O PROCESSO DE REVITALIZAÇÃO DA ORLA SUL DO GUAÍBA E OS SEUS IMPACTOS NA APROPRIAÇÃO DO TERRITÓRIO

THE GUAÍBA'S SOUTH WATERFRONT REVITALIZATION PROCESS AND ITS IMPACTS ON THE TERRITORY APPROPRIATION

EL PROCESO DE REVITALLIZACION DE LA ORLA SUR DEL GUAÍBA Y SUS IMPACTOS EM LA APROPIACIÓN TERRITORIAL

EIXO TEMÁTICO: PROJETO, POLÍTICAS E PRÁTICAS

BOSA, Rafael Mestrando; Uniritter [email protected] LANZARIN, Fernanda Mestranda; Uniritter [email protected] BUGS, Geisa Doutora; Uniritter [email protected]

RESUMO

O artigo tem por objetivo analisar o comportamento do usuário da orla sul do Lago Guaíba de Porto Alegre/RS. Neste trecho acontece um processo de revitalização em cursodesde 2014 por conta da implantação do Projeto Parque Urbano Orla do Guaíba do Arquiteto Jaime Lerner. Assim sendo, investiga- se como ocorre a apropriação do espaço pelos usuários que frequentam a área, antes, durante e depois das intervenções, e como isso interfere na dinâmica urbana do local. A pesquisa busca analisar o impacto na apropriação do território através da observação orientada pelas dimensões de performance desenvolvidas por Kevin Lynch, numa tentativa organizada de apreender a paisagem e relacionar projeto urbano e ação humana. Complementarmente, com pesquisa bibliográfica, busca-se esclarecer os conceitos de território e de grandes projetos urbanos (GUPs), temas pertinentes à compreensão dos aspectos da ação humana sobre a paisagem urbana. A interpretação e discussão presentes neste artigo tem como foco o trecho 01 do Projeto Parque Urbano Orla do Guaíba, compreendido entre a Usina do Gasômetro e a Rótula das Cuias, pois, dentre os demais trechos preestabelecidos pelo projeto, é o único em que as intervenções já estão finalizadas, sendo possível realizar uma análise comparativa temporal mais abrangente. PALAVRAS-CHAVE: Arquitetura. Grandes projetos urbanos. Apropriação. Território. Dimensões de performance.

ABSTRACT The article aims to analyze user behavior on the southern shore of Lake Guaíba in Porto Alegre / RS. In this stretch there is a revitalization process, ongoing since 2014 due to the implementation of the Parque Urbano Orla do Guaíba Project by Architect Jaime Lerner. Therefore, it investigates how the space appropriation occurs by users who frequent the area, before, during and after the interventions and how it interferes in the urban dynamics. The research seeks to analyze the impact of this appropriation through observation guided by the dimensions of performance developed by Kevin Lynch, in an organized attempt to apprehend the landscape and relate urban design and human action. Complementarily, with bibliographic research, we seek to clarify the concepts of territory and major urbanization projects, relevant themes to the understanding of aspects of human action on the urban landscape. The interpretation and discussion existent in this article focus on section 01 of the Parque Urbano Orla do Guaíba Project, between the Gasometer Plant and the Rótula das Cuias, as, among the other sections pre- established by the project, it is the only one in which interventions are already finalized, making it possible to carry out a more comprehensive temporal comparative analysis.

KEYWORDS: Architecture. Large urban projects. Appropriation. Territory. Performance dimensions.

RESUMEN El artículo tiene como objetivo analizar el comportamiento de los usuarios de la costa sur del lago Guaíba en Porto Alegre / RS. En este tramo hay un proceso de revitalización, en curso desde 2014 debido a la implementación del Proyecto Parque Urbano Orla do Guaíba por el arquitecto Jaime Lerner. Por lo tanto, investiga cómo ocurre la apropiación del espacio por parte de los usuarios que frecuentan el área, antes, durante y después de las intervenciones, y cómo interfiere en la dinámica urbana. La investigación busca analizar el impacto de esta apropiación a través de la observación guiada por las dimensiones de desempeño desarrolladas por Kevin Lynch, en un intento organizado de comprender el paisaje y relacionar el diseño urbano y la acción humana. Complementariamente, con la investigación bibliográfica, buscamos aclarar los conceptos de territorio y grandes proyectos urbanos (GUP), temas relevantes para la comprensión de los aspectos de la acción humana en el paisaje urbano. La interpretación y discusión presente en este artículo se centra en la sección 01 del Proyecto Parque Urbano Orla do Guaíba,

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comprendido entre la Usina do Gasômetro y Rótula das Cuias, ya que, entre las otras secciones preestablecidas por el proyecto, es la única en la que las intervenciones ya están finalizados, lo que permite llevar a cabo un análisis comparativo temporal más completo. PALABRAS-CLAVE: Arquitectura. Grandes proyectos urbanos. Apropiación. Territorio. Dimensiones de rendimiento.

INTRODUÇÃO

A paisagem contemporânea das cidades está em constante transformação. A velocidade das mudanças e a multiplicidade de intervenções reforçam a noção da cidade como um organismo vivo: “A heterogeneidade e a velocidade das transformações urbanas nos provocam a descortinar novos paradigmas e revisitar paradigmas anteriores indagando como podem ajudar a entender o terceiro milênio” (FONSECA, 2017, p 39). Nesse sentido, segundo Fonseca (2017), as expectativas tornam-se globais e navegam na velocidade das comunicações digitais, que “encolhem” o tempo e as distâncias territoriais e transformam as relações e os modos de viver nas cidades. A velocidade das relações facilita o esvaziamento da memória da coletividade e instituem, como decorrência, o abrandamento das relações com o espaço como lugar de apropriação pública.

A organização da vida em sociedade pode assumir diversas formas, normas e valores consolidados por uma cultura. Todavia estas relações não podem acontecer no vazio, necessitam de um espaço que lhes ofereça sustentação material. A maior parcela das estruturas conhecidas da vida coletiva se reproduz por meio de formas de territorialidade. Estas variam, indo da apropriação completa ao simples estabelecimento de relações simbólicas. Portanto, elas vão da relação entre indivíduos que se negam e se ignoram até a junção em torno de núcleos que se relacionam por identificação (CLAVAL, 1999).

Entende-se a apropriação do território “[...] como sendo as ações implementadas por agentes sociais – privados e públicos – que utilizam, dominam, controlam e monitoram uma determinada área territorial. Essas ações visam, sobretudo, e em última instância, garantir a reprodução do sistema social” (SILVA, 2015, p. 15). A apropriação e o uso do espaço urbano acontecem de formas diferentes a depender das pessoas que o frequentam, podendo se dar desde a simples ocupação de uma área, como uma calçada, até o fechamento de ruas inteiras (p. ex.: Terceira Perimetral de Porto Alegre aos domingos).

Identidade, classe social, senso de pertencimento, forma de acesso e motivações para ocupar são características que determinam como e quando esse espaço será frequentado. Um processo muito amplo, complexo e com uma enorme diversidade de manifestações e aspectos variados. Conforme destaca Nicolás:

Cada apropriação do espaço implica uma nova atribuição de coerência, de uma nova lógica que adquire conteúdo com um devir social específico, no qual se tecem o individual e o coletivo. Transforma-se o espaço ao se transformar a sociedade, e em cada uma dessas transformações está envolvida uma atribuição de uma temporalidade particular que é a que vive a sociedade particular num dado momento. (NICOLÁS, 1994, p.85)

Nesse contexto, o parque da Orla do Guaíba localizado em Porto Alegre, capital do , que possui 70 km de extensão e está em processo de revitalização através da implantação do Projeto Parque Urbano Orla do Guaíba, carrega consigo dados de um imaginário social criado antes, durante e após o projeto ser implantado. Desse modo, neste trabalho a apropriação da

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Orla é analisada no tocante a área do trecho 01 (da Usina do Gasômetro até a Rótula das Cuias), que teve o projeto inaugurado em setembro de 2018. Sendo o único já finalizado, é possível compreender os impactos do processo de transformação da área e suas implicações na apropriação do território.

A pesquisa baseou-se, no primeiro momento, em reportagens jornalísticas e trabalhos acadêmicos, além da revisão bibliográfica para respaldo teórico dos conceitos de território e de Grandes Projetos Urbanos - GUPs, que possuem grande importância para o entendimento dos aspectos relacionados a apropriação dos espaços urbanos pelo homem. Com finalidade de observar as conexões e sentidos empregados pelos usuários, e, consequentemente, relacionar com as soluções apresentadas pelo projeto Parque Orla do Guaíba de autoria do arquiteto e urbanista Jaime Lerner, associa-se o conceito de performance desenvolvido por Kevin Lynch ao de ambiência para averiguar de forma mais atenta a percepção da arquitetura que se expressa na paisagem. Assim sendo, o artigo traz informações do período anterior à implementação do projeto e, como método de avaliação, busca compreender a realidade atual através da observação da apropriação do espaço revitalizado, numa tentativa de relacionar projeto urbano e ação humana.

A TERRITORIALIDADE DA ORLA DO GUAÍBA

“Não existe um território sem um sujeito, e pode existir um espaço independente do sujeito. O espaço do mapa dos urbanistas é um espaço; o espaço real vivido é o território” (ROLNIK, 1990). Existem conceitos distintos na literatura para "território". Em princípio, existe um consenso de que o território é demarcado por limites ou fronteiras. De forma ampla, pode-se dizer que as diversas definições convergem para que o território seja uma fração do espaço, material ou imaterial. Assim, o território, como parte do espaço, assume características multidimensionais, podendo ser identificado através das relações sociais que nele se desenvolvem (FERNANDES, 2005).

Na busca por entender o conceito de território desenvolve-se a noção de territorialidade como sendo:

[...] a tentativa de um indivíduo ou grupo social de influenciar, controlar pessoas, recursos, fenômenos e relações, delimitando e efetivando o controle sobre uma área. A territorialidade [...] é uma expressão geográfica do exercício do poder em uma determinada área e esta área é o território (SACK,1986, apud GIL, 2004, p.7).

Holzer (1996) afirma que não é obrigatória a presença de limites para a definição de um território. Ele diz que o território é um conjunto de "lugares" onde se expressa a identidade cultural e os laços de afetividade de um determinado grupo, não implicando, necessariamente, em relações de poder.

O lugar também aparece como importante conceito, sendo a unidade a partir da qual se constituem os territórios e onde se expressa a territorialidade. Augé (1994) reafirma essa compreensão ao conceituar o "não-lugar": um espaço organizado, mas desprovido de identidade, de história ou de relações interpessoais, como um terminal de trem, ou uma via de trânsito. Estes, mesmo que existentes e vivenciados por usuários, são apenas espaços institucionalizados, já que a eles não se pode associar valores sociais inerentes aos lugares.

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A Orla do Guaíba é considerada, portanto, um território: ali se evidenciam os laços afetivos entre os frequentadores e a identidade cultural dos lugares que o compõem. O conceito de território é ampliado quando se leva em consideração que os indivíduos pertencem a grupos distintos simultaneamente, que eles influenciam o espaço de forma distinta e, ainda, podem se sobrepor, deslocar, ter duração efêmera ou cíclica, variar qualitativa ou quantitativamente.

A ESTRATÉGIA DE RENOVAÇÃO DA ORLA DO GUAÍBA E OS GRANDES PROJETOS URBANOS

O processo de revitalização da Orla do Guaíba em curso também aponta para a necessidade da discussão acerca dos GPUs como estratégia de renovação urbana.

Desejo antigo dos porto-alegrenses e objeto de vários projetos e planos anteriores, a administração municipal de Porto Alegre lançou o projeto ORLA-POA em 2011. Tem por objetivo geral promover um conjunto de ações que visam requalificar e recuperar a Orla do Guaíba, o Centro Histórico e as vias urbanas que viabilizam a mobilidade e a acessibilidade a estas áreas da cidade, qualificando de uma forma abrangente o espaço urbano, melhorando a cidade e a qualidade de vida dos porto-alegrenses.

O projeto prevê 3 trechos de revitalização da porção que vai da Usina do Gasômetro até as imediações do Estádio Beira Rio, conforme ilustra a Figura 1.

Figura 1: Trechos da revitalização. Fonte: Elaborado pelos autores, adaptado de Google Earth (2019).

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O trecho 1, já revitalizado, tem 1,3 quilômetro de extensão, Conta com bares, restaurante, ciclovias, passeio público e decks. O trecho 2 fica localizado entre a Rótula das Cuias e o Arroio Dilúvio, possui 850 metros de extensão, 134,4 mil metros quadrados, e ainda não tem projeto definido. Uma das possibilidades especuladas é de que forneça sustentação econômica para os demais pontos da Orla, recebendo atrações como, por exemplo, uma roda-gigante. Os recursos serão oriundos da iniciativa privada (O SUL, 2019).

O trecho 03, que possui 1,6 quilômetros de extensão, entre a foz do Arroio Dilúvio e o Parque Gigante, teve o edital de licitação lançado em abril de 2019, e o início das obras no mesmo ano, com previsão de entrega à população em 12 meses, conforme contrato de financiamento (O SUL, 2019). O projeto, que assim como no trecho 1 também é de autoria do arquiteto Jaime Lerner, prevê atividades esportivas para a área com 27 quadras, 3 bares nos mesmos moldes dos executados no trecho 01, esplanada e 200 vagas de estacionamento, além da maior pista de skate da América Latina, entre outros itens. Ainda, a administração pública sugere a instalação de chimarródromos, praças para crianças de zero a dois anos, deque flutuante e chuveiros. Depois de concluído, o trecho 03 poderá ser adotado ou concedido à iniciativa privada (O SUL, 2019).

O projeto elaborado pelo arquiteto Jaime Lerner em 2013 gerou repercussões polêmicas, evidenciando que a população desejava participar na elaboração das propostas para esta área. Assim sendo, durante a audiência pública de apresentação do projeto realizada em outubro de 2013, o processo foi duramente criticado pela falta de diálogo (BUGS, 2014).

Dadas estas características, o processo de revitalização da Orla do Guaíba, pode ser considerado um GPU, os quais surgem com as transformações na política urbana no final do século XX, quando o planejamento urbano racionalista é substituído pelo planejamento urbano estratégico, da cidade competitiva e global (VAINER, 2011).

Segundo Harvey (1985), nesse período houve a transição do estado de bem-estar social para o estado neoliberal, desregulação do mercado de trabalho e de capitais gerando o aumento dos fluxos financeiros internacionais, e aumento do peso da acumulação imobiliária, dentre outros aspectos. Neste contexto, os GPUs promovem grandes alterações no espaço urbano causando impactos sobre os negócios locais e as populações mais vulneráveis e sujeitando os interesses locais aos interesses hegemônicos.

Cabe mencionar que o conceito de GPU ainda está em elaboração, considerados ora como grandes obras de infraestrutura, ora como intervenções estratégicas para o desenvolvimento local. Para Gadens (2012) são operações físicas que, de modo geral, envolvem consideráveis somas financeiras, agentes públicos e privados (as chamadas PPPs - pParcerias Público-Privadas) e promovem alterações expressivas no espaço urbano. Ultramari e Rezende (2007), por sua vez, salientam que os GPUs se utilizam de instrumentos de política pública, e a sua escala projetual se distingue do entorno, sendo capazes de causar impacto para além dos seus limites imediatos. Também podem ser interpretados como iniciativas de renovação urbana, concentradas em determinado setores da cidade, cujos investimentos e intervenções seguem as diretrizes de um plano urbanístico apoiado no redesenho do espaço urbano, com novas articulações institucionais e formas de gestão (SOMECK; CAMPOS NETO, 2005). Independente do entendimento seus impactos merecem maior discussão no âmbito acadêmico.

No Brasil, podem ser citados como exemplos de GPUs: a revitalização da área portuária do , o ‘Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura’ em , e o projeto ‘Ver o Peso’ de

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Belém. Em comum, assim como o projeto ORLA-POA, movimentaram grandes quantias de capital púbico e privado, num conjunto de intervenções que incluem obras novas e reabilitações de espaços pré-existentes em grande escala.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRECHO 01

A área do trecho 01 engloba espaços públicos e turísticos consagrados, nos quais antes mesmo da revitalização (Figuras 2 a 4) já aconteciam eventos públicos como feiras, espetáculos teatrais e músicas. Destaca-se a Usina do Gasômetro que desenvolve esta vocação desde 1991, quando o espaço cultural foi inaugurado após reforma. A partir da Usina do Gasômetro, localiza- se a chamada “Prainha do Gasômetro” (Figura 3), com forte apropriação pública do local (TIMMERS, 2011). Ao longo do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, algumas barracas de alimentação operavam, agrupando pessoas, as quais mudaram para as proximidades do Anfiteatro Pôr-do-Sol, após a revitalização. No entanto, a carência de equipamentos, mobiliários e infraestrutura contribuíam negativamente para um uso abaixo das capacidades e possibilidades do local. Esta subutilização sempre foi um problema a ser enfrentado. Conforme reportagens do Jornal do Almoço em julho de 2015, a subutilização e falta de policiamento tornava a região propensa a muitos assaltos, dificultando o uso da Orla como espaço público de todos cidadãos.

Figura 2: Área da Usina do Gasômetro anterior a revitalização. Fonte: Marcelo Allet (2006).

Figura 3 : Área do trecho 01 anterior a revitalização. Fonte: Marcelo Allet (2006), Clarissa Maroneze Garcia (2015).

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Figura 4: Prainha do gasômetro. Fonte: Juliano da Costa (2011).

No trecho 01 os custos da revitalização (Figura 5) foram pagos pela prefeitura através de um financiamento do Banco de Desenvolvimento da América Latina. Inicialmente todo o trabalho foi orçado em R$ 60 milhões, mas custou R$ 71 milhões (G1,2018).

Figura 5: Trecho 01 após a revitalização. Fonte: Arthur Cordeiro (2018).

A revitalização do Parque Orla do Guaíba foi projetada pelo escritório Jaime Lerner Arquitetos Associados. O programa, segundo Lerner (2018), traz os elementos necessários para a valorização de seu entorno, através do crescimento do turismo, valorização imobiliária e recuperação do ambiente natural. Lerner (2018) afirma que as qualidades arquitetônicas do projeto estão ligadas a forma como ele se insere na paisagem, tirando partido da topografia para acomodar a infraestrutura necessária e criar passeios de contemplação do cenário. O conceito de contemplação é o ponto central adotado por Lerner (2018) para projetar o trecho 01, a dimensão cênica do estuário é enfatizada nas decisões de projeto. Um exemplo disso encontra-se na implantação de arquibancadas que correm ao longo de todo o parque imitando o movimento da água, formando pontos em níveis elevados do Guaíba, que propiciam uma visão ampla do parque.

As obras de revitalização do trecho 01, que isolaram os porto-alegrenses do Guaíba por quase três anos, começaram em outubro de 2015, e deveria ter ficado pronta em abril de 2017, mas o prazo foi adiado cinco vezes. Após a inauguração, diversas reportagens relatavam o aumento no número de usuários (Figura 6) e a sensação de segurança que a revitalização trouxe a Orla do Guaíba, tais como:

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A noite virou dia à beira do Guaíba. A nova e potente iluminação à margem das águas que fizeram fama a Porto Alegre conseguiu mudar hábitos de décadas: milhares usaram a noite deste sábado (30) para passear na orla, algo impensável até dias atrás, devido aos riscos de crimes. Pois moradores de toda a cidade, da Região Metropolitana e turistas venceram os temores e perambularam junto às águas até tarde, desfrutando daquilo que parece uma versão gaúcha (mini e modesta) do belíssimo Puerto Madero dos argentinos (Gaúcha ZH, 2018).

Figura 6: Aumento no número de usuários. Fonte: Omar freitas / Agência RBS (2018).

A reabertura do espaço que catapultou a autoestima dos moradores da capital também mudou radicalmente a dinâmica do lugar, abrindo possibilidades antes impensáveis, como andar de bicicleta à noite ou tomar uma cerveja à beira do Guaíba em segurança depois que o sol se põe. A popularidade transbordou para a vizinhança, o uso foi democratizado a todas as redes de usurários, segundo este trecho transcorrido de uma reportagem de Gaúcha ZH (A) em setembro de 2019, que entrevistava usuários do trecho 01 após um ano da revitalização concluída. Porém, alguns problemas ainda são corriqueiros na região como o grande acúmulo de lixo deixado pelos usuários (GLOBOPLAY, 2019). Recentemente, em outubro de 2019, o assassinato de um adolescente de 17 anos, que levou vários golpes no peito com uma garrafa quebrada, em local a cerca de 150 metros da Usina do Gasômetro (Gaúcha ZH, 2019), gerou revolta e apreensão na população usuária da Orla (o trecho 01 foi assim batizado em homenagem ao escritor gaúcho).

METODOLOGIA

As observações, além de permitirem perceber e avaliar a paisagem, também ajudam a identificar indivíduos ou grupos que fazem o uso das amenidades, os locais mais ou menos utilizados, as áreas que recebem manutenção e as que são descuidadas, e até os usos diferentes dos projetados. A análise abordou os aspectos quantitativo e qualitativo baseado nas dimensões de performance de Lynch, que é uma abordagem sistêmica e, ao mesmo tempo, sensível à percepção e à vivência de quem utiliza o espaço. São cinco as dimensões de performance da paisagem: vitalidade, sentido, acesso, adequação e controle, que apontam para a formulação de um método que nos permita identificar conexões entre os valores humanos e a conformação física das cidades. As dimensões precisam ter qualidades gerais, o que significa ser importante para a maioria dos usuários (ARRUDA, 2018).

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A primeira dimensão considerada por Lynch (1984), que é a vitalidade, está relacionada à saúde, à sobrevivência da espécie e a requisitos biológicos. A altura dos degraus, as inclinações, a luz, a sombra, a ventilação são aspectos que sinalizam a vitalidade ou a falta dela. A segunda dimensão é o sentido que, para Lynch é a clareza como determinado espaço pode ser apreendido e identificado. O sentido pode, assim, ser aplicável como uma forma de analisar a paisagem. A identidade de uma paisagem pode ser medida em termos grosseiros através de testes simples de reconhecimento, memória e descrição, que nos permitem reconhecer e padronizar o espaço. A terceira dimensão é a adequação, que trata do modo como o padrão espacial corresponde ao comportamento, como os locais podem ser modificados para se adequarem aos comportamentos e esses, por sua vez, podem se alterar pelas condições encontradas em um determinado ambiente. Como quarta dimensão tem-se o acesso, que se relaciona com o grau de mobilidade no espaço urbano. Os espaços livres públicos são áreas estratégicas e devem oferecer acesso a todos e a qualquer um. A quinta dimensão que Lynch trata é o controle, que está associado ao direito de presença, direito de uso, direito a apropriação, direito a modificação e a disposição. O comportamento muda em função do ambiente. Usamos o espaço de várias maneiras para gerenciar o intercâmbio pessoal e afirmar os direitos sobre o território; para destruir ou conservar.

Com isso, determinou-se fazer observações no trecho 01 da Orla durante 7 dias corridos do mês de fevereiro de 2020, em 04 horários diferentes ao longo do dia e da noite, durante meia hora. Os horários foram 7:00 horas, 14:00 horas, 18:00 horas e 20:00 horas.

O ANTES E O DEPOIS DO PROJETO: OBSERVAÇÕES

A partir da perspectiva qualitativa pôde-se verificar na observação que os espaços do parque tiveram um aumento significativo de usuários, e isso já é um indicativo de vitalidade do espaço. O parque possui os requisitos para a sua perenidade, como, por exemplo, o uso da topografia em favor do projeto, a instalação de novos equipamentos, mobiliários e infraestrutura. A área do parque também pode ser considerada um local dotado de sentido, pois é facilmente aprendido e reconhecido em sua identidade e suas funções, o que pôde ser verificado ao confirmar o uso dos espaços pelos usuários conforme projetado pelo arquiteto, pois o projeto é dotado de legibilidade e clareza. O projeto da orla é igualmente provido de adequação, segundo o que pôde ser observado, já que em diferentes dias e horários os usuários ocuparam maior ou menor área para alguma atividade, por exemplo, conforme a disponibilidade de espaço livre. O local ainda possui acessibilidade, visto que fica próximo ao centro da cidade e aos terminais de ônibus e metrô, além de contar com área de estacionamento de veículos. E finalmente, o parque conta com a dimensão de controle, citada por Lynch, uma vez que a população se apropriou novamente daquele espaço público, em maior número e diversidade, além de moldar seu comportamento em função da nova proposta de projeto.

Sob o ponto de vista quantitativo foi observado durante a semana, pela parte da manhã, que os espaços mais utilizados foram os de prática de esportes, tendo uma regularidade de frequentadores entre 30 e 40 pessoas simultaneamente. Pela parte da tarde os locais de passeio e descanso são os mais procurados, com uma variação de 20 a 30 pessoas. No final da tarde, as áreas de contemplação do pôr-do-sol ficam mais ocupadas com picos de 80 a 90 usuários, confirmando a vocação de contemplação identificada pelo arquiteto. À noite, com o aumento do movimento dos bares e restaurantes (que abrem a partir das 11 horas) o parque chegou a receber 60 a 70 pessoas. Em todos os horários de observação notou-se um fluxo considerável de pessoas utilizando o local sendo que o número não baixou de 20 pessoas em nenhum

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período. O horário de maior movimento durante a semana ocorreu das 18h às 18:30h, com aproximadamente 90 pessoas simultaneamente. Nos finais de semana o comportamento se repete, com o parque sendo mais utilizado de acordo com o passar das horas do dia, apresentando, entretanto, um aumento significativo na quantidade de usuários. Locais de prática de esportes pela manhã com 90 a 100 pessoas, áreas de passeio e descanso no início da tarde com 200 a 300 pessoas, contemplação do pôr-do-sol no final da tarde com 400 a 500 usuários e áreas contíguas aos bares e restaurantes à noite com 200 a 300 pessoas. O horário de maior movimento durante a semana ocorreu das 18h às 18:30h, com aproximadamente 500 pessoas.

Vale destacar que fevereiro, quando as observações foram realizadas, é um mês de férias e muitos porto-alegrenses passam o final de semana na praia. Dias com superlotação não são incomuns – conforme mostra a figura 06 – em domingos e feriados de temperatura amena.

CONSISERAÇÕES FINAIS

O aumento expressivo no número de usuários da Orla do Guaíba é evidente, assim como o número de diferentes grupos que a frequentam, enriquecendo o convívio social. Além disso, ampliou-se o espectro temporal de vitalidade do lugar. Locais antes subutilizados, hoje estão tomados de frequentadores, criando novas territorialidades. No entanto, a revitalização trouxe, como em geral acontece nos entornos dos grandes projetos urbanos, alguma gentrificação, que já começa a se manifestar de forma incipiente. O lazer turístico exigido pela sociedade de consumo é tido como um “produto” e este vêm sendo tratado como um fenômeno social que é capaz de gerar grandes interferências no território, alterando sua configuração espacial (SOARES, 2011).

Espaços públicos como o da Orla do Guaíba destacam-se como lugares de excepcionalidade por seus cenários e pelos serviços de consumo que oferecem, logo, a popularização acontece com velocidade acelerada, transformando rapidamente o status do local, que logo é ambicionado por mais e mais pessoas.

Segundo Garcia (2015) o processo de renovação urbana que vem acontecendo na Orla do Guaíba em Porto Alegre converge com as observações citadas acima, já que os projetos propostos para ela correspondem aos interesses capitais do poder público e privado. Garcia (2015) complementa salientando que a forçada mercantilização do espaço traz a valorização capital do entorno, gerando como resultado a segregação socioespacial, que vem ocorrendo no entorno imediato à orla do lago, e acaba privando sua recriação em uma perspectiva democrática, na qual a população porto-alegrense possa usufruir de uma cidade mais igualitária.

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Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo