passada, os promotores ção e influência proativa de autoridades norte- no Brasil conseguiram a condenação do ex- -americanas. Observe-se que tal influência se -presidente Lula da Silva, que foi acusado de reflete, inclusive, nos métodos utilizados. receber subornos da empresa de engenharia É que a Lava Jato tem na Seção de Frau- OAS em troca de sua ajuda na obtenção de des do Departamento de Justiça dos EUA a contratos com a petrolífera estatal Petro- sua contraparte. Andrew Weissmann, chefe bras. São casos como esse que colocaram dessa seção, entre 2014 e 2017, é um pro- o Brasil na vanguarda dos países que estão curador conhecido, nos EUA, por utilizar trabalhando para combater a corrupção, métodos pouco ortodoxos. Ele ganhou fama tanto no país como fora.” 4 por comandar a força-tarefa que investigou Dessa maneira, um procurador norte- a empresa de energia Enron, no início deste -americano se refere explicitamente ao ex- século. -presidente Lula como uma espécie de gran- Pois bem, acusações e prisões de fami- de troféu da cooperação bilateral. Para ele, a liares, prisão como método de tortura, táti- condenação de Lula coloca o Brasil na “van- cas agressivas e de risco, uso de vazamentos guarda da luta contra a corrupção”. Nota-se, seletivos são, conforme denúncias surgidas assim, por parte da procuradoria norte-ame- nos EUA, procedimentos utilizados regu- ricana, intenção de interferir na vida política larmente por Weissmann na força-tarefa da do Brasil, o que representa nítido desvirtua- Enron, que se reproduziram claramente na mento da cooperação bilateral. Lava Jato. Com efeito, os métodos de trabalho usa- 4. Vídeo1 - pronunciamento, com legendas, de Kenneth Blan- dos por Weissmann e replicados na Lava Jato, co, então vice-procurador geral adjunto do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ)- https://youtu.be/tbPL- foram considerados, nos EUA, como “agres- M5onjLk, aos 9m47s.

62 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... É preciso levar em consideração, nesta nha vínculos, ainda que mínimos, com os análise, que os EUA costumam se utilizar EUA. Assim, enquadram-se nessa lei em- dessas atividades de cooperação para fazer presas que tenham ações em bolsas america- prevalecer seus interesses econômicos e nas, investimentos ou mesmo contas bancá- políticos. O enfraquecimento de empresas rias nos EUA. brasileiras, como a Petrobras, a Odebrecht, Na visão do governo norte-americano, a a Embraer, etc. favorece objetivamente in- lei teria lhe propiciado uma espécie de juris- teresses norte-americanos e de seus aliados, dição internacional para investigar casos de quer pela eliminação de concorrentes, quer corrupção em todo o mundo. Como dificil- pela perspectiva de compra facilitada de mente uma empresa internacionalizada não ativos estratégicos, como petróleo e gás, ga- tem interesses nos EUA, isso submete todas sodutos, terras, água, empresas de energia, as empresas de alguma relevância ao crivo empresas de alta tecnologia, etc. jurídico e político da lei norte-americana. Concomitantemente, as atividades de Dessa maneira, o combate aparentemente cooperação na área do combate aos ilícitos, neutro à corrupção em nível internacional po- ou supostos ilícitos, podem servir de opor- de ser facilmente desvirtuado para beneficiar tunidade para a criação de alvos políticos de apenas interesses geopolíticos específicos. interesse dos EUA. Dada à óbvia assimetria nas relações bilaterais Brasil/EUA, tais ob- Interesses geopolíticos na intervenção jetivos geopolíticos não seriam difíceis de militar no Rio de Janeiro serem alcançados, sob o manto aparente- mente neutro e “mutuamente benéfico” das s mesmas suspeitas que cercam a co- atividades de cooperação. Aoperação bilateral Brasil/EUA na área No entanto, o contrário, isto é, o uso das judicial e, consequentemente, a Operação atividades de cooperação na propugnação de Lava Jato e o próprio impeachment sem interesses brasileiros nos EUA, seria algo vir- crime de responsabilidade, se espraiam tam- tualmente impossível, pois a única superpo- bém à recente decisão do governo ilegítimo tência do planeta não aceita, sob nenhuma hi- de proceder a uma intervenção militar no pótese, que autoridades estrangeiras possam Rio de Janeiro. se intrometer em seus assuntos ou prejudicar Tal intervenção no Rio de Janeiro é, sem seus interesses, públicos ou privados. dúvida, bastante polêmica. Com efeito, ela Note-se, a esse respeito, que a Foreign suscita uma série de questionamentos, que Corrupt Practices Act (FCPA), lei norte- vão desde as motivações da iniciativa até as -americana que busca coibir que compa- possíveis consequências sociais e políticas nhias (americanas ou estrangeiras) façam das ações propostas. pagamentos a funcionários de governos em Os questionamentos se acirraram con- troca de vantagens a seus negócios, tem níti- sideravelmente, após a terrível execução do caráter extraterritorial. da vereadora Marielle Franco, do PSOL. A De fato, para o Departamento de Justiça vereadora, combatente em prol dos direitos norte-americano (DOJ), os atos de corrup- humanos, que se dedicava a defender as po- ção investigados podem ter ocorrido em pulações faveladas da cidade, vítimas histó- qualquer país, desde que a empresa mante- ricas da violência policial, criticava aberta-

...... mudança de governo, lava jato e intervenção federal: alguns aspectos geopolíticos...... 63 mente a intervenção e estava empenhada no dos EUA passaram a pressionar os governos monitoramento e controle das operações. da América Latina, no sentido de que as for- Seu assassinato, em aberto desafio à or- ças armadas da região passassem a atuar em dem constitucional e às instituições demo- segurança pública, mais especificamente no cráticas, suscita dúvidas profundas sobre a combate ao narcotráfico, tema muito sensí- capacidade da intervenção militar de melho- vel nas eleições daquele país. rar, ainda que brevemente, a situação da se- Essa pressão obedecia a dois propósitos: gurança pública naquele estado. As dúvidas em primeiro lugar, auxiliar as forças norte- se intensificam, no que se refere à compati- -americanas a reduzir o afluxo de entorpe- bilidade de tal intervenção com a imprescin- centes aos EUA e, com isso, aumentar os dível proteção aos direitos humanos funda- preços das drogas vendidas naquele mer- mentais das populações mais afetadas pela cado, diminuindo, dessa forma, o consumo violência e a exclusão social. local. Mas, havia também outro objetivo, Entretanto, o objetivo deste artigo não é, oculto, pelo qual se procurava enfraquecer a repetimos, o de analisar, de forma porme- capacidade das forças armadas latino-ameri- norizada, todos esses aspectos relevantes da canas de cumprir sua missão precípua de de- intervenção militar no Rio de Janeiro. Na fender o território e a soberania de seus paí- realidade, este modesto trabalho tem escopo ses. Com isso, os EUA procuravam (e ainda reduzido. Tratamos apenas de inquirir sobre procuram) fazer com que as forças armadas os possíveis aspectos geopolíticos que moti- da região se convertam em forças subalter- vam esse uso ostensivo das forças armadas nas das forças militares norte-americanas. brasileiras na segurança pública e no comba- Foi exatamente por isso que os EUA te à criminalidade ordinária. pressionaram o Brasil, na década de 1990, a Muito embora a motivação imediata da in- desenvolver uma ampla política de desarma- tervenção militar no Rio de Janeiro tenha sido mento, que foi prontamente aceita e imple- claramente a de buscar popularidade e legiti- mentada pelo governo neoliberal de FHC. midade para um governo com níveis altíssi- De fato, naquela época o Brasil firmou todos mos de rejeição na opinião pública, voltamos os acordos de desarmamentos possíveis, in- a enfatizar que não se pode descartar, a priori, clusive o “Tratado de Não-Proliferação de que existam motivações de ordem mais ampla, Armas Nucleares” (TNP). inseridas em conhecidas pressões geopolíticas O ex-chanceler , em entre- hemisféricas e em mudanças que vêm ocorren- vista recente à Revista Fórum5, observa que: do nas políticas externa e de defesa do Brasil. “esse pensamento de que Forças Armadas devem combater narcotráfico é lamentável. As pressões dos EUA para o envolvi- Eu convivo com essa questão há muitos mento das forças armadas latino-ameri- anos. Eu fui ministro das Relações Exte- canas no combate ao narcotráfico e sua riores na época do governo Itamar. Na oca- transformação em forças subalternas da sião, veio o secretário de Defesa dos EUA, segurança hemisférica William Perry, e como na época não havia

esde a década de 1980, com intensifi- 5. https://www.revistaforum.com.br/celso-amorim-tenho- -medo-que-as-forcas-armadas-voltem-atuar-como-partido- Dcação na década de 1990, os governos -politico/

64 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... ministro da Defesa, eu o recebi, embora ele ciais, corroídas até a medula pelo narcotráfi- tivesse contato com vários comandos. Todos co, forçou os militares a ocupar espaços cada estavam muito preocupados com essa ideia vez maiores de segurança. "Nossos soldados de transformar as Forças Armadas brasileiras não podem fazer mais. Proporcionalmente em instrumento de combate à criminalida- ao nosso território e população, somos o de. Essa era a agenda norte-americana. Eles menor exército do mundo”, afirmou o gene- [EUA] diziam algo como ‘olha, de seguran- ral Salvador Cienfuegos, titular da Secreta- ça externa e defesa cuidamos nós’. Isso foi o ría de la Defensa Nacional. que eles impuseram no México, e deu muito Por parte do tecido civil não há mais errado pro México”. (grifos nossos) corresponsabilidade, apenas a inação, o que De fato, a experiência do México, nesse gera insatisfação notável entre os militares. aspecto, tem sido desastrosa. Desde 2005, Há soldados que protegem escolas em Aca- quando o ex-presidente Fox envolveu as pulco, ou que fazem o trabalho da polícia forças armadas mexicanas no combate ao municipal, algo que não deveria ser função narcotráfico e ao contrabando, que o Exérci- militar. A essa sobrecarga desvirtuada de to e a população vivem violência crescente. trabalho, a ausência de um quadro legal de Conforme estimativas conservadoras, mais ação é adicionada. Apesar de o exército ter de 100 mil pessoas foram assassinadas nes- se mobilizado há mais de uma década, ne- sa guerra incentivada pelos EUA, a maioria nhum governo quer regular esse uso que se civis inocentes. tornou, na prática, de longo prazo, sem data Com efeito, o desgaste é evidente. O uso para acabar. da força militar foi acompanhado de aumen- Em outras palavras, o uso das forças ar- to de abusos e assassinatos. Organizações in- madas no México em segurança pública, as- ternacionais de direitos humanos denunciam sim como na Colômbia, é um completo fra- a tortura como uma prática comum. O ter- casso: aumentou a violência e a insegurança, rível resultado de episódios como Tlatlaya incrementou os atentados aos direitos huma- ou Ayotzinapa (nos quais estudantes secun- nos, aumentou a corrupção entre os milita- daristas foram chacinados) aprofundou essa res, provocou grande desgaste e insatisfação desconfiança. na tropa e, sobretudo, os desviou de sua fun- Criou-se um beco sem saída. A crise da ção de defesa da pátria e da soberania. violência no México se aprofundou e não Enfim, as forças armadas mexicanas, por existe mais autoridade civil capaz de en- pressão do governo dos EUA, são hoje usa- frentar o problema mediante prevenção ou das politicamente como mera força auxiliar punição. É por isso que as forças armadas dos órgãos de segurança norte-americanos. são usadas. Porém, esse uso constitui erro O ex-chanceler Celso Amorim teme por crasso, porque os militares não são policiais esse uso político aqui no Brasil. Afirma ele, treinados para essa tarefa complexa e espe- na citada entrevista, “a utilização política é cífica. Ademais, tal política os expõe (os mi- grave e (os militares) não estão satisfeitos. litares) a uma interação permanente com o Acho que isso está sendo imposto. E o as- crime organizado, que conduz à corrupção e pecto que seria mais trágico para o Brasil, ao desvirtuamento de sua missão. entre outros, é uma espécie de guerra das No México, o colapso das forças poli- Forças Armadas com o narcotráfico. Seria

...... mudança de governo, lava jato e intervenção federal: alguns aspectos geopolíticos...... 65 uma desvirtuação da missão das Forças Ar- ta um “ponto fora da curva”, na tradição de madas e um enfraquecimento da missão que afirmação da soberania nacional em região é defender o Brasil, o pré-sal, as fronteiras, estratégica para o país. programas de tecnologia avançada… O que Na realidade, esses exercícios vêm na se espera das Forças Armadas é a defesa esteira de uma série de iniciativas bilaterais da nação. Mas claro que há sempre aqueles que, a nosso ver, fazem parte de uma estraté- que têm saudades daquelas Forças Armadas gia do governo ilegítimo de reaproximação nas ruas.” (grifos nossos) subalterna aos EUA, tanto no campo da po- De novo, não se trata de mera elucubra- lítica externa, quanto no campo da política ção sem nenhum fundamento ou de “teoria de defesa. da conspiração”. A ameaça é concreta. Não Nesse diapasão, o Ministério da Defesa temos dúvida de que a combinação da Lava do Brasil e o Departamento de Defesa dos Jato, que está destruindo o braço empresarial EUA assinaram o “Convênio para Inter- da Estratégia Nacional de Defesa (assentado câmbio de Informações em Pesquisa e De- em empresas privadas, como a Odebrecht, a senvolvimento”, ou MIEA (Master Infor- Embraer, etc.) com a Emenda Constitucional mation Exchange Agreement), na sigla em nº 95, de 2016, que reduzirá drasticamente o inglês. Com tal decisão, o governo do golpe investimento estatal nessa área, poderá fazer investirá na cooperação com os EUA, co- o Brasil retroceder à década de 1990, quan- mo forma de “desenvolver” nossa indústria do a tônica dada pelo neoliberalismo acrítico de defesa. Na prática, isso significa renun- era a do desarmamento do país. ciar a ter real autonomia no campo do de- Ademais desses fatores econômicos, é senvolvimento industrial e tecnológico da preciso lembrar que o Exército dos EUA defesa nacional. participou, a convite do governo brasilei- Ao que tudo indica, setores das Forças ro, de um exercício militar conjunto que foi Armadas, hoje hegemônicos, renunciaram realizado, em novembro de 2017, na trípli- ao desenvolvimento tecnológico relativa- ce fronteira amazônica entre Brasil, Peru e mente autônomo e, agora, apostam numa Colômbia. Tal fato revela um fator político relação de dependência com os EUA para o preocupante para a soberania nacional, no seu reaparelhamento. campo da defesa e da indústria de defesa. A assinatura do referido Convênio, bem Tratou-se de uma decisão inédita na his- como outras iniciativas recentes, parece se tória militar recente do Brasil, que causa inserir dentro do quadro de uma nova estra- estranheza. O nosso país, até o presente go- tégia de inserção do Brasil, na órbita dos in- verno ilegítimo, vinha investindo na gestão teresses dos EUA. Tal nova estratégia tende soberana da Amazônia, em parcerias com a minar as diretrizes, estabelecidas há vários países da América do Sul, estabelecidas em anos, de o Brasil articular uma estratégia de mecanismos de cooperação regionais, parti- defesa própria e conjunta do subcontinente cularmente os da Unasul e os da Organiza- sul-americano, mediante, entre outros meca- ção do Tratado de Cooperação Amazônica nismos, do Conselho de Defesa da Unasul. (OTCA). Assim, esse convite a uma super- Saliente-se que a principal vulnerabilida- potência estrangeira, que não faz parte da de que temos hoje, no campo da soberania Bacia Hidrográfica da Amazônia, represen- nacional, tange justamente à inexistência de

66 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... uma Base Industrial e Tecnológica de Defe- faz todo sentido para os interesses do gover- sa (BITD) capaz de aparelhar adequadamen- no ilegítimo e dos EUA. te as Forças Armadas. A BITD é fator fundamental do que o Conclusões provisórias ex-ministro da Defesa, embaixador Celso Amorim, chamava de “Grande Estratégia”, omprovar efetivamente que há ingerên- que realça a articulação das políticas exter- Ccias geopolíticas, ainda que indiretas, na e de defesa. Remete igualmente a outro nos recentes e graves acontecimentos ocor- projeto estratégico do Estado: seu modelo ridos no Brasil é tarefa inglória. Sempre se de desenvolvimento. A BITD pode e deve pode argumentar que os fatos foram conse- ser um pilar central de um novo projeto de quência exclusiva de fatores internos e que desenvolvimento focado na indústria de al- quaisquer especulações sobre influências ta tecnologia e na inovação, sob indução e externas indevidas não passam de ridículas atento acompanhamento do Estado. teorias da conspiração. Não obstante, as ações do governo atu- Muitas vezes, a comprovação dessas in- al do Brasil vão, como vimos, na direção gerências acaba se dando muito a posteriori, oposta e representam investimentos numa como ocorreu com o golpe militar de 1964, relação assimétrica e de dependência, em re- no Brasil. Assim, se comprovou, muitos lação aos EUA, que dificilmente produzirão anos depois, o que todo o mundo sabia. os efeitos benéficos esperados. Não obstante, as evidências coletadas até Dentro desse novo quadro de assumida agora são, como vimos, robustas o suficien- dependência, a intervenção federal no Rio, te para levantar suspeitas racionais sobre os com o uso ostensivo das forças armadas nu- temas aqui elencados. Resta saber se haverá ma função que as desviam de sua missão disposição política para investigar os casos. principal (a defesa da soberania nacional), Provavelmente, não.

...... mudança de governo, lava jato e intervenção federal: alguns aspectos geopolíticos...... 67 A Hora e a Vez da Produtividade e da Competitividade

Jorge Arbache1

Introdução mas os preços médios em dólar aqui corres- pondiam a 61% dos preços médios de lá. Brasil passou por uma das maiores Portanto, a nossa produtividade é relati- crises econômicas da sua história. vamente baixa, enquanto os nossos preços O A crise teve causas mais imediatas são relativamente altos. A consequência não associadas à situação política e à exaustão poderia ser outra: indicador de competitivi- do crescimento baseado no consumo e nos dade internacional elaborado para 42 países gastos públicos, mas também causas muito avançados e emergentes mostra que o Brasil mais profundas associadas à baixa produti- está em posição bastante desconfortável. vidade e competitividade da economia. De onde vem essa tão baixa produtivi- Entre 1950 e 2016, a produtividade do dade e competitividade? As causas são, ob- trabalho no Brasil cresceu modestos 197%. viamente, variadas, mas talvez, a mais im- Já as produtividades da Coreia do Sul e da portante delas esteja associada ao modelo de China cresceram, respectivamente, 1.605% e economia altamente cartorializada, estatiza- 2.176%. Em 2005, a produtividade do traba- da, protegida e voltada para dentro, inaugu- lhador brasileiro correspondia a apenas 16% rado no pós-guerra e que viria a dar origem à da produtividade do trabalhador americano, baixa eficiência alocativa, mercados disfun- cionais e custos de produção elevados. Es- Jorge Arbache é secretário de Assuntos Internacionais do se modelo, avesso a riscos, desencorajou a Ministério do Planejamento, professor de Economia na competição, a formação de capital humano, Universidade de Brasília, secretário executivo do Fundo de Investimento Brasil-China e da Comissão de Financia- a inovação, a internacionalização de empre- mento Externo do governo federal (Cofiex), membro do sas e o investimento de longo prazo e tem no Conselho Diretor do BNDES e da Logigas, colunista de orçamento público e na proteção a garantia negócios do Valor Econômico, autor de livros e blogueiro. última da formação de lucros. Suas ocupações anteriores incluem a de economista-chefe no Ministério do Planejamento, assessor econômico sênior No topo daquela economia já pouco da Presidência do BNDES e economista sênior do Banco competitiva, introduziram-se, com a Consti- Mundial em Washington, D.C. Arbache está especialmente tuição de 1988, muitos direitos e benefícios interessado em temas como crescimento econômico, co- sociais sem a contrapartida em receitas. A mércio, investimento, produtividade, inovação, tecnologia, competitividade, serviços e economia digital. Arbache é 1. As opiniões neste artigo são pessoais e não necessariamente Ph.D em economia e bacharel em economia e direito. representam as visões do governo.

68 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... combinação de baixa eficiência dos gastos plicações sem precedentes nas funções que públicos, substancial ampliação da popu- os países desempenharão na economia glo- lação com acesso a benefícios e envelheci- bal. Os acordos comerciais ora em discussão mento populacional iriam requerer uma eco- reescreverão os parâmetros que regularão o nomia muito mais produtiva e competitiva comércio, o investimento e os fluxos de ca- para dar conta do aumento das despesas sem pitais. O problema é que estamos de fora de comprometer o crescimento econômico. muitos desses acordos e, portanto, não es- O modelo começou a mostrar os seus li- tamos defendendo os nossos interesses nas mites à medida que, primeiro, o Brasil foi mesas de negociações que estão redefinindo se integrando mais à economia mundial a a governança da economia global. partir da década de 1990, o que revelaria a Mas outras mudanças também terão im- nossa baixa competitividade internacional, pactos contundentes para nós. Serviços, pro- e, segundo, à medida que a carga tributá- priedade intelectual e conhecimento já são, ria foi alcançando patamares elevados para mas serão ainda mais determinantes para padrões internacionais sem correspondên- selar os destinos das economias e as suas cia na qualidade dos serviços públicos e na perspectivas de crescimento. Nós, com a ex- infraestrutura. Cedo ou tarde, esse modelo ceção de alguns poucos segmentos, somos mostraria fadiga. pouco competitivos em serviços e a nossa A crise econômica de 2008 e as políticas produção de inovações, soluções e tecnolo- equivocadas dos últimos governos viriam a gias é modesta. precipitar o fim de um longo ciclo. De fa- As novas tecnologias de produção e de to, o esgotamento do modelo se manifestou organização da produção baseadas em pro- no colapso do PIB per capita entre 2014 e dutividade sistêmica, robôs, internet das 2017 de 9,5% e em vários indicadores críti- coisas, inteligência artificial, impressoras cos, incluindo a tendência de crescimento do 3D, big data e cadeias locais e regionais de endividamento público, juros reais elevados, valor, bem como a “commoditização” digi- queda da densidade industrial, queda do in- tal, estão fazendo com que custos de produ- dicador de complexidade econômica, repri- ção e até de escala estejam paulatinamente marização da economia, queda da participa- perdendo importância como fatores deter- ção do país nas exportações mundiais, baixa minantes da competitividade internacional. participação do país em cadeias globais de Enquanto isso, nós ainda estamos apostan- valor, pressões inflacionárias crônicas, alta do na agenda de custos e em subsídios para volatilidade da taxa de crescimento e queda competir. da taxa de crescimento do produto potencial. A China, nosso maior parceiro econô- mico, está passando por profundas trans- O Brasil no mundo formações, o que alterará a natureza e o peso das suas relações econômicas com sse quadro tem reduzido a nossa rele- países basicamente fornecedores de com- Evância num momento especialmente de- modities, como nós. A mudança do eixo terminante nas relações econômicas inter- econômico do Atlântico para o Pacífico e nacionais. De fato, as relações econômicas a limitada integração econômica sul-ame- estão se alterando rapidamente e terão im- ricana também são obstáculos para a nossa

...... a hora e a vez da produtividade e da competitividade...... 69 inserção internacional. transparência no acesso a dados públicos, a A princípio, o nosso atraso econômico reforma trabalhista, as reformas regulatórias, não deveria ser visto como problema in- para citar algumas –, ainda assim, muito mais contornável, como atestam os casos de pa- terá que ser feito. Ou seja, estamos apenas no íses devastados por guerras, como a Coreia início de uma longa jornada. do Sul, ou miseráveis, como a China de 40 De fato, para o Brasil realizar todo o seu anos atrás. Mas, a esta altura, é preciso re- imenso potencial e voltar a crescer, será conhecer que os tempos são outros e que as preciso que a população e os políticos reco- consequências de se estar atrasado hoje não nheçam que políticas “mais do mesmo” são se assemelham às de décadas atrás. É im- ineficazes e que será, por isso, preciso partir provável, por isto, que tenhamos tempo para para políticas que nos levem a fazer “mais sequenciar reformas, como o fez a Coreia do com o mesmo”. Ou seja, teremos que partir Sul quando tinha o nosso estágio de desen- para um modelo de desenvolvimento em que volvimento, e que medidas convencionais produtividade e competitividade estejam en- venham a dar os resultados esperados. tre os motores do crescimento. Será preciso, isto sim, queimar etapas Nesse modelo, o Estado terá que ser me- e buscar atalhos que encurtem o caminho nor, porém, muito mais eficiente e capaz de para que possamos ousar participar como identificar interesses estratégicos, planejar e protagonistas da nova ordem econômica executar. Precisaremos desenvolver institui- que se descortina. ções pró-crescimento, melhorar a governan- Para funcionar, os atalhos terão que nos ça e a transparência, promover um ambiente poupar tempo e recursos e nos levar mais de confiança e de previsibilidade e seguran- diretamente para áreas mais próximas das ça jurídica para encorajar investimentos, in- fronteiras da agregação de valor, da constru- tervir de forma inteligente em áreas como a ção de uma indústria moderna e sofisticada, social, educação, saúde, segurança, ciência, da criação de bons empregos e da integração tecnologia e infraestrutura e alocar recursos econômica internacional pela porta da frente. públicos a programas e políticas condiciona- das a resultados. E será preciso que o Estado O que fazer? seja mais ágil e que as suas políticas estejam apontadas para o futuro. m razão do caráter estrutural dos nossos O aumento da produtividade e da com- Eproblemas de economia real, é imprová- petitividade vai requerer reformas que ga- vel que ajuste fiscal e correções pontuais de rantam marcos regulatórios bem definidos, rumo sejam capazes de, isoladamente, fun- promovam a competição, fortaleçam os cionar. De fato, por mais que as políticas já mercados, aumentem a densidade industrial, implementadas pelo atual governo tenham encorajem a realocação dos recursos de ati- representado um significativo passo à frente – vidades de mais baixa para atividades de estes são os casos do teto dos gastos e da vol- mais alta produtividade, promovam a diver- ta do papel do orçamento como peça-chave sificação produtiva, encorajem a poupança, de políticas públicas, a nova lei das estatais, ampliem o mercado de capitais e a participa- a reforma do ensino secundário e a base cur- ção do setor privado nos investimentos em ricular nacional, a desburocratização, a maior infraestrutura.

70 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... Mas, é preciso ter em conta que, hoje, es- dutividade e a competitividade. Se, por um sas reformas são necessárias, mas já não são lado, a baixa produtividade ajudou a nos suficientes. Numa economia global cada vez trazer até aqui, o seu aumento poderá nos mais interdependente e complexa, na qual ajudar a sair do atoleiro em que nos me- novas tecnologias de produção e de organi- temos. Exatamente porque é muito baixa, zação da produção já mostram que produti- a produtividade oferece substanciais opor- vidade sistêmica e características específicas tunidades de ganhos relativamente rápidos dos mercados são os principais determinan- que poderiam dar início a um processo de tes dos investimentos, enquanto arbitragem crescimento virtuoso. de custos de produção perde importância, De fato, a ineficiência é muito elevada e é conhecimento, capacidade de aprendizagem generalizada tanto no setor público, como no e interação estão se tornando as variáveis privado. Empresas grandes e, principalmen- fundamentais da criação de valor. Por isso, o te, micro e pequenas, gerem mal os recursos, conhecimento deverá estar no centro da nos- tornando o já pouco amistoso ambiente de sa estratégia de longo prazo de promoção da negócios ainda mais penoso. Mas, a produ- produtividade e da competitividade. tividade é especialmente baixa nos serviços, setor que compreende 73% do PIB e que A hora e a vez da produtividade emprega a maioria dos trabalhadores, o que e da competitividade tem efeitos sistêmicos e intoxica outros se- tores, em especial a indústria manufatureira. omo crescer? Que modelo? As pergun- Temos problemas fora e dentro do “chão Ctas são muitas, mas as respostas são de fábrica”. Carga e regulação tributária poucas. São muitos os nossos constrangi- custosas, crédito extremamente caro, infra- mentos para crescer, incluindo o fiscal, o de- estrutura deficiente, elevada burocracia go- mográfico, o da poupança, o do crédito e o vernamental, máquina pública onerosa, cor- da insegurança jurídica. rupção, baixa qualidade da força de trabalho Em vista disso, é pouco provável que o e concentração de mercado – tudo isto com- modelo de crescimento, que perdurou por põe um ambiente de ineficiência e de baixa décadas aqui, baseado na colocação de produtividade e competitividade. mais gente no mercado de trabalho e no Mas, os problemas também se acumulam financiamento dos investimentos majorita- da “porta da fábrica” para dentro. Gestores riamente com recursos públicos e externos, mal preparados, modesto emprego de técni- possa seguir funcionando. Portanto, muito cas e métodos modernos de gestão e pouco terá que ser feito. interesse por treinamento profissional, ino- Afinal, temos opções para voltar a cres- vação, internacionalização e exportações cer de forma consistente no curto prazo? também contribuem para explicar a baixa Quais são elas? produtividade e competitividade. Sim, temos opções, mas, infelizmente, Embora haja novos ares no meio empresa- elas são escassas. Dentre elas, a mais pro- rial, nos sindicatos de trabalhadores e em par- missora para as circunstâncias e condições cela do setor privado, muitos ainda seguem econômicas e políticas atuais talvez seja a apegados a políticas insustentáveis, como a de reduzir a ineficiência e aumentar a pro- da proteção de mercados e subsídios, quase

...... a hora e a vez da produtividade e da competitividade...... 71 sempre injustificáveis e sem resultados, que na produtividade. criam incentivos perversos para o aumento da Se temperado por maior coordenação, produtividade e da competitividade. previsibilidade e pragmatismo das políticas O que fazer? Aumento dos investimen- públicas e por políticas que coloquem o se- tos públicos em áreas como infraestrutura, tor privado no centro das atenções, o aumen- educação e inovação e redução da carga to da produtividade poderá contribuir para tributária poderiam contribuir significati- elevar de imediato o crescimento. vamente para a produtividade. No entanto, É claro que o aumento da produtividade é improvável que, no curto prazo, agendas per se não é uma panaceia, mas é fundamen- como esta possam prosperar em razão da tal e poderá agir como um fator catalizador, profunda crise fiscal e da necessidade de preparando o terreno para as mais que ne- resultados mais imediatos. Logo, teremos cessárias reformas estruturais, como a tribu- que ser pragmáticos e buscar alternativas. tária, a da previdência social, a da educação E elas existem. e a da reforma administrativa do Estado. Evidências empíricas mostram que rear- Uma virtude singular de políticas de au- ranjos de layout, soluções tecnológicas para mento da produtividade e da competitivi- problemas novos e antigos e racionalização dade é que elas organizam, em torno de um de processos produtivos, de procedimentos núcleo comum, várias políticas públicas e básicos, de estoques e outras medidas relati- privadas, dando-lhes corpo, unidade, racio- vamente simples e de baixo custo podem re- nalidade e mensurabilidade, reduzindo o es- duzir despesas e aumentar significativamen- paço para “achismos” e hesitações. te a eficiência e a produtividade. Identifica- ção e ataque a gargalos críticos em cadeias Conclusão de produção e em infraestrutura, desburo- cratização, privatização, aprimoramento das m novo modelo de desenvolvimento já agências regulatórias, ajustes regulatórios Utarda e quanto mais procrastinarmos, pontuais, treinamento profissional na em- maior será a dificuldade para garantirmos presa e melhor relação com fornecedores e um lugar ao sol no século XXI. A mudança clientes também podem reduzir a ineficiên- para o novo modelo, com foco na produtivi- cia e impactar a produtividade já em período dade e na competitividade, vai requerer, ine- relativamente curto. vitavelmente, muitos sacrifícios e escolhas No que concerne a medidas que o Esta- difíceis. Visão de futuro, ousadia, espírito do poderia considerar estão, por exemplo, público, liderança política, transparência, a migração das compras públicas para um muito diálogo e comunicação serão elemen- modelo em que agregação de valor para a tos cruciais para que possamos abreviar a sociedade, qualidade e inovação, ao invés de jornada e embarcar num modelo de cresci- menor preço, orientem as licitações, o que mento sustentado e socialmente mais justo. teria impactos potencialmente significativos Brasília, 5 de abril de 2018

72 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... Crenças, Instituições e as Reformas do Estado no Brasil

Bernardo Mueller

1. Introdução os grupos nos últimos 100 anos. Hoje, o país mais rico do mundo – Luxemburgo – tem título da obra-prima de Adam um PIB per capita quase 500 vezes maior do Smith, Uma Investigação sobre a que o país mais pobre – Sudão do Sul (dados O Natureza e Causas da Riqueza das do FMI para 2017). Entender o surgimento Nações, retrata o que tem sido desde então a e a persistência de tão grande variabilidade mais importante pergunta para as Ciências de desempenho econômico tem sido um dos Econômicas. Àquela época – 1776 –, o país maiores desafios para as Ciências Sociais. mais rico do mundo tinha uma renda média Para a teoria econômica tradicional, es- somente quatro vezes maior do que a do país te padrão divergente de desenvolvimento é mais pobre. Desde então, esta variabilidade particularmente vexatório, pois ela prevê, de performance econômica aumentou dra- ao contrário, que forças econômicas deve- maticamente, no que veio a ser conhecido riam levar a uma eventual convergência dos como a Grande Divergência, na qual um pe- países mais pobres para o nível dos países queno grupo de aproximadamente 30 países mais ricos. Como há abundância de capital atingiu altos níveis de renda, desenvolvimen- nos países mais ricos e escassez nos mais to e qualidade de vida, enquanto a maioria pobres, as taxas de juro – que remuneram de países ficou presa em níveis significativa- o capital – deveriam subir nestes últimos e mente inferiores, com pouca transição entre cair nos primeiros, levando o capital a fluir para os países mais pobres, onde se torna in-

Bernardo Mueller é professor do Departamento de Eco- vestimento, que por sua vez gera crescimen- nomia da Universidade de Brasília. Fez doutorado em eco- to, fechando o hiato. Além disto, os países nomia pela University of Illinois at Champaign-Urbana mais pobres têm a “vantagem do segundo (1995), pós-doutorado na Colorado University (2004-2005) movedor”, pela qual podem absorver tec- e estágio sênior na Indiana University (2015-2016). Sua pesquisa cobre temas de desenvolvimento, instituições, di- nologia e métodos produzidos pelos países reitos de propriedade, regulação, economia política e com- mais adiantados, pulando, assim, etapas. A plexidade. É coautor do livro Brazil in Transition: Beliefs, ausência de convergência nos últimos dois Leadership and Institutional Change, lançado em 2106 pela séculos sugere que outras forças divergentes Princeton University Press. Em 2018, lançará o livro Insti- tutional and Organizational Analysis: Concepts and Appli- ainda mais fortes devem existir. cations (Cambridge University Press). Grandes esforços têm sido despendidos

...... crenças, instituições e as reformas do estado no brasil ...... 73 para determinar que forças seriam estas e que ficou conhecido como o Consenso de como elas poderiam ser combatidas. Boa Washington, tinha como motto get the pri- parte do debate tem tomado a forma da bus- ces right e tinha como fundamento que, para ca de um ingrediente essencial que estaria atingir o crescimento econômico, a chave presente nos países avançados e carente nos eram políticas públicas liberalizantes. países pobres. Diferentes escolas de pen- Adotado e recomendado por organismos samento ao longo das últimas décadas têm internacionais como o Fundo Monetário In- proposto diferentes determinantes funda- ternacional e o Banco Mundial – logo o no- mentais do crescimento econômico, que, me Consenso de Washington –, esta aborda- uma vez identificado, poderia ser suprido, gem teve bons resultados em alguns poucos reduzindo as disparidades entre países. En- países, como o Chile, e em alguns setores tre os determinantes propostos, encontram- específicos, como as privatizações de infra- -se capital, poupança, tecnologia, capital estrutura no Brasil. Mas, em geral, a tarefa humano, geografia, cultura e capital social. de liberalizar os mercados provou ser muito Embora cada elemento destes seja importan- mais difícil do que se previa e os repetidos te, nenhum deles obteve consenso como o resultados decepcionantes na maioria dos elemento fundamental que poderia destravar países logo levaram a uma forte reação con- o desenvolvimento dos países. tra esta forma de pensar o desenvolvimento Na década de 1980 e começo da década econômico. de 1990, surgiu uma nova visão de que a Desta reação emergiu uma nova aborda- chave para o crescimento dos países pobres gem que veio a se tornar a visão dominan- seria focar nas políticas públicas para tirar te sobre os determinantes fundamentais do todas as distorções e falhas de governo que crescimento econômico. Reconheceu-se que impediam os preços de refletir fielmente a a falha do Consenso de Washington estava verdadeira escassez e a abundância relativa na presunção de que políticas que tinham dos recursos. A ideia é que a incapacidade bons efeitos quando pensadas nas abstra- das economias atrasadas de realizar os ga- ções do quadro negro, iriam funcionar na nhos de troca e oportunidades econômicas realidade crua e bagunçada de países reais, se devia a distorções como tabelamento de onde interesses conflitantes marcados por preços, barreiras de entrada, salário-mínimo, clivagens sociais e políticas construídas ao excesso de impostos, subsídios e incentivos longo da história dificultam a coordenação, fiscais, política monetária arbitrária, -prote a cooperação, a negociação e a ação coleti- cionismo, produção estatal, etc. Em conjun- va. Esta nova visão se baseou na visão de to, estes elementos criavam obstáculos e de- que o funcionamento efetivo de qualquer sincentivos para a acumulação, investimen- política depende de maneira fundamental to, produção e inovação, condenando estes das instituições formais e informais que es- países ao atraso. A solução para esta situa- truturam as relações econômicas, sociais e ção seria reformar as políticas públicas para políticas entre os indivíduos, firmas e outras eliminar estas distorções e permitir que os organizações. Instituições, nesta acepção, preços, salários e juros pudessem livremente são as regras do jogo que impõem incenti- coordenar os mercados e orientar a alocação vos e restrições aos agentes, determinando, de fatores na economia. Este diagnóstico, assim, se estes têm incentivos para perseguir

74 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... seus interesses através da produção, investi- tica, o nome que usamos para se referir a es- mento, inovação e cooperação, ou através de te processo explícito e conjunto de mudança violência, corrupção, rent-seeking e roubo. institucional é “reforma de Estado”. De acordo com esta abordagem, geralmente Em uma maior ou menor medida todo associada ao Prêmio Nobel em Economia de país está sempre realizando alguma mudan- 1993 Douglass North, países que desenvol- ça em suas instituições. Uma reforma do vem instituições do primeiro tipo crescem Estado, no entanto, vai além de mudanças ao longo do tempo levando a uma melhor incrementais nas margens e consiste de um qualidade de vida para seus cidadãos, en- processo consciente de alterar as regras e quanto países com instituições do segundo estruturas do Estado de maneira significati- tipo ficam presos em ciclos debooms e que- va, de modo a corrigir distorções e permitir das, sem realizar a transição para a prospe- um melhor funcionamento da máquina do ridade. Esta abordagem institucionalista da governo para atingir melhores resultados Economia começou como uma área margi- econômicos e sociais. Isto envolve não só nal nas ciências econômicas, mas a partir do instituições econômicas que mediam entra- ano 2000 se difundiu pela profissão, a ponto da, saída e atuação dos agentes em mercados de hoje ser um consenso que a chave para econômicos, mas também, e talvez mais im- a riqueza das nações seja acertar as institui- portante, as instituições políticas que estabe- ções (get the institutions right). lecem para cada área de atuação do Estado quem pode iniciar um processo, quem tem 2. Mudança institucional como reforma voz, quem tem voto, quem tem veto, como de Estado cada grupo participa, qual o locus de ação (Congresso, tribunais, ministérios, ruas, recomendação da análise instituciona- etc.), qual a sequência de ações, qual sua A lista para o desenvolvimento dos países frequência, etc. é, portanto, mudar as instituições. A maioria Dado que há hoje um amplo consenso so- dos países tem uma estrutura institucional bre o papel primordial de instituições aber- marcada por instituições extrativas e exclu- tas e inclusivas para o crescimento econômi- dentes, que concentram renda e poder, e im- co e a prosperidade, é um paradoxo que tão pedem a realização do potencial produtivo e poucos países tenham feito ou estejam no criativo da população. Mudança institucio- processo de fazer a transição do grupo não nal que expande o acesso de indivíduos e desenvolvido para o grupo de países ricos. organizações a mercados econômicos, polí- Se existe um diagnóstico preciso e um bom ticos e sociais é vista como o primeiro passo entendimento sobre o tipo de reforma que no processo de transição para o grupo de pa- precisa ser feita, por que não vemos mais íses desenvolvidos. Isto requer instituições países realizando reformas de Estado que os que sejam inclusivas, impessoais e que pro- coloquem no caminho desta transição? tejam direitos de propriedade econômicos e A literatura institucionalista elenca duas políticos, fomentando o rule of law, reduzin- grandes classes de explicações complemen- do custo de transações e facilitando o esta- tares para explicar este paradoxo. A primeira belecimento de compromissos críveis, ação envolve a dinâmica de economia política pe- coletiva, cooperação e coordenação. Na prá- la qual elites e grupos dominantes reconhe-

...... crenças, instituições e as reformas do estado no brasil ...... 75 cem as limitações impostas pelas instituições instituições, mesmo quando confrontando atuais, mas preferem mantê-las por perceber situações semelhantes e visando a objetivos que as reformas necessárias fariam o país semelhantes, sugere que há uma grande va- como um todo crescer, mas poriam em ris- riedade de modelos mentais entre países, is- co sua dominância e suas fatias pessoais do to é, grande variedade de crenças. bolo total. Nesta visão, as ineficiências, dis- torções e atraso estão ali por desenho e não 3. Uma análise institucional da reforma por que não se saiba como corrigi-las. Esta do Estado no Brasil linha de raciocínio, que forma, por exemplo, a base do livro de 2012 de Daron Acemo- ual tem sido a experiência do Brasil no glu e James Robinson Por Que as Nações Qprocesso de reforma do Estado anali- Fracassam, certamente explica grande parte sado do ponto de vista desta literatura ins- da ausência observada de países realizando titucionalista que foca no papel central das a transição para o desenvolvimento. No en- instituições e atribui às crenças dos grupos tanto, os ganhos de acertar as instituições dominantes papel fundamental na escolha são muitas vezes tão grandes, que permane- de quais instituições implementar? Tal aná- ce um paradoxo de que os grupos não con- lise é feita por Alston, Melo, Mueller e Pe- sigam negociar algumas formas de realizar reira em seu livro de 2016 "Brazil in Tran- ao menos algumas daquelas reformas. Além sition: Beliefs, Leadership and Institutional disto, é comum vermos países onde os go- Change" (Princeton University Press). Estes vernos estão genuinamente tentando melhor autores identificam três períodos na história o bem-estar geral da nação, mas, mesmo as- recente do Brasil em que prevaleceram dife- sim, sistematicamente falham. rentes crenças e instituições, com diferentes Estas considerações fizeram surgir uma resultados econômicos, sociais e políticos. segunda linha de explicações que não está Eles usam um arcabouço evolucionário em radicada na disputa por poder e recursos. Es- que novas crenças emergem em períodos de tas explicações reconhecem que a economia crise, onde as crenças anteriores provaram e a sociedade são sistemas complexos que não serem compatíveis com os resultados são diferencialmente percebidos e interpre- observados. Nestas janelas de oportunidade, tados por diferentes sociedades dadas sua que podem vir através de revolução, elei- cultura, crenças e identidades. Ao realizar ções ou até por mudança incremental, a rede uma reforma de Estado, ou seja, ao optar de grupos dominantes é alterada e a crença por mudar as instituições, os grupos domi- anterior se dissipa. Por diferentes processos nantes sabem quais resultados querem obter em diferentes instâncias, uma nova crença para o país e para si, porém não há qualquer emerge muitas vezes, mas não necessaria- forma inequívoca de saber quais instituições mente através da influência de um líder (ou levariam àqueles resultados. Eles têm, por- grupo), que propõe uma nova visão e provê tanto, de lançar mão de suas crenças de co- persuasão e coordenação necessárias para a mo funciona o mundo, isto é, de qual seria nova tentativa de organização nacional. As a verdadeira relação de causa e efeito entre novas crenças levam a novas instituições instituições e resultados. A vasta diversidade através de amplas reformas do Estado. En- de experiências entre países no desenho de quanto os resultados induzidos por estas

76 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... novas instituições estiverem em linha com 1964 a 1985. Este período sucedeu um perío- os resultados esperados dadas as crenças, a do anterior marcado por grande volatilidade rede dominante, as crenças e as instituições econômica e conturbação política, sujeito a permanecem estáveis com mudanças apenas inflação, clientelismo, fraude eleitoral, vio- incrementais ao longo do tempo. Se, no en- lência e concentração de renda. A crença que tanto, os resultados divergirem sistematica- emergiu em reação a esta situação via que a mente do esperado dadas as crenças, outra melhor forma de atingir o desenvolvimento crise eventualmente levará a uma nova jane- seria através da priorização do crescimento la de oportunidade e a outro ciclo nesta di- econômico via industrialização, via planeja- nâmica. Realizar a transição crítica envolve mento tecnocrático, e que outros problemas adquirir crenças e instituições que sistema- como pobreza e desigualdade seriam resol- ticamente entreguem resultados desejados vidos indiretamente através deste crescimen- adaptando-se de maneira eficiente a mudan- to. Esta crença, que os autores chamam de ças no ambiente (tecnológica, ambiental, “desenvolvimentismo”, orientou a escolha geopolítica, etc.). Há algum consenso nesta de instituições econômicas e políticas que literatura que instituições inclusivas que fa- levaram a grande crescimento econômico e cilitam acesso à participação em mercados avanço industrial, mas ao mesmo tempo im- econômicos e políticos são necessárias para puseram restrições a liberdades individuais atingir crescimento de longo prazo. e direitos políticos e econômicos. À medida Dado que o conteúdo e o impacto de mu- que os resultados econômicos se degenera- dança institucional dependem fundamental- ram, a partir de meados da década de 1970, mente das crenças dominantes de cada país, contribuindo para a insatisfação gerada pela convém ver como estes autores classificaram opressão política e crescente desigualdade, as crenças que dominaram nos três períodos a crença em desenvolvimentismo se desfez, analisados da história brasileira recente. Ba- levando à janela de oportunidade represen- seado nesta análise podemos, na próxima tada pela democratização. seção, especular sobre quais são as crenças O segundo ciclo, de 1985 a 1994, viu o dominantes atualmente no Brasil, e o que is- surgimento de uma nova crença que, em re- to nos diz sobre o que poderemos esperar em ação ao período autoritário, via o caminho termos de reforma do Estado nos próximos do desenvolvimento como uma priorização anos. Embora esta análise não permita pre- de inclusão social, onde as instituições deve- ver quais reformas serão priorizadas e quais riam priorizar participação, cidadania, voz, os seus detalhes, ela pode indicar quais se- transparência, democracia, direitos, liberda- rão as características gerais de qualquer re- de de expressão, entre outros. Isto envolvia forma que vier a ser realizada. Ou seja, não várias formas de transferências para uma podemos prever “substantivos” – reforma da grande gama de grupos incluindo não só as previdência, reforma tributária, etc. e seus populações marginalizadas, mas também as detalhes – mas podemos prever “adjetivos” elites empresariais e grupos políticos. O re- – inclusiva vs. extrativa, volátil vs. estável, sultado destas instituições e as políticas que rígida vs. adaptável, etc. elas induziram foi um grande aumento de O primeiro período analisado por aqueles voz e participação política, mas ao mesmo autores foram os anos sob regime militar de tempo uma hiperinflação recorrente e des-

...... crenças, instituições e as reformas do estado no brasil ...... 77 trutiva. O impacto perverso de uma década xas em comparação com outros países em de uma das piores hiperinflações da histó- desenvolvimento. Por outro lado, houve um ria mundial eventualmente levou ao fim da fortalecimento institucional muito grande crença em inclusão social irrestrita. com uma marcante guinada para o maior res- No entanto, o que surgiu em seu lugar peito às regras e ao Estado de Direito. E, no não foi uma guinada na direção oposta, mas campo social, observou-se uma queda sem sim uma manutenção de muitos aspectos da precedentes na história brasileira da pobreza crença em inclusão, só que agora associado e da desigualdade. A classe média, elemento com a crença de que este objetivo teria que essencial no processo de desenvolvimento, ser perseguido de maneira economicamente expandiu-se significativamente com a inclu- sustentável, com ortodoxia monetária e eco- são de um grande contingente que passou a nômica e com uma aversão à inflação carac- ter acesso a bens e serviços antes restritos terística de países que passaram por hiperin- a parcela muito menor da população, como flações marcantes. Esta crença em "inclusão geladeira, dentistas e viagens aéreas. social sustentável" pautou o Plano Real, que As instituições políticas que balizaram deu fim ao período inflacionário e foi a ba- este período estavam centradas no papel pre- se conceitual do longo período subsequente ponderante do poder Executivo. Estas insti- em que diversas reformas do Estado foram tuições asseguravam ao Executivo poderes, empreendidas. Estas reformas políticas e direitos e recursos que permitiam que, via de econômicas foram profundas e mudaram o regra, dominasse a agenda política e conse- Estado e a nação de maneira marcante. En- guisse aprovar com facilidade grande parte tre elas estão as privatizações de serviços de de seus projetos e programas. Estes poderes infraestrutura e bancos estaduais, criação institucionais incluíam desde medidas pro- de agências regulatórias, Lei de Responsa- visórias e amplo poder de veto até mono- bilidade Fiscal, fortalecimento do processo pólio de proposta em diversas áreas, assim orçamentário, Banco Central (informalmen- como diversas moedas de troca políticas, co- te) independente, disciplinamento de con- mo poder de execução sobre emendas parla- cursos públicos, novo Código Civil, Lei de mentares ao orçamento e um grande número Falências, programas de transferências con- de cargos na estrutura federal para conceder dicionais (e.g. Bolsa Família), entre muitos aos aliados. Conceder tal poder a um presi- outros. Coerente com a crença, a mudança dente pode ser temeroso. Boa parte da histó- institucional empreendida foi em grande ria da América Latina envolve desastres de- parte virtuosa, buscando justiça social, es- rivados de um presidencialismo exacerbado. tabelecendo um amplo sistema de freios e Por outro lado, pode fazer sentido colocar contrapesos, melhorando a governança do mais poder no Executivo, que tem incenti- Estado, e respeitando o Estado de Direito e vos eleitorais a considerar o bem da nação o império das leis, sempre sujeito à forte res- como um todo, do que no Congresso, que trição de sustentabilidade fiscal e monetária. foca em bases mais estreitas e localizadas. A Os resultados induzidos por esta combina- forma encontrada pelas instituições políticas ção de crenças e instituições foram variados. brasileiras para fechar esta equação foi man- Durante todo o período, o país experimentou ter a preponderância Executiva, dando-lhe taxas do PIB per capita relativamente bai- os meios de fazer as reformas de Estado ne-

78 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... cessárias, porém estabelecendo, ao mesmo políticas com uma série de características tempo, um forte sistema de freios e contra- marcantes. A primeira característica era um pesos que assegura que estes poderes sejam imperativo em manter a estabilidade mone- usados de maneira compatível com a crença tária, com forte disciplina macroeconômi- de inclusão sustentável, e não em projetos de ca – por exemplo, superávits fiscais e alta interesse pessoal ou de grupos restritos. tributação –, especialmente nos períodos de Esta rede de freios e contrapesos é com- pressões inflacionárias. Este tipo de medida posta por uma diversificada rede de instân- é contrário ao instinto de sobrevivência de cias que tem o poder e o interesse de fisca- políticos, mas sua adoção, mesmo pelo go- lizar e monitorar o Executivo, assim como verno Lula, é um tributo ao funcionamento os próprios membros da rede. Isto inclui um destas instituições. A segunda característica judiciário independente que rotineiramente é a troca de recursos políticos (emendas par- decide contra o governo, mesmo em casos lamentares, cargos) por apoio. A disponibi- de grande relevância para os interesses do lidade de meios providos pelas instituições governo. Tal nível de independência do ju- políticas para o Executivo assegurar apoio diciário é raro em países em desenvolvimen- às suas iniciativas facilitava a manutenção to (considere o caso Rússia atualmente, um do imperativo monetário e fiscal. A terceira outro país com Executivo forte, porém sem característica é a rigidez do gasto público, freios e contrapesos), embora seja um pré-re- dado que orçamento da União engessava quisito essencial para o crescimento de lon- mais de 90% das despesas, dificultando, as- go prazo. Há também um Ministério Público sim, a obtenção daquele imperativo. Final- também absolutamente independente, atuan- mente, a quarta característica das políticas te e com boas dotações de recursos humanos, governamentais era a natureza residual das financeiros e instrumentos legais (ações civil políticas que não eram cobertas por aquele públicas, ajustamento de condutas, etc.) Da engessamento. Estas eram políticas sociais, mesma forma, tribunais de conta e agências ambientais e projetos de infraestrutura. Nas de controle têm assumido um protagonis- épocas em que a economia ia bem, o impe- mo cada vez maior na fiscalização do poder rativo fiscal não impunha restrições e estas Executivo. Outro elemento crucial nesta re- políticas avançavam. Porém, quando sur- de de freios e contrapesos é a imprensa, que giam ameaças à estabilidade monetária e no Brasil é livre, diversificada, atuante e de econômica, estas políticas eram a margem boa qualidade. Ela garante o acesso à infor- que o governo tinha para buscar o equilíbrio, mação para uma sociedade civil organizada o que fazia com que programas e projetos em uma grande gama de formas – sindicatos, fossem suspensos ou abandonados. Desta agremiações, comissões, conselhos, partidos, forma, estas políticas residuais tendiam a ter etc. – que participam de maneira tanto formal grande volatilidade. A isto contribuía o fato (orçamentos participativos, conselhos educa- de que quando havia uma troca na presidên- cionais, etc.) como informal (protestos e ma- cia, eram estas políticas não amarradas pelo nifestações) na vida pública. orçamento que costumavam ser substituídas O resultado destes arranjos institucio- pelo novo governo. nais, que emergiram no contexto da cren- Em resumo, no período de 1995 a 2010, ça de inclusão social sustentável, foram a crença em inclusão social sustentável e as

...... crenças, instituições e as reformas do estado no brasil ...... 79 instituições que elas induziram produziram polarização política e social no país, levando um sistema centrado em um Executivo for- ao impeachment da presidente e com a ins- te, porém submetido a uma rede efetiva de tauração de um interregno com pouco poder freios e contrapesos. Este sistema assegurou ou legitimidade para prosseguir com as re- ao Executivo bons níveis de governabilida- formas de Estado. de e capacidade e incentivos para empre- À primeira vista, este período conturbado ender uma profunda reforma do Estado ao tem todas as características de uma janela de longo de todo o período. Estas mudanças oportunidade em que uma crença se desfaz fortaleceram o estado de direito (rule of law) e inicia o processo de surgimento de uma significativamente, estabelecendo regras nova crença. A frustração com os resultados mais claras e críveis para as relações eco- induzidos pela crença e instituições vigentes nômicas, sociais e políticas. Isto resultou levaria ao seu abandono e, de alguma forma em grandes ganhos sociais, especialmente difícil de prever, surgiria uma nova inter- em termos de redução das desigualdades e pretação sobre como funciona o mundo e as da pobreza. Embora o crescimento do PIB relações de causa e efeito entre instituições per capita tenha sido medíocre, este resul- e resultados. Em alguns momentos recen- tado não é incompatível como uma crença tes, como os protestos populares de 2013, que prioriza a inclusão social e o controle o impeachment e alguns eventos da Opera- macroeconômico. O crescimento econômi- ção Lava Jato, parecia que este processo já co em si supostamente seguiria em tempo à havia se iniciado: estávamos em uma janela inclusão e à estabilidade monetária e fiscal. de oportunidade e ainda íamos ver o que iria emergir. Pode ser que seja isto que estamos 4. Novas crenças e a reforma do Estado vivendo atualmente em 2018. Janelas de oportunidade vêm de diversas formas e po- partir de 2010, o país entrou em um dem ser explosivas ou graduais, rápidas ou A período conturbado política e econo- prolongadas. micamente à medida que os impactos da No entanto, outra possibilidade é grande crise financeira mundial alcançaram que apesar da recente trajetória caótica e dos o Brasil e com o surgimento de diversos es- resultados econômicos frustrantes, a crença cândalos de corrupção envolvendo grande em inclusão social sustentável sobreviva. número de políticos e grupos empresariais. Muitas das reformas de Estado empreendi- A reação do governo (gestão Dilma Rous- das ou ensaiadas pelo governo enfraquecido seff) para lidar com os impactos desta crise têm características compatíveis com aquelas foram na contramão da crença em vigor ao crenças, como o estabelecimento de um teto expandir o gasto público e aumentar a inter- constitucional para gastos públicos e a re- ferência governamental em diversos setores forma da previdência. Certamente não tem da economia em uma tentativa não ortodoxa surgido nenhuma visão alternativa para o de aquecer a economia. O insucesso desta país que pareça estar ganhando aceitação. abordagem e o consequente agravamento da Também não há no horizonte o surgimen- crise no Brasil, aliados à revelação do cres- to de nova liderança que possa catalisar a cimento da magnitude e alcance dos escân- transição para novas crenças. Mesmo com dalos de corrupção, induziram uma grande dois anos de contração do PIB em mais de

80 ...... interesse nacional – maio – junho de 2018...... 3,5% cada, não parece haver um abandono pode voltar a prevalecer. Além disto, o no- da priorização de inclusão social como ca- vo governo provavelmente será beneficiado minho para o desenvolvimento. por uma economia mundial ascendente após Antecipar quando e como uma nova uma década de estagnação. Estas condições crença irá surgir é praticamente impossível, serão altamente propícias para uma forte de modo que é insensato fazer previsões. No aceleração das reformas de Estado de que o entanto, pode ser instrutivo e um pouco me- país precisa. Se isto de fato vier a ocorrer, e nos arriscado especular que talvez a crença se for mantida a crença em inclusão social em inclusão social sustentável, que predomi- sustentável, não há como prever quais serão na desde 1995, possa sobreviver aos recen- estas reformas, mas pela lógica do argumen- tes percalços. O novo governo que assumirá to descrito neste trabalho deveremos esperar em 2019 terá legitimidade política conferi- que reformas continuem a expandir o aces- da pela eleição popular e a dinâmica insti- so e a participação de todos grupos sociais, tucional descrita acima, de um Executivo sem pôr em risco a estabilidade monetária e preponderante sujeito a freios e contrapesos o equilíbrio macroeconômico.

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