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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

MARIA JOSÉ DE OLIVEIRA NAVARRO

O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL: O Samba Paulista: Do Rural as Rodas de Samba da Capital

São Paulo 2017

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

MARIA JOSÉ DE OLIVEIRA NAVARRO

O SAMBA PAULISTA E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL: O Samba Paulista: Do Rural as Rodas de Samba da Capital

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura.

ORIENTADOR (a): Profa. Dra. Silvana Seabra Hooper/ Prof. Dr. Marcel Mendes

São Paulo 2

2017

N322s Navarro, Maria José de Oliveira.

O samba paulista e sua relação com a formação da identidade

nacional: O samba paulista: do rural ao urbano/ Maria José de Oliveira

Navarro. – 2017.

115 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) -

Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017.

Orientadores: Silvana Seabra Hooper, Marcel Mendes.

Referências bibliográficas: f. 113-115.

1. Identidade nacional. 2. Cultura brasileira. 3. Pertencimento. 4.

Projeto nacional. 5. Samba paulista. 6. Estado Novo. I. Título.

CDD 780.98161 3

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RESUMO

A pesquisa aqui apresentada tem como objetivo compreender e contextualizar a formação da identidade nacional, buscando a percepção do papel do samba paulista nesse processo de formação. Além da busca do entendimento do reflexo do samba rural paulista no urbano, o samba paulista é comparado com o carioca. Convém ressaltar que o foco deste estudo é o samba rural paulista. A metodologia utilizada nesta pesquisa acadêmica foi a bibliográfica, sendo esta fundamental para a realização deste estudo historiográfico, buscou-se o método comparativo antropológico. Utilizando-se da leitura dos clássicos da literatura brasileira, que relatam o transcurso da identidade nacional, encontramos mais elementos para melhor interpretação desta organização. Foram utilizadas obras dos seguintes autores: José Ramos Tinhorão, um dos principais estudiosos da música popular brasileira do século XIX e XX, Mário de Andrade e sua contribuição que propõe um paralelo entre o samba e a modernização da cultura brasileira. Magno Bissoli Siqueira, com a questão do embranquecimento do samba, através da apropriação deste pelo governo de Getúlio Vargas. Florencia Garramuño, com uma análise comparativa da importância do tango e o samba; o tango para a Argentina, assim como o samba para o Brasil, trata do conceito “primitivismo moderno”. Os dois ritmos com papéis fundamentais, pois tornaram-se símbolos nacionais nas primeiras décadas do século XX. Conclui-se neste estudo que há uma peculiaridade inerente do samba paulista e, esta se dá através do samba de bumbo de Pirapora, este migrando para a capital paulista e trazendo consigo características rurais, com Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro e outros nomes. Já no espaço urbano, o ritmo chega às ruas com cordões, blocos até o carnaval. E na contemporaneidade observa-se um movimento de resgate deste samba rural paulista, um movimento de resistência cultural através de grupos como Kolombolo, Samba Autêntico e Samba da Vela.

Palavras-chave: Identidade nacional. Cultura brasileira. Samba Paulista. Projeto nacional.

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ABSTRACT

The research presented here aims to understand and contextualize the formation of the national identity, seeking the perception of the role of Paulista Samba in this process of formation. In addition to the search for an understanding of the reflex of rural samba in the urban samba, paulista samba is compared to the carioca samba. It should be emphasized that the focus of this study is the rural samba of São Paulo. The methodology used in this academic research was the bibliographical, being this fundamental for the accomplishment of this historiographic study, sought to use the comparative anthropological method. Using the reading of the classics of Brazilian literature, which relate the course of national identity, we find more elements for a better interpretation of this organization. Works by the following authors were used: José Ramos Tinhorão, one of the main Brazilian popular music scholars of the 19th and 20th centuries, Mário de Andrade and his contribution that proposes a parallel between samba and the modernization of Brazilian culture. Magno Bissoli Siqueira, with the subject of the whitening of the samba, through the appropriation of this one by the government of Getúlio Vargas. Florencia Garramuño, with a comparative analysis of the importance of tango and samba; The tango for Argentina, as well as the samba for , deals with the concept "modern primitivism". The two rhythms with fundamental roles, as they became national symbols in the first decades of the 20th century. It is concluded in this study that there is an inherent peculiarity of samba from São Paulo, and this occurs through the Pirapora samba bass drum , this one migrating to the capital of São Paulo and bringing with it rural characteristics, with Geraldo Filme, Toniquinho Batuqueiro and other names. In urban space, the rhythm reaches the streets with strings, blocks until the carnival. And contemporaneously, there is a movement to rescue this rural samba from São Paulo, a movement of cultural resistance through groups such as Kolombolo, Samba Authentic and Samba da Vela.

Keywords: National identity. Brazilian culture. Paulista Samba. National project. 6

Ao meu marido, pelo apoio e compreensão; às minhas filhas, pela força e incentivo, à minha sogra pelo apoio constante.

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AGRADECIMENTOS

À Deus, pela sabedoria me fornecida, pela força e coragem durante todo o percurso. Aos colegas, com os quais eu muito aprendi, com os quais me alegrei, chorei, além de criar amizades para além da academia. Ao Prof. Dr. Paulo Monteiro de Araújo pelos ensinamentos e acolhimento durante todo o percurso. À mestranda Karina de França Silva, amiga que me incentivou em vários momentos da minha vida tão atribulada, fazendo-me repensar e prosseguir na luta. À Profa. Dra. Ingrid Hötte Ambrogi, pelas sugestões pertinentes no momento da qualificação. Ao Prof. Dr. Daniel de Lucca Reis Costa, pelo carinho, compreensão e generosidade dedicada. Ao Prof. Dr. Marcel Mendes, pelo acolhimento, gentileza e sabedoria com os quais me atendeu prontamente.

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Batuque de Pirapora

Eu era menino, mamãe disse “vamo embora. Você vai ser batizado no samba de Pirapora”

Mamãe fez uma promessa Para me vestir de anjo. Me vestiu de azul-celeste, Na cabeça um arranjo. Ouviu-se a voz do festeiro No meio da multidão “Menino preto não sai Aqui nessa procissão” Mamãe, mulher decidida, Ao santo pediu perdão, Jogou minha asa fora, Me levou pro barracão. Lá no barraco tudo era alegria; Nego batia na zabumba e o boi gemia.

Iniciado o neguinho Num batuque de terreiro, Samba de , Tietê e campineiro. Os bambas da Paulicéia Não consigo esquecer Frederico na Zabumba Fazia a terra tremer. Cresci na roda de bamba, No meio da alegria, Eunice puxava o ponto, Dona olímpia respondia, Sinhá caía na roda Gastando a sua sandália E a poeira levantava Com o vento das sete saias

(Geraldo Filme)

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO - ...... 13 1.1MÉTODO...... 13 1.2 OS CAPÍTULOS...... 13 1.3 O PROBLEMA IDENTITÁRIO PAULISTA COMPARADO AO BRASILEIRO...... 14 1.4 A LITERATURA DO SÉCULO COMO HISTORIOGRAFIA DA FORMAÇÃO IDENTITÁRIA...... 16 1.5 A SEMANA DA ARTE MODERNA DE 22...... 17 1.6 O PROJETO NACIONAL DE GETÚLIO E O SAMBA...... 19

2. CAPITULO 1 – A HISTÓRIA DO SAMBA ...... 20 2.1.1 O QUE É O SAMBA?...... 20 2.1.2 SAMBA COMO DANÇA DOS NEGROS...... 24 2.1.3 O SAMBA E A LITERATURA...... 25 2.1.4 O SAMBA COMO DANÇA...... 26 2.1.5 O SAMBA E A VIOLA...... 29 2.1.6 A DIÁSPORA DO SAMBA...... 32 2.1.7 O SAMBA COMO PRODUTO NACIONAL...... 35 2.1.8 O SAMBA E A POLÍTICA...... 38 2.1.9 O SAMBA, O RACISMO E OS CONFLITOS SOCIAIS...... 40 2.1.10 O SAMBA COMO PRODUTO...... 42

2.2. CAPÍTULO 2 – SAMBA E O ESTADO NOVO DE GETÚLIO VARGAS...... 45 2.2.1. O SAMBA A SERVIÇO DO GOVERNO...... 45 2.2.2 O SAMBA E O EMBRANQUECIMENTO A SERVIÇO DO PROJETO NACIONAL ...... 48 2.2.3 O SAMBA E A ESCOLHA DE SEUS REPRESENTANTES...... 54 2.2.4 O SAMBA E O TANGO, UMA ANALISE COMPARATIVA DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE SÍMBOLO NACIONAL...... 55 2.2.5 SAMBA E TANGO COMO GÊNEROS NACIONAIS...... 57

3.1 CAPÍTULO 3 - O SAMBA PAULISTA DO RURAL AO URBANO...... 62 3.1.1 O SAMBA RURAL PAULISTA...... 62 10

3.1.2 O QUE É O SAMBA PAULISTA?...... 63 3.1.3 UMA ANALISE COMPARATIVA ENTRE O SAMBA PAULISTA E O CARIOCA...... 67 3.1.4 O SAMBA, O BUMBO E A VIOLA...... 70 3.1.5 O SAMBA E O HIBRIDISMO CULTURAL...... 74 3.1.6 O SAMBA PAULISTA E O CARNAVAL...... 78 3.2 DO SAMBA RURAL AO CARNAVAL E ÀS RODAS DE SAMBA DA CAPITAL...... 79 3.2.1 O SAMBA PAULISTA URBANO NAS RUAS E NOS CORDÕES...... 79

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 109

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 113

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figuras

1 – Di Cavalcanti. Óleo sobe tela, 177 X 154 cm, 1925...... p.18 2 – Di Cavalcanti. Óleo sobe tela, 33 X 55 cm, 1967 ...... p.25 3 – Modesto Brocos. Óleo sobre tela, c.i.d. 199.00 X 166.00 cm, 1895...... p.48

Fotos

1 – Cartaz da Semana da Arte Moderna apresentando Villa Lobos...... p.16 2 – Foto do acervo da USP/ Imagens - São Paulo- SP- Brasil- Primeiro folguedo negro criado especialmente para desfilar no carnaval paulistano. O cordão do Camisa Verde e Branco. Criado por Dionísio Barbosa. Aqui vemos “Camponeses do Egito”...... p.86

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1.INTRODUÇÃO

1.1 Método

Os métodos aos quais esta pesquisa se propôs a utilizar foram: pesquisa bibliográfica, o método comparativo antropológico e o histórico. A razão dessa escolha foi que partir da pesquisa bibliográfica, observou-se que, os principais autores utilizados como fundamentação teórica tecem análises comparativas, principalmente os estudos de Tinhorão, por apresentar análises entre o samba e a dança, por exemplo. O samba e a fofa, o samba e o fado, o samba e o lundu, o samba e o maxixe. Já a autora Florência Garramuño se utiliza do conceito de primitivo e do moderno em uma análise não de oposição, mas de complemento desses termos tecendo comparações entre o samba e o tango como símbolos de construção da identidade nacional. Garramuño compara os processos de construção dessas identidades, a brasileira e a argentina. A intenção com a qual se empregou esses métodos se fez para identificar, em princípio, semelhanças entre os estilos musicais e em seguida compará-los, o samba rural e o urbano paulista, ainda apontar relações comparativas entre o samba paulista e o carioca. Ainda tratando do método comparativo observa-se que durante o século XX houve uma ascendência do nível de subjetividade do método ligado ao desenvolvimento do pensar a teoria antropológica. Com a ideia de totalidade, Mauss e Durkheim abriram uma nova dimensão no que se refere ao uso do método e ao seu aos objetos a serem pesquisados. A partir da cisão teórica Boas/Malinowski, o método comparativo foi utilizado das mais diferentes maneiras, com Radcliffe-Brown, Murdock e rejeitado por outros, como Evans- Pritchard, ou ainda usado em um momento e abandonado posteriormente, como Leach e Geertz...1

Os estudos comparativos a que me refiro tentam explicar costumes e ideias de notável similaridade encontradas aqui e ali. Mas eles também têm o plano mais ambicioso de descobrir as leis e a história da evolução da sociedade humana. O fato de que muitos aspectos fundamentais da cultura sejam universais – ou que pelo menos ocorram em muitos lugares isolados – quando interpretados segundo a suposição de que os mesmos aspectos devem ter se desenvolvido sempre a partir das mesmas causas, leva à conclusão de que existe um grande sistema pelo qual a humanidade se desenvolveu em todos os lugares, e que todas as variações observadas não

1Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 9, volume 16(1): 87-108 (2005)

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passam de detalhes menores dessa grande evolução uniforme (BOAS, 2004, P. 8-9).

Esta pesquisa buscou, também buscar em Boas (BOAS,2004, P.8-9), a definição do conceito comparativo, e em seguida, voltou-se para a questão histórica que denota que cada região teve sua peculiaridade e o enfoque na observação antropológica do samba rural paulista, sua mistura ao urbano, assim como sua contribuição no hibridismo da capital paulista, onde se encontravam povos de diferentes países, estados, cidades e bairros da cidade de São Paulo. Através da utilização desses métodos, tanto o bibliográfico, como o histórico e o comparativo buscou-se chegar a relevância histórica, social e cultural da relação do samba paulista com a formação da identidade nacional. O método comparativo trouxe consigo a máxima de Franz Boas “comparar o comparável”, o samba com os seus componentes de sua formação: o samba paulista com o carioca, os elementos que participaram deste universo: o negro e o branco, a elite e os pobres, o Brasil e a Europa, o rural e o urbano, comparar o processo do Brasil e da Argentina de construção da identidade nacional; o Brasil com o samba e a Argentina com o tango, através da contribuição de Florencia Garramuño (2009). Há que se observar que esse exercício comparativo está focado na questão do samba rural paulista e seu reflexo no urbano e, como este samba urbano dialoga com o carioca.

1.2 Os capítulos

No primeiro capítulo é apresentada A História do Samba, em ordem cronológica discorre-se a historiografia do samba, desde a origem do seu nome. No subcapítulo deste, nos debruçamos nas questões que permeiam o Estado Novo de Getúlio Vargas e a sua utilização do samba como catalizador para um Projeto Nacional, que tira o samba da marginalidade para torná-lo o principal símbolo de identidade nacional brasileira. No segundo capítulo apresentamos o Samba Paulista. Utilizando Mário de Andrade, como o primeiro a observar o samba paulista rural, além da obra quase biográfica, de um autor que fez parte da história do samba paulista urbano. Osvaldinho da Cuíca e a contribuição da biografia de Germano Mathias, dentre outros relatos, documentários e as próprias letras das músicas, principalmente as de Adoniran Barbosa, que é reconhecido como um cronista social. O subcapitulo deste trata do samba rural e sua colaboração para as rodas de samba da capital e a criação do carnaval paulista, este influenciado e moldado aos padrões 14

do carnaval carioca para que desta forma, pudesse profissionalizar o carnaval e receber as verbas devidas.

1.3 O problema identitário paulista comparado ao brasileiro

O interesse pelo tema: “O samba paulista e sua relação com a formação da identidade nacional” surgiu das discussões em sala de aula no curso de pós-graduação “Docência na Educação Superior”, de forma específica na apresentação de trabalhos sobre cultura brasileira. Em função da pesquisa sobre o tema: “A Formação e a Criação da Identidade Nacional”, fez- se necessário o retorno a alguns clássicos da literatura brasileira. Partindo da reflexão sobre essas obras, originou-se o desejo de investigar a relação do samba com a formação da identidade nacional. No processo de investigação e leituras foram surgindo outras questões, como por exemplo, o que é pertencimento? Dessa forma, após a conclusão do curso de pós-graduação lato sensu, no qual foi apresentada uma monografia com o objetivo de compreender como se criou e formou a identidade nacional, levantaram-se outras questões, estas de cunho estritamente cultural. O interesse pelo tema ficou mais nítido e a busca pelo aprofundamento, pela compreensão antropológica, tornou-se necessária. Nesta etapa do trabalho acadêmico, busca-se o entendimento da formação cultural nacional com enfoque na música brasileira, mais especificamente no gênero samba – que se tornou um ritmo nacional – e este numa análise antropológica, com o enfoque no samba paulista, que tem sua relevância na composição identitária brasileira. Neste contexto, percorreu-se a história do samba do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, partindo de algumas regiões do nordeste brasileiro como o Ceará, Pernambuco e Bahia, nesse percurso “diaspórico”, indo para o sudeste, chegando ao – onde se “patenteou” o samba nacional, até suas primeiras observações no interior de São Paulo por Mário de Andrade, a partir do antropólogo Claude Lévi-Strauss, pelo pintor modernista Di Cavalcanti, dentre outros acadêmicos ou não. A partir daqui, cabe entender a chegada dos negros escravizados nas roças de café do interior de São Paulo, na região de e no decorrer do crescimento da metrópole com a industrialização, o samba rural acabou por alcançar a capital paulista, primeiro em bairros como Barra Funda, Casa Verde, Liberdade, até a região central, tendo como um dos bairros mais importantes o bairro do Bixiga na cidade de São Paulo. 15

Nota-se que em São Paulo o samba rural e o samba urbano se desenvolveram da mesma forma que em outras regiões do país, comparativamente notam-se semelhanças no processo da construção histórica do samba, em que os negros que trabalhavam nas plantações de café migravam para a cidade levando consigo sua cultura. Dessa forma, em São Paulo, o gênero primeiro surgiu no interior do estado para posteriormente ser levado aos bairros como Barra Funda, Casa Verde e Liberdade na capital de São Paulo, o bairro do Bixiga como um dos mais importantes nesta cena paulistana, e o centro, como a Praça da Sé onde se encontravam os engraxates sambistas, somando-se, assim aos elementos do processo de construção identitária na diversidade cultural brasileira. Inicialmente, podemos observar o bumbo, como o principal elemento de identificação do samba rural paulista revelando-se as primeiras especificidades do samba paulista em relação ao nacional.

1.4 A literatura do século como historiografia da formação identitária

A análise sobre a formação da identidade nacional e seus reflexos se deu considerando o período do final do século XIX e o início do século XX, e buscou-se ainda compreensão quanto ao início deste século XXI. Aborda-se a construção nacional no final do século XIX com o Positivismo, o Romantismo e o Realismo. Entende-se que o positivismo é elemento de fomentação de discussões político-econômicas em Terra Brasilis, assim como o Romantismo – este representado na literatura, na música e nas artes plásticas. O Romantismo tem destaque, pois valoriza o eu lírico, a saudade e a natureza brasileira; segundo Bosi (2013), o movimento romântico no Brasil, principalmente no que diz respeito à literatura, contou com a participação dos filhos das famílias mais abastadas de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, além de filhos de comerciantes portugueses. Esta era a classe “pensante”, que reproduzia os padrões culturais absorvidos da Europa (Londres, Paris e Lisboa). Dessa forma, a literatura e as artes foram contribuindo para a construção de uma identidade nacional, mas ainda com influências europeias, como no caso de A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo – primeiro romance romântico brasileiro. Já O Guarani (1857), de José de Alencar, foi o primeiro romance de temática indianista publicado pelo autor, e estabelece uma visão idealizada da formação do povo brasileiro, por meio do índio Peri e da portuguesa Cecília. Um fato relevante do movimento romântico foi a criação, pelo maestro Carlos Gomes, da ópera O Guarani – baseada no livro homônimo de José de Alencar – primeira obra musical 16

brasileira a obter sucesso no exterior. Quanto ao Realismo, poucos autores foram tão importantes para a literatura brasileira como Machado de ; sua obra é marcada por pessimismo e ambiguidades, o que se identifica em personagens como Capitu e Bentinho. Nas artes plásticas, os pintores brasileiros buscavam valorizar o nacionalismo, retratando fatos históricos importantes. Dessa forma, os artistas contribuíam para a formação de uma identidade nacional. No início, assim como na literatura, os artistas plásticos brasileiros tinham como inspiração os índios, a natureza e temas afins, buscando representar os fatos ocorridos no Brasil naquele contexto histórico.

1.5 A semana da Arte Moderna de 22

2 Na música, Villa-Lobos trazia o folclore e os costumes populares brasileiros em forma de composições como ”A Fiandeira”, “Cascavel”, “Camponesa cantadeira” e “Festim Pagão”. Um dos mais relevantes acontecimentos da arte brasileira na história da formação da identidade nacional foi a Semana de Arte Moderna de 1922. O evento, que ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo, entre os dias 13 e 18 de fevereiro de 1922, pode-se ser entendido como um marco na história cultural brasileira. Essa era a intenção dos artistas envolvidos, que levantaram a bandeira de “cultura nacional”. Assim, buscou-se reunir no evento artistas que trabalhassem temas nacionais em suas obras.

2 http://portalarquitetonico.com.br/wp-content/uploads/534px-Arte-moderna-8.jpg 17

Em 1944, Oswald de Andrade participa da Exposição de Arte Moderna, no Edifício Mariana, em Belo Horizonte. Em sua palestra, cujo título “O caminho percorrido” faz uma metáfora referente à distância geográfica entre as duas cidades, São Paulo e Belo Horizonte, e à distância temporal entre os dois eventos – a Semana de 22 e aquela Exposição – aponta para a continuidade do projeto moderno vinte e dois anos depois, pelas mãos de Juscelino Kubitschek e confere importância histórica ao movimento paulista. Neste contexto de busca por identidade nesse projeto nacional volta-se para a questão de Raça e Cultura, tema absorvido de Franz Boas por Gilberto Freyre, que contribui para o entendimento dessa fusão étnica. Gilberto Freyre analisa geograficamente essa distribuição Brasil adentro o classificando nas suas misturas de raça e cultura, que segundo Schwarz, Gilberto Freyre, que constrói o mito e Florestan Fernandes, que o desconstrói. No Brasil coexiste as duas realidades dessemelhantes, isto é, de um lado, a constatação de um país profundamente mestiçado em suas práticas e credos; de outro, tem-se um local de um racismo invisível e de um caráter enraizado na intimidade (SCHWARZ, 2012, p.82). Esse povo que descende dessas misturas as reflete de forma notória nas suas formas de representação nas artes, e como é o foco desse projeto, na música, e mais especificamente no Samba.

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Di Cavalcanti. Óleo sobe tela, 177 X 154 cm, 1925

Anteriormente tínhamos o convite da semana de 22, com a apresentação de Villa Lobos. Neste contexto, a música está intrinsicamente ligada às outras formas de arte, entendendo que a música traz consigo movimento, sentimento, história, crônica, etc. Além de ser inspiração para artistas de outras áreas. Enquanto o samba traz consigo o ritmo afro- brasileiro e torna-se, desta forma, o símbolo de representação das especificidades brasileiras.

1.6 O projeto nacional de Getúlio e o Samba

A partir de uma análise dialética do samba, relacionando-o ao projeto nacional de Getúlio Vargas na construção do Estado Novo, abordando suas dicotomias e sua conexão com outros ritmos, além de buscar entender a sua inserção em diferentes camadas sociais. Tratamos a este diálogo as analises de: José Ramos Tinhorão, Florencia Garramuño e Magno Bissoli Siqueira, estes três autores tratam da questão politica entre o samba e o governo de Getúlio Vargas, o samba como símbolo de brasilidade.

3 https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:83-Di-Cavalcanti-%E2%80%93Samba---1.jpg pode-se analisar o quadro de Di Cavalcanti, o qual representa o samba. Assim, observa-se a soma das artes: a de Di Cavalcanti, e esta numa representação do ritmo musical, samba. Acesso em:23/03/2017 19

Nestas análises, foi abordado a questão latente desse período (primeiras décadas do século XX), a questão da apropriação do samba pelo poder politico de Getúlio, que ao mesmo tempo o tirou da marginalidade, o embranqueceu étnica, cultural e socialmente, segundo análises principalmente de Siqueira que trata fortemente desta questão do embranquecimento do samba. O samba paulista desde sua construção nos interiores do estado de São Paulo traz uma ancestralidade africana, assim como em outras regiões do país, onde trouxeram negros e os escravizaram, mas em principio, não escravizaram sua cultura, cheia de crenças e costumes. Estas crenças e costumes trazidos pelos negros escravizados se depararam com a cultura que já havia nestas regiões do interior paulista, isto é, de uma cultura “caipira”. Pode-se concluir que estas misturas refletiram de alguma forma, na construção do samba rural paulista. Na citação a seguir, Antonio Cândido define a formação da “cultura caipira”.

Da expansão geográfica dos paulistas, nos séculos XVI, XVII e XVIII, resultou não apenas incorporação de território às terras da Coroa portuguesa na América, mas a definição de certos tipos de cultura e vida social, condicionadas em grande parte por aquele grande fenômeno de mobilidade. Não cabe analisar aqui o sentido histórico, nem traçar o seu panorama geral. Basta analisar que em certas porções do grande território devassado pelas bandeiras e entradas – já denominado significativamente Paulistânia – as características iniciais do vicentino se desdobravam numa variedade subcultural do tronco português, que se pode chamar de “cultura caipira” (CÂNDIDO, 1998, p. 35).

E esta cultura caipira, que Antonio Cândido descreve, tem muita relação com o samba rural paulista, mas antes, convém uma pergunta, a qual permeia o universo do samba e da musica popular brasileira: Onde nasceu o samba? A partir daqui tem-se um caminho historiográfico a percorrer, pois da mesma forma que chegaram negros de diversas regiões da África – de diferentes tribos, com diferentes dialetos – na Bahia, também num movimento diaspórico, chegaram as outras regiões do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro. Contudo, em principio nas fazendas para o trabalho braçal, por estas razões, talvez do clima, ou às influências culturais regionais, surgiram variações rítmicas do samba, antes uma dança, ou danças, como a umbigada, o jongo, o samba de bumbo, entre outros. O que se pode concluir no presente estudo é que, através da busca pelo entendimento das peculiaridades do samba paulista rural e suas transformações no aspecto urbano, em relação a formação da identidade nacional, a influência cultural da formação da identidade nacional na peculiaridade do samba paulista, este tem originalidade, apresentada em seu ritmo, em suas letras, na utilização da viola, trazida da cultura portuguesa, também encontrada 20

no nordeste, como veremos nos capítulos seguintes, mas com presença enfática no interior paulista. Mário de Andrade, precursor nesses estudos sobre o Samba de Pirapora, seus batuques e batucadas, classificou o samba observado como: samba rural paulista.

2. CAPÍTULO 1 – A história do samba

2.1.1 O que é o samba?

Debruçando-se sobre o tema logo se descobre, por meio de registros, que o samba descende do povo africano que chegou em Terra Brasilis. As primeiras referências ao termo samba ocorreram, segundo indicações, descrevia uma festa típica dos negros, o que será aprofundado e detalhado mais à frente neste capítulo. Essas primeiras ocorrências do termo se deram no nordeste brasileiro, e migraram pelo Brasil acompanhando os fatos históricos do país, pois a história do samba está intrinsecamente ligada à história da construção e formação da identidade nacional.

Em finais do século XIX o Brasil era apontado como um caso único e singular de extremada miscigenação racial. Um “festival de cores” (Airmad, 1888) na opinião de certos viajantes europeus, uma “sociedade de raças cruzadas” (Romero, 1895) na visão de vários intelectuais nacionais; de fato, era como uma nação multiétnica que o país era recorrentemente representado. Não são poucos os exemplos que nos falam sobre esse “espetáculo brasileiro da miscigenação”. (SCHWARZ, 1993, p. 15)

Esse espetáculo citado por Schwarz nos mostra o ambiente em que o samba se constituiu, isto é, um espetáculo de raças de diversas culturas étnicas e classes sociais miscigenadas. E neste contexto constrói-se um Brasil e, nele o samba.

Canto das Três Raças

Ninguém ouviu Um soluçar de dor No canto do Brasil

Um lamento triste Sempre ecoou Desde que o índio guerreiro Foi pro cativeiro E de lá cantou

Negro entoou Um canto de revolta pelos ares No Quilombo dos Palmares 21

Onde se refugiou Fora a luta dos Inconfidentes Pela quebra das correntes Nada adiantou

E de guerra em paz De paz em guerra Todo o povo dessa terra Quando pode cantar Canta de dor

E ecoa noite e dia É ensurdecedor Ai, mas que agonia O canto do trabalhador Esse canto que devia Ser um canto de alegria Soa apenas Como um soluçar de dor

(Compositor: Paulo César Pinheiro, intérprete: Clara Nunes)

Uma das possíveis respostas a pergunta: O que é o samba? É que o samba é ancestralidade. E já que esta pesquisa trata de música, a musica citada acima, interpretada por Clara Nunes, traz consigo essa ancestralidade incutida, esta música conta a história da escravidão, mas além disso, traz o sentimento de dor, de injustiça, de abuso do outro e , mesmo em meio a este ambiente hostil, os negros escravizados, ainda mantiveram suas tradições e sua cultura, e esta veio a ser o símbolo de identidade de um país, eles foram trazidos nos navios negreiros de forma desumana, sem opção de escolha. Assim este povo de origem africana de vários países e tribos. Contribuíram em princípio, com mão de obra escrava que construiu esse país, ainda, e mais expressivamente, como artistas, que criaram um ritmo, um gênero musical. No Brasil, o samba é reconhecido desde seu surgimento como uma forma de expressão de um povo, constituindo mais do que um gênero musical. O samba, com origem nas tribos africanas, espalhou-se por toda a extensão do território brasileiro, do Nordeste ao Sudeste. Então, vem a pergunta: Porque só no Brasil o samba encontrou “ambiente favorável” para sua expressão? Pode-se pensar o seguinte: entre outras razões de se fazer samba somente no Brasil é que no Brasil não houve, por exemplo, proibição da utilização dos tambores. Neste capítulo, mais adiante, essas razões serão desenvolvidas. 22

Convém trazer a este diálogo Peter Fry, o qual se ocupa da manipulação dos símbolos étnicos nacionais, como a feijoada, o candomblé e o samba. Feijoada e Sou-Food16, artigo reapresentado e discutido 25 anos depois de sua publicação. Peter Fry inicia o artigo original, contando a história do convite que fez a um grupo de amigos negros nos EUA. Para provar um prato que ele considera um dos ícones da cultura brasileira; quando o prato foi servido os convidados não se surpreenderam, dizendo que aquilo era conhecido no país deles como comida de negros. Contudo, a principal análise do autor é que a feijoada, o samba e o candomblé são símbolos nacionais que, originários da cultura negra, incorporaram o disfarce do racismo, pois o candomblé, assim como o samba e a feijoada fazem parte da cultura brasileira, tanto de brancos como de negros e, segundo o autor, estimula uma opressão disfarçada tese defendida também por Schwarz (2012). Atendo-nos ao samba, pode-se afirmar que o samba é um gênero que se constituiu originalmente como música dançante das camadas sociais menos abastadas. A princípio restrito às senzalas, alcançou os terreiros, as periferias das grandes capitais e, por fim chegou aos centros urbanos. Segundo o Novo dicionário enciclopédico luso-brasileiro, de aproximadamente 1910, o termo samba (s.f., bras.) significa “bailado popular”, “dança de negros”. Já na edição de 1923 do Dicionário Brasileiro contemporâneo, consta: “s.m. (bras.) Dança cantada, de origem africana, compasso binário e acompanhamento obrigatoriamente sincopado: música para essa dança; (fig.) baile agitado; rôlo; conflito”. Seguindo para o Minidicionário Aurélio da língua portuguesa, edição de 1993, temos: “s.m. Bras. 1. Dança cantada, de origem africana, compasso binário e acompanhamento sincopado. 2. A música desta dança”. Por último, vejamos o Michaelis: Dicionário escolar – Língua portuguesa de 2002: Samba, (quimbundo semba) s.m., Dança popular brasileira, de origem africana, com variedades urbana e rural, cantada e muito saracoteada. Samba de breque: samba com paradas súbitas. Samba de partido alto: espécie de samba tradicional do Rio de Janeiro. A partir desta última data, as definições praticamente se repetem. Segundo Tinhorão, o primeiro registro escrito da palavra samba na língua portuguesa consta da edição de 1837 do jornal Carapuceiro, do Padre Lopes Gama, da cidade do Recife. Assim, entende-se que o conhecimento ao menos do termo samba ocorreu décadas antes de o ritmo vir a ser conhecido tanto no Sudeste como no Sul do Brasil.

16 Publicado em Esterci, N., P. Fry, et al., orgs. (2001). Fazendo antropologia no Brasil. Rio de Janeiro, DP&A editora.

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Na edição de 12 de novembro de 1842 do mesmo jornal, novamente se encontra a palavra samba, em versos ali publicados pelo Padre Lopes Gama, por meio de um personagem matuto que trazia a memória de um Recife de trinta anos antes, ou seja, um Recife do “alvorecer” do século XIX, em uma carta-resposta do matuto à carta do seu compadre doutor Fagundes, acerca do crescimento da cidade do Recife:

Esta palavra de baile Té era desconhecida, Muito menos se sabia O tal soiré, e partida. Em bodas, e bautizados He que se dava funcção: Dansavão se os minuetes, Coporta, o côco, e o sabão. Ao som de citra, e violla Também era muito usado O dansar às embigadas O bello landum chorado. Aqui pelo nosso mato? Qu’estava então mui tatamba17? Não se sabia outra coisa? Senão a dansa do samba. (GAMA apud TINHORÃO, 2012, p. 88).

Segundo Tinhorão (2012), Lopes da Gama chama a atenção para a importância desse personagem matuto que, no início dos anos 1800, pertencia à região rural do estado de Pernambuco, ainda muito distante da cidade, tanto geograficamente como no que se refere ao acesso à cultura conhecida nas cidades mais urbanizadas. Dessa forma, o que se tinha como forma de expressão cultural e divertimento do povo pertencente à região rural eram os “simplórios batuques africanos”.

A origem da palavra samba não é certa. Especula-se que o termo seja uma derivação da palavra africana semba, de origem bantu18, que teria o sentido de “umbigada” (encontrão do umbigo de uma pessoa com o umbigo de outra, passo típico de danças afro-brasileiras). Essa dança, a umbigada, surge com o nome semba: Essas danças, tal como pela primeira vez chamou a atenção Édison Carneiro no início da década de 1960, tinham como característica coreográfica comum o uso da umbigada (ostensivamente aplicada, ou apenas insinuada pela aproximação frontal dos corpos dos bailarinos, que batem ou fazem uma vênia), e muito razoavelmente por isso as rodas de batuque identificadas por essa marca da semba africana passaram a ser chamadas de sambas. (TINHORÃO, 2012, p. 85).

17 Tatamba, segundo o vocabulário pernambucano de Pereira da Costa, significava “ignorante, toleirão, ingênuo, desconfiado”. 18 BAMBI, Ermelindo Francisco. O sagrado nas culturas bantu em Angola. Instituto Teológico Franciscano. Disponível em:. Acesso em: 19 jul. 2016. 24

O autor ainda enfatiza que o samba, como música urbana, apresentada nas primeiras décadas do século XX, sofreria algumas modificações no decorrer de sua história. Tinhorão afirma ainda que faltam documentos e relatos impressos que confirmem quando o samba, antes considerado “batuque de crioulos” de tradição africana, passa a ser reconhecido como gênero de música brasileira. Mesmo após essa denominação, o samba, no final do século XIX, ainda era tido como “selvagem” e de “gente de baixa estirpe”:

Ora, ao estabelecer a oposição entre opostos musicais pelo critério cultural de classe – o gosto das camadas baixas simbolizado no “samba d’almocreves”, o das elites na música das óperas italianas –, Lopes da Gama teve o cuidado de não cair no extremo de opor os batuques de negros às óperas de Rossini, o que já seria chocante demais. [...] Assim, a referência a um “samba d’almocreves” revelava-se perfeita para o caso, porque se a simples referência ao samba já comportava a ideia de contaminação com a música julgada de selvagem dos batuques dos negros, a preferência dos brancos por tal tipo de som só podia explicar-se em gente muito baixa – e os almocreves lidavam com mulas (TINHORÃO, 2012, p. 87).

Deve-se levar em conta que o jornal Carapuceiro era direcionado a pessoas da cidade, e que os batuques mais expressivos da época da escravidão haviam se deslocado para a zona rural, estabelecendo-se assim um maior contraste cultural, com o afastamento da cultura herdada pelos negros – ou seja, a “cultura baixa” – da “cultura refinada” das elites da cidade. Isso fortalece a ideia de que os batuques dos negros eram vistos como coisa do mato, de matuto, “selvagem” e quando migrou para as cidades, passou a ser marginalizado.

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2.1.2 Samba como dança dos negros

Di Cavalcanti. Óleo sobe tela, 33 X 55 cm, 1967.

Pode-se entender que nesse momento histórico, ou seja, no final do século XIX, o samba foi apresentado como uma dança dos negros, que ocorria ao som dos batuques. Tinhorão se atenta para o fato de que por volta de 1859 houve uma expedição científica pelo interior do Ceará, realizada pelo botânico Freire Alemão, vindo do Rio de Janeiro. Nessa expedição o botânico ouviu dizer que havia “um fado, que eles chamam de samba, onde se dançavam várias danças” (ALEMÃO apud TINHORÃO, 2012, p. 89). Ainda no século XIX, podemos observar que essas danças trazidas pelos negros saem dos terreiros e invadem as salas dos brancos, embora a princípio, segundo a expedição do botânico, houvesse muita repressão policial. O que se constatou por muitos anos após sua chegada às grandes capitais como Rio de Janeiro e São Paulo. Freire Alemão, ao saber do tal fado, logo quis conhecê-lo, mas foi alertado da impossibilidade disso: “como quase sempre há bebedeira, os delegados de polícia com dificuldade os consentem”19. Porém, abriu-se uma exceção devido à importância do visitante, e este ficou surpreso com o que presenciou, descrevendo a experiência em seus manuscritos:

Hoje de tardinha (dia 28 de junho de 1859) fui fazer minha visita à família do Senhor M.G. Valente, com o Capitão Justa; saindo de lá seriam 8 horas, o Justa me convidou para assistir a um samba de negros na casa do Senhor

19DAMASCENO, Darcy; CUNHA, Waldir da.(Catalogação e transcrição). “Os manuscritos do botânico Freire Alemão”. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1961, v. 81, p.219. 26

Crisanto, cunhado do Senhor Antero. Prontamente acedi, cuidando ir assistir a uma dança de negros em alguma palhoça ou senzala; mas fui surpreendido quando, chegando a casa do Crisanto, logo fora achar muita gente da principal de Pacatuba sentados em cadeiras fora da porta como aqui se acostuma. Entre outros estavam o subdelegado de Polícia Dr. Vitoriano, o Antero, o Juvenal, dois deputados provinciais filhos do Barão de Icó, que acabavam de chegar ao sertão naquele momento, e muitos mais outros senhores, e a sala de dentro estava cheia de senhoras (apud TINHORÃO, 2012, p. 90).

O botânico ainda descreve o quão admirado ficou com a da mesa, tanto de alimentos como de bebidas, e cita outras surpresas:

No quintal achamos uma grande roda de negros e negras, calculo mais de 100, escravos dessas famílias, e das mais de Pacatuba. Os instrumentos eram tambores, caquinhos com que atormentavam os ouvidos, e ainda mais com cantos, algazarras e vivas. As senhoras chegavam muitas vezes para a roda, assim como os homens, e assistiam com prazer as danças lúbricas dos pretos, e os saltos grotescos dos negros, que também fizeram jogo de pau, etc. Saindo dessa roda vinham para a sala tirar sortes, ou para a casa de jantar a comer, e beber. D. Maria Teófilo era incessante, e tomou grande interesse fazendo dançar os seus pretos, e designando-os pelos nomes, e esteve por muito tempo com uma vela na mão para alumiar melhor a cena (apud TINHORÃO, 2012, p. 90-91).

2.1.3 O Samba e a Literatura

Aqui vale observar a utilização do tambor, pois este é um instrumento que no século seguinte seria um elemento de identificação do samba. Outro aspecto importante é que nesse ambiente rural, brancos e negros estão mais próximos e isto ocorre via cultura africana. Tinhorão enfoca a questão da tatamba e observa que, assim como na zona rural, os pequenos centros urbanos ainda tinham como maior diversão o batuque dos negros. Na zona rural, os brancos não só observam como participam do batuque, sem o preconceito das elites dos grandes centros urbanos da época. O mesmo autor alerta para o fato de que os antigos batuques de negros ocorriam desde pelo menos o início do século XVII, mas estavam restritos apenas às áreas rurais. A partir do século XIX essas manifestações começam a ser tratadas como samba, e surgem várias descrições dessas danças na literatura brasileira:

De fato, nos vinte anos que medeiam entre o início da década de 1870 e fins de 1890, nada menos de três romances brasileiros têm capítulos intitulados “Samba” – Til, de José de Alencar, de 1872; Luizinha, de Araripe Jr., de 1878; A carne, de Júlio Ribeiro, de 1885 –,e em dois outros as descrições 27

desses batuques da área rural mostram cenas de dança de umbigada: o jongo do livro O Flor, de Galdino Fernandes Pinheiro, o Galpi, de 1885, e a “fonção de samba” (em que a toada era de baião à viola e havia improvisos em décimas como nos cocos) no romance D. Guidinha do Poço, do cearense Manuel de Oliveira Paiva (TINHORÃO, 2012, p.91-92).

Tinhorão, atenta para a questão da descrição dessas danças nos romances brasileiros, como reflexo dessa mistura, desse intercâmbio, entre brancos e seus escravos e colonos. Voltando à descrição da expedição do botânico fluminense, destaca-se a referência ao jongo, que, assim como a umbigada, é uma dança tipicamente africana, introduzida nos eventos nos quais o samba também estava presente. No romance O Flor de Galdino Fernandes Pinheiro descreve como os escravos em Mangaratiba, Rio de Janeiro, desfrutavam de suas folgas de domingo: “dançando, ao som de seu rouco tambu, o jongo, dança primitiva e selvática, mas animada e curiosa”(TINHORÃO, 2012, p. 92). Descreve o romancista:

Salta o cantor a voz em nota aguda, percorrendo o espaço em circulo, fechado pelos dançantes, com passos lentos e pausados; repete variando as palavras a sua endecha, cuja última, com a toada que lhe deu, é o ponto. Todos em choro [em coro] repetem-no também batendo palmas. A voz do cantor domina as outras e ergue o poema. Já salta ele à esquerda, fazendo trejeitos; sacode o corpo todo com febril tremor; salta ainda, iludindo, em frente desta dançarina, e vai bater com o ventre no daquela outra; sobre os ombros desta as mãos repousa, cinge-se pelas costas e dá-lhe uma embigada! Sai então esta ao convite; volteia sobre os pés, visando a roda; sacode os ombros desprezando o primeiro, que a encara e lá vai batendo a coreia dar a embigada naquel’outro, que grita contente e espaneja-se na alegria da dança (PINHEIRO, 1885, p. 79-80 apud TINHORÃO, 2012, p. 92).

2.1.4 O samba como Dança

O que se pode entender a partir dessas citações é que no interior do Nordeste, na zona rural, a troca cultural se dava de maneira mais expressiva, havendo “maior colaboração branco-mestiça”. Tinhorão descreve essa colaboração apontando a utilização da viola no samba de terreiro, que desde a Bahia até o sul do país era denominado lundu; a viola é mencionada no capítulo “O samba” do romance Luizinha, de Tristão de Alencar Araripe Jr., de 1878 (mas o instrumento já aparecera seis anos antes, em 1872, no jornal Constituição):

As violas temperaram-se; os cantores entoaram a louvação de costume ao dono da casa e à dona da casa, e das unhas dos tocadores nasceu um baiano rasgado, capaz de fazer estremecer ao mais bisonho filósofo (ARARIPE JR., 1979, p. 79 apud TINHORÃO, 2012, p.93). 28

Atentamo-nos para o fato de que a viola, é um forte elemento da cultura caipira paulista, também. Aqui o autor chama a atenção para o fato de que, mesmo chamando o samba de “dança do baiano”, Tristão classificava como sambista aquele que dançava nas rodas, e ressaltava sempre a presença dos negros e mestiços nessas rodas, no terreiro. Daí surge o samba de roda nordestino, o baião, o lundu, o samba.

[...] pois havia umbigada (“e parou defronte do camarada”) e até a rasteira ou pernada própria das futuras rodas de batucada da Bahia e do Rio de Janeiro, ter comparado a ginga do “Sambista” com a expressão “quebrando o coco”, que indicava a presença, no sertão cearense, de outra dança saída dos batuques de negros: o coco de umbigada, comum a Alagoas, Pernambuco e Paraíba(TINHORÃO, 2012, p.94).

Ao fazermos um passeio pela formação histórica do samba, rapidamente associamos este com a dança. As danças e os cantos do gênero, herdeiros dos batuques dos séculos XIX e XX – assim como o lundu, a fofa, e o fado –, já nasceram predestinados a uma ascensão social, tanto por brancos como por mestiços das baixas camadas. A fofa e o fado foram transformados em dança e canção “nacionais”, já o lundu chegou como canção nos salões das elites. Segundo Tinhorão (2012), outros estilos oriundos da cultura africana estiveram por aqui como expressões de negros e mestiços distribuídos pelo Brasil. De acordo com o autor, os romances que primeiro se utilizaram da expressão do samba foram os naturalistas, como A carne, de Júlio Ribeiro (1940), que se passa em uma fazenda de café, mas desta vez na região sudoeste de São Paulo – onde o autor descreve uma dança de negros “no terreiro varrido, em frente às senzalas”. Segundo a análise de Tinhorão, essa descrição reforça ade Galpi para a área do litoral: Negros e negras, formados em vasto círculo, agitavam-se, palmeavam, compassadamente, rufavam adufes aqui e ali. Um figurante, no meio, saltava, volteava, baixava-se, erguia-se, retorcia os braços, contorcia com pescoço, revolvia os quadris, sapateava em um frenesi indescritível, com uma tal prodigalidade de movimentos, com um tal desperdício de ação nervosa muscular, que teria estafado um homem branco (RIBEIRO, 1940, p. 105 apud TINHORÃO, 2012, p. 95).

Júlio Ribeiro (1940) contribui na descrição desses eventos com um registro de versos apresentados nesses batuques: Serena pomba, serena; Não cansa de serená! O sereno desta pomba Lumeia que nem metá! Eh! Pomba! Eh! 29

E a Turba repetia em côro: Eh! Pomba! Eh!

O autor ainda nos mostra como Júlio Ribeiro reproduzia a cena:

[...] os que não dançavam, que não tomavam parte no samba, agrupavam-se aos magotes, acotovelando-se; olhavam em silêncio enlevados, absortos. Do solo batido pelo tripudiar de tanta gente erguia-se uma nuvem de pó, avermelhada pelo clarão da fogueira (RIBEIRO, 1940, p. 107 apud TINHORÃO, 2012, p.95-96).

Tinhorão destaca, no centro-sul brasileiro, os batuques dos negros e mestiços que aconteciam nas fazendas de produção de café, descritos nos romances O Flor, de Galdino Fernandes Pinheiro e, A carne, de Júlio Ribeiro, ambos de 1885. O autor alerta para o preconceito de outros escritores, que também descreviam esses fenômenos de origem africana. Segundo Tinhorão, esses eram incapazes de enxergar tais fenômenos de “fermentação sociocultural” que aconteciam diante de seus olhos. Para o autor, um dos que não compreenderam esse processo foi José de Alencar; em 1872, no seu romance Til, no capítulo “Samba”, ele descreve “brincadeiras” de negros escravos que aconteciam nas fazendas do interior de São Paulo. De acordo com Tinhorão, Alencar reduziu a realidade a visões impressionistas, como em: “dançavam os pretos o samba com frenesi que toca ao delírio” (apud TINHORÃO, 2012, p. 96). Na Bahia corta-jaca era o nome dado ao samba de roda, que, segundo Tinhorão, jamais poderia ser dançado por alguém que carregasse outro nas costas.

[...] E o ridículo a que essa concessão ao preconceito expôs José de Alencar nesse ponto cresce ainda mais quando, além do “rabanar como um peixe em seco” jamais ter constado de qualquer descrição das danças de batuque, fica- se ainda sem saber como um pai, levando o filho sobre os ombros, poderia atirar-se no chão e “rabanar como um peixe” sem atirar a criança longe. (TINHORÃO, 2012, p. 96-97)

Pode-se concluir então que José de Alencar, em seu romance nacional regionalista, preocupou-se mais com a ficção do que com a descrição real do samba no interior de São Paulo, o que foge ao tema deste trabalho. Deve-se levar em consideração a contribuição desses romances do século XIX, de grande relevância na história do processo de aculturação afro-brasileira, que, segundo Tinhorão, observa-se tanto na música como na dança e nas formas de canto. O autor atenta para uma contribuição fundamental nesse sentido, referente a um romance escrito entre 1891 e 1892, mas que só veio a ser publicado em 1952, sessenta anos depois da morte do seu autor. 30

O romance é D. Guidinha do Poço, do cearense Manuel de Oliveira Paiva. Na obra, em que o realismo da narrativa soma-se à utilização da linguagem coloquial, há a descrição de uma cena de samba de matutos que, para Tinhorão, é de uma precisão raramente alcançada na literatura brasileira. Trata-se, assim, de uma contribuição documental-ficcional, pois mostra como ocorreu, no sertão nordestino, esse “fenômeno sociocultural da transformação, do caos sonoro dos batuques primitivos nas formas de danças de roda com umbigadas e cantos em coro e, solos que receberam o nome de samba” (TINHORÃO, 2012, p.97). Ainda tratando da contribuição do romance de Manuel de Oliveira Paiva, Tinhorão destaca que este descreve o início do baião, além de pormenorizar o “choque o qual foi verificado no Ceará entre os tipos de danças negro-escrava e crioula, estes criados nos núcleos populares de predominância negra da Bahia para o sul, assim sendo a realidade cultural da zona de cantoria mestiço-cabocla da viola sertaneja” (TINHORÃO, 2012, p.97), como se pode observar no trecho reproduzido a seguir.

Neste fordunço, a cantoria se perde quase toda! – fez-lhe ver o Silveira. Eu não gostei nunca de cantá em samba pro mó disso mesmo. No pinho, outro galo me cantava, eu dicidia cá a meu gosto. Mas também, a bem dizê, só aprecio hoje im dia baião de ponta de unha, bem explicado na negra, como eu cá sei. Home! Essa fonção de samba só mesmo pa quem qué se metê na vadiação...(PAIVA, 1952, p. 89 apud TINHORÃO, 2012, p. 98).

2.1.5 O Samba e a Viola

Dando o devido lugar à viola, segundo Tinhorão, o romancista Paiva, apresenta o violeiro como alguém de tradição mestiça e sertaneja, com uma “cantoria contraponteada pelos rojões ou baiões às violas”, e que não estava interessado em animar rodas de samba com cantos melódicos, mas sim ao toque de acompanhamento de cantoria do improviso ou desafio, e este pelo seu ponteado, que realmente se fazia não no fácil rasgado, mas na “ponta de unha.” (TINHORÃO, 2012, p.98). Tinhorão elogia a precisão de detalhes de que o romancista se utiliza na sua descrição, “mostrando como a dança-cantoria do baião constituía, na verdade, uma forma de samba sertanejo” (TINHORÃO, 2012, p. 99).

Os cantores largavam a goela no mundo, impregnando no verso a volúpia do baião: Todo branco quer ser rico, Todo mulato é pimpão, 31

Todo o cabra é feiticeiro, Todo o caboclo é ladrão! Viva seá D. Guidinha, Senhora deste sertão (PAIVA, 1952, p. 90 apud TINHORÃO, 2012, p. 99).

Ainda nos atendo nessa análise de Tinhorão sobre o romance de Paiva, devido à sua grande importância na descrição detalhada do samba no nordeste cearense, cabe ressaltar a “fonção de samba” à qual se refere o personagem Silveira, que, tal como o chamado fado carioca– esse descrito por outro romancista, Manuel Antônio de Almeida –, não se poderia classificar “apenas como dança e ritmo determinados, mas uma sequência de diferentes toques e cantorias, comandadas no caso desse samba sertanejo pela cadência das violas e as batidas características do baião ou rojão” (ALMEIDA apud TINHORÃO, 2012, p. 99):

Prolongavam muito determinadas sílabas num misto de canto e aboiado, e principalmente o final do último verso. Às vezes a modulação parecia ir com aquele pinotear cadenciado do rojão (TINHORÃO, 2012, p. 100):

O fogo nasce da lenha, A lenha nasce do chão; O amor nasce dos olhos, O afeto do coração; A ira vem de repente, Mas a raiva vem do cão; Amizade vem da estima, Do fervor a gratidão, O homem dá valimento Mas só deus dá salvação... Menina dá-me teus braços, Que eu te dou meu coração! Todo letrado é ladino, Todo o fraude é mandrião... Viva senhor Secundino Pessoa de estimação! (PAIVA, 1952, p. 90 apud TINHORÃO, 2012, p.100).

Na análise dessa passagem do romance de Paiva, Tinhorão afirma que não há mais dúvida quanto aos caminhos tomados pelo samba:

A esta altura não havia dúvida de que o baião mestiço sertanejo havia degenerado em samba do tipo negro-brasileiro de inspiração africana, pois Secundino queixava-se de não conseguir ouvir todos os versos (“mas é uma zoada dos seiscentos, muita coisa se perde!”) e, em dado momento, aparece a clássica umbigada indicada pelo emprego, na descrição, do verbo atirar. Atirar em alguém, numa dança de roda, é convocar essa pessoa para o centro 32

do terreiro com um avanço frontal do corpo, simulando (ou aplicando) uma umbigada (TINHORÃO, 2012, p.100).

Carolina vem, e atira no Secundino./–Não pode arrecusá! Não faça desfeita!/ a outra, que era a Mercês de Seu Antonio, atirou no Silveira. Secundino estava demorando por denguice, que isso de cara de pau ele a tinha bastante./ – Vom’bora, home! Deixe de custo, que muié tão esperando por nós./ Saiu enfim Secundino, debaixo de ah! geral de satisfação (PAIVA, 1952, p. 90 apud TINHORÃO, 2012, p. 100-101).

Segundo Tinhorão, após esse se debruçar sobre o romance de Manuel de Oliveira Paiva, pode-se crer que agora trata-se de um samba no estilo “negro-baiano ou sulista”, ou seja, os antigos batuques passam a se apresentar no final do século XIX. Isso porque, na descrição de Paiva, a dançarina já aparece nas rodas de batuque dançando “miudinho”, de maneira tal que seu “remelexo” era apenas da cintura para baixo, como se observaria daí por diante nas rodas de samba.

Nesse seu romance D. Guidinha do Poço, Manuel de Oliveira Paiva deixa perceber claramente, aliás, as diferenças já alcançadas ao final dos oitocentos pelas danças populares de terreiro (sempre muito presas à sua raiz negro- africana) e as de salão, dirigidas às expectativas de “modernidade” da burguesia dos senhores de terra locais e da pequena classe média composta por profissionais liberais, funcionários públicos e gente do comércio das pequenas comunidades urbanas, ou vilas. Contava o romancista, referindo-se às festas das famílias brancas pela época de São João [...] (TINHORÃO, 2012, p. 102).

Bailes e mais bailes. Criara-se um clube, à imitação do da Capital (Fortaleza). Justo contentamento para Lalinha (a jovem Eulália, fila do juiz local, namorada de Secundino). Só a Sanção social da dança poderia entregá- la de seu ao braço do cavalariano tão ebriamente arrochado (vigiado de perto) pela tirana do Poço da Moita (D. Guidinha, a todo-poderosa fazendeira) (PAIVA, 1952, p.102 apud TINHORÃO, 2012, p. 102).

Seguindo a análise de Tinhorão a respeito desse romance, o clube citado havia sido construído no século XVIII e imitava o clube existente em Fortaleza e, para a personagem Lalinha era como um palácio. Os frequentadores desse clube eram as comunidades urbanas que tinham origem na área rural, assim “coexistia”, no mesmo momento histórico, com os sambas de terreiro dos negros e gente das camadas mais baixas. Revelava-se para os conservadores pais de moças, uma novidade que aceitavam com desconfiança, como também mostrava o Manuel de Oliveira Paiva. (TINHORÃO, 2012, p. 103). Assim, quando, pelo despontar do século XX, a aceleração da diversidade social, decorrente da nova divisão do trabalho estabelecida pela produção urbano-industrial, aprofundou essas diferenças no campo cultural, a dicotomia se consolidou: os brancos das camadas média e alta passaram a contar com formas próprias de lazer (bailes, festas de clubes, teatros, 33

espetáculos musicados, discos, fitas e vídeos); os negros, mestiços e brancos das classes mais baixas continuaram herdeiros dos batuques, cultivando até hoje a batucada, o bate-baú, o lundu, o coco, o caxambu, o jongo, o tambor de crioula e todas as modalidades surgidas no calor dos sambas. Inclusive o próprio samba e o velho partido alto, ainda tão populares e tão cheios de sabor que a própria indústria de massa não hesitaria em revivê-los comercialmente na década de 1980 sob o nome de pagode (TINHORÃO, 2012, p. 104).

2.1.6 A Diáspora do Samba

Ainda nos atendo à extensa obra de Tinhorão, podemos abordar o samba e a marcha como produtos urbanos. Segundo o autor, esses gêneros musicais são reconhecidos como ritmos tipicamente cariocas, pois os dois marcaram presença por aproximadamente sessenta anos (de 1870 a 1930), após a decadência do café na região do Vale do Paraíba, acarretando uma liberação de mão de obra escrava que se somou às outras camadas populares do Rio de Janeiro. Segundo Tinhorão, esses gêneros musicais são os verdadeiros representantes da cultura urbana do Rio de Janeiro. É claro que podemos entender que o autor é reconhecido como um defensor da cultura brasileira e grande crítico da cultura de elite, tanto que, segundo ele, o samba e a marcha criaram ritmos específicos e capazes de atender a essas necessidades de representantes da cultura urbana brasileira, que começa a ser representada no início do carnaval de rua carioca: “das lentas passeatas dos ranchos e à procissão desvairada dos blocos e cordões carnavalescos” (TINHORÃO, 2012, p. 18). A marcha e o samba são produtos do carnaval, mas do carnaval dos negros e das classes mais baixas, assim pode-se entender o porquê desses estilos serem expressões próprias desses segmentos sociais; foi daí que surgiram, segundo o autor, a primeiras expressões culturais urbanas do Brasil, até então o que havia culturalmente eram expressões “importadas”: Até então, o que havia era a música operística da elite (que eventualmente cultivava a valsa e a modinha), os gêneros estrangeiros das polcas, schottisches e quadrilhas, importados para uso das camadas médias e “populares”, e, finalmente, o batuque, de sabor africano, exclusivo dos negros que formavam o grosso da camada mais baixa, mas aos quais não se poderia chamar de povo. (TINHORÃO, 2012, p. 17).

De acordo com Tinhorão, após Mário de Andrade, a música popular brasileira caminhou de maneira diferente do até então apresentado, sempre com uma conotação 34

folclórica. No seu primeiro livro, Tinhorão já se dedicava ao estudo sobre o surgimento do samba e sua relação com a música popular brasileira:

Com a honrosa exceção de Mário de Andrade, e de alguns poucos estudiosos mais, as manifestações de cultura urbana foram sempre definidas depreciativamente como “popularescas”, como no caso dos folcloristas (que se interessam pelo povo com o paternalismo de autênticos senhores feudais da cultura. (TINHORÃO, 2012, p.13).

Direcionando o olhar para a questão do surgimento do samba e da marcha e, por consequência, para a origem do carnaval carioca, pode-se utilizar das pesquisas antropológicas de Tinhorão nos anos 1960. O autor buscou percorrer o caminho trilhado pelo samba, ora por depoimentos, ora por documentos, também pelos discos gravados desde o princípio da história do samba, pois antes dessa compilação de dados realizados por Tinhorão, pouco se tentou construir essa historiografia da música popular brasileira e o samba como o principal representante da nação Brasil.

[...] A nascente classe média do Segundo Reinado desde meados do século resolvera o seu problema de participação na festa coletiva com a criação dos préstitos imitados do carnaval veneziano. As camadas mais baixas, entretanto, sem recursos financeiros para a armação de carros alegóricos, tiveram que criar uma forma própria de expressão. E eis como nasceram os ranchos (TINHORÃO, 2012, p. 18).

Nesse ponto, a história começa a nos fornecer mais detalhes da trajetória do samba pelo Brasil e suas representações sociais. Convém ressaltar que temos nos valido sempre de um método comparativo, o que se aplica tanto na imitação europeia do carnaval veneziano pelas classes mais privilegiadas, como no nascimento dos ranchos como uma forma de expressão para os menos abastados – desta vez, porém, há uma herança nordestina, mais precisamente da população baiana que se deslocou para o Rio de Janeiro, e que já tinha incutido o ritmo dos tambores africanos. Então, o que se compara aqui são as relações do samba (carnaval) versus o carnaval veneziano, se tratando das classes mais privilegiadas, enquanto e o nascimento dos ranchos cariocas versus tambores africanos, uma herança dos negros vindos da Bahia. Assim compara-se a semelhança entre os ranchos cariocas com os baianos e a semelhança entre o carnaval carioca dos mais abastados com o carnaval veneziano. Pode-se avaliar que essa é uma máxima da classe média e alta brasileira no decorrer da história, a imitação do velho mundo.

Os ranchos carnavalescos, que representam a primeira manifestação popular do Rio de Janeiro, constituíram uma adaptação dos ranchos dos Reis 35

Nordestinos e devem a sua estilização aos baianos que formavam o grosso dos moradores da zona da saúde. A zona da Saúde, ao longo da hoje Rua Sacadura Cabral, além da Praça Mauá, era o local dos trapiches onde se movimentava a mercadoria de exportação, principalmente o café do Vale do Paraíba. Para o transporte das sacas de 73 quilos exigia-se um tipo de trabalhador rijo e musculoso, que era sempre o trabalhador escravo. Com a decadência da cultura do café no Rio de Janeiro e a abolição da escravatura, essa mão de obra rural liberada convergiu para a Corte, onde o trabalho urbano mais compatível com a sua falta de qualificação e a força dos seus músculos era o trabalho do porto. Esses trabalhadores baianos – que assim têm explicada sua presença numerosa no bairro da Saúde – eram os mais habilitados a impor o seu estilo à crescente massa popular da cidade por uma razão fundamental: eles procediam do recôncavo baiano, onde a multiplicação dos pequenos portos permitira sempre uma relação tão dinâmica entre comunidades negras que, com o correr dos anos, se tornara possível obter nos campos da religião, da música e dos costumes uma síntese brasileira da cultura africana (TINHORÃO, 2012, p.18-19).

Um desses costumes citados acima, foram os ranchos carnavalescos cariocas que foram criados por esses negros baianos por volta de 1870, esses ranchos utilizados no carnaval carioca teve sua origem nas camadas populares baianas, essa camada de negros ex- escravisados que trouxeram a sua cultura afrodescendente para o Rio de Janeiro nessa construção do que seria o samba nacional, mas há que se ressaltar, que esse samba carioca, veio com os negros da Bahia no apoio a construção do símbolo representante da cultura nacional inerente do batuque de origem africana.

Ora, nesses ranchos, onde se cantavam em marcha as quadras e as solfas mais populares entre os negros da Bahia, também se “arrojava o samba”, isto é, também se incluía um ritmo e um sapateado que nada mais eram do que uma estilização da vigorosa coreografia do batuque (TINHORÃO, 2012, p.19).

2.1.7 O Samba como produto Nacional

Entremos, agora, nas primeiras composições artísticas representantes desse gênero musical, tipicamente reconhecido como produto pertencente à cultura brasileira. Atentando- nos a questão da escolha dos representantes do samba, e para o fato de que estes representantes, nem sempre vindos dos morros e, nem sempre negros, se apropriavam do que ouviam dos negros nas ruas e, assim apresentavam o samba.

Quando a maestrina Chiquinha Gonzaga compôs em 1899 a marcha “Ô Abre alas”, a pedido dos crioulos componentes do cordão Rosa de Ouro, nada mais fez que aproveitar – segundo ela mesma confessaria – o ritmo 36

marchado que os negros imprimiam às músicas bárbaras que cantavam enquanto avançavam pelas ruas entre volteios, requebros e negaças (TINHORÃO, 2012, p.19).

O Complementado essa passagem histórica da pesquisa de Tinhorão – pois este realizou um trabalho de grande relevância no que tange à recuperação e ao detalhamento do surgimento do samba, assim como à formação da identidade cultural brasileira –, saindo do século XIX e adentrando o século XX. Além dessa analise deve-se entender que a música, o samba não pode ser tratado como simples representação artística, pois a música se utiliza de diversas linguagens verbais e não verbais. Além disso, o samba era um catalisador de povos, tanto negros como brancos, tanto pobres como a elite, tanto rurais como urbanos.

Essa identificação com o gosto das demais comunidades urbanas do Brasil era compreensível, pois desde a segunda metade do século XIX o teatro de revista da Praça Tiradentes, com suas cinco famosas casas, somadas a outras fora de sua área – o Apolo e o Teatro da Exposição de Aparelhos de Álcool, na Rua do Lavradio, o Rio Branco e o Chantecler, na Av. Visconde de Rio Branco, e o Palace Theatre, da Rua do Passeio –, já atraíam todo um público flutuante de provincianos fascinados pelas “novidades” do Rio de Janeiro. Assim, nada mais evidente do que, a partir da primeira década do novo século em diante, a preocupação demonstrada pelos compositores populares em procurar incluir suas músicas em números de revistas, como primeiro passo para torná-las nacionalmente conhecidas. [...] O resultado disso foi que pôde datar de então a alternância de relações entre a música popular e o teatro de revista: ora a revista lançava música para o sucesso em todo o país ora o sucesso nacional de uma música era aproveitado para atrair público para o teatro(TINHORÃO, 2010, p. 249).

A partir de 1911, o empresário Pascoal Segreto estimula o acesso da população ao teatro, abrangendo um público pagante cada vez mais numeroso e mais eclético: “cobrando apenas quinhentos réis por lugar na geral” (TINHORÃO, 2010, p. 249). Esse episódio, além de fomentar o acesso à cultura, também fortaleceu as características dos tipos populares.

[...] na base do aproveitamento de tipos populares como o matuto, o coronel fazendeiro, o português, a mulata, o guarda, o capadócio (o fadista português depois chamado de malandro no Brasil), o funcionário público, o camelô, etc., e fez uma pequena humanidade dançar e cantar durante meio século ao som das maiores criações musicais e coreográficas das grandes camadas do povo – o lundu, o maxixe e o samba (TINHORÃO, 2010, p. 250).

A passagem acima se refere ao início de um processo de divulgação da cultura de forma mais massificada, alcançando o teatro de revista, em uma manifestação cultural ainda 37

mais forte e que se tornaria um fenômeno reconhecido mundialmente como tipicamente brasileiro. As possibilidades abertas para os compositores pela comunicação direta entre a revista e o povo, principalmente no que se referia ao aproveitamento do tema do Carnaval, começaram a aparecer de forma clara inclusive através de fatos imprevistos, como aconteceu no Carnaval de 1911, quando um fado composto pelo brasileiro Nicolino Milano para a revista portuguesa ABC encenada no Rio em 1909, o “Fado Liró”, apareceu cantado pelo povo, nas ruas, com ritmo de marcha. E o mais curioso é que, no ano seguinte ao desse Carnaval em que o fado português de um brasileiro se transformara em marchinha foliona de rua, uma marcha composta pelo português Filipe Duarte para a revista O país do vinho – estreada no Teatro Recreio em junho de 1910 e aí reprisada em 1911 – transformar-se-ia, abrasileirada, em um dos mais constantes sucessos do Carnaval no Brasil a partir daquele ano de 1912: “A Vassourinha” (TINHORÃO, 2010, p. 250).

Ganham maior visibilidade essas novas formas de expressão artística, com o surgimento de nomes que entrariam para a história da música popular brasileira.

Ao lado de Costa Júnior e de Chiquinha Gonzaga, outros músicos de teatro dessa fase pioneira, anterior à ascensão de compositores da própria camada popular, tentaram esforçadamente adaptar sua formação semierudita ao gosto das camadas mais amplas da cidade (TINHORÃO, 2010, p.254).

Nesse período histórico houve quebra de paradigmas para a construção da identidade cultural brasileira. Surgem novas formas artísticas, assim como movimentos culturais começam a emergir das camadas antes excluídas. As novas manifestações artísticas são muitas vezes semieruditas – ou seja, de inspiração erudita, mas propondo uma nova construção –, somando-se a influência europeia às expressões dos negros. É o caso da marcha, inspirada nos batuques dos negros. Assim, essas culturas distintas imbricam-se uma na outra, resultando em uma expressão de características tipicamente brasileiras, abrindo caminho para a construção da identidade nacional.

Com essa conquista final das últimas camadas da população do Rio de Janeiro (cidade que alcançava seu primeiro milhão de habitantes ao fim da Primeira Guerra Mundial4), o espírito dos novos espetáculos teria de seguir mesmo o caminho aberto em 1912 por Luís Peixoto com sua burleta Forrobodó, e por ele mesmo retomada em 1918 com as revistas Flor de Catumbi e Saco do Alferes: o do aproveitamento dos tipos populares, que inclusive subiriam ao palco na figura de artistas saídos do picadeiro (como Araci Cortês e Francisco Alves), ou se fariam representar por suas músicas nos espetáculos, como seriam os casos dos compositores negros e mulatos Sinhô, Caninha, João da Gente, Donga, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, Alcebíades Barcelos e tantos outros.

4 O Censo geral de 1920 deu para o Rio de Janeiro 1.147.599 habitantes, 800 mil concentrados no perímetro urbano e os restantes 300 mil nos subúrbios. 38

Eis como se poderia explicar que a partir de 1917, quando Henrique Júnior aproveita o sucesso do primeiro samba lançado em disco, o “Pelo Telefone”, para sob esse nome estrear sua revista no Teatro Carlos Gomes, não viesse a passar mais um único ano sem que a música popular – agora produzida para gravação em disco - deixasse de figurar como atração nos palcos da Praça Tiradentes (TINHORÃO, 2010, p.256-257).

2.1.8 O Samba e a política

Essas novas expressões artísticas oriundas do samba, por exemplo, as danças, os cordões, os ranchos, até o carnaval de rua, começam a ter visibilidade, sendo assim, acabariam por ser utilizadas por Getúlio Vargas no seu projeto nacional. Um “processo de popularização do samba era iminente, mas certamente a política de Vargas contribuiu para a sua consolidação no panorama nacional”20. É inquestionável a importância histórica dessa atitude política, que fomentou na nação um novo sentimento: o de pertencimento, seja na arte erudita, seja na arte popular. Dessa forma, inicia-se o chamado projeto nacional. Esse projeto político foi de grande contribuição no aproveitamento das potencialidades brasileiras, pois trouxe à luz as representações culturais das camadas mais baixas, somando-se às outras formas de expressão, o que se deu principalmente na música e, de forma muito significativa, no samba.

No plano cultural, o espírito de aproveitamento das potencialidades brasileiras que informava a chamada nova política econômica, lançada pelo governo Vargas, encontrava correspondente nos campos da música erudita com o nacionalismo de inspiração folclórica de Villa-Lobos, no da literatura com o regionalismo pós-modernista do ciclo de romances nordestinos e, no da música popular, com o acesso de criadores das camadas baixas ao nível da produção do primeiro gênero de música urbana de aceitação nacional, a partir do Rio de Janeiro: o samba batucado, herdeiro das chulas e sambas corridos dos baianos migrados para a capital (TINHORÃO, 2010, p.304).

Aqui se inicia, então, uma nova etapa na construção de uma identidade nacional, o que se reflete tanto na música lírica como na literatura e na música popular, que tratam em sua maioria de temas tipicamente nacionais, fazendo com que cada grupo social sinta-se representado.

De fato, desde que o samba inspirado nos improvisos surgidos entre gente de partido alto das casas das tias baianas da velha zona portuária e dos antigos mangues da Cidade Nova surgiu em 1917 como sucesso em toda a cidade,

20 Conta o músico e historiador Magno Bissoli, autor da tese de doutorado “Caixa Preta: samba e identidade nacional na Era Vargas. Impacto do samba na formação da identidade na sociedade industrial: 1916-1945”, apresentado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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divulgado pelos discos, a nova geração de músicos cariocas (vários deles filhos de baianos, como o próprio Donga), partiram para a produção de composições do mesmo estilo, desde logo bem aceites pelos editores de música. [...] Todos esses sambas já produzidos para gravação em disco nessa primeira fase que se estenderia de 1917 a 1927 – ano que marca o fim das gravações mecânicas e o advento do sistema elétrico – guardam entre eles a marca sonora do seu parentesco com os sambas do partido alto dos baianos, que soavam ainda como eco de suas origens rurais no Recôncavo. Foi então preciso que uma nova geração de talentos, já agora saídos das camadas baixas cariocas, igualmente herdeiras de uma tradição local de sambas de roda à base de estribilhos (muitos deles com experiência carnavalesca em ranchos de bairros), fizesse sua entrada no cenário da criação popular no Rio de Janeiro com a contribuição definitiva para a carreira comercial do gênero: o samba batucado e marchado do Estácio (TINHORÃO, 2010, p.305).

Assim, segundo o autor, essa população do Estácio, de origem pobre, composta de ex- escravisados, levados pela reforma urbana a morar nos morros, muitos vindos da Bahia, outros do Vale do Paraíba, traziam da sua ancestralidade africana uma cultura que se tornaria representante da cultura nacional. Assim durante o período do carnaval, os moradores do Bairro do Estácio encorpavam a concentração dos foliões da Praça Onze, nesta praça, desde os anos 1920, reuniam-se os foliões com menos recursos, também aos primeiros grupos de pobres que chegam decorrente das reformas urbanas para morar nos morros, isto por volta de 1928, eles viviam em atrito com a polícia. Mas desta mistura de povos recém-chegados, na sua maioria descentes africanos, surge a formação de um bloco para sair no carnaval ao som de sambas, enquanto os ranchos saíam ao som de marchas.

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2.1.9 O Samba, o Racismo e os conflitos sociais

Um racismo muito particular marca o Brasil: negado publicamente, praticado na intimidade. Das origens coloniais do país aos dias de hoje (...) por trás do mito da convivência pacífica o da exaltação da miscigenação, na prática, a velha máxima do “quanto mais branco melhor”. Nunca foi totalmente deixado de lado. (Schwarz, Lilia, 2012)

Lilia Schwarz (2012) trata da questão do branqueamento apontando, inclusive dados de pesquisas no decorrer da história que indicam que este tema está longe de ter fim. Pontua os momentos e as dicotomias, desde o inicio da colonização até os dias atuais. Voltemo-nos ao momento em que o samba, ainda está à margem da sociedade estabelecida, convém observarmos a análise sociológica de Norbert Elias (2000), em que a dicotomia acompanha a história da humanidade, pois há sempre, ou quase sempre, um lado se opondo ao outro e, mais que isso, pode-se dizer que sempre haverá um grupo estabelecido que sente-se superior e, dessa forma, fechado ao oposto, ao contrário, colocando esse outro à margem da sociedade estabelecida. Norbert Elias (2000) trata desse conflito na citação a seguir:

Essa é a auto imagem normal dos grupos que, em termos do seu diferencial de poder, são seguramente superiores a outros grupos interdependentes. Quer se trate de quadros sociais, como os senhores feudais em relação aos vilões, os “brancos” em relação aos “negros”, os gentios em relação aos judeus, os protestantes em relação aos católicos e vice-versa, os homens em relação às mulheres (antigamente), os Estados nacionais grandes e poderosos em relação a seus homólogos pequenos e relativamente impotentes, quer, como 41

no caso de Winston Parva, de uma povoação da classe trabalhadora, estabelecida desde longa data, em relação aos membros de uma nova povoação de trabalhadores em sua vizinhança, os grupos mais poderosos, na totalidade desses casos, veem-se como pessoas “melhores”, dotadas de uma espécie de carisma grupal, de uma virtude específica que é compartilhada por todos os seus membros e que falta aos outros. Mais ainda, em todos esses casos, os indivíduos “superiores” podem fazer com que os próprios indivíduos inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de virtudes – julgando-se humanamente inferiores (ELIAS, 2000, p.19-20).

Nota-se, na citação acima, que os outsiders interiorizaram de tal forma a ideia de exclusão que havia certo conformismo de que eram realmente inferiores. Já se voltarmos nossos olhares para 1928, no Rio de Janeiro, percebe-se que nesse caso não havia o mesmo aceite, pois os moradores do morro haviam trazido sua cultura para o centro urbano da cidade, mas a exclusão era nítida. Os negros vinham para o Carnaval de rua do Rio de Janeiro, mas continuavam excluídos, pois os carros alegóricos inspirados no carnaval europeu não eram acessíveis a certos segmentos sociais. Segundo Tinhorão, os negros, pobres e mestiços saíam em blocos e faziam ranchos. Pode-se analisar esses fatos por outra vertente: a da compreensão dessas dicotomias por meio da noção de configurações, esta elucidada por Elias e Scotson (2000) na obra Os estabelecidos e os outsiders, pois os Outsiders são os de fora, que estão à margem de uma sociedade:

As comunidades e bairros são um tipo especifico de configuração. O estudo mostrou o alcance e as limitações das opções que elas davam aos indivíduos que as compunham. Podemos imaginar um recém- -chegado que se instalasse no loteamento ou na “aldeia”. Quer chegasse sozinho ou com a família, ele certamente disporia de algumas alternativas. Poderia, como fizeram muitas pessoas do loteamento, “manter sua reserva”. Poderia seguir a minoria desordeira. Poderia tentar penetrar lentamente na sociedade da “aldeia”. Poderia decidir rapidamente que nem a “aldeia” nem o loteamento lhe convinham como bairros e se mudar. Mas, caso permanecesse, tornando-se um “vizinho”, não teria como deixar de ser apanhado nos problemas configuracionais existentes. Seus vizinhos começariam a “situá-lo”. Cedo ou tarde, ele seria afetado pelas tensões entre os “estabelecidos” e os “outsiders” (ELIAS, 2000, p. 184-185).

Nessa analogia de estabelecidos e outsiders de Winston Parva com o Brasil, o Rio de Janeiro pretendia mostrar que, quando se modifica uma configuração social, há conflitos entre os já estabelecidos e os que vêm de fora, ou outsiders, pois nesses dois contextos há questões como a violência, a discriminação e a exclusão social. Os que ali estavam cultivam valores como da tradição e da boa sociedade, e os que estão chegando são estigmatizados por toda sua bagagem associada à anomalia social, como delinquência e violência, além de estarem 42

desintegrados da nova realidade. Se nos determos aos ex-escravisados, isso fica ainda mais nítido. Aqui também os outsiders se estabeleceram na exclusão, habitando os morros, que formam as hoje tão conhecidas favelas. Convém convidar a este debate o sociólogo inglês Paul Gilroy (2012), que aborda a questão da música negra e a politica da autenticidade, Gilroy trata dos paradigmas que permeiam o conceito de nação, povo, raça e etnia. O sociólogo chama a atenção para o fato de que estes conceitos são importados, aliás, Gilroy mostra a questão de que os negros britânicos, os líderes e intelectuais negros, conseguiram através da construção de ideias originais sair de uma condição de subjugo somando ideias e se posicionando perante ideias negras e brancas , produzindo intercâmbio de ideias, num mundo globalizado. Se colocar como cidadão cosmopolita e participar da modernidade, não mais ser um depósito de um passado de escravidão, ao contrário, deslocar sua identidade para a modernidade globalizada e híbrida. Assim, pode-se defender a tese de que os tais outsiders, devem sair dessa posição se colocando como cidadão e não mais como vítima, mesmo esse sendo um movimento difícil de realizar quando todas as normas pré-estabelecidas tendem a beneficiar os já beneficiados, seja por raça ou etnia, ou pela condição social ao qual pertence.

2.1.10 O Samba como produto

Este processo iria acontecer de qualquer forma? A música não existe para ser “consumida”? A transformação do samba em produto era inevitável? Tinhorão sinaliza essa mercantilização do produto nacional, ou seja, o samba.

Fixada a nova forma urbana de samba produzido nos meios de malandros e valentes do Estácio e no seu equivalente nas comunidades em formação pelos morros da cidade (a partir do mais antigo, a Favela, cujo nome passaria a designar “conjunto de habitações populares”), tal criação passou a interessar as fabricas de discos como produto capaz de boa colocação no florescente mercado da música de consumo. Gravadoras como a Odeon, por exemplo, comercializavam o gênero desde os tempos pioneiros da Casa Edison (inclusive em sua forma sertaneja, através de conjuntos como o Turunas da Mauriceia, desde 1924), mas fazendo-o ainda segundo a antiga fórmula dos sambas amaxixados de Sinhô, muitas vezes fabricados pelos ecléticos compositores profissionais da classe média, que começavam a surgir dispostos a experimentar todas as novidades, dos fox-trots às músicas vagamente “sertanejas”. A partir de 1930 (porém, coincidindo com a revolução anunciadora da “nova política econômica”, cujo caráter burguês nacionalista iria incentivar o comércio interno e ao aproveitamento das potencialidades brasileiras), seria a própria criação das camadas mais baixas 43

que as fábricas experimentariam vender em discos, como um produto industrial comum. Para efetivação desse acontecimento inédito do aproveitamento comercial da arte musical das grandes camadas urbanas, concorreu um fato também fora do comum: o aparecimento no Rio de Janeiro, em novembro de 1929, de um concessionário da marca Brunswick, que se dispunha a explorar o mercado de música tipicamente brasileira: choros, maxixes, marchas, canções, toadas emboladas e, naturalmente, o novo estilo samba do Estácio e dos morros, e ainda as mais estrondosas batucadas reproduzidas em estúdio com os instrumentos originais” (TINHORÃO, 2010, p. 310-311)

Assim chegamos à industrialização do samba (década de 1930) como mais um dos produtos tipicamente brasileiros a serem comercializados em grande escala. Segundo o autor, os melhores compositores, músicos e cantores dessa época tiveram seu espaço nas gravadoras como a Odeon, que manteve estúdio também em São Paulo sob o selo de Parlophon.

[...] o até hoje não identificado norte-americano concessionário da Brunswick abriu seu estúdio a iniciantes (alguns depois famosos, como Carmem Miranda, Silvio Caldas, Gastão Formenti e o grupo Bando da Lua), e entre os quais se incluíam talentos do povo como o legendário Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres (mais tarde famoso também como pintor primitivista), e os componentes do conjunto Gente do Morro. O próprio nome Gente do Morro, escolhido para o grupo pelo compositor Sinhô (que também gravava na Brunswick), constituía uma indicação do propósito comercial de “vender” a música das camadas mais baixas do Rio de Janeiro pelo seu lado “pitoresco”. De fato, seu líder, flautista Benedito Lacerda, era um fluminense ex-soldado de polícia que tocava em bares da zona de mulheres, os ritmistas Alcebíades Barcelos, sapateiro, e Juvenal Lopes, morador do Estácio, e os violinistas Henrique Brito e Jaci Pereira, jovens da classe média. A gente realmente de morro, que às vezes figurava nas gravações, seriam os anônimos tocadores de surdo, tambor, tamborim, reco-reco e cuíca, sempre convocados para engrossar a percussão e a fricção para garantir o caráter de autenticidade do acompanhamento rítmico, não apenas nos discos desse Gente do Morro, mas nos gravados pelo Grupo dos Prazeres, formado em 1930 por Heitor dos Prazeres na mesma gravadora (TINHORÃO, 2010, p. 311).

O samba foi se transformado em produto das classes baixas com o propósito de vender, tendo como apelo o lado “pitoresco”. No grupo batizado Gente do Morro, por exemplo, a gente realmente do morro era apenas coadjuvante, mas pode-se analisar por outro prisma, por exemplo, o Gente do Morro trazia algo novo, original, a comunicação pela musica, pelo canto, a música como linguagem cultural, corporal.

Bem interpretado, aliás, o que no conjunto Gente do Morro fazia – e isso era de fato novidade – era realizar a fusão dos velhos grupos de choro à base de 44

flauta, violão e cavaquinho com a percussão dos sambas populares herdeiros dos improvisos das rodas de batucada, com base em estribilhos marcados por palmas. [...] era o casamento da tradição do choro da pequena classe média com o samba das classes baixas. Um casamento musical que se revelaria por sinal muito fecundo porque, como ainda naquela virada dos anos 30 se comprovaria – e desde os tempos do choro se antecipava21 –, pela valorização da melodia, os conjuntos regionais podiam chegar ao samba- canção, e pela mistura do fraseado do choro e o apoio rítmico do acompanhamento do samba, ao samba-choro e ao samba de breque (na verdade, o samba-choro quebrado a espaços por paradas súbitas, a que se interpolavam palavras isoladas e até frases inteiras, aproveitando os intervalos rítmicos) (TINHORÃO, 2010, p.311-312).

Interessante observarmos os caminhos trilhados pelo samba, mas podemos afirmar que sua construção se dá de forma até poética, trazendo consigo elementos do cotidiano, de mazelas humanas como a pobreza, as necessidades mais simples. O samba carrega um pouco de tristeza nas suas letras, mas ao mesmo tempo traz alegria e contagia os povos, pois de certa forma na dicotomia existem pontos de encontro cultural. Assim, unem-se pelo samba as classes baixas e a classe média, o morro e o centro, brancos e negros, mas ainda com um toque de exclusão por parte das elites. Dessa forma, voltando ao método utilizado nesse estudo, a análise comparativa se faz presente de forma eficaz. Mas, como o foco do estudo em questão é o samba e sua contribuição na formação da identidade nacional, debrucemo-nos sobre Getúlio Vargas, que ficou conhecido como o líder que unia as diferenças. Vargas, para sustentar suas ideias, utilizou-se do samba e de sua dicotomia.

A boa resposta do mercado a essa criação de sons “populares” estimulou as fábricas de discos estrangeiras e seus concessionários no Brasil à procura de novidades na área das músicas regionais, que passavam a ser produzidas para todos os gostos: tanguinhos de Ernesto Nazareth, canções e toadas “sertanejas” de Marcelo Tupinambá e Hekel Tavares para a classe média mais refinada; cocos, emboladas, maxixes, batuques, valsas, mazurcas e quadrilhas de festas de São João, modinhas, sambas e marchas de Carnaval para a heterogênea massa menos exigente distribuída pelas camadas que compunham a baixa classe média e o povo de uma maneira geral.22[...] arrebanhou tocadores e cantadores de moda de viola de sua região para gravar no estúdio da Columbia, na capital de São Paulo. Tais caipiras, aliás, não se limitariam apenas ao gênero dos velhos romances entoados em dupla ao som da viola – as chamadas modas de viola, cantadas com as vozes em

21 O autor possui em sua coleção uma polca gravada em fins de 1915 pelo Grupo Carioca (disco Odeon, Casa Edison, n. 121, 104) que soa já como autêntico samba-canção na melodia elaborada pelo trombone solista, principalmente na terceira parte, contra o fundo de acompanhamento do cavaquinho, fazendo o “centro” com um ritmo sapecado semelhante ao ritmo ágil e partido dos tamborins. 22As funções vêm indicadas na cláusula 1ª de contrato assinado entre Pixinguinha e a Companhia Victor em 21 de junho de 1929. A Cláusula 2ª obrigava ainda Pixinguinha a “instrumentar quaisquer músicas destinadas a gravação em disco pela Victor Company, ou de outros fins quaisquer e para o número de instrumentos e na forma desejada pela Companhia”. O autor (Tinhorão) possui em seu arquivo o original desse contrato histórico da música popular brasileira. 45

intervalo musical de terças –, mas gravariam também valsas, cateretês, toadas de sambas, de cururu e de mutirão, e até cana-verde (a viola caipira é a mesma tradicionalmente usada em Portugal desde o século XVI, o que explica a continuidade de certos gêneros de música trazidos com ela para o Brasil) (TINHORÃO, 2010, p.313-314).

O que permeia a análise crítica de Tinhorão, além de sua visão histórica e social, é a questão do caráter popular da música popular brasileira, pois o autor não trata apenas do samba, com a chegada das tecnologias que está a favor da indústria cultural, transforma a música popular brasileira em um produto que conecte todas as classes sociais e, este produto cada vez mais sendo produzido fora do seu ambiente de original de criação. Neste ponto Tinhorão comunga das mesmas interpretações de Siqueira, pois os dois autores alertam para o fato de que houve uma apropriação do samba pela indústria cultural e, para tinhorão não foi apenas o samba, mas a musica popular brasileira, e Siqueira ainda traz à discussão o problema do embranquecimento do samba após o advento da indústria cultural. Com a chegada das tecnologias, há uma espécie de “globalização” da cultura. Não foi diferente com o samba, assim chega-se ao interior de São Paulo, onde a indústria da música tipicamente brasileira também encontra produtos com potencialidade comercial, além de diversidade cultural, pois na busca por um gênero – o “sertanejo” – encontram uma variedade de gêneros, entre estes o samba. Mas o samba paulista será abordado com mais profundidade no próximo capítulo, dedicado a esse tema.

2.2. CAPÍTULO 2 - O Samba e o Estado Novo de Getúlio Vargas

2.2.1. O samba a Serviço do governo

Ao governo de Getúlio Vargas não escapou, sequer, o papel político que o produto música popular poderia representar como símbolo da vitalidade e do otimismo da sociedade em expansão sob o novo projeto econômico implantado com a Revolução de 1930: ao criar em 1935 o programa informativo oficial chamado “A Hora do Brasil”, o governo fez intercalar na propaganda oficial números musicais com os mais conhecidos cantores, instrumentistas e orquestras populares da época, antecipando-se, nesse ponto, ao próprio Departamento de Estado norte-americano e seu programa “A Voz da América” (TINHORÃO, 2010, p.315).

O rádio foi não apenas meio de divulgação de uma cultura popular, mas também instrumento a serviço do governo de Getúlio Vargas, para incutir na população a ideia de 46

identidade nacional. Desta forma, por estar a serviço do governo vê-se obrigatória uns “reajustes” nesse produto, pois este acaba por se tornar produto de exportação, aí sim, se observa a globalização cultural correspondendo ao que entende por globalização.

Nesse ano de 1935, aliás, ao ser praticamente obrigado por pressões políticas e financeiras a assinar com os Estados Unidos um acordo de reciprocidade econômica desfavorável ao Brasil, Getúlio Vargas procurou contrabalançar a capitulação com a assinatura de acordo de compensação com a Alemanha, que lhe permitia obter divisas com a exportação de produtos sem interesse para os americanos, como arroz, a carne e o algodão. E, então, como parte de um jogo de astúcias políticas destinado a neutralizar as imposições norte- americanas com a ameaça de aprofundamento das relações com a Alemanha, Getúlio autorizou a realização, em 29 de janeiro de 1936, de um programa em ondas curtas destinado a mostrar aos alemães um pouco da música popular brasileira. E, assim, com o locutor alemão Rudolph Kleinoschek anunciando as músicas apresentadas e fazendo as devidas explicações, a loura Alemanha, que em breve se lançaria à guerra orgulhosa da superioridade da raça ariana, pôde ouvir durante uma hora os crioulos e mulatos cariocas malandros do Estácio (como o boxeur Baiano e o vendedor de jornais Lauro Santos, o Gradim) e os bambas dos morros (como Agenor de Oliveira, o Cartola, e seu parceiro Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça) cantarem suas dores de amor mestiças, em sambas caprichosamente ritmados ao som de tamborins feitos com couro de gato (TINHORÃO, 2010, p. 315-316).

Quem me vê sorrindo Pensa que estou alegre O meu sorriso é por consolação Porque sei conter Para ninguém ver O pranto do meu coração23 (CACHAÇA, Carlos. Quem me vê. Intérprete: Cartola. 1974).

Na citação, Tinhorão expõe suas análises de forma rica em detalhes de suma importância para a compreensão histórica dos fatos, busca em sua pesquisa dados, documentos e nomes que não deixam dúvidas sobre as informações aqui apresentadas, portanto, só vem a enriquecer o estudo sobre o tema em questão, a história do samba. A questão dos alemães e o contexto histórico no qual tiveram acesso à cultura brasileira – no caso, ao samba – revela que o gênero participou de acordos comerciais importantes entre Brasil e Estados Unidos, assim como entre Brasil e Alemanha. Assim, o samba acabou por ser divulgado aos alemães, que em seguida defenderiam a raça ariana (mas antes ouviram música negra brasileira).

23“O Bando da Lua convidado a visitar Londres”. In: Cine-Rádio-Jornal do Rio de Janeiro, 2 mar. 1939, p.3-4. Essa anunciada viagem à Inglaterra acabou não se realizando, pelo fato de o grupo ter viajado para os Estados Unidos como conjunto acompanhante da cantora Carmen Miranda, em maio de 1939. 47

Siqueira (2012) aponta que a mercantilização do samba, mesmo no seu auge, não trouxe consigo a “inclusão” esperada pelos mais pobres, principalmente para os negros, fato observado num dos principais representantes do samba: o grande Cartola, que morreu pobre.

A concessão de parceria foi uma forma daqueles autores originais penetrarem no mundo do rádio e do disco. Entretanto, isso não significou mobilidade social aos sambistas como regra geral. Não resultou em uma ascensão das comunidades produtoras de samba, nem as retirou da condição de pobreza. É certo que alguns poucos autores obtiveram uma melhoria de vida, deixando até de ser favelados e adquirindo bens de consumo.24 Entretanto esse fato marca o momento da profissionalização do sambista, intensificado na década de 1930 a 1940, período da “época de ouro” do samba. (SIQUEIRA, 2012, p.162-163).

Nesse movimento dialético, o samba se transforma de marginal a mercadoria, diferentes sambas vão ter lugar, uns para uns setores, outros para outros, assim atendendo aos setores de classe determinados. O movimento que estabelecia a relação entre os representantes da comunidade negra com as casas de espetáculos e outras formas de entretenimento é o componente que permite que o samba seja absorvido como instrumento de uma política de Estado, na luta para a efetuação de uma identidade oficial brasileira.

24Cartola, por exemplo, só saiu da Mangueira por 4 anos (1947-1951), quando viveu em Cascadura. Depois voltou; sempre viveu na pobreza, apesar de haver criado, nos anos 1960, o famoso Zi-Cartola. Na velhice, morou em Jacarepaguá, que não era considerado um “bairro nobre”. Sobre a falsa interpretação de uma mobilidade social global dos sambistas, ver LOPES, N. O samba, na realidade...A utopia da ascensão social do sambista. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. 48

Modesto Brocos. Óleo sobre tela, c.i.d. 199.00 X 166.00 cm, 1895

2.2.2 O Samba e o branqueamento a serviço do projeto nacional

Esse processo dialético do qual trata Siqueira (2012) transforma o marginal em mercadoria. Getúlio Vargas utiliza-se do samba como instrumento de uma política de Estado, na sua busca pela identidade nacional. Outra questão relevante abordada com veemência por Siqueira (2012) é o método utilizado para maior aceitação e também como um facilitador para a exportação do samba, que é o fator de seu embranquecimento; este seria um elemento unificador das classes, pois tinha como objetivo a inclusão, até mesmo na produção – colaborando para a construção de um país moderno, no qual o negro sambista, antes marginal, poderia ser mão de obra para as indústrias, além de produtor de entretenimento e consumidor do samba, em um só tempo gerando lucro para a indústria fonográfica e servindo como símbolo de brasilidade. A questão de por que o samba tem duas respostas. De um lado, é o gênero musical que de certa maneira unifica as classes, propiciando entretenimento 49

às camadas média e alta com o trabalho dos negros e gera, ainda, lucros para a indústria fonográfica e de divertimento. De outro, é um mito idealizado para cooptar politicamente a grande massa de negros em todo o território nacional. [...] O samba acabou por se tornar o símbolo de uma brasilidade que visava unificar e construir um Estado nacional, ao ser despojado do poder de rebeldia que até então possuía. Onde quer que exista o samba, este será apresentado ao negro como o elemento da brasilidade, com a qual o negro irá se identificar (SIQUEIRA, 2012, p.163).

Portanto pode-se afirmar que mesmo com essa dicotomia citada acima, pois são formas contrárias e complementares do papel do samba na formação da identidade nacional, ele é o instrumento utilizado política, econômica e socialmente como o gênero nacional que, segundo o autor, o negro irá se identificar. Dessa forma, pode-se dizer que o samba gera esse sentimento de pertencimento no brasileiro das várias camadas sociais urbanas. Ao mesmo tempo, o negro, que é o criador original do samba, com o projeto nacional de Getúlio passa pelo mencionado processo de embranquecimento, e o que era uma expressão popular passa a ser objeto catalizador de fomentos ao governo. E, para isso, segundo o autor, o samba caminha para um distanciamento do seu criador, tornando-se outro samba diferente daquele dos terreiros. Há de se ressaltar que este fato último era inevitável, pois agora o samba não estava mais nas fazendas, mas num ambiente urbano que buscava a modernização.

Através da mediação do Estado, essa cultura que, na origem, era apenas de negros, fora do mercado se transforma na cultura de toda a sociedade urbana, autodeclarada sociedade brasileira. Isso ocorre pela necessidade que o Estado teve, em certo momento, de se identificar com o samba, ou melhor, identificar o samba com um de seus objetivos, reconhecer o brasileiro como mito, e o sambista como condição mítica e consumidor de samba. É uma invenção, naquele estilo que descrevem Hobsbawm e Turner: as tradições são inventadas. Fabrica-se, repete-se e as pessoas se acostumam com isso, como à saia do escocês. Ao ser inventada, passa a ser, porque depois é o que é. Existe uma massa amorfa que vem de diferentes lugares e há necessidade de retirar-lhe a amorfia, dando-lhe uma forma que se escolheu. Mas a forma já estava escolhida; é o Estado ou uma forma de poder que escolhe a forma que tentativamente será dada à massa. O Estado, por exemplo, diz: “você será sambista”. A partir daí forja-se um indivíduo sambista. O poder nacional o cria à sua imagem e semelhança. Quer dizer, à imagem e semelhança dos mitos que o poder escolhe, ou pode escolher (SIQUEIRA, 2012, p.163-164).

Siqueira concorda com Tinhorão, no que se refere à utilização do samba por Getúlio, mostrando o papel do Estado no caminho tortuoso do samba ao ser moldado e utilizado na construção do modelo de Estado Novo. Para tanto, Getúlio utilizou-se de atores sociais, como músicos, políticos, negros, brancos e mestiços, buscando fomentar a união nacional entre a indústria, a política e a sociedade, envolvendo todas as camadas da sociedade brasileira. 50

Nesse contexto, Ary Barroso, de família de políticos mineiros, teve papel fundamental. [...] Em 1921, entrou para a faculdade e, à noite, frequentava as rodas boêmias da capital. [...] A estreia de Ary Barroso em disco se deu também em 1929, com o samba Vou à Penha, gravado por seu colega de faculdade, Mário Reis. Mas a mais importante contribuição dele foi a criação do samba-exaltação, de melodia extensa e apoiado em grande aparato orquestral. Desse estilo o seu samba mais famoso foi Aquarela do Brasil, gravado originalmente em 1939, por Francisco Alves. Posteriormente, houve centenas de gravações (MARCONDES, 1997, p.75-78 apud SIQUEIRA, 2012, p.164). Conscientemente ou não, Ary Barroso é quem constrói o protótipo da música popular brasileira contemporânea para o Brasil e o mundo. A gravação de Aquarela do Brasil feita por Francisco Alves, com arranjo orquestral de Radamés Gnatalli, populariza em definitivo a música, tanto no Brasil como no exterior. O samba-exaltação de Ary Barroso tornou-se o representante do Brasil (SIQUEIRA, 2012, p.164).

Ainda a respeito das políticas de Getúlio, pode-se compreender que elas foram além do samba, pois tiveram abrangência em outros gêneros musicais. Convém ressaltar que Getúlio não se ateve apenas a acordos com a Alemanha e os Estados Unidos; ele buscou estreitar relações políticas também com os países da América Latina.

O uso da música popular como arma política de propaganda não ficaria nesse exemplo. Já um ano antes, quando em 1935 Getúlio Vargas visitaria a Argentina e o Uruguai, um grupo de artistas brasileiros acompanhava a comitiva oficial com a missão de reforçar a simpatia do sorriso do presidente. E entre esses artistas estaria Carmen Miranda e o conjunto Bando da Lua, definido em reportagem de jornal da época como “um grupo de rapazes da sociedade, estudantes na quase totalidade”, transformado sem querer em “elemento de aproximação mais intensa entre povos diferentes”25 (TINHORÃO, 2010, p.316).

Nota-se que Getúlio se utiliza da música popular, do samba de Carmen Miranda, para compor uma imagem de um presidente que une os povos mestiços do seu país. Tinhorão nos fornece mais informações sobre esses fatos de grande relevância histórica, para maior compreensão das representações de Getúlio Vargas:

E a prova de que Getúlio Vargas era quem pessoalmente determinava as diretrizes para o uso de artistas populares em sua propaganda política estaria não apenas no fato de ter ordenado a criação de uma Hora do Brasil na Radio El Mundo, de Buenos Aires, logo no segundo ano de sua gestão como ditador do Estado Novo (instituído em novembro de 1937), mas no de ter recebido a mesma Carmen Miranda e os músicos do Bando da Lua na

25 Programação estabelecida pelo Departamento de Propaganda e Cultura da Agência Nacional e reproduzida por Marília T. Barboza da Silva e Artur L. de Oliveira Filho em seu livro Cartola: os tempos idos, Rio de Janeiro, Funarte/Instituto Nacional de Música/Divisão de Música popular, 1938, p.59. 51

estância balneária de Caxambu na penúltima semana de abril de 1939, para recomendar à cantora que não aceitasse o convite do empresário Lee Schubert, da Broadway, sem a inclusão dos músicos brasileiros que a acompanhavam. Carmen Miranda se encarregaria de divulgar, ao declarar ao repórter Henry C. Pringle, da revista norte-americana Colliers: “O presidente do Brasil”, disse ela por meio do intérprete, “não acha prudente que eu vá sem minha própria orquestra” 26 (TINHORÃO, 2010, p.317).

Aqui o autor deixa claro que Getúlio foi o responsável pela ida de Carmen Miranda para a Broadway e, segundo o autor, achou conveniente que ela fosse com sua própria orquestra. Assim, ela levou sua banda, palavras de Carmen Miranda na citação acima, por ter levado consigo sua banda, que acarretou em críticas severas a ela por ter tido essa atitude, pois é sabido que as elites cariocas criticaram duramente Carmen Miranda por ter levado negros consigo representando os brasileiros.

Assim, como o “produto” música urbana de origem popular, entregue desde a década de 1940 à iniciativa de grupos heterogêneos de compositores profissionais (a esta altura integrados inclusive por médicos como Joubert de Carvalho e de Alberto Ribeiro, e advogados como Humberto Teixeira e Ari Barroso), tinha de enfrentar agora, na década de 1950, além das gravações originais estrangeiras, a avalanche das “versões” com que se acomodavam as novidades da música internacional ao analfabetismo das grandes camadas, sua decadência foi inevitável. O samba-canção florescente das décadas de 1930 e 1940 abolerou-se (chegando-se à tentativa de criação de um hibridismo chamado de sambolero), a produção dos compositores das camadas mais baixas – considerada “música do morro”– não chegava mais aos discos (exceção feita aos sambas de enredo das escolas de samba, beneficiados pela atração dos desfiles carnavalescos junto à classe média) e as criações baseadas no aproveitamento dos sons rurais diluíram-se de vez nos arranjos de orquestra (caso do baião), encomendados na tentativa de torná-los palatáveis para o gosto da classe média (TINHORÃO, 2010, p.325).

Neste cenário, há um distanciamento do povo de sua cultura originalmente brasileira. “O samba-canção florescente das décadas de 1930 e 1940 abolerou-se (chegando-se à tentativa de criação de um hibridismo chamado de sambolero)”(TINHORÃO, 2010, p.325). Nessa intersecção entre o proibido à expressão nacional e produto de exportação. Quando tratamos do tema Estado Novo, na Era Vargas, o samba passa a ser apoiado como expressão popular urbana e utilizado como elemento de construção de uma identidade nacional. Esse gênero, que até o ano de 1916 era proibido pelo Código Penal e rejeitado

26 Todas as manobras envolvendo a viagem de Carmen Miranda aos Estados Unidos e sua implicação com a chamada Política da Boa Vizinhança instituída pelo governo de Franklin Roosevelt, para ganhar a simpatia dos latinos submetidos ao imperialismo norte-americano, estão pormenorizadamente relatadas pelo autor (Tinhorão) em seu livro O samba agora vai...: a farsa da música popular no Exterior. Rio de Janeiro: JCM, 1969. 52

socialmente, torna-se elemento primordial de representatividade de um povo que, a partir dele, passa a sentir-se um “ser brasileiro”, segundo Siqueira.

O ideário da urbanização, como já se referiu, em pleno processo de se constituir, tomou e abandonou diferentes formas musicais, verificando-se no período ser o samba a expressão máxima da “ginga”, o contraposto nacional do “swing” jazzístico. Assumida pelo samba a feição de maioridade, capacitou-se o mesmo, como se verifica, por exemplo, com Carmen Miranda e Bando da Lua, a ser instrumento de exportação e de elaboração de estratégias de boa vizinhança, como se verificou no caso da Segunda Guerra Mundial. E não por acaso Carmen Miranda foi eleita a “Imperatriz do Samba”. Dessa forma, o samba transforma-se de elemento espiritual da etnia negra, que tem um modo de elaboração próprio, em elemento de reprodução do capital e da ideologia dominante. Torna-se o seu contrário (SIQUEIRA, 2012, p.164).

Segundo o autor, pode-se observar a dicotomia que envolve toda a questão do governo de Getúlio Vargas quando este se apropria do samba, pois o tira da marginalidade e o transforma em elemento catalizador, atendendo à demanda do projeto do Estado nacional, representando um governo unificador dos povos. Torna-se, assim, o contrário do que era, passa de marginal a produto do capital e da ideologia dominante. Dessa forma, Siqueira reafirma as contradições que envolvem a trajetória do samba na Era Vargas.

É curioso lembrar que, originalmente, o samba é uma criação espontânea para abrilhantar encontros festivos; é o “sujeito” da história no final do século XX e para atender ao mercado, utilizando formas de sucesso, transforma-se em “objeto” do capital do século XX. Viu-se que no ambiente citadino da capital do país, antigos e novos segmentos populares se confrontaram com a implantação de um processo de proletarização. Como consequência, este levou homens pobres de diversas etnias ao convívio com os negros e aqueles puderam, dessa forma, absorver as práticas culturais destes, influenciando e sendo por eles influenciados (SIQUEIRA, 2012, p.165).

Nota-se que novamente o samba de alguma forma acaba por unir etnias. Mesmo tendo origem especificamente africana, traz consigo um quê de união de povos, principalmente no que tange à grande parte da população das classes mais baixas. Pois, segundo Siqueira, o samba surgiu como sujeito propagador de alegria e festa, de união étnico-social, mas ao mesmo tempo há a questão do branqueamento do samba. Getúlio identifica esse “poder” do samba e o utiliza como elemento unificador dos povos e percebe que pode tirá-lo da marginalidade e utilizá-lo como catalizador das massas; porém, o samba tem sua dinâmica própria.

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A forma música samba, ao derivar-se, acaba por passar por interessante processo histórico. Criado dentro de uma comunidade pobre e negra, até mesmo pelas necessidades de sobrevivência cultural, ao tomar para si as ruas e praças, acaba por tornar-se parte da vida de camadas pobres, nas gafieiras e da vida de classes altas nos salões elegantes. Nesse caminho, passou o samba por um processo de branqueamento ideológico e físico, no qual um novo mito, o da música popular urbana, apropria-se dele, que faz sucesso. Ao mesmo tempo, esse novo mito o imobiliza na “ciência” do folclore, este sim das comunidades negras (SIQUEIRA, 2012, p.166).

Nesse ponto fica nítido o tom da crítica de Siqueira, pois quanto mais nos aprofundamos no tema proposto, mas percebe-se que houve uma manobra. Não vem ao caso se esta foi intencional por parte de todos os envolvidos, mas o fato é que o processo histórico da construção da identidade nacional, realizada por meio das políticas do governo de Getúlio Vargas, trouxe muitos questionamentos e possíveis conclusões que podem gerar grande revolta por parte dos que foram prejudicados historicamente.

Vejam-se alguns exemplos desse embranquecimento premeditado. Em 1932, Herivelto Martins fora incumbido de produzir e animar para a Rádio Nacional um programa que reproduzisse, em São Paulo, o clima de festa do carnaval carioca. Organizou uma miniescola de samba, inspirada em grupos que havia observado no morro de São Carlos. Não obstante o sucesso do programa, o diretor artístico da rádio, Sérgio Vasconcelos, moveu-se para contratar um novo grupo para substituir os artistas negros escolhidos por Herivelto, que estranhou o fato, uma vez que:

“havia reunido a nata dos artistas do ramo. E os que mantínhamos na reserva para uma emergência eram tão bons como os titulares. Aos poucos, entretanto, Sérgio Vasconcelos revelaria a verdade. O que ele queria era embranquecer o grupo. Foi um choque. Eu vinha de uma família que não se permitia sequer falar em racismo. Minha primeira namorada fora uma escurinha meiga lá da Barra do Piraí. Também a primeira esposa, Dalva de Oliveira, mãe dos meus filhos Ubiratã e Peri Ribeiro, era mulata. [...] Relutei, insisti, mas os interessados no anúncio começavam a chegar à Rádio Nacional” (REGO apud SIQUEIRA, 2012, p. 166-167).

É notória a forma como o samba foi “moldado”. Então, pode-se deduzir que houve uma mudança no percurso. O samba teria seguido uma dinâmica diferente caso Getúlio não tivesse interferido. Dentro desse processo histórico, no entanto, o samba teve grande relevância na construção da identidade nacional, ainda que trazendo consigo o estigma da exclusão dos negros, mas ao mesmo tempo de inclusão do samba as sociedades antes não acessadas por ele.

O problema do embranquecimento do samba abrange um fator ideológico e outro econômico. [...] A composição “samba” podia ser apresentada no 54

Rádio, mas era considerada inconveniente a presença de muitos negros no estúdio ou no auditório na condição de artistas. Dessa forma, o preconceito mascarava e servia de biombo tanto para manter o estigma de que os negros eram incapazes (substrato ideológico) quanto para eliminar a concorrência de sua mão de obra como artistas (SIQUEIRA, 2012, p.167).

Nesse processo histórico, repleto de adequações do samba aos gostos da indústria fonográfica. Segundo o autor, o processo se desenvolveu de forma injusta no que tange à condição do herdeiro desse gênero – o negro – e de sua cultura, que foi distorcida, moldada, transformada em outra. Tudo isso ocorreu em prol da construção de uma identidade nacional; algo espontâneo foi destruído para dar lugar a algo intencional, em nome da busca por uma identidade. Pode-se entender esse processo desta forma:

É fácil compreender que o discurso por uma cultura nacional e, por extensão, de uma identidade nacional, se pauta pela questão racial. Ao negar o outro, torna-se dele algo que se transforma em pertencente ao novo modelo. O outro lado da negação do papel do negro na construção de uma cultura popular é o embranquecimento da cultura do próprio negro, que se apresenta então como algo a ele estranha. [...] A contradição entre a repressão e a condenação das práticas da cultura negra, de um lado, e sua exaltação e consumo como produto nacional, do outro, apresentaram como resultado a apropriação do samba pela cultura dominante, exigindo-lhe inevitável embranquecimento (SIQUEIRA, 2012, p.170).

2.2.3 O Samba e a escolha de seus representantes

A seguir, Siqueira lista os brancos e mestiços que foram escolhidos para compor o elenco, desta vez mais aceitável, para representar o gênero musical tipicamente brasileiro e instrumento de construção de uma identidade nacional, ou seja, o samba. Segundo ao autor, houve “preferência” por artistas brancos como os mais geniais sambistas, pois estes representariam os brasileiros de forma mais “digna”, trazendo da classe média letrada o verdadeiro artista brasileiro, assim como Carmen Miranda e Ary Barroso.

Visava também o embranquecimento restringir o acesso dos sambistas negros aos ganhos reais do mercado musical, impossibilitando a mobilidade social daquele segmento da sociedade. Portanto, o viés ideológico ocultara o interesse econômico real (SIQUEIRA, 2012, p.172).

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Assim, segundo o autor, houve certo boicote ao negro e à sua cultura, de origem africana, com o intuito de descaracterizá-la e transformar o samba em algo pertencente aos brancos e mestiços. Na década de 1931 a 1940, dentro do período conhecido como “época de ouro” da música popular brasileira, Jairo Severiano encontrou 2.176 gravações de sambas, representando 32,45% do repertório fonográfico. Somadas às marchinhas, que muitas vezes eram compostas por sambistas negros, ultrapassava 50% da produção. Isso representava cifras consideráveis no mundo fonográfico, nos ganhos de impressão de partituras e de direitos autorais. Quer dizer, embora o samba responsável pela “época de ouro” tenha surgido no Estácio, criado por sambistas negros e pobres, estes permaneceram pobres. [...] O samba embranqueceu-se para atender à demanda das camadas médias, obtendo feições mais próprias para o corpo burguês carioca. Em uma sociedade racista, o samba não poderia ser negro e os dividendos do seu comércio tampouco poderiam ser divididos com sambistas negros (SIQUEIRA, 2012, p.172).

Magno Bissoli Siqueira difere de Tinhorão ao analisar o processo histórico o qual o samba trilhou, pois enfoca o embranquecimento do samba, trazendo à tona a questão do racismo. Já Tinhorão se atém a documentar a música popular brasileira por meio de uma obra extensa, investigando as origens do samba, sendo inclusive utilizado nos estudos de Siqueira e Garramuño.

2.2.4 O Samba e o Tango, uma análise comparativa do processo de construção de símbolo nacional.

Voltemo-nos ao estudo realizado por Garramuño, partindo de uma análise macro (Brasil) para uma análise micro (cidade/bairro) e trazendo um estudo comparativo entre a importância do samba para o Brasil e do tango para a Argentina na construção da identidade nacional. A autora trata da conversão do tango e do samba em músicas nacionais, tratando da combinação de sentidos entre o primitivo e o moderno e este paradoxo acaba por fomentar a canonização desses ritmos.

Durante as décadas de 1920 e 1930, quando o impulso pela construção de uma modernidade autóctone se torna quase hegemônica, o Tango na Argentina e o Samba no Brasil começam a ser percebidos como ritmos nacionais. Em algumas das constelações de sentidos que é possível isolar na história dessa conversão do tango e do samba em músicas nacionais, há uma figura que persiste, apesar de seus sentidos se transformarem e proliferarem. Trata-se de uma paradoxal – num primeiro olhar – combinação de sentidos entre primitivo e o moderno, já que, nessas décadas de intensa 56

modernização, são precisamente os traços mais primitivos e exóticos que serão enfatizados ao se ressaltar as características nacionais do tango e do samba [...]. Apesar de no final do século 19 ser exatamente essa imagem primitiva a razão da exclusão de ambos os ritmos da nação, será esse mesmo primitivismo – que variou em suas significações culturais – o que será esgrimido como razão para defini-los como símbolos nacionais, quando se produzem suas respectivas canonizações (GARRAMUÑO, 2009, p.13-14).

Garramuño faz uma análise comparativa entre a importância do samba para o Brasil e do tango para a Argentina. A autora investiga as redes e os processos culturais que levaram tanto o tango como o samba a se tornarem, em seus respectivos países, ritmos nacionais nas primeiras décadas do século XX. Segundo Garramuño, é verdadeira a premissa de que a cultura é sempre um campo de conflitos, dessa forma ela investiga a dinâmica em que se deram essas tensões na história do samba e do tango. A autora ainda examina as relações estabelecidas por esses ritmos, inicialmente entre si e em seguida em outras esferas, como na moda, no cinema, na pintura, entre outras formas de expressão artística. Estas são ligadas aos vanguardistas na Argentina, assim como aos modernistas no Brasil, e associadas ao sentido mais íntimo desse processo da construção de uma identidade nacional. Dessa forma, segundo a autora, esses ritmos rapidamente tornam-se um palco no qual se apresentam Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, Carmem Miranda, Carlos Gardel, entre outros.

O paradoxo dessa “modernidade primitiva” não é exclusivo do tango e do samba. É possível encontrá-lo em Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, em Mário de Andrade e Jorge Luis Borges, no grupo Martín Fierro, e na Revista de Antropofagia, em Oliverio Girondo e Heitor Villa-Lobos ou Radamés Gnatalli. Como um movimento sinuoso e às vezes aporético, esse paradoxo define um núcleo de problemas em torno da nacionalização e modernização de uma cultura latino-americana, na qual o tango e samba funcionam como figuras de sentidos contraditórios e ambivalentes. Chamo esse paradoxo de “modernidade primitiva” porque recusa o pensamento dicotômico que separa os dois conceitos, mas principalmente porque, como conceito, o primitivismo deve ser pensado juntamente com a modernidade, já que é esta última que o cria como conceito (GARRAMUÑO, 2009, p. 14).

Nota-se a preocupação da autora em definir os conceitos em que se firma para discorrer sobre o tema que por si só carrega consigo uma bifurcação, uma dicotomia. Assim, a “modernidade primitiva” pode ajudar a explicara questão do samba e do tango argentino como elementos cultuais nacionais.

Por volta de 1937, entretanto, essa paisagem terá se modificado. Carmen Miranda grava uma canção, “O tango e o samba”, em que cada uma dessas músicas se assume como caracteristicamente nacional. Não é apenas a letra desse samba que marca a diferença entre os argentinos que cantam tango e os 57

brasileiros que cantam samba; a música desliza de forma sinuosa, de uma série de compassos com sonoridades claramente referentes ao mundo do samba – a batida do samba no violão, os instrumentos percussivos que marcam o ritmo – para as sonoridades tangueras, introduzidas pelo bandoneon. Até Carmen Miranda, é possível perceber uma modulação de voz mais aguda e rápida – quase “sorridente” – ao cantar o samba, frente a uma modulação de voz mais grave, com um acentuado alongamento das vogais, para cantar o tango em espanhol. Se em 1937 esses ritmos já servem para definir identidades nacionais, cada um deles, porém, se manifesta de forma tão específica e tão diferenciada do outro que a canção se torna um verdadeiro fandango de diferenças culturais, especialmente quando, na segunda parte, canta-se tango em espanhol com um fundo musical feito com a batida do samba (GARRAMUÑO, 2009, p. 15-16).

2.2.5 O Samba e tango como Gêneros nacionais

Segundo a autora, o hibridismo cultural ultrapassou os limites do território nacional. Assim, percebe-se que a compreensão do nacional pode dar-se comparativamente, em princípio, entre culturas distintas.

No caso do tango e do samba, a intervenção do Estado em seu desenvolvimento é um elemento realmente importante, apesar de posterior ao processo de sua “formação”, num sentido mais tradicional. Será com Getúlio Vargas e Domingos Perón no poder – não por acaso ambos são exemplos, guardadas suas substanciais diferenças, de governos populistas –, durante as décadas de 1940 e 1950, que os dois ritmos se encontram com o poder estatal de maneira mais direta. A nacionalização cultural dessas formas, entretanto, pode ser entendida como processo finalizado antes da intervenção propriamente dita do Estado na música; no caso do samba, essa intervenção foi muito mais significativa e quase simultânea a esse outro processo de nacionalização que prescinde, ou se concretiza à margem, do Estado, diferentemente do tango, que perderá celebridade durante o peronismo. Essa nacionalização não deve ser confundida, apesar de abarcá-lo, com o processo de popularização dessas músicas (GARRAMUÑO, 2009, p. 22).

O Tango e o samba (Amado Régis)

Chegou a hora! Chegou!...Chegou! Meu corpo treme e ginga Qual pandeiro A hora é boa E o samba começou E fez convite ao tango Pra parceiro Hombre, yono sé por qué te quiero Yo te tengo amor sincero Diz a muchacha do Pará Pero, no Brasil é diferente Yo te quiero simplesmente 58

Teu amor me desacata Habla castellano num fandango Argentino canta tango Ora lento, ora ligeiro Eu canto e danço, sempre que possa Um sambinha cheio de “bossa” Sou do Rio de Janeiro (Canta Carmen Miranda, gravação de 1937.) (apud GARRAMUÑO, 2009).

A letra da música, interpretada por Carmen Miranda, traz a ideia de parceria entre o samba e o tango, pela importância que cada um deles tem culturalmente e socialmente, e por seu caráter de identidade nacional. Dessa forma esses dois gêneros musicais distintos representam um papel semelhante, de união nacional, e a música de Carmen Miranda fomenta o diálogo cultural entre o samba e o tango, o Brasil e a Argentina.

O samba de Amado Régis, cantado por Carmen Miranda, fala de uma relação entre o tango e o samba que foi, durante os anos de institucionalização dessas músicas como símbolos nacionais, muito mais fluida e complexa do que a história recente desses ritmos permite reconhecer. Não se trata, como a própria música indica, de uma relação de semelhança e nem mesmo de maiores contatos concretos, apesar do fato de que, realmente, existiu muito mais contato real do que seria possível supor. Porém, a confluência do tango e do samba, ou seu antecessor, o maxixe, em alguns cenários históricos, autoriza pensar num estudo comparativo que se sustenta não mais sobre a comparação de objetos semelhantes ou nos contatos e relações que esses objetos historicamente estabelecem entre si, mas sobre a manifestação, em formas diferenciadas, de uma série de histórias e operações formais comuns. Quando em 1913 ocorreu o rumor de que o Papa Pio X pretendia excomungar o tango, a revista brasileira Cá e Lá publicou os seguintes quartetos:

Se o Santo Padre soubesse O gosto que o tango tem Viria do Vaticano Dançar maxixe também. (GARRAMUÑO, 2009, p. 22-23)

Na citação apresentada há uma defesa do tango e, paralelamente, do ritmo brasileiro, então em evidência, o maxixe.

As duas danças não se encontraram apenas em Paris; é comum encontrar histórias nas quais aparece uma permanente confusão entre elas. O próprio Vicente Rossi chega a propor, já nos anos 1930, que foi no Rio de Janeiro que as “damas” da alta classe argentina, quando viram a elite brasileira dançar maxixe, resolveram que elas também poderiam dançar o tango. Essas confluências entre tango e maxixe bem como o processo de nacionalização do tango e do samba narram uma história possível da nacionalização de uma cultura latino-americana e periférica, sua constituição como cultura nacional 59

e moderna ao redor dos anos 1930 do século 20 (GARRAMIUÑO, 2009, p. 23).

Essa confluência tratada pela autora, entre o Brasil e Argentina, encontra-se na busca por um símbolo nacional, pois este é protagonista na construção de uma identidade nacional.

A comparação entre dois países procura não somente evitar a excepcionalidade nacional, para encontrar funções semelhantes em outro espaço nacional, mas permite perceber certos objetos, cuja retenção dentro de uma tradição poderia obstruir a compreensão: o papel do internacionalismo na construção de um símbolo nacional, a construção em trânsito das ideias e propostas estéticas, as funções do olhar do outro na construção da identidade nacional. [...] Não somente houve tangos e sambas de diversas conotações ideológicas e culturais, numa mesma etapa cronológica, mas, além disso, muitas dessas composições se opuseram explicitamente a outras formas contemporâneas, constituindo-se em espaços privilegiados de disputas e polêmicas. Em 1930, por exemplo, ocorre uma documentada polêmica entre Noel Rosa e Wilson Batista em torno da antítese malandro/otário, ao mesmo tempo que Borges discutia as diversas teorias acerca da origem do tango, como uma questão de legitimidade cultural [...] Em algum momento determinado dessa cronologia, o tango e o samba não somente se constituíram como formas de intervenção cultural, mas produziram polêmicas maiores que não se limitaram à música, atravessando suas culturas (GARRAMUÑO, 2009, p. 23-24).

Assim segue a discussão comparativa sobre a qual o estudo em questão tem se debruçado, pois há muitas confluências entre o tango e o samba.

Há uma ideia bastante difundida, nas histórias dos dois ritmos, que afirma existir uma progressiva transformação, desde as obscuras origens, nos subúrbios de suas culturas, até sua canonização nas décadas de 1930 e 1940. Segundo essas histórias, esse processo só foi possível porque o tango e o samba, juntamente com as culturas que lhe deram origem, teriam se “civilizado”. Existe uma teologia, modernista e evolucionista, muito semelhante na maneira com que tradicionalmente se abordam essas danças e músicas, que parte de uma pressuposta origem primitiva – mais próxima “em sua essência” da autenticidade das classes baixas, que produziram esses sons – e se dirige a uma sofisticação maior, quando de sua apropriação por outras classes. Vários trabalhos de pesquisa colocaram em xeque essas hipóteses, desde os estudos de Hermano Viana, que demonstram a participação das elites na conformação do samba, mesmo antes do seu suposto branqueamento, até os estudos musicológicos de Carlos Sandroni, que demonstram que o samba canonizado, depois dos anos 1930, é um samba de marcadas características associadas à música africana ou negra, pouco importando a origem étnica ou social de seus compositores (GARRAMUÑO, 2009, p. 27).

Esse tema abordado por Garramuño foi bem enfatizado anteriormente por Siqueira, que trata com veemência a forma como se deu o processo histórico de branqueamento do samba brasileiro. Sua crítica levanta uma forma de racismo cultural que acarretou na posse do 60

“objeto” samba por parte de uma indústria fonográfica a serviço de uma política que, juntas (REGO apud SIQUEIRA, 2012, p. 166-167), estavam incumbidos de construir uma identidade nacional.

Os sentidos construídos pelos diversos discursos elaborados sobre o tango e o samba também não abonam essa hipótese de seu progressivo e linear “saneamento”. No trabalho que artistas e intelectuais argentinos e brasileiros, envolvidos nos processos de modernização e das vanguardas nos anos 1920 a 1930 (Lima Barreto, Di Cavalcanti, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Manuel Gálvez, Martínez Estrada, Jorge Luis Borges, Oliverio Girondo), realizaram sobre os dois ritmos, é possível ler uma estratégia comum, apesar de suas diferentes manifestações: eles tratam de elaborar o caráter “primitivo” e sensual desses produtos como uma marca diferencial. Essa mesma característica, que durante os primeiros anos havia servido de motivo suficiente para a exclusão dessas danças insolentes (como acontece nos textos de Aluísio Azevedo ou Leopoldo Lugones), é agora ressignificada como signo de modernidade. É necessário dizer que esse primitivismo já não é o mesmo, uma vez que nos anos 1930 vai conotar – por uma série de questões nacionais e internacionais que este livro buscará discutir –, simultaneamente, o nacional e o moderno (GARRAMUÑO, 2009, p. 27).

A autora trabalha com o paradoxo das modernidades primitivas, tratando do samba e do tango. Nota-se que ela chama a atenção para a ressignificação do samba e do tango como símbolos de modernidade. O que antes tinha conotação de primitivo, no sentido de original, passa a trazer consigo um tom de modernidade nacional.

A partir da análise do tango e do samba, é possível perceber uma ambivalente coincidência que os fará aparecer como produtos anfíbios, assinalando simultaneamente para o nacional, que viria de um passado “original”, e para o moderno, de modo que alcançará êxito em Paris e nos ambientes internacionais que ditam moda e propõem as formas da modernidade. A transformação dos sentidos do primitivo e sua progressiva associação com traços modernos, o caráter contingente do primitivismo e sua funcionalidade para uma cultura latino-americana, na construção de uma modernidade particular, é o que se percebe ao reconstruir a rede de sentidos culturais que se vinculam ao tango e ao samba (GARRAMUÑO, 2009, p. 28).

A autora faz uma analogia comparando o entre o samba e o tango, classificando-os como produtos anfíbios, possivelmente devido à metamorfose pela qual passam esses seres no decorrer de sua vida. Assim, o samba e o tango, vindos de algo primitivo, encontram-se com o mais moderno no tocante à referência da arte apresentada em Paris.

Nos quadros e desenhos de Emiliano Di Cavalcanti, Emilio Pettoruti ou Cecília Meireles, é possível perceber uma estranha combinação de linguagens artísticas vanguardistas e um retorno a visualidades regionalistas. Operação de distanciamento da representação costumbrista e realista, que 61

havia predominado durante o século 19, a mistura de elementos aparentemente contraditórios – uma linguagem moderna de vanguarda e a insistência na representação de uma forma nacional e primitiva – foi sua mais clara manifestação (GARRAMUÑO, 2009, p. 28).

A autora aborda essa mistura de elementos, que à primeira vista tem conotação contraditória, como conceito, ou seja, o primitivismo deve ser pensado em relação constante com a modernidade. Cabe considerar quão latente é essa questão nas formas artísticas, seja no samba, nas artes plásticas de Di Cavalcanti, na obra de Cecília Meireles, quando tratam do tema Brasil, pois a arte moderna representa as formas originais da cultura brasileira.

A indústria cinematográfica terá uma importância decisiva nessa simultânea associação do tango e do samba com o nacional e o moderno. O primeiro longa-metragem argentino (Tango!, de Luis Moglia Barth) escolhe como tema o mundo da periferia e do tango, para estabelecer no cinema – que na época pode ser considerado como epítome do moderno – uma tradição nacional do filme de tango. Por seu lado, o samba também passa a ser protagonista na criação de uma tradição cinematográfica brasileira, a do filme de carnaval. Muitos dos primeiros filmes argentinos e brasileiros tomaram o tango e o samba – suas histórias, seus mundos e seus personagens típicos – como fonte de inspiração. A continuidade entre o mundo da música popular e do cinema, nesse cinema primitivo, é claramente perceptível: músicos, cantores e letristas transitam frequentemente entre um mundo e outro, convertendo-se em atores, cenógrafos, roteiristas ou diretores de filme. [...] essas problemáticas atravessarão os filmes de Carlos Gardel e Carmen Miranda. Passo importante na nacionalização do tango e do samba, essas produções também narram, a sua maneira, uma possível história de cada um deles (GARRAMUÑO, 2009, p.28-29).

O processo de nacionalização do samba se deu através de algumas formas artísticas de representação deste. Seja nas artes plásticas, seja no cinema, o samba foi utilizado e convertido em símbolo de identidade nacional brasileira. A autora aborda essa contraditória relação entre o primitivo e o moderno estabelecendo uma análise comparativa e ao mesmo tempo somatória das partes, tratando o samba e o tango como símbolos dos processos civilizatórios tanto brasileiro como o argentino. O primitivismo e o moderno como síntese na construção da identidade nacional. A autora trata da relação tênue entre músicos e atores ou diretores, indicando essa duplicidade de papéis representados por sambistas, como é o caso dos filmes de Carmen Miranda. Um exemplo interessante é o de Adoniran Barbosa, que começou no cinema e lá conheceu O Demônios da Garoa, assim enveredando de forma mais veemente na música. Assim se deu a história do samba nacional, do século XIX aos anos de 1960. No próximo capítulo, no qual tratar-se-á do samba paulista, retomaremos essa trajetória da 62

historiografia do samba e suas peculiaridades políticas, econômicas e sociais, além de apresentar uma análise sociológica e antropológica do gênero.

3. CAPÍTULO 3 - O SAMBA PAULISTA DO RURAL AO URBANO

3.1 O Samba rural paulista

Das diversas formas de Samba, surgem várias nomenclaturas: Samba Antigo, Samba Caipira, Samba Campineiro, Samba de Pirapora, Samba de Terreiro, Samba de Umbigada, Samba Lenço, Samba Paulista, Samba Sertanejo, Batuque, ou, entre seus praticantes, simplesmente Samba. – Samba de roda/Samba de bumbo/Samba rural. Quando focamos no interior de São Paulo, Geraldo Filme, afirma que os sambas de roda realizados pelos negros em Pirapora do Bom Jesus, em 1808, seriam a semente do gênero por aqui, ao menos é disso que se orgulha a cidade no seu site oficial. Romeiros fazendeiros levavam os escravos que faziam um batuque a distancia. Após a abolição da escravatura, os ex-escravizados e seus descendentes continuaram a frequentar Pirapora durante as Romarias e datas festivas. No começo do século 20, foram construídos dois barracões para abrigar os romeiros que não tinham onde se hospedar, os negros ficavam nestes barracões e ali mesmo realizavam o samba. As formas de samba que praticavam em suas cidades, eles as faziam em Pirapora para festejar o Santo, eram os sambas de Umbigada, Samba de Lenço jongo, o tambu entre outros. A forte presença da zabumba (bumbo) que fazia o compasso do ritmo da dança, aos poucos provocou a fusão da denominação dos sambas que se praticavam nos barracões de Pirapora como samba de bumbo ou samba de Pirapora que Mario de Andrade preferiu chamar de “Samba Rural Paulista”. A partir das décadas de 1910 e 1920, a presença crescente dos batuqueiros em Pirapora a tornou no reduto do samba paulista, e os batuques dividiam o motivo de atração dos romeiros com a festa religiosa – um sincretismo, a fusão de diferentes elementos, desde elementos culturais aos religiosos, trazidos das origens africanas à elementos do catolicismo, essa mistura de crenças e culturas levaram os padres responsáveis pela igreja de Pirapora decretarem a demolição dos barracões. Estes eram considerados, o antro das festividades profanas, tentando desta forma coibir esta manifestação artística/cultural não compreendida na época. Foi do Samba de Bumbo de Pirapora que originou uma das mais importantes influências dos primeiros cordões carnavalescos de São Paulo.

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3.1.2 O que é o samba paulista?

O apontamento de Mário de Andrade da suposta primeira ocorrência escrita do termo “samba” em São Paulo (recolhida numa ata da Câmara Municipal de Avaré, datada de 1889 e assinada por um fiscal municipal)mostra a vagueza de seu uso antigo: “Não me consta que houvesse jogo de búzio e cateretê ou fandango em outras casas, nas quais apenas fizeram tocatas, que são divertimentos próprios da Noite de Natal, havendo nos quartos do capitão Gabriel um divertimento denominado samba, o qual não me pareceu proibido pelas posturas” (extraído do Dicionário Musical Brasileiro, de Mário de Andrade). (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 21).

Anexa a esta pergunta temos outras que a completam, por exemplo: O que é o samba rural paulista? O que é o samba paulista urbano? Em que o samba paulista se difere do carioca? Essas questões preenchem o universo ao qual esta pesquisa se propõe responder, para tanto, convém um aprofundamento na sua historiografia, como feito anteriormente quando tratamos no capítulo da história do Samba. O que essa pesquisa aponta é que o samba rural paulista se difere do urbano e do carioca, de diversas formas, são elas: o toque caipira o qual tratou Antônio Cândido(1998), este trazendo como um dos seus principais elementos a viola, além da utilização do bumbo, e suas características de contar as crenças e o cotidiano, isto no final do século XIX ao início do século XX, nas plantações de café, na pobreza, a falta de dinheiro, de reconhecimento da cultura negra, o papel do branco no samba, pois estes começam a participar dessas romarias e dessa mistura cultural, quem traz esses elementos nas suas obras, são, principalmente: Geraldo Filme e Toniquinho Batuqueiro. Já quando nos debruçamos sobre o samba urbano de São Paulo, obrigatoriamente deve-se citar Adoniran Barbosa, este com Demônios da Garoa, Germano Mathias e o zoólogo da USP Paulo Vanzolini, entendendo que estes são os representantes de grande relevância na história do samba paulista urbano. Posteriormente, Geraldo Filme e Toniquinho Batuqueiro vieram engrossar o coro do samba paulista na capital, principalmente na Praça da Sé com os engraxates sambistas. Daí começa uma espécie de fusão entre o urbano e o rural. Neste espaço urbano com o advento dos rádios e revistas o acesso ao samba carioca, também trouxe suas contribuições culturais, estas com grande influência na criação e profissionalização do carnaval paulista. Osvaldinho da Cuíca conta uma de suas primeiras experiências como músico sambista em São Paulo quando ainda nos seus vinte anos de idade, mas já um profissional que acompanhava outros sambistas. Quando ninguém mais que Adoniran Barbosa – já reconhecido como um grande artista – o chamou para uma conversa. 64

Adoniran fez um rápido “Psiu! Psiu!” e já foi me perguntando: “e você, rapaz, o que é que você faz? O que é que você faz?” – repetir tudo o que falava era uma característica sua. “eu sou do conjunto Acadêmicos da Paulicéia”, respondi, ao que ele retrucou “Por que Acadêmicos da Paulicéia?”. Tentei falar-lhe que nós fazíamos samba paulista, mas ele logo me interrompeu dizendo “Isso é bobagem, isso é bobagem. Não existe essa história de samba paulista, existe samba brasileiro! Existe samba brasileiro!” Aquela intromissão me deu raiva, mas preferi não entrar em confusão. Fiz que concordava e deixei ele falando sozinho. Ainda não tinha sofisticação para argumentar sobre o samba paulista e, ademais, naquele momento, assim como ele, o que eu fazia, mesmo, era o samba carioca, o “telecoteco” que se tornou nacional via rádio e bolachões de 78 rpm. Nem passava pela minha cabeça que as batucadas com que eu me deleitava nas ruas ou nos cordões carnavalescos tinham algo de muito valioso e particular. Pesquisar o samba que nasceu em São Paulo no final do século XIX, então, nem em sonho! (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 20).

Osvaldinho reconhece que assim como Adoniran, acabou por ser envolvido no ritmo do samba carioca que era visto e reconhecido como o nacional, até então. Tanto é que segue explicando que após sua releitura que lhe deu embasamento e reconhecimento de algo que ele era um dos protagonistas. Ele (Osvaldinho) tinha uma relação interpessoal com Adoniran, criou-se essa relação, após o primeiro encontro na TV Record. Quando, o ainda menino, Osvaldinho da Cuíca entra para o cordão carnavalesco Garotos do Tucuruvi, em 1958, já se destacava pela sua habilidade precoce na confecção e manejo dos instrumentos percussivos, e através dessas habilidades se tornaria um dos batuqueiros mais virtuosos do país. Na segunda metade da década de 1960, Osvaldinho conciliava um estilo de vida tradicional com severas doses de vanguarda, que resultaria em importantes parcerias em sua carreira. "Em 1967, entrei para o Demônios da Garoa, junto com o Adoniran", recorda com emoção do sambista paulista por natureza e de nomes saudosos da música brasileira com quem teve a oportunidade de conviver, como Ataulfo Alves, Ismael Silva, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, Cartola e Geraldo Filme. Em 1974, Osvaldinho grava seu disco de estreia como intérprete, produzido pelo selo Marcus Pereira. O músico recorda o episódio em que José Ramos Tinhorão - importante crítico musical - publica no Jornal do Brasil uma crítica sobre o disco: "Ele começou me elogiando como profissional, mas 'meteu o pau' no meu trabalho dizendo que eu não acrescentei nada à cultura paulista regional. Que o meu disco refletia um padrão carioca de samba e não exaltava o samba rural de São Paulo." Ao contrário do que se espera, a reação do músico foi inusitada: "Ao invés de eu achar ruim, me tornei amigo do Tinhorão, agradeci e comecei a militar pela valorização do samba 65

de São Paulo", conta Osvaldinho, apontando o momento como "importantíssimo" para a sua carreira.

Antes da consagração nacional do samba carioca nos anos 30, o termo “samba” em São Paulo (como no resto do Brasil) não designava um gênero musical especifico, mas apenas uma forma de lazer popular em que se tocava música, na maioria das vezes de certa ascendência africana. Por esse motivo, era comum entre os caipiras – São Paulo tinha uma população majoritariamente interiorana – chamar de ‘samba’ uma parte de suas cantorias festivas, principalmente aquelas em que os negros tomavam parte de maneira mais ativa, tais como as que recebiam o nome igualmente genérico de “batuque”. É verdade que o folclore regional qualificava algumas danças de “samba”, tais como o “samba-lenço” e o “samba-de-umbigada”, mas também não há qualquer evidência de que estas seguissem um padrão musical determinado. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 21).

Assim como citado no primeiro capítulo, o samba antes de mais nada surgiu como uma expressão cultural de ascendência africana, com misturas de ritmos como citado por Tinhorão: a fofa, o fado, o lundu, com maior enfoque na dança do que no gênero musical, pois este variava. Já em São Paulo nos interiores, onde habitava a maioria da população paulista, o que se aponta é para algo caipira, sertanejo. Um ponto importante na historiografia do samba paulista são os apontamentos de Mário de Andrade, nos quais ele traz à tona a suposta primeira ocorrência escrita do termo “samba” em São Paulo. Nesta pesquisa pode-se observar que em São Paulo, assim como no restante do país onde o samba surgiu, houve semelhança no caminho e na forma que o samba aparece, ou seja, primeiro no interior da cidade de São Paulo e, posteriormente caminha para os bairros da cidade de São Paulo, para no inicio do século XX, ter suas primeiras aparições, na região central da capital, incluindo a esta o bairro do Bixiga, o qual se tornou um dos bairros mais importantes da cidade, no que tange ao samba. Vamos utilizar dados fornecidos por pesquisadores que conseguiram o relato de alguns dos atores desta história, a história do samba paulista. Aqui vale esclarecer a razão da utilização das obras bibliográficas, as quais nos debruçaremos a seguir: Um Batuque Memorável no Samba Paulistano – Gomes, 2010 e Batuqueiros da Paulicéia – Osvaldinho da Cuíca e Domingues, 2009. Essas duas obras trazem relatos de atores que fizeram parte e que construíram a historiografia do samba paulista. Quanto a obra de Osvaldinho da Cuíca e Domingues logo nas primeiras páginas encontra-se sua importância, além de explicar, também mais razões da escolha de José Ramos Tinhorão, como principal bibliografia de fundamentação teórica desta pesquisa, pois este teve influência 66

vital nesta obra de Osvaldinho da Cuíca, além de fazer com que Osvaldinho revisse seu posicionamento como elemento contribuinte do samba paulista e sua história, como veremos a seguir:

[...] Em 1974, quando já era músico respeitado, Osvaldinho lançou um LP, “Vamos Sambar – Com Osvaldinho da Cuíca e Grupo Vai-Vai”, e recebeu uma severa crítica de José Ramos Tinhorão. O texto reconhecia-lhe o enorme talento, mas afirmava que tal disco tinha pouco valor cultural porque se limitava a reproduzir o samba feito no rio de Janeiro, ignorando a produção própria da terra do autor. Osvaldinho não se defendeu, não ironizou. Pelo contrário. Engoliu a decepção, a vaidade, e mergulhou em suas memórias e começou a estudar com afinco as manifestações musicais típicas do estado de São Paulo. Hoje, cerca de 30 anos depois, este livro oferece ao público a melhor parte dos resultados de tanta dedicação. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 9-10).

Osvaldinho da Cuíca é um dos ícones do samba paulista, pois está intrinsicamente ligado a ele em todas as formas de relações, pois além de ser músico, sambista e paulista também tem um papel social no que se refere ao resgate e resistência de uma cultura paulista, além de ser participante desta história de migração e hibridismo do samba rural com o urbano. Desta forma, neste livro, Osvaldinho da Cuíca abrange toda a história do samba paulista com propriedade de quem faz parte dela.

SAMBA DA PAULICÉIA

Na Barra Funda, compadre, Eu vi a terra tremer Ouvi no couro dum bode Uma cuíca gemer Era quizomba ou pagode, Ninguém sabia dizer.

Até a lua lá no céu Brilhava com mais prazer E o Astro-Rei aparecia Bem mais cedo pra ver O samba da Paulicéia nascer. O samba da Paulicéia nascer.

E viva a alegria do nosso terreiro E viva a estandarte que glorificou E verde e branco, Barra Funda, o primeiro, Que Dionísio Barbosa criou.

(Osvaldinho da Cuíca) (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 13).

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Neste samba Osvaldinho mistura em sua letra a história do samba paulista trazendo pra Barra Funda: “Era quizomba ou pagode, ninguém sabia dizer”. Junto a essa “diáspora interna” o samba migrou pelo país e depois dentro do Estado de São Paulo onde, também teve sua polarização até chegar à capital. E esta cultura representada por este gênero musical, o samba, antes proveniente e representante de uma cultura afro- brasileira e, além disso, um gênero com característica rural, vinda dos terreiros das fazendas do interior para a capital onde começa a se tornar um produto urbano, no ambiente hibrido urbano, vai se transformando em algo novo com influências e misturas com o cotidiano urbano. Fica fácil perceber que a inspiração de uma composição reflete o meio em que seus compositores vivem. A inspiração para as composições vem do cotidiano, e refletem a realidade e o momento histórico em questão, o samba e o samba paulista têm essa característica, por exemplo, final do século XIX e início do século XX. Os sambas de Toniquinho Batuqueiro e Geraldo Filme, falam da roça, da falta de condições dignas de moradia na favela, já em São Paulo, nas periferias, já depois do meio do século XX Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini falam da fábrica, dos bares do centro, da Boemia e, Geraldo filme começa a falar do carnaval de São Paulo e os elementos que compunham esse universo.

3.1.3 Uma análise comparativa entre o Samba paulista e o carioca

Nem mesmo o grande sucesso de “Pelo Telefone” no carnaval carioca de 1.917 mudou o significado de samba para os paulistas. Ainda que esta composição – assinada por Donga e Mauro de Almeida, mas criada coletiva coletivamente pelos frequentadores das rodas da ilustre casa da tia Ciata – tenha marcado a apresentação do samba para o grande público do Rio de Janeiro, não consta que tenha causado alarde em São Paulo. O mesmo se pode dizer de todo o samba “amaxixado” – como chama os musicólogos, referindo- se, antes de tudo, às rodas do célebre compositor e pianista Sinhô –, feito até o final dos anos 20. O sentido mais específico e unívoco da palavra “samba” só começou a se impor em São Paulo nos anos 30, em função do estrondoso sucesso da reformulação rítmica elaborada nas escolas de samba cariocas. Sobretudo na pioneira Deixa Falar, do Estácio de Sá, nascida em 1928. Essa mudança, levada a todo o país pelo rádio e os então modernos discos de gravação elétrica, fez do samba praticado no rio de Janeiro a maior expressão da música brasileira, dando início a uma primazia que dura até hoje. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 21-22).

Aqui uma visão paulista do alcance do samba carioca e, ao mesmo tempo do apontamento a especificidade do samba paulista quando se propõe fazer uma análise comparativa do samba paulista e o samba carioca – este visto como o samba nacional – e suas especificidades.

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É preciso registrar, porém que o samba carioca não se tornou dominante em São Paulo da noite para o dia. Durante os anos 30, houve uma sensível divisão de espaço com o samba que se fazia por aqui, como por exemplo, o samba do caipira de Raul Torres, que dominou o carnaval paulistano de 1935 com “ A Cuíca Está Roncando” – essa música voltaria a ter êxito nacional em 1962, quando regravada pelo magnífico gaúcho Caco Velho. Outra criação bem- sucedida em São Paulo nos anos 30 foi “Bambas da Barra funda”, de 1931, gravada por seu compositor, Januário França, e um certo Henrique Costa (que era, provavelmente, o depois famoso Henricão). Esses sambas, bastante diferentes entre si e dos feitos no rio de Janeiro, tinham em comum a base harmônica e rítmica feita por violões e violas caipiras, com raríssimas intervenções de percussão (só ocasionalmente, ouve-se um pandeirinho ao fundo). (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 22).

Aqui vale relembrar a contribuição inicial a respeito do samba de Clara Nunes, que trazia consigo essa característica harmônica e rítmica da utilização da viola e violão e menos percussão. Assim como podemos observar no samba rural paulista, um samba rural, caipira.

Somente na primeira metade do século XX, quando as manifestações populares paulistas passaram a ser vistas com maior atenção pelos estudiosos, os diversos tipos de samba do estado foram reunidos sob o nome “samba- rural”. Era um avanço, uma vez que pouca gente tinha olhado com seriedade essas manifestações até então, mas a classificação não foi muito adiante, pois se constatou uma desconcertante falta de características comuns entre eles. A palavra “samba”, em, São Paulo, só ganhava sentido comum, entendido por gente de qualquer parte do estado, quando se falava no samba-de-bumbo das popularíssimas festas de Bom Jesus de Pirapora. Aquela era, sem dúvida, a manifestação mais popular que levava o nome de samba por essas bandas. Antes de comentá-la, porém, é preciso um esclarecimento: aquele samba não foi a semente do samba paulista, como muita gente diz, visto que seu surgimento é bem posterior ao aparecimento do samba na maioria das cidades do estado. Seria bem mais correto dizer que o seu papel foi o de um grande e generoso balaio, reunindo e combinando diversos tipos de samba trazidos pelos romeiros. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 23).

Cito a seguir a lenda que explica a importância de Bom Jesus de Pirapora, lenda que é composta por uma mistura que conta muito sobre o samba paulista e o conflito cultural entre o povo escravizado que ali chegou e se imbricaram com a religiosidade branca, na cultura local , cultura caipira e suas crenças.

Diz a história que, em 1725, foi encontrada numa braça do rio Tietê, apoiada numa pedra, uma bonita imagem de Jesus Cristo, Feita de madeira e medindo, 1,78m, o presente trazido pelo rio poderia ter sido facilmente levado dali para a igreja de Santana do Parnaíba (município mais próximo) pelo carro de boi oferecido por um fazendeiro da região, mas um atoleiro da várzea arruinou a remoção. Aturdidos, os três escravos negros que tentavam transportar a imagem discutiram por horas uma maneira de resolver o problema, até que um deles, o carreiro, sugeriu uma mudança na disposição dos eixos do carro e 69

tudo se resolveu. Foi o primeiro milagre do Bom Jesus, não pelo desencalhe, mas porque o tal carreiro era surdo e mudo. Extasiados pela sensação de terem presenciado uma verdadeira revelação divina, os três interpretaram o desencalhe e a cura como sinais de que a imagem queria permanecer ali – uma ideia bastante recorrente entre os católicos brasileiros, vale dizer – e que aquele seria um lugar santificado. O local onde a imagem foi encontrada (apelidado de “Beco do Rio Santo”) foi marcado com uma cruz e logo passou a receber romeiros interessados no poder milagroso da estatueta e das águas do Tietê, enquanto no ponto exato do milagre foi construída uma capela. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p. 23-24).

Evidentemente e, até de forma natural os negros estavam presentes e, assim houve uma saudável contaminação da festa cristã pela cultura africana. Esse sincretismo, logo, sob sua influência, as homenagens ao Bom Jesus tornaram-se também um importantíssimo evento musical, comparável – guardando-se as devidas proporções – às históricas festas de Nossa Senhora da Penha, do Rio de Janeiro, onde o samba carioca deu alguns dos seus primeiros passos, segundo Osvaldinho. Aqui Osvaldinho faz uma análise comparativa entre o início do samba carioca na igreja da Penha e o samba paulista com toda a questão religiosa em Bom Jesus de Pirapora. E o quanto a questão religiosa proporcionou o desenvolvimento de hibridismo cultural e social. Voltando nossos olhares sobre as características específicas do samba paulista, nos deparamos com o “samba-de-bumbo”. Este pode-se afirmar que é o samba “tradicional” rural paulista, pois neste encontra-se os principais elementos da cultura negra africana, com os batuques dos tambores e danças.

O Samba-de-bumbo, aquele que mais se celebrizou dentre os sambas paulistas, tem sua criação atribuída a Honorato Missé de quem pouco se sabe. Nas minhas pesquisas, com o prestativo auxilio da prefeitura de Pirapora do Bom Jesus, consegui descobrir que Honorato era branco, filho de uma família de 8 irmãos, e que seu nascimento foi em 22 de dezembro de 1903. Em Santana do Parnaíba (na época, Pirapora ainda não era um município). Essa simples informação é suficiente para datar a consolidação do samba-de-bumbo a partir do final dos anos 10 – o que se reforça pelo testemunho do historiador Affonso de Freitas, em seu livro Tradições e Reminiscências Paulistanas, que repudiou a novidade dos bumbos em Pirapora no ano de 1921. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.25).

Assim pode-se recuperar essa informação de suma importância para que se atribua uma data à historiografia do samba paulista e o seu símbolo, até então mais forte, o samba-de- bumbo, considerado um ancestral do samba cosmopolita.

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O samba-de-bumbo nasceu da inclusão do bumbo (instrumento então usado pelas popularíssimas bandas marciais) nas cantorias profanas dos devotos, as quais costumavam ter apenas o acompanhamento de violas, cavaquinhos, chocalhos e batidas de mãos e pés. Uma vez que os primeiros tambus – tambores graves escavados em troncos de árvores –, comuns nos batuques paulistas, não fossem tão frequentes em Pirapora, já que seu tamanho e peso dificultavam o transporte, coube aos bumbos a função de realçar o caráter rítmico das canções, favorecendo a expressão dos vigorosos matizes musicais africanos[...] é evidente que Honorato não foi o primeiro a perceber que se podia usar o bumbo para batucar – Maria Paes de Barros, nas suas memórias de infância numa fazenda de Piracicaba, por volta de 1856, já fala numa zabumba (sinônimo de bumbo em São Paulo) empregada nos batuques. O que se pode ter certeza, entretanto, é que os testemunhos existentes são praticamente unânimes na afirmação de que foi somente a partir de Honorato que os bumbos conquistaram os frequentadores de Pirapora. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.25-26).

3.1.4 O samba, o bumbo e a viola

Convém ressaltar a importância do registro feito sobre o papel desse instrumento (bumbo) seguido pela viola, concedendo total peculiaridade ao samba rural paulista, pois este carrega de maneira mais evidente a predomínio da influência dos cantos africanos, segundo Osvaldinho observa em sua pesquisa empírica.

Ao contrario do samba-de-roda baiano ou o samba carioca, majoritariamente negros, o samba-de-bumbo trazia uma participação muito representativa de caboclos e até de brancos – como o próprio Honorato – sobretudo desde as primeiras décadas de século XX. Era uma combinação previsível, visto que espelhava a própria estruturação racial da massa trabalhadora das fazendas paulistas. E seus resultados foram grandiosos. A falta de uma identificação com um segmento mais específico da sociedade levou-o a receber tipos de toda a origem e vindos de toda parte, que imprimiram no samba-de-bumbo as suas marcas culturais, enriquecendo-o com elementos musicais originalmente dispersos, como o jongo, a catira, caninha verde e a importantíssima folia do divino. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.26).

E assim vai se formando a historiografia do samba paulista seguindo uma análise comparativa com o país - com ênfase no samba paulista e o carioca - encontrando nesta, similitudes e complementos que vem a somar com a história do samba nacional. Pode-se observar as peculiaridades do samba paulista, com enfoque no diferencial da utilização do bumbo e violas, e a surpreendente constatação da pouca utilização dada ao pandeiro no samba paulista rural ao contrário da utilização dada a este no samba carioca, que tinha o samba chamado “telecoteco” como informado por Osvaldinho da Cuíca, reflexo do seu profundo estudo legitimado por pesquisa empírica, bibliográfica e história oral, além do embasamento cientifico do crítico musical e pesquisador André Domingues. Nesta pesquisa Osvaldinho da 71

Cuíca se atém a explicar e pontua a participação do bumbo e suas relações fortes com os cantos africanos.

Do ponto de vista da composição, reinava o samba-de-bumbo a improvisação de versos sobre uma base melódica/harmônica bastante simples em longos desafios. É verdade que o gosto pelos desafios foi disseminado de norte a sul do Brasil nos longínquos tempos da colonização, não tendo uma única origem, visto que tanto os africanos, quanto os ibérios e até mesmo os indígenas o cultivavam de formas diferentes. No entanto, no caso dos desafios do samba- de-bumbo, tem-se a impressão de uma certa predominância do canto africano, pois, somado a influência negra em sua síntese rítmica, costumava trazer versos improvisados com farto uso de mensagem de duplo sentido, característicos da comunicação velada desenvolvida pelos escravos para driblar a vigilância dos senhores. Esse tipo de mensagens é encontrado em várias manifestações antigas da música negra paulista, sobretudo no jongo. Um bom exemplo disso são os seguintes versos de jongueiros, inconformados com trabalhar no engenho de alguém que não move uma palha e que, se beneficiado lucro sozinho, sem nem lhes deixar provar do café, fruto do seu esforço:

Engenho novo de Mané Lope Porque que engenho roda se não tarabaia? O café bom vai pra cidade E o carreiro passa de banda.

Outro exemplo é o batuque “Tiá de Junqueira”, ensinado pelo saudoso Geraldo Filme:

Oi, tiá, tiá, tiá de Junqueira, oi tiá. Oi, tiá, tiá, tiá de Junqueira, oi tiá.

Moça bonita de lírio, oi tiá. Veja que coisa indecente, oi tiá. Deita sem estar casada, oi tiá. Fazendo vergonha pra gente. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.27-28).

Segundo Osvaldinho da Cuíca, em pouco tempo, o samba de bumbo tornou-se um atrativo das festas de Pirapora, sobretudo, para os frequentadores mais humildes. Sambistas que iam lá para orar e pagar promessas, já aproveitavam a viagem para encontrar sambistas de outras cidades como: Itu, Tietê, Piracicaba, Jacareí, e São Paulo. Nos barracões de alvenaria, os bambas paulistas expressavam livremente suas manifestações, longe dos olhos da igreja de Pirapora, a qual as rejeitava.

[...] Tal cuidado tinha fundamento, pois a poderosa igreja de Pirapora não escondia sua rejeição por esse tipo de manifestação. Por outro lado o que parecia ser um “confinamento” – muitos sambistas interpretavam assim – acabou sendo a garantia da liberdade para sua expressão, pois, sob a proteção 72

das espessas paredes dos barracões ficou mais fácil o aprofundamento de certos traços “heterodoxos” da nossa sincrética cultura popular – não é à toa que muitos pais e mães-de-santo podiam ser frequentemente encontrados por ali, a exemplo de seu Livinho da Vai-Vai, o maior pai-de-santo do Bixiga na primeira metade do século XX. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.28-29)

Essa relação de Pirapora com as Escolas de Samba da capital acontece de forma rica em trocas culturais entre os artistas mais importantes na história do samba paulista, pois os sambistas da capital encontravam-se com os outros sambistas do estado nesses barracões, os quais têm muitas histórias e composições feitas nesses encontros. Um desses exemplos é uma música de Geraldo Filme que abre essa pesquisa (Batuque de Pirapora).

Nos velhos barracões o samba-de-bumbo aprimorou-se, sobretudo nos lendários desafios entre campineiros e paulistanos. Por aquelas rodas passaram tanto os célebre Henricão e Geraldo Filme, nomes de primeiríssima linha do samba paulista, quanto uma série de outros sambistas menos conhecidas, mas também importantíssimos, como o velho Dionísio Barbosa, fundador do primeiro cordão paulistano, o Grupo da Barra Funda. Geraldo, aliás, registrou suas memórias de Pirapora em dois belíssimos sambas: “Tradições e Festas de Pirapora”, feito para a Unidos da Peruche, e “Batuque de Pirapora”, um samba de terreiro. Este ultimo, aliás , relata sua visão sobre um acontecimento de infância:

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Falando em Geraldo filme, vale aqui darmos o devido reconhecimento a este artista paulista e, um dos mais importantes sambistas, além de ser um dos responsáveis pelo “intercâmbio cultural” do samba rural (de bumbo) e o urbano, pois transitou nesses dois universos proporcionando esse hibridismo cultural, entre a cidade de São Paulo e o interior da cidade. Geraldo Filme, também é o autor de um dos sambas mais importantes da Escola de Samba Vai-Vai, o qual é um dos sambas mais importantes da escola (Tradição - Vai no Bixiga pra ver). Voltando a Pirapora e suas manifestações culturais, passemos agora aos conflitos culturais e religiosos:

A grande mobilização em torno do samba em Pirapora logo passou a concorrer com os interesses religiosos e o confronto foi inevitável. Em 1936, a igreja interditou os barracões, alegando falta de segurança, e desarticulou os sambistas. Também no mesmo ano, foram proibidos os desfiles dos cordões carnavalescos pelas ruas de Santana do Parnaíba durante a temporada festiva – cordões como o Camisa Verde e Branco e o Vai-Vai eram presença certa naqueles dias. Segundo as pesquisas recentes e ainda não publicadas do antropólogo Marcelo Manzatti, restaram aos sambistas apenas dois redutos significativos: um sitio afastado, onde ficavam os campineiros (numerosos e respeitados), e um boteco apelidado de “Bar do Coringão”, quase na saída da cidade, ponto de encontro dos bambas que vinham de Santana do Parnaíba. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.30-31)

Mas outras razões, mais cotidianas, ou melhor, mais ligadas a anomia social, contribuíram para que estes festejos minguassem.

As restrições ao samba em Pirapora diminuíram a lotação da cadeia local naquelas noites frias de agosto, repleta de bêbados e arruaceiros, mas fizeram com que, gradativamente, o peso cultural da festa de Bom Jesus fosse diminuindo. Para piorar, ao mesmo tempo, o samba começou a sumir do interior paulista por conta do grande êxodo rural decorrente da industrialização desembestada da capital e suas adjacências. Em Itu, por exemplo, o samba mal passou dos anos 40. Por tudo isso, na década de 50, quando os barracões dos romeiros foram demolidos, a efervescência já não eram nem sombras da de outrora, ainda que um bom numero de sambistas continuasse indo até Pirapora para fazer suas orações. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.31)

As razões pelas quais essas manifestações culturais perderam o peso estão claras, contudo, algo permanece vivo. Basta direcionar nossos olhares para este, dentre outros estudos acadêmicos que buscam a compreensão de um movimento de resgate às culturas “originais” paulistas, mas este com enfoque no samba paulista. Sendo assim, quebra-se uma era, o samba de bumbo perde esse espaço de celebração e, devido a este conflito entre a religião e a cultura de um povo – que em sua maioria eram 74

negros – há uma quebra nesta forma de representação cultural de uma expressão específica desta região do Brasil.

Desprezado na maior parte dos meios cultos, o samba-de-bumbo deixou pouquíssimos registros, o que favoreceu uma rápida substituição de suas características originais – já nos anos 30 Mário de Andrade (um dos primeiros pesquisadores a se interessar pelo assunto) acusava mudanças significativas em seu famoso estudo “O Samba Rural Paulista”. Somente nos anos 70 os musicólogos e folcloristas passaram a dar alguma atenção para aquela música, porém já irremediavelmente transformada. Foi por essa época que estive pela primeira vez em Pirapora e pude conhecer o batuque, encontrando grupos pequenos, abandonados, usando instrumentos com pele de náilon e desprezando o réque-réque de chifre de boi, sujeitos a mutações inspiradas nas modas que se sucediam no rádio e na televisão. Aliás, posso assegurar que, até o que ouvi naquela época – algo próximo dos batuques de folia do divino interioranos –, já foi bastante alterado pelas novas gerações. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.31)

3.1.5 O Samba e o hibridismo cultural

Sente-se aqui certo lamento pela “perda” da característica “original” do samba de bumbo, mas o que diz os estudos culturais (GEERTZ, 2008) não há cultura estática, ou seja, está em constante movimento em suas teias.

Atualmente, depois de sucessivos esforços de recuperação, o samba de Pirapora está próximo do samba-de-roda baiano, batucando a síncope típica das palmas da capoeira. O próprio nome “samba-de-roda” tem sido usado para qualificar aquela música, o que é um absurdo, pois, mesmo que alguns sambistas antigos chamassem o batuque assim, sua presente adoção é evidentemente baseada no conhecidíssimo ritmo da Bahia. Além disso, os registros dão conta de que o samba de Pirapora não era feito apenas em roda, mas também em duas fileiras contrapostas em “cobrinhas” – frutos da influência indígena. Recentemente houve, ainda, a inclusão da zabumba nordestina, com bacalhau (baqueta fina e comprida de madeira percutida na pele inferior do instrumento) e tudo, resultado de uma lamentável ignorância de que os termos “bumbo” e “zabumba” eram utilizados indistintamente pelos sambistas e estudiosos do passado. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.32)

Novamente é nítido o sentimento de “perda” que envolve o discurso de Osvaldinho, mas pode-se direcionar o olhar para uma ideia de andamento natural da história, pois durante conflitos desenvolvem-se novas culturas, em Pirapora e depois levado para a capital e para outras cidades do interior paulista, desta forma, é quase impossível não haver hibridismo cultural e, este traz consigo mudanças que atingem diversas áreas, seja cultural ou não.

É preciso ressaltar, também, que tal transformação arbitrária não aconteceu apenas no samba-de-bumbo de Pirapora, mas também, em maior ou menor 75

grau, nas demais variedades do samba-rural paulista. Aliás, um sintoma evidente da perda das características musicais particulares de todos esses sambas é a escandalosa semelhança que agora ostentam entre si. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.33)

Essa semelhança entre os sambas urbanos, conforme Osvaldinho da Cuíca apresenta, é notória, acredita-se que houve essa padronização do samba após o advento do rádio e dos discos, pois chegavam nas gravadoras e eram aceitos um estilo especifico de samba, o representante nacional, o samba carioca.

É preciso ressaltar, no entanto, que a convivência tão plural ainda não havia determinado o atual cosmopolitismo da cidade. Ao contrário. Havia uma certa resistência da elite em aceitar influências dos imigrantes e, mais ainda, dos negros recém-libertos. O convívio democrático entre pretos e brancos, brasileiros e europeus, que nos abriria inúmeras perspectivas de máxima importância, ficava quase restrito aos bairros pobres, como Barra Funda, Brás e Bixiga – hoje centrais, mas que, na época, formavam uma espécie de periferia do centro social e econômico da cidade – ou aos então distantes e semi-rurais Jabaquara, Mooca, Santana e Lapa (citando, apenas, alguns dos mais importantes) (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.34)

Aqui chegamos a formação dos bairros da cidade de São Paulo, com sua formação já com característica multicultural, desde de o princípio de sua construção cultural já tinha em sua composição a diversidade e seus conflitos

Desta forma, musicalmente, prevalecia em São Paulo, acima de tudo, uma manifestação de elite trazida pelos portugueses; a seresta, especialmente cultivada pelos estudantes de Direito da renomada escola do Largo São Francisco. Noite após noite, cantando nas ruas sob a fina garoa que se tornou símbolo da cidade – e que, graças a poluição, já não é mais comum hoje em dia –, esses jovens mantinham acesa a chama ancestral lusitana, que nos legou a principal base melódico-harmônica da nossa música e do inabalável gosto por temas passionais. Os imigrantes europeus, acima de tudo, os italianos, logo se identificaram com a seresta, que, aliás, tinha um largo histórico de influências da produção operística de sua terra. Um bom exemplo disso era cantor e compositor Paraguaçu, um filho de italianos batizado Roque Ricciardi (nascido em 1894 e falecido em 1976), que se tornou o maior nome dessa vertente em São Paulo. Paraguaçu, inclusive, começou sua carreira com o apelido de “Italianinho do Brás”, antes de adotar o nome artístico de origem indígena que o consagrou. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.34-35)

Pode-se observar, na citação acima, o reflexo dessa miscigenação, desse hibridismo de povos e culturas. Estas refletidas em diversos aspectos característicos desses povos que chegaram ao Brasil, ora escravizado, ora como fugitivos de guerras, dentre outros, os quais se 76

misturaram aos índios que – pelo o que informa os livros de história – sempre viveram nessas terras. Voltando as serestas:

A seresta, porém, ainda que bastante assimilada pelos setores mais pobres da sociedade, não resumia a vida cultural de São Paulo. Os negros também cultivavam suas próprias formas de expressão musical, em geral, ligadas a uma religiosidade sincrética, resultante da certa identificação dos orixás africanos com a divindade e os santos do cânone cristão e, em menor medida, com seres e conhecimento ocultos da fé indígena. A história registra severas repressões aos seus cantos e danças, tais como os presentes nas festas de Nossa Senhora do Rosário, os chamados tambaques (definidos por Tinhorão como uma “versão paulistana dos reinados de congos dançados em frente à igreja da padroeira em suas festas”), ou os moçambiques, congadas e batuques. No entanto, sua musicalidade sobreviveu, dando frutos de valor incalculável até os nossos dias. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.35)

Neste ponto nos deparamos com as questões religiosas imbricadas às culturais, muitas vezes devem ter somado e outras devem havido conflito, pois eram povos de crenças e costumes muito diferentes e ligados de forma intrínseca às culturas de cada povo.

No principio, o carnaval paulistano – como o do Brasil inteiro até meados do século XIX – era dominado pe3lo festejo desregrado do entrudo. Trazida pelos portugueses nos primeiros tempos da colonização do país, essa brincadeira algo violenta se amparava numa espécie de acordo coletivo pela suspensão de uma série de normas de convivência. Assim, durante os dias de carnaval, aceitava-se, por exemplo, que uma “moça de família” fosse à janela do seu sobrado jogar um balde d´água (ou de algum líquido mais ofensivo...)sobre um rapaz educado que estivesse passando ou vice-versa. Embora de mau- gosto, o entrudo era um divertimento até democrático, pois todos, inclusive os escravos, tomavam parte, sujando-se entre si e aos brancos. A diferença social só se percebia nas “armas” usadas pelos foliões: enquanto os mais nobres preferiam os limões-de-cheiro (esferas de cera preenchidas com água perfumada), a chamada “ralé” usava o que tivesse à mão (ovos bons ou podres, farinha, goma, frutas estragadas, vísceras de animais...). Pode-se dizer que cada “bloco de sujos”, desses que até hoje saem em algazarra pelas ruas do Brasil a fora, traz a memória do entrudo. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.35-36)

Assim, pode-se compreender um pouco mais sobre alguns costumes que perduram desde o descobrimento do Brasil até os dias de hoje, formando, assim a historiografia brasileira. Trazendo consigo, como numa colcha de retalhos, a junção de partes que vão dando sentido ao todo e, ainda mais importante no que se refere a este estudo, a participação do samba nessa construção cultural. Quando observamos o quanto a arte representada, neste caso através do samba, pode formar uma identidade nacional. Já quando nos debruçamos sobre o papel do samba paulista na formação da identidade nacional, se faz notória a sua relevância, 77

pois tem toda uma peculiaridade que se diferencia dos demais, mesmo quando verifica-se que também há muita similaridade na forma que se construiu a história do samba dentro do multiculturalismo étnico em outras regiões do pais, além dos atores que participaram deste contexto.

No decorrer do século XIX, um novo conceito de civilidade adotado pela elite brasileira fez com que o entrudo passasse a ser cada vez mais reprimido pelas autoridades. Ao mesmo tempo, ganhou força um carnaval “civilizado”, inspirado nos bailes de máscaras italianos e nos desfiles de carros alegóricos. Abria-se a era dos bailes elegantes, que se espalharam após 1840, quando se realizou com sucesso o primeiro baile no Hotel Itália, no Rio de Janeiro [...] Em São Paulo, as sociedades tiveram uma história muito particular, a partir da Sociedade dos Zuavos, fundada em 1857. Conta José Ramos Tinhorão, no polêmico artigo “A Vocação Caipira de uma cidade Cosmopolita”, que seus desfiles pelas ruas centrais da cidade também se davam ao som da banda militar e com carros ricamente enfeitados, puxados por belos cavalos, mas que exibiam, em figurinos luxuosos e sensuais, as mais cobiçadas prostitutas da cidade. Tinhorão anota, ainda, que esse apelo erótico das sociedades carnavalescas paulistanas afastou as “famílias” do carnaval de rua da cidade e criou condições para verdadeiras orgias, que se estendiam a certos clubes em festas reservadas. A chamada “gente de bem” só voltaria a frequentar o carnaval de rua quando, no inicio do século seguinte, difundiu-se a moda do corso, um desfile em automóveis abertos pelas ruas mais importantes da cidade, como a Avenida Paulista. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.36-37)

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3.1.6 O samba paulista e o carnaval

Foto: Arquivo/ USP Imagens

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São Paulo- SP- Brasil- Grupo de crianças do Cordão do Camisa Verde e Branco na romaria a Bom Jesus de Pirapora em 1925. Havia uma ligação muito grande dos cordões carnavalescos paulistanos e a Festa de Bom Jesus de Pirapora.

Nesta parte da historiografia do samba paulista, assim como o samba nacional, pode-se perceber o samba como um componente do carnaval, pois não se tem carnaval sem samba. [...] Os corsos tiveram especial sucesso em São Paulo, vicejando até o início dos anos 40, quando as restrições decorrentes da II Guerra mundial (que fizeram cair drasticamente as importações de novos veículos, peças e gasolina) reduziram bastante o uso de automóveis no Brasil. Depois da Guerra, a indústria automobilística apostou suas fichas nos carros “fechados” – aqueles com capotas fixas – e os corsos minguaram definitivamente. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.37)

A importância dada a estes detalhes se fará notória para uma visão geral do entendimento do papel do samba paulista e , por que não dizer? De São Paulo na construção da identidade nacional, pois esta cidade cosmopolita é o retrato da diversidade que constrói de forma multicultural sua identidade frente ao mundo. Continuemos dar a devida atenção à pesquisa de Osvaldinho da Cuíca e Domingues:

Também é digna de nota uma outra manifestação antiga do carnaval paulista, surgida em meados dos 1800: os caiapós, aparentados dos cucumbis cariocas, dos caboclinhos pernambucanos e das tribos carnavalescas paraibanas. Tratava-se de pequenos grupos de populares (em geral, compostos por pretos,

27 http://fotospublicas.com/acervo-historico/imagens-historicas-carnaval-de-sao-paulo/ 79

mestiços e brancos empobrecidos) que saíam pelos bairros da cidade fantasiados de índios, recriando danças dos nativos brasileiros e cantando ao som de chocalhos e outras peças leves e improvisadas de percussão vez por outra, apareciam também instrumentos harmônicos, a exemplo de violas caipiras ou cavaquinhos. Acusados, às vezes, de “artificiosos” e “pouco espontâneo” por sua evidente inspiração no deslumbramento nativista da primeira fase do nosso romantismo literário – que tinha o seu maior herói em Peri, o “bom selvagem” de José de Alencar –, os caiapós resistiram ao tempo e ainda existem em cidades como São José do Rio Pardo, comprovando uma inegável representatividade. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.37-38)

3.2 DO SAMBA RURAL AO CARNAVAL E ÀS RODAS DE SAMBA DA CAPITAL

3.2.1 O samba paulista urbano nas ruas e nos cordões

Pretende-se nesse subcapitulo descrever para que nesta desconstrução possa-se reconstruir essa “diáspora” do samba paulista que sai do interior paulista, depois volta com mais elementos para Pirapora e, com o fechamento dos barracões migra para a cidade e começam as manifestações populares de rua, sendo elas: rodas de samba, cordões, estes em escolas de samba e na contemporaneidade, vemos o retorno expressivo dos blocos de rua em São Paulo. Muitas dessas manifestações sobreviveram, com destaque para o carnaval, pois apresenta sua grandiosidade em todo o país, tendo o carnaval carioca como a maior festa do país. Todavia, São Paulo não deixa de ter sua importância, pois mantem viva escolas como Vai-Vai, Camisa Verde e Branco, Nenê da Vila Matilde... Ainda nos debruçando sobre a obra rica de Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, na qual pode-se observar essa historiografia do samba paulista ao sair do ambiente rural e transformar-se em movimentos culturais populares e nessa fusão com o urbano passar por uma espécie de “metamorfose”.

A formação de grupos carnavalescos nas camadas populares da cidade já se ensaiava há algum tempo, quando, em 12 de março de 1914, foi fundado o Grupo da Barra Funda, o primeiro cordão de São Paulo. No próprio bairro da Barra Funda, inclusive, teria se formado em 1913[...]. O grande responsável pelo surgimento do Grupo da Barra Funda foi Dionísio Barbosa, um negro de grande liderança, presumidamente nascido no ano de 1891, em , próximo a Rio Claro – município onde o compositor erudito Alexandre Levy colheu os exemplos de samba que remodelou na 4ªparte de sua “Suíte Brésilienne”, editada em 1890. Filho de uma professora autodidata e de um diácono que também era músico amador, Dionísio chegou à Barra Funda ainda na infância, deparando-se com um bairro de gente humilde, dividido, principalmente, entre imigrantes europeus e negros vindos de fazendas do interior. Na adolescência, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde conheceu os 80

ranchos e cordões, grandes sensações do carnaval popular local, desfilou em alguns deles e ficou tão fascinado que, de volta a São Paulo, no começo dos anos 10, resolveu convidar amigos e parentes Para fazer algo semelhante. Inicialmente, era um conjunto de choro semi-profissional, e, pouco adiante, se transformaria no famoso Grupo Barra Funda. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.42)

Esta é uma das fases mais importantes da história, pois traz um pouco da vida de um dos atores mais importantes na história do samba paulista no ambiente urbano. Dionísio Barbosa é uma das peças fundamentais para a formação das escolas do samba paulista.

Dionísio, que além de compositor era um bom pandeirista, aprendeu as marchas do carnaval carioca e as remodelou ao seu estilo no cordão, mas sem se descuidar de conservar os batuques paulistas no repertório. Acontece que, sendo filho de um homem diretamente ligado à igreja, sua formação tinha grande influência das festas religiosas, sobretudo daquelas em que os negros tomavam parte mais ativamente, como as de São Benedito, de Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora do Carmo e Bom Jesus de Pirapora – ele costumava contar que carregou o andor da procissão de Pirapora aos 7 anos de idade –, nas quais a música de viés africano era muito presente. Como os colegas de cordão, dm maioria pretos e mulatos interioranos, também partilhavam dos mesmos gostos musicais, suas opções estavam plenamente respaldadas. Aliás, Marcelão, o tocador de bumbo, se tornaria um dos mais famosos batuqueiros de Pirapora. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.42).

Pode-se notar que o carnaval carioca, de alguma maneira, sempre esteve presente nesse início da formação do samba paulista urbano, seja nos cordões, seja nas escolas de samba, ora como parâmetro para fortalecer o samba rural paulista, ora para nivelar as escolas paulistas às cariocas.

Embora Dionísio Barbosa tenha morado quando criança na rua Tupi, as primeiras saídas do Grupo da Barra Funda já partiram da casa que morou na esquina da rua Vitorino Camilo (n. 114) com a Conselheiro Brotero, depois trocada por uma série de outros endereços no bairro. Em seu desfile inaugural, foi entoada uma singela e eficientíssima marcha-sambada que, mesmo pouco conhecida, equivale simbolicamente ao “Ó Abre Alas”, de Chiquinha Gonzaga, para o carnaval paulistano. Seus versos eram assim:

Minha gente saia fora Da janela, venha ver O Grupo da Barra Funda Tá querendo aparecer

Cantamos todos com voz aguda Trazendo Vivas ao Grupo Da Barra Funda! (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.42-43)

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Como o método utilizado nesse estudo, assim também se faz para analisar o samba paulista, nos utilizando do samba e do carnaval carioca como contraponto na análise comparativa.

Já nessa primeira aparição pública, os integrantes do Grupo Barra Funda se apresentaram vestidos de calça branca e camisa verde, o que motivou do apelido Camisas Verdes. Seria com esse apelido que, em pouco tempo, o grupo ficaria conhecido na cidade, levando Dionísio a rebatizar o cordão como Camisa Verde. O nome, porém, não duraria muito. O risco de que os sambistas fossem confundidos com simpatizantes do Partido Integralista (cujos membros eram conhecidos como “camisas verdes” ), que foi duramente perseguido pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, teria levado um delegado a “sugerir” uma nova mudança. Sabendo da conveniência de evitar choques com o poder público, o grupo cunhou, então, seu terceiro e definitivo nome: Camisa Verde e Branco. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.43)

Assim como no Rio de Janeiro o Estado Novo de Getúlio teve sua “participação”, no caso do Rio de Janeiro, se apropriando do samba como elemento catalizador, já em São Paulo dando algumas “sugestões” para melhor sua aceitação.

[...] o Grupo da Barra Funda/ Camisa Verde e Branco foi o cordão mais importante de toda a história de São Paulo. Seu aparecimento motivou a fundação de outros tantos que acabaram por determinar a cara dos primeiros 50 anos dos festejos momescos da cidade. Dionísio, contudo, pouco desfrutou das glórias de sua iniciativa. Em 1939, cansado das intrigas e pouco reconhecimento do carnaval de rua paulistano, decidiu se afastar da função de comandante do grupo, levando-o a encerrar suas atividades. Somente em 1952 o Camisa Verde e Branco voltou a se reunir e, em 4 de setembro de 1953, foi re-fundado oficialmente. O principal responsável pela sobrevida do Camisa foi Inocêncio Tobias (também conhecido como Inocêncio Mulata), amigo de Dionísio e morador do bairro. Junto com os amigos Colombina, Feijó e Bagdá, Inocêncio reorganizou o Samba na Barra Funda e preparou os alicerces para a grandeza que o Camisa Verde e Branco ostenta até hoje. Dionísio Barbosa, contudo, só voltaria a vestir um figurino alviverde em 1975, dois anos antes de seu falecimento. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.43-44)

Assim compreendemos um pouco o início dessas manifestações culturais paulistas. Pode-se notar a importância de Dionísio Barbosa e a famosa: Camisa Verde e Branco, escola que traz a história das escolas de samba de São Paulo.

Uma ficção comum no imaginário popular – e, até, em artigos de estudiosos – é a de que os cordões paulistanos do inicio do século fossem grupos grandes e bem organizados na sua apresentação (fantasias, danças e alegorias) ou na sua música. Na realidade, porém, não passavam de pequenas turmas de familiares, vizinhos e amigos que saíam às ruas com figurinos simples, feitos em casa, e com formação musical muito reduzida e improvisada. Deve-se sempre desconfiar daqueles que descrevem um cordão como uma multidão de encher as ruas, vestida em trajes esplendorosos e dançando ao som de uma música ensurdecedora. Mesmo sendo verdade que, com o tempo, os cordões cresceram e se sofisticaram bastante, esse tipo de descrição baseia- 82

se muito mais nas cenas dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, grandiosos desde os anos 40, do que na realidade local paulistana. Outro equívoco frequente é tratar os cordões como meros embriões das escolas de samba, esquecendo que tiveram uma organização própria, original e auto-suficiente por muitas décadas (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.44).

Esses questionamentos da citação acima são de suma importância para que se possa vislumbrar a compreensão do real papel do samba paulista na formação da identidade nacional. Desta forma, poder-se-á construir uma imagem daquele tempo histórico, pois falsas informações podem distorcer a realidade e dificultar a compreensão dos fatos. Para tanto, Osvaldinho da Cuíca descreve como acontecia um cordão que, segundo ele, saíam no final da tarde, de uma das ruas estreitas do centro de São Paulo e perambulavam pelas ruas do centro até a manhã do dia seguinte, isso acontecia na metade do século XX.

Numa daquelas ruas estreitas e escuras do centro de São Paulo, cheia de gente a espera dos desfiles, ouve-se o toque de clarins e surge uma movimentação diferente. O povo, ansioso, começa a se comprimir, rumando em direção à calçada, e já pode ver os balizas, girando e arremessando seus bastões (feitos cuidadosamente com o dobro da medida do antebraço de se usuário0, abrindo caminho para o resto do cordão. Os balizas vêm vestidos com sapato branco, meias da mesma cor que vão até o joelho, calça de elástico bufante presa no joelho, camisa tingida com as cores do cordão, adornada com bordados ou lantejoulas, boné e uma capa vistosa com um belo desenho. São dois tipos de balizas: os que encantam o público com seu malabarismo, inspirados diretamente nos balizas da fanfarra do regimento de Fuzileiros Navais carioca – eu, como meu pai, fui um deles! –, e os que têm apenas a função de afastar os curiosos que dificultam a passagem do cordão, inclusive, usando o muque, se necessário. Aliás, os primeiros também colaboram nessa função e têm até um truque para abrir caminho: passando por ruas mal iluminadas – como as históricas Rua São Bento e Rua do Comércio –, eles ameaçam jogar baliza pra cima e, que nem mágicos, a escondem na capa. As pessoas, supondo que o bastão foi jogado tão alto, que se perdeu na escuridão, saem estabanadas para os lados, com medo de que lhes caia na cabeça. Subitamente, o bastão reaparece na mão do baliza e o cordão consegue passar. Vale dizer, contudo, que isso só funciona porque, de vez em quando, alguém joga de fato o bastão e deixa cair de propósito em cima da multidão...(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.45).

E assim seguem as descrições detalhadas de quem conhece a história de forma empírica. E realmente, dificilmente alguém que não viveu saberia fornecer dados tão ricos de detalhes. Convém prosseguir com a citação de Osvaldinho sobre os cordões. Reconhecendo aqui a relevância histórica dessa pesquisa de Osvaldinho e Domingues, pois sem ela pouco teríamos a respeito como bibliografia.

Na frente, junto aos balizas, se pode ver a porta-estandarte, que carrega o estimado estandarte do cordão. No inicio, essa função era exercida por homens 83

travestidos – em geral, de baiana –, como o pioneiro Torquato, do Grupo Barra Funda. Somente em 1922 o Cordão dos Desprezados, da Alameda Glete, ousou lançar uma porta-estandarte. Desde então, as mulheres passaram a disputar essa função com os homens. Aliás, as mulheres penaram para conseguir maior espaço nos cordões, e uma comprovação disso é que a primeira baliza (então chamada de “contra-baliza”), Dona Sinhá, do Vai-Vai, só apareceu nos anos 30. Nunca foi comum ter muita mulher em cordão. As que tomam parte da brincadeira, ou são parentes, esposas e namoradas dos líderes do grupo, ou são daquelas que não se preocupavam muito com um “boa reputação”, pois o preconceito é fortíssimo. Menos que mulheres corajosas dispostas a derrubar os tabus sociais vigentes, essas ultimas costumam ser pobres coitadas, que, frequentemente, trazem sua marginalidade marcada na face, em finos riscos de navalha (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.45-46).

O papel da mulher no samba é algo a ser discutido, mas isso já contemplará outra pesquisa. O que nos move nesse estudo é o samba paulista e os elementos que o compuseram, não se pode deixar de lado informações que contam não só a historicidade do samba, mas fatos presentes na história e na arte, principalmente nas letras dos sambas. As letras dos sambas trazem consigo muito do momento histórico e neles seus padrões vigentes.

[...] logo adiante aparece a arraiá-miúda do cordão, vestida de baianas e rumbeiras – alguns cordões preferem outros personagens que povoam o imaginário popular, como índios e marinheiros. [...]. a dança dessas pessoas também é algo espontâneo, até anárquico, pois, sem ter de cumprir requisito nenhum, cada folião pode criar seu estilo pessoal. Finalmente, e lugar de destaque, chega a corte, com rei, rainha, príncipe, princesa, lorde, duque, ministro e embaixador. Só não tem bobo da corte. As roupas de todos são uma livre criação sobre as figuras reais da Europa medieval. Pode-se distinguir facilmente o rei e a rainha por usarem coroa, cetro e um bonito manto, carregado com cuidado por crianças. Trata-se, pois, de um grupo bem organizado, uma vez que somente os bons cordões têm uma corte completa. A realeza, centro das atenções, Dança em “cobrinha” – um provável legado do samba-rural –, fazendo seu zigue-zague sem pressa ou espalhafato, representando orgulhosamente a função nobre que desempenham naqueles dias de festa (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.46-47).

São muitos detalhes na descrição de como se comportavam esses cordões, sendo assim acredito na importância de fornecer mais algumas peculiaridades desta prática que ocorreria no carnaval paulista na metade do século XX.

Depois da corte vem, então, uma rumbeira, de fantasia caprichada, saracoteando na frente do pessoal do batuque, que encerra o desfile, tal qual uma madrinha de bateria dos tempos modernos. Provavelmente, trata-se de um travesti de verdade, já que os homossexuais têm uma especial atração pela figura da rumbeira. Aliás, a presença de travestis no carnaval paulista foi sempre marcante. Eram, em geral, homens valentes, bons brigadores, que passavam a se travesti após passagens pela cadeia. Ninguém se metia com eles. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.47). 84

Mais um elemento importante destacado por Osvaldinho, o travesti tinha seu papel social definido através do carnaval, através do samba, assim o samba se transforma num espaço de aceitação das diversidades.

Ao contrário das atuais baterias de escolas de samba, os batuques (era assim que as seções rítmicas eram chamadas) dos cordões dos primeiros tempos não tinham muita percussão. Além do bumbo, onipresente no carnaval paulistano, o que se podia encontrar mais facilmente eram instrumentos improvisados, como ganzás e chocalhos de pau com tampinhas de garrafa pregadas. Os agrupamentos mais desenvolvidos musicalmente costumavam ter também pandeiros e uma caixa. Somente os grandes cordões tinham cuíca – se não me engano, o corcunda Zé da Rita, grande cuiqueiro do Henricão, havia sido componente do Campos Elísios. No mais, o que se podia escutar era o som de metais, principalmente trombone e saxofone, e cordas, como violões, violas caipiras e cavaquinhos. Essa presença relativamente grande de instrumentos melódicos explica, em parte, o pouco uso de percussão, pois o volumoso som desta fatalmente encobriria os demais. Com o tempo, porém, o tamanho e a importância da percussão nos batuques foram aumentando, deixando os demais instrumentos em segundo plano. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.47-48).

Aqui se deve observar o detalhe do bumbo, este como um elemento característico do samba-rural, que segundo os autores, era onipresente neste ambiente. Outro ponto em que se deve demorar um pouco é a presença dos metais e dos instrumentos de corda, pois estes são instrumentos mais melódicos, carregam mais melodia em suas notas, o que diferencia o samba paulista dos outros sambas brasileiros, pode-se dizer que é essa diferença melódica e o trabalho das vozes, que veremos com Demônios da Garoa, mas já falaremos mais disso. Neste ponto ainda tem algo a se observar no que tange aos bumbos.

Ser batuqueiro era algo engraçado. Eu me lembro bem que, durante cada desfile, furavam-se muitos surdos e bumbos por conta do contato direto das peles com a madeira das baquetas. Além disso, havia a necessidade de se esquentar o couro repetidas vezes, a fim de que esticasse e possibilitasse um som mais claro e forte. Tal necessidade fazia com que os batuqueiros fossem catando e guardando folhas de papel pelas ruas, pois sabiam que precisariam acender não uma, mas muitas fogueiras ao longo da noite. Parecia que, a cada vez que a pele esfriava, ficava mais murcha do que estava antes. Se tivesse sereno, então, pior: tinha de fazer fogo ainda mais vezes e com papel úmido! As fogueiras só diminuíam depois de algumas horas, quando o pessoal, bêbado de cachaça, deixava de ligar para a qualidade do som. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.48).

A cada informação de como se dava o samba em São Paulo, se pode começar a construir um desenho, no imaginário, de como era e quão distante se chegou para começar olhar para o passado e reconstruir através das memórias 85

Havia no batuque uma figura maior, um grande comandante, que era o apitador, tido como o “dono” do samba. Além de coordenar os demais, ele tinha de bolar criativos breques do pessoal, em que entrava solando melodias improvisadas ou conhecidas – estas podiam ser, desde toques militares até trechos de composições famosas, como “Danúbio Azul”. A qualidade dos breques era fundamental para o renome do apitador e do cordão, pois, nos concursos esparsos que ocorriam pela cidade os batuques não eram avaliados pela competência dos músicos e, sim, pela inventividade do apitador. Vale notar que os apitos da época eram maiores e mais graves do que os que se usam hoje nas escolas de samba, por isso permitiam que se atingisse um extenso leque de notas. Mas para que estas notas saíssem afinadas, os apitadores precisavam ter enorme habilidade nos dedos e nos lábios (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.48-49).

Mais um elemento presente no samba, mas aqui acredito que mais utilizado no cordão e posteriormente, nos carnavais modernos – mais agudo e menor no seu tamanho –, o apito marcou a história do samba paulista e seu maior apitador, pelo que dizem os sambistas e uma linda canção, visto sua história de sambista boêmio e mulherengo: Pato N´Água. O maior apitador da história paulista foi, provavelmente, o Pato N’Água (Walter Gomes de Oliveira), do Vai-Vai, um batuqueiro brilhante e um líder nato, capaz de impor sua autoridade a todos os batuqueiros do cordão. Sob o seu comando, o batuque do Vai-Vai teve dias gloriosos e se tornou o mais respeitado da cidade. Pato, negro alto, forte, ossudo e muito ágil, era também um valente convicto que criava inimigos com a mesma facilidade que imaginava suas evoluções no apito. Numa manhã de 1969, porém, foi encontrado morto num córrego de . A versão oficial era de que ele teria sofrido um enfarte e se afogado, mas isso não convenceu ninguém, pois a jaqueta que vestia tinha furos muito suspeitos. O dramaturgo Plínio Marcos, amigo dele, arriscou uma outra versão, dizendo que sua morte se deu por obra do Esquadrão da Morte. Geraldo Filme, amigo de longa data de Pato N’Água, autor da bela homenagem “Silêncio no Bixiga”, afirmava que ele saiu de táxi para ver umas “comadrinhas”(como chamava suas amantes) e que o chofer, estranhando a corrida que já durava um dia inteiro, o teria entregue a policiais de uma delegacia, onde foi visto com vida pela última vez. O certo é que muita gente podia querer matar Pato, inclusive os eventuais maridos e amantes das “comadrinhas”, e a aparência de uma vingança se reforça pela ironia de terem jogado seu cadáver na água (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.49).

E como é fato recorrente no samba, essa história triste e cheia de nuvens encobrindo a verdade, daí surge um samba lindíssimo e comovente. Além de ser um dos mais conhecidos dentre os sambas de Geraldo filme.

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FOTO: Arquivo/USP Imagens

São Paulo- SP- Brasil- Carnaval na década de 1950. Pato N’água, grande sambista e apitador no Cordão da Camisa Verde e Branco no Vale do Anhangabaú.

Silencio no Bixiga Silencio, o sambista está dormindo. Ele foi, mas foi sorrindo. A noticia chegou quando anoiteceu. Escolas, eu peço o silencio de um minuto. O Bixiga está em luto: O apito de Pato N’Água emudeceu. Partiu, não tem placa de bronze, Não fica na história, Sambista de rua morre sem glória Depois de tanta alegria que ele nos deu. Assim, um fato repete de novo: Sambista de rua, artista do povo, É mais um que se foi sem dizer adeus (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.49-50).

Pode-se ver além nesse samba, crítica social, que imortaliza o seu protagonista. Pato N’Água ficou conhecido e é cantado até os dias de hoje nas rodas de samba de São Paulo. Para encerrarmos esse assunto que são os cordões, convêm mais alguns detalhes como, por exemplo, o repertório utilizado.

A música dos cordões era tão livre quanto sua apresentação. A variedade rítmica usada pelos cordões paulistas das primeiras décadas de 1900 era tamanha, que documentos da época dão conta de que alguns até valseavam em seus desfiles, contrariando a máxima de que a música carnavalesca deva ser, 87

necessariamente, alegre e agitada [...]. Havia, porém, um ritmo que se destacava frente aos demais no repertório dos cordões: a marcha-sambada. Tratava-se de uma derivação mais acelerada, brejeira e sincopada das marchas militares. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.50-51).

Esse repertório variado denota a criatividade e a quantidade de elementos que compunham essas expressões culturais populares representadas pelo samba, este cheio de variações em vários aspectos, desde instrumentos utilizados a andamentos, uns mais e outros com menos influencias europeias, como a valsa.

Embora tivessem bastante contato com o samba-de-bumbo, os cordões pioneiros não tinham esse samba – nem nenhum outro – como “prato principal” dos seus desfiles. O motivo disso é, provavelmente, o fato de o samba-de-bumbo ser mais lento e ficar um pouco ofuscado pela vibração das marchas-sambadas. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.52).

Essas variações do samba paulista, existem comparativamente, principalmente com o samba carioca, mas a de se analisar bem esses dois sambas. [...] Nos anos 30, com a maior popularização do radio, entraram no repertório dos cordões os sucessos radiofônicos, desde os sambas acaipirados de Raul Torres – notoriamente inspirados nos sambas de Pirapora –, até os sambas de gente como Noel Rosa, Ismael Silva, Bide e Marçal, aclamados no Rio de Janeiro (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.52).

Essa nova fase em que se inicia a instalação da indústria cultural no Brasil, pode-se afirmar que o “intercâmbio” cultural se instalou, pois a facilidade de acesso ao outro, se faz mais eficiente e rápida.

Aos poucos, com a consolidação do samba carioca no gosto paulista, os compositores daqui começaram a compor nesse estilo, mas, acostumados com as velozes marchas-sambadas, acabaram acelerando bastante o seu andamento. Essa inovação lhes valeu o apelido de “canelas duras” dado pelos sambistas do Rio, pois, naquela velocidade, ficavam muito difíceis os requebros samba, só restando aos foliões marchar. Curiosamente, em meados dos anos 60, os cariocas também passaram a fazer sambas-enredo em andamento bem mais rápidos e se aproximaram mito das marchas-sambadas. Hoje, os sambas que as escolas do Rio levam para a Avenida estão mais rápidos do que os de São Paulo (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.52). .

Então, segundo Osvaldinho confirma-se, até certo ponto, a troca de influencias do samba paulista numa análise comparativa com o samba carioca. Não foi unilateral, neste caso das marchas-sambadas paulistas, influenciando o andamento do sambas-enredo carioca.

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Outra característica do samba de São Paulo que prevaleceu até os anos 60 era o maior peso do batuque, feito com muito surdo e bumbo e pouca miudeza (pandeiro, cuíca, frigideira, chi-chique...). A influência dos batuques caboclos de Pirapora e do interior do estado era, evidentemente, a razão desse peso. Atualmente, porém, houve uma padronização – burra, é bom dizer – das baterias, o que eliminou boa parte dos traços regionais dos diversos desfiles que ocorrem pelo Brasil. Uma perda recente que eu lamento muito é a bateria da Vai-Vai ter deixado de fazer uma evolução criada pelo Pato N’Água, uma simulação de uma briga entre os batuqueiros que transformava a bateria numa grande bagunça por alguns instantes, mas que, assim que soasse o apito, voltava à mais perfeita harmonia. Era algo bonito e bem original. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.52).

Essa questão do Brasil não preservar suas memórias é incômoda. O que poderia ser a marca, como as cores da Mangueira, a águia da Portela... tirar a evolução criada por Pato N’Água é uma perda para a memória da escola. A Vai-Vai tem muito da formação do perfil cultural do samba da cidade de São Paulo, assim o que a escola preservar de sua história, a cidade de São Paulo, também terá preservada uma parte importante da sua história cultural.

O Vai-Vai foi o único dos grandes cordões paulistanos que começou com evidente maioria negra. Formado no Bixiga, pedaço mais baixo da Bela Vista, no final dos anos 20 (a data oficial da fundação é de 30, mas conheço composições de 28 e 29 feitas por Henricão para o grupo), o cordão logo se tornou o principal reduto dos batuqueiros de Pirapora na capital. Também pudera. A maior parte de seus fundadores frequentava as festas de Bom Jesus (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.55).

Este estudo não tem como foco o carnaval, nem as escolas de samba, mas na crença de que essas informações venham a desenhar o papel do samba paulista em meio a formação da identidade nacional em suas imbricações.

Com a chegada dos italianos à Bela Vista e com seu notável entendimento com os antigos moradores do local – Adoniran Barbosa dizia: “no Bixiga, até os crioulinhos têm sotaque italiano...” –, a agremiação cresceu bastante, diversificou suas referências e se tornou anda mais democrático. Funcionando como escola de samba desde 1972, o Vai-Vai é o maior detentor de títulos do carnaval paulista. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.56).

Adoniran dispensa apresentações, pois é o nome mais forte quando se fala em representante paulista no samba. Além do seu sotaque italiano num português “errado”, inclusive samba em italiano: Pióve! Este era um dos brancos do samba, além de Paulo Vanzolini que era zoólogo da USP – autor de Ronda, Um Homem de Moral, dentre outros. No inicio de 1940 o antigo Teatro Santana recebeu a espetacular escola de samba da Portela em seu grito de carnaval – uma espécie de show com vários artistas que marcavam informalmente a abertura das festividades carnavalescas. Na plateia, o ritmista Nenê do Pandeiro (apelido pelo qual era 89

conhecido Alberto Alves da Silva, um mineiro criado na zona leste de paulistana) ficou de queixo caído com o que ouviu. Os cordões e escolas de São Paulo não tinha nada que se comparasse àquilo em termos de organização, qualidade sonora e impacto visual. Isso, sem falar no samba, que os portelenses dominavam como poucos [...]. Os primeiros anos da Nenê da Vila Matilde marcaram uma mudança de rumos no carnaval paulista, pois, embora fosse bastante semelhante aos cordões da cidade, a escola foi a primeira a se empenhar em seguir o modelo carioca com fidelidade. Um fruto relevante desse esforço foi sua tentativa de implantar o samba-enredo em São Paulo em 1956. Nesse ano, narrando as relações entre brancos e negros durante a escravidão, a nenê se aproximaria bastante do padrão consagrado de samba- enredo com seu “Casa Grande e Senzala”, que seria melhor definido como “samba-tema, uma vez que tinha apenas 10 linhas e não chegava a , propriamente, desenvolver o tem,a proposto, limitando-se a ilustrá-lo (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.62-63).

O marco no carnaval paulista, lamentado pela maioria dos sambistas deste tempo histórico, foi a “adaptação” do carnaval paulista ao carioca, como representante dessa mudança temos um mineiro, Seu Nenê. A razão pelo lamento é que a partir daí inicia-se um processo de profissionalização do Carnaval paulista, e este tendo como modelo principal a Portela.

A influência das escolas de samba cariocas no carnaval paulistano consolidou- se, apenas, em meados dos 50, sobretudo em virtude dos esforços da Nenê da Vila Matilde. É preciso dizer, porém, que a intervenção da Nenê não foi o único fator envolvido nesse processo. Além do ininterrupto intercambio entre os sambistas de São Paulo e do Rio, colaboraram decisivamente os filmes nacionais, que, algumas vezes, traziam músicas e imagens de escolas de samba, e as apresentações ocasionais que as grandes agremiações cariocas faziam nos teatros e boates paulistanos. Algo que também ajudou nesse sentido foi a frequente presença na capital das boas escolas de samba de Santos, que aderiram ao estilo do Rio de Janeiro ainda na década de 40, [...] um momento significativo da divulgação das escolas de samba cariocas em São Paulo foi o das comemorações do quarto centenário da cidade, em 1954, quando Portela, campeã do Rio de Janeiro no ano anterior, esteve se apresentando por aqui. Foi nessa ocasião que eu e muitos outros batuqueiros vimos, pela primeira vez, uma bateria daquele tipo. Ficamos maravilhados. Depois, lembro que, nos carnavais, todo o pessoal ficava esperando a Nenê da Vila Matilde passar para ouvir algo similar (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.62-63).

O tom dos comentários dentre os sambistas, às vezes, é que o Seu Nenê era o “culpado” pela “contaminação” do samba paulista, ou melhor, do carnaval paulista, pelo carioca. Segundo Osvaldinho da Cuíca, houveram outros fatores que somaram a este movimento da Escola de samba Nenê da Vila Matilde.

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Por certo tempo, as tradições paulista e carioca conviviam harmoniosamente em São Paulo. Prova disso é que, mesmo depois de a Nenê ter obtido sucesso com sua adesão ao modelo de bateria das escolas de samba do Rio de Janeiro – no que logo foi seguida por agremiações como a Unidos do Peruche e a Império do Cambuci –, São Paulo continuou fazendo música carnavalesca à sua maneira. Porém, nos anos 60, quando os desfiles do Rio passaram a ser televisionados e os sambas-enredo comercializados em disco com grande êxito, o modelo carioca se tornou predominante em São Paulo. Surgiu, então, um forte movimento em favor da adequação do carnaval da cidade àquele formato de sucesso [...] Em 1968, quando, enfim, foi oficializado o carnaval de São Paulo, o destaque dado ao desfile das escolas de samba já foi bem maior do que o dado aos cordões. Quatro anos depois, em 1972, os três últimos cordões deixaram de existir: Vai-Vai, Camisa Verde e Branco e Fio de ouro viraram escolas de samba (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.68-69).

Na citação acima chega-se a outro marco na historiografia do samba paulista, pois houveram rituais de passagem importantes, e a indústria cultural com relevante participação nisso. Acaba-se a era dos cordões e abre-se para o novo, o novo tempo dos carnavais das escolas de samba.

Por conta do desaparecimento dos cordões, o ano de 1972 marca o fim simbólico do samba autenticamente paulista. Dali em diante, sobraram, apenas, uns poucos grupos pequenos e desorganizados, mas que não demoraram a desaparecer [...] Atualmente, o processo de aprendizado e adoção do samba carioca no carnaval de São Paulo já está completa e me parece irreversível. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.69).

Nota-se certo lamento na citação de Osvaldinho, mas ao mesmo tempo ele mesmo quem foi convidado para fazer todas as adaptações – do carnaval paulista ao carioca – na bateria da Vai-Vai. Além da falta de verba que se tinha para o carnaval paulista, daí a necessidade de se adaptar as normas cabíveis as quais legitimariam investimentos no carnaval paulista, que antes disso, não passava credibilidade pela desorganização geral.

Eram receios pertinentes, mas os sambistas souberam contorná-los. A desacreditada Coligação das Escolas de Samba foi esvaziada em prol da criação da Federação das Escolas de Samba e Cordões Carnavalescos de São Paulo, em que estavam envolvidos os prestigiosos jornalistas Rubens Moraes Sarmento , Vicente Leporace e Evaristo Carvalho, alem de todos os grandes líderes das escolas e cordões da época: Inocêncio Mulata, do Camisa Verde e Branco, Seu Nenê, da Nenê da Vila Matilde; Pé Rachado, do Vai-Vai; Carlão, da Unidos do Peruche; Madrinha Eunice, da Lavapés; Xangô, da Unidos da Vila Maria; Zezinho do Banjo, da Morro da Casa Verde; Vitucha, do Paulistano da Glória; Rômulo, do Fio de Ouro. A nova entidade deu credibilidade aos sambistas e, não só conseguiu a criação de um desfile oficial em São Paulo, como ganhou autonomia para comandá-lo. O primeiro carnaval oficial das escolas de samba e cordões, em 1968, foi realizado no vale do Anhangabaú. Em 1972, passou para avenida São João, e, em 1977, para a 91

avenida Tiradentes, antes de chegar ao sambódromo do Pólo Cultural do , em 1991. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.71-72).

Assim, percebe-se que seria praticamente impossível falar do samba paulista sem falar do carnaval, pois estão intrinsecamente ligados, mas será que este samba-rural paulista se perdeu nesses novos carnavais absorvidos dos cariocas?

O samba, que desde sua origem mais remota esteve ligado a festividades, não ficava de fora das celebrações juninas. Aliás, o fato de o samba paulista mais típico ter sido cunhado, em boa medida, num ambiente rural ou semi-rural colaborou decisivamente para que se adequasse bem ao caráter interiorano dessas festas, conhecidas como “festas caipiras” – até hoje, as variantes do samba rural paulista encontram abrigo em festas juninas, identificando-se mais com estas do que com o carnaval. [...] o samba foi, pouco a pouco, sumindo das festas juninas de São Paulo. Até os anos 50, por exemplo, eu me recordo de dançar muito samba nas animadas frestas de São João da rua Ponte Pensa, no Tucuruvi, apelidadas de “poeirinhas” por conta da poeira que levantava do chão de terra [...] no antigo Parque Xangai, o pessoal da Lavapés fazia uma grande festa junina em que o samba não só estava presente, como reinava soberano! (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.82).

Um dado de grande relevância, quando o que se procura é descobrir o porquê dessa denominação: samba rural paulista, já ficou claro, até aqui que este tipo de samba possuía variações e atingia e instiga muitos estudiosos e admiradores deste tipo de arte. Suas peculiaridades e proximidade com a musica caipira, ou sertaneja tradicional, ou sambas mais melódicos, seja como for, é específico e abrangente ao mesmo tempo, pois é de fácil percepção pelos temas das letras, pelo instrumentos percussivos ou não que se utiliza, o que se nota é na especificidade paulista nesse tipo de gênero musical.

[...] Na realidade, a maior parte das datas festivas em que se fazia samba em São Paulo – geralmente, dias sagrados para a fé e a história dos afro- descendentes brasileiros – estava fora dos períodos carnavalescos e pré- carnavalescos: o dia 13 de maio, que marca a abolição da escravatura do país: os dias 16 de julho de 7 de outubro, que correspondem, respectivamente, a Nossa Senhora do Carmo e a Nossa Senhora do Rosário, duas das manifestações da Virgem Maria mais prezadas pelos negros; o dia 5 de outubro, dedicado a São Benedito, o mais conhecido santo de pele negra. Isso, sem falar nos finais de semana do mês de agosto, em que ocorriam as já descritas comemorações de bom Jesus de Pirapora. A relação do samba com as festas de negros, porém, não era a única possível. Recordo-me bem que, até nas festas de Nossa Senhora de Achiropita, tradicionalmente comandadas pelos italianos no Bixiga, costumava sair samba – ainda que aquelas noites frias de agosto tivessem como principais atrações os conjuntos de choro. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.82-83).

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Ainda, nos atendo mais um instante nessa brilhante pesquisa e depoimentos de Osvaldinho da Cuíca, convém voltarmos para o samba de rua, as famosas rodas de samba. Havia vários pontos de encontro de sambistas na Barra Funda – a casa de Dionísio, na rua Tupy, era dos mais frequentados –, mas um deles se tornou o principal: o lendário Largo da Banana, situado atrás da antiga estação ferroviária da Barra Funda. Ali, onde a carga de bananas e produtos desembarcados no porto de Santos (vinda da ferrovia Santos-Jundiaí) era descarregada e eventualmente transferida para os trens que seguiam para o interior do estado, havia as mais famosas rodas de samba de São Paulo. O largo era pouco convidativo para a chamada “gente de bem”. Entre pilhas de bananas e caixotes espalhados por todo lado, misturava-se uma multidão de ensacadores e carregadores com a malandragem local. Ninguém “civilizado” se metia ali. Contudo, justamente por isso, aquele era um lugar muito propício para o florescimento do nascente samba paulistano (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.84).

Esses fatos ocorrendo nas primeiras décadas do século XX, e, assim como no Rio de Janeiro, o samba começa suas formas de expressão na marginalidade, essas características são semelhantes, pra não dizer, idênticas nos dois casos. São Paulo tem, novamente, em suas construções elementos enriquecedores de sua cultura e, com a cara da formação identitária da cidade.

Tanto os trabalhadores, quanto os malandros de lá, costumavam ser gente sem estudo que garantia a sobrevivência apenas com os próprios braços e pernas: fosse pela força, ensacando e carregando bananas nos trens; fosse pela habilidade ou pela a valentia, batendo carteiras, enganando no carteado ou tentando qualquer da vasta série de pequenos golpes que assustava a sociedade paulistana da época. Nos dois casos, sua carência era tamanha, que o lazer ficava restrito às ocasionais noitadas dos botequins e prostíbulos de baixa categoria da região – quando se tinha algum dinheiro – e às rodas de samba do Largo, gratuitas, animadas, enriquecedoras e muito democráticas (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.85).

Além do samba que ocorria nessas rodas, o autor ainda cita a tiririca (derivada da capoeira), também acontecia em rodas e, movida a sambas conhecidos e divulgados no rádio ou composições específicas como uma cantada por Geraldo Filme:

“É tumba, moleque, é tumba É tumba pra derrubar, Tiririca, faca de ponta, Capoeira quer te pegar, Dona Rita do tabuleiro Quem derrubou meu companheiro” (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.86).

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Segundo Osvaldinho, a tiririca também sumiu, por volta dos anos 50 e 60. Outro fato lamentado. Assim, vamos percebendo o quanto da cultura vai se deixando de lado e se perdendo nas memórias não resgatadas.

Uma tradição que persiste em Santos e São Paulo, como em todos os pontos do pais,é a ligação do samba com a vida social e religiosa das roças de umbanda e candomblé. Samba-de-roda, por exemplo, tido como a principal matriz do samba carioca, é uma parte indissociável das celebrações do candomblé da Bahia, em que exerce o papel de comunhão dos fiéis após os cultos. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.89).

Essa ligação do samba com a questão social e a religiosidade, já abordados neste estudo, como citado por Osvaldinho, é indissociável, pois estão intrinsecamente ligados desde seu surgimento em Terra Brasilis. O fato é que se até agora o que não se tem dúvida é que o samba é de origem afro-brasileira, vem da ancestralidade africana, com suas crenças e tradições. Assim segue mais algumas informações de suma importância para a construção desse estudo.

No próprio berço do samba paulistano, a Barra Funda, os terreiros tiveram suma importância, sobretudo, graças a mãe-de-santo Tia Olympia, que costumava receber e incentivar o pessoal do Dionísio Barbosa em sua roça [...] Outro terreiro que teve grande relevância nos primeiros tempos, muito comentado por Geraldo Filme, foi o do campineiro Zé Soldado, situado no Jabaquara, um bairro então distante e semi-rural da zona sul da capital. Negro, Grandalhão, forte e intelectualizado, o pai-de-santo Zé Soldado mantinha a convicção da necessidade da conservação da cultura negra. [...] Apenas Mario de Andrade, no citado estudo “O samba rural paulista”, anotou alguns improvisos de Zé Soldado, recolhidos em Pirapora, em 1937 (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.90).

Muito importante às contribuições de Mario de Andrade no samba rural paulista, pois pouco se tem de registros, o que se tem são testemunhos como é o caso de Osvaldinho da Cuíca, Geraldo Filme, Germano Matias, Toniquinho Batuqueiro que foi resgatado por Renato Dias e T-Kaçula, além desses dois últimos com trabalhos magníficos nas suas rodas de samba no século XXI trazendo à luz esse samba rural paulista do inicio do século XX.

Ainda que o samba estivesse espalhado por toda a São Paulo da primeira metade do século passado, havia apenas um lugar onde era seguro encontrar batucada em qualquer um dos 365 dias do ano: o centro da cidade. Era o samba dos engraxates, tão divertido e tão legítimo, que hoje sobrevive apenas nas mãos e vozes de uns poucos, como o velho Gilson Bahia (Hermenegildo Francisco dos Santos), que tem sua cadeira na Praça da República, onde organiza uma animada roda de samba 2 ou 3 vezes por semana. Nos áureos tempos, era uma multidão de engraxates que se reunia em lugares como a Praça da Sé e Praça João Mendes (as Praças da República, Patriarca e Clóvis 94

Beviláqua, também tinham núcleos fortes) para, nos intervalos entre um serviço e outro, fazer sua batucada (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.91).

Esses engraxates foram os nossos principais nomes do samba paulista. Dentre eles os nomes como Osvaldinho da Cuíca, Germano Matias, Toniquinho Batuqueiro e Geraldo Filme. Ser engraxate era um dos caminhos mais atraentes para um jovem de origem humilde – como eu fui –, obrigado a ganhar a vida sem instrução escolar, mas ainda desejoso de liberdade. No agitado dia-a-dia das calçadas era possível sentir-se o senhor de seu próprio destino, respirando a brisa que a própria cidade respirava, a brisa do progresso desembestado, das levas de migrantes e imigrantes que chegavam sem parar, dos automóveis tomando as ruas; enfim, do mundo que se construía e derrubava, minuto a minuto, diante dos seus olhos (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.92).

Esse ambiente do centro da cidade de São Paulo, acaba por se tornar um “laboratório” cultural, pois o que parece é que esse espaço público se torna favorável para novas construções que se dá pela forma cosmopolita com que a cidade vai se transformando e o samba é protagonista neste espaço com características multiculturais.

O trabalho nas ruas colaborava para desenvolvimento do gosto pelo batuque, pois juntava um monte de jovens de mesmo perfil – e que, portanto, também partilhavam da cultura mestiça e marginal que gerou o nosso samba – e era cheio de intervalos de ócio, passíveis de serem preenchidos como bem entendesse. Alem disso deve-se ressaltar que a atividade de engraxate, em si mesma, já é bastante musical, com seus movimentos repetitivos e ritmados. Eu me lembro, inclusive, que, nas mãos de meninos mais habilidosos, os panos umedecidos, próprios para dar brilhos aos sapatos, viravam um instrumento e tanto, alternando a fricção contra o couro e os estalos usados para eliminar excessos de água.

A imagem dos engraxates era uma cena fácil de ver na região central de São Paulo. Aliás, essa forma criativa de se engraxar acaba por ser um atrativo para os clientes potenciais.

[...] mas de pouco volume sonoro para uma roda de samba, os engraxates imaginaram muitas outras adaptações musicais do seu material de trabalho, o que tornava o eventual “auxílio luxuoso” de um pandeiro ou surdo um mero acessório para a batucada. Ao experimentar com criatividade as caixas de madeira, por exemplo, perceberam que, batendo na lateral inferior com os calcanhares, conseguiam uma frequência sonora mais grave, semelhante a do surdo. Batucando com as palmas das mãos na parte superior da lateral, faziam um som médio, de caixa. Da mesma lateral, ainda depois de usada para limpara a graxa das mãos, era possível tira um gemido grave da cuíca, através de um hábil movimento de fricção dos dedos. As escovas também tinham grande utilidade: as grandes, percutidas uma nas outras, davam um som vigoroso de palmas, enquanto as pequenas eram usadas como baquetas do principal “instrumento” daquelas batucadas: as tampas das latinhas de graxa. Essas tampas, feitas de ferro (ao contrário das atuais, de alumínio, que, embora mais leves e resistentes, não têm um timbre tão bonito), tiniam como ágeis frigideiras. As possibilidades musicais da tampinha da lata de graxa 95

eram tais, que acabaram consagradas nacionalmente após sua adoção pelo grande Germano Mathias nos anos 50 (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.92- 93).

Germano Mathias me indicou sua biografia: Samba Explícito, que assim como Osvaldinho da Cuíca conta sua história e a história do samba paulista.

O brejeiro batuque dos engraxates atraía os sambistas paulistanos, mas também todo o meio que os cercava. Dos bêbados aos malandros famosos da cidade. Não é à toa que uma das maiores concentrações de engraxates foi também o endereço da mais disputada roda de tiririca do centro de São Paulo: a Prainha, um trecho de calçada larga da Avenida São João, em frente à Praça do Correio. Ali, ao lado das inúmeras mesas esparramadas pelos bares da avenida, os valentes se encontravam para dar provas de força e agilidade, agravando ainda mais a má fama do local, tido como ponto de malandragem e da boemia paulistana. Eu mesmo, embora trabalhasse como engraxate no Tucuruvi, ia muito lá para batucar, jogar tiririca e tomar umas cachacinhas com o pessoal na extinta Salsicharia Dois Porquinhos (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.93-94).

Esse poder catalisador das rodas de samba do centro de São Paulo foi de suma importância para o enriquecimento deste, pois, pode-se crer que essa contribuição do samba rural e das periferias paulistanas, dá o tom do samba Paulista urbano, ou urbanizado. Além de alimentar a memória da cidade ao citar nomes de ruas, avenidas, praças e comércios locais da época, assim fortalecendo e conservando a história, a memória da cidade. [...] Há, porém, um nome que não pode ser esquecido de maneira nenhuma quando se fala em samba dos engraxates: Toniquinho Batuqueiro, um negro nascido em Piracicaba, em 1922, e radicado em São Paulo desde a juventude. [...] na verdade, ele gostava de participar de tudo o que acontecia por lá e era um dos pouquíssimos engraxates que podia trabalhar (e fazer batucada, é claro!) em pontos alheios sem ser incomodado, devido à forte liderança que exercia sobre seus colegas (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.94-95)

Toniquinho Batuqueiro é um dos principais atores deste samba rural paulista e sua transição as rodas de samba da capital. Se deve ressaltar a importância dada a sua obra por Renato Dias do Kolombolo de Diá e T-Kaçula do Samba Autêntico. Gravando suas músicas e revisitando todo seu repertório, no Projeto Memória do Samba Paulista, além de filmes documentários, nos quais os dois têm forte participação. Na contemporaneidade do samba paulista esses dois nomes são de suma importância no que se refere ao resgate da memória do samba paulista. 96

Mas, voltemo-nos para este nome, Toniquinho Batuqueiro, como citado anteriormente, um negro de Piracicaba, com talento respeitado desde os engraxates até os dias atuais.

Toniquinho tentou inúmeras vezes partir para a carreira artística, mas não obteve sucesso, embora tenha se apresentado bastante na noite paulistana e trabalhado com alguns nomes de muito valor, como Geraldo Filme (num célebre trio também integrado por Zeca da Casa Verde, formado por sugestão do dramaturgo Plínio Marcos) e seu amigo Germano Mathias. Toniquinho também alçou vôo pelo mundo das escolas se samba, tendo certo destaque por fundar a mencionada Brasil Novo e assinar alguns sambas-enredo históricos, a exemplo de “História de Vila Brasilândia”, feito com Carioca para o primeiro desfile da Rosas de Ouro. Por tudo isso, mesmo que não tenha consolidado uma carreira estável, Toniquinho criou várias amizades entre o pessoal das escolas de samba, os músicos profissionais e os radialistas paulistanos ( seu talento para as relações públicas era impressionante!), passando a ser o principal – e, talvez, o único – canal de comunicação entre os anônimos engraxates-sambistas e o meio musical profissional (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.95).

Incrível que quanto mais se conhece, mais se percebe o quão próximos todos os atores que formaram o samba paulista “tradicional”, próximos geograficamente e suas histórias de vida se cruzando e, esses cruzamentos resultam da criatividade artística, muitas vezes, por falta de instrumentos e falta de condições financeiras para tê-los, surge os truques, as saídas criativas, através de descobertas como engraxates e o ócio que e este papel social os dava, no espaço público à criação, além de certa cumplicidade entre eles, como também, uma parceria amigável, onde os sambistas se aproximavam independente das condições sociais. . Eu pessoalmente, chamei Toniquinho Batuqueiro para tocar comigo sempre que pude. Uma amostra do nosso trabalho em parceria é “Ditado Antigo”, que fiz a partir de duas estrofes de um samba com o mesmo nome composto por ele há quase 30 anos, mostrando sua influência interiorana, temperada nos batuques de Pirapora.

Ditado Antigo

Ê lae lae lae... Mandei preparar o terreiro, que já vem chegando o dia. Encourar o meu pandeiro pra entrar na folia.

E quando começar o pagode Pego o pandeiro e caio na orgia.

Meu avô, preto de Angola, me ensinava cantoria. Foi herança de um passado, quando fez a travessia. Na bagagem, a esperança, consciência e valentia. Capoeira quilombola derrubava e não caía. 97

Ah, jongueiro, Bate no couro, que tem festa no terreiro!

No dizer de minha avó, sambador não tem valia. “Samba nunca deu camisa”, minha vó sempre dizia, “Sambador não ganha nada, vive na calçada e Não cuida da família”. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.95-96).

Esta música de parceria de Toniquinho Batuqueiro e Osvaldinho da Cuíca, também foi gravada no projeto Memória do Samba Paulista, com Renato Dias e T-Kaçula. A cidade de São Paulo no inicio do século XX, momento histórico em que o meio de transporte era o trem, e este era o responsável pela fusão da cidade com suas zonas rurais, semi-rurais , bairros mais afastados com a região central, onde tudo se fundia. Assim como no Rio de Janeiro, pode-se crer em toda a região do Brasil em que o samba se fez presente, os seus representantes eram negros, mestiços, brancos pobres, as classes baixas, mais marginalizadas, menos privilegiadas de bens materiais.

Uma eficiente via de contato de parte da periferia como centro de São Paulo era o transporte ferroviário, símbolo por excelência da modernidade no inicio do século XX. Chacoalhando ao balanço moroso das maria-fumaça, sempre preocupados com as brasinhas que saíam da fornalha e chamuscavam a roupa e os cabelos, iam e vinham milhares de paulistanos, cujo deslocamento físico também implicava num deslocamento cultural, na medida em que punha em contato as ainda díspares referencias da cidade e dos subúrbios. Como não poderia deixar de ser, o samba, filho ilustre da classe baixa, viajava junto sobre os trilhos, criando intersecções entre sambistas de todos os cantos. Aliás, é bom ressaltar que o samba, desde seus primeiros anos, tem uma história em comum com os trens, a começar pelas rodas das estações Barra Funda (vizinha ao Largo da Banana) e Valongo, pontas paulistanas e santista da ferrovia Santos-Jundiaí, e da estação de – os antigos, como o Toniquinho Batuqueiro, pronunciavam “” –, ponto de encontro dos bambas que iam para Pirapora (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.96-97).

Na citação acima nota-se que a cidade de São Paulo, desde o início do século XX estava intrinsicamente ligada ao interior e, principalmente a Pirapora do Bom Jesus. Esse intercâmbio cultural era contínuo, segundo os relatos levantados nessa pesquisa, assim no momento em que a igreja começa a desaprovar os festejos nos barracões e nas ruas, essa confluência cultural, assim como seus representantes, buscam outros espaços de celebração de sua cultura. Com essa rejeição da igreja de Pirapora, o samba de bumbo desloca-se para o espaço urbano, numa intersecção, fusão, com o samba urbano, encontrando outros espaços, como os vagões dos trens da cidade.

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Assim como os sambistas escolhiam os vagões em que andavam, escolhiam as estações em que se reuniam para batucar. Na linha da antiga Central do Brasil (ligação ferroviária de São Paulo com o Rio de Janeiro, por exemplo, a periferia era a estação Brás, provavelmente por centralizar o fluxo de entrada e saída do bairro homônimo, um dos mais musicais de São Paulo [...] Pouco antes da metade do século passado, com a crescente chegada de afro- descendentes ao Brás, houve um duplo movimento de assimilação cultural em que os negros incorporaram aquela musicalidade de raízes européias, inclusive tomando dianteira em muitas serenatas, mas, em contrapartida, seduziram os antigos habitantes do local com o vigor rítmico dos seus tambores, que podiam ser ouvidos, tanto na estação ferroviária, quanto no largo da igreja Matriz de Bom Jesus do Brás, onde havia um verdadeiro enxame de engraxates batuqueiros. Essa combinação foi tão boa, que deu ao Brás o melhor carnaval de bairro de São Paulo, com suas ruas fervilhantes e as concorridíssimas “batalhas de confete”disputadas por blocos e cordões (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.97-98). .

Esses bairros da cidade de São Paulo como o Brás, era outro reduto de sambistas e europeus recém chegados ao Brasil. Claro, que assim que se houve essa relação do trem com samba, se espera saber a história da música de Adoniran Barbosa “Trem das Onze”- uma das músicas mais gravadas no Brasil e no mundo.

No Trenzinho da Cantareira, as duas estações que mais tinham sambistas eram a do Tucuruvi e a do Jaçanã (parada final da linha). Muitas vezes, quando o batuque estava bom, quem tinha que descer antes deixava passar sua estação para ir com o pessoal até Jaçanã, onde o samba continuava em algum boteco até que fosse cada um para o seu canto. Da mesma forma, os batuqueiros que ficassem no Tucuruvi, onde havia um reduto bem forte, sempre havia quem descesse antes da sua parada para acompanhá-los. Uma curiosidade: no clássico “Trem das Onze”, provavelmente para não ferir a métrica da canção, Adoniran Barbosa inventou um horário de partida para o Jaçanã que não existia, pois a última saída do Trenzinho da Cantareira nunca foi tão tarde (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.99).

Que Adoniran inventava as histórias das músicas dele, já era sabido, pois o Ernesto passou a vida dizendo que não houve nada daquilo que diz “O Samba do Ernesto” o qual ele conta que o Ernesto furou com ele e com uns amigos. Iracema é outra música que segundo amigos dele contam, foi uma moça que o esnobou e ele fez a música matando a Iracema atropelada.

[...] veio morar na capital paulista apenas aos 22 anos de idade, depois de passar por (onde nasceu), Jundiaí e Santo André. Trata-se de Adoniran Barbosa, o filho de italianos no interior que radicalizou a pronúncia caipira-italianada da capital paulista em suas composições e representou a cidade, seu dia-a-dia e seus habitantes com muita sutileza, explorando até a 99

sua singular maneira de encadear palavras na fala. Com enorme sensibilidade, conseguiu fazer (e encarnar, quando cantava) o retrato mais perfeito de São Paulo de que se tem noticia na música brasileira. Para Paulo Vanzolini, outro dos maiores expoentes da nossa história musical, seu samba “Apaga o Fogo, Mané” diz mais sobre São Paulo do que quaisquer sete volumes de enciclopédias (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.124).

Há de se concordar com Paulo Vanzolini, pois como cantora eu sempre que possível interpreto essa música, pois sua importância histórica é valorosa. Esta música conta o seu tempo, ou seja, o tempo do lampião, o tempo em que se ascendia o fogão a lenha, o tempo em que se escrevia bilhetes num papel...

Apaga o Fogo, Mané

Inês saiu, dizendo que ia comprar pavio pro lampião, “Pode esperar, Mané, eu já volto já” Acendi o fogão, botei água pra esquentar E fui pro portão, só pra ver Inês chegar. Anoiteceu e ela não voltou Fui pra rua como um louco pra saber o que aconteceu.

Procurei na Central, procurei no hospital e no xadrez, Rodei a cidade inteira e não encontrei Inês. Voltei pra casa triste demais, o que Inês me fez não se faz. E no chão, bem perto do fogão, Encontrei um papel escrito assim:

“Pode apagar o fogo, Mané, eu não volto mais”. (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.124).

Convém ressaltar que o samba paulista tem esse detalhe a ser observado, essas letras tristes, melancólicas, de questionamentos de condições sociais, falando do racismo, de religiosidade, de escravidão e, Adoniran Barbosa, com característica única, deu uma cara ao samba paulista urbano e, quando nos debruçamos para falar dos maiores interpretes do samba de Adoniran, o Demônios da Garoa, fica ainda mais nítida a diferença do samba paulista, se comparado ao carioca e, mais ainda se comparado ao samba do nordeste, pois a sutileza com que se trabalham as vozes, é única, além de ser o grupo mais antigo em atividade segundo o Guinness Book .

Adoniran nasceu João Rubinato, em 1910. No início dos anos 30, ainda sem ter um rumo certo na vida – saltando de emprego em emprego e colecionando ofícios, como os de entregador de Marmitas, varredor, mascate e encanador –, começou a se apresentar em programas de calouros das rádios de São Paulo. Achou por bem escolher um nome artístico, já que o seu nome de batismo lhe parecia incompatível com um sambista. Acabou escolhendo uma combinação do primeiro nome de um companheiro de boemia, carteiro de profissão, e o 100

sobrenome de seu ídolo da música, Luis Barbosa (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.124). .

Nota-se que a variedade de funções exercidas por Adoniran contribuiu para um repertório vasto sobre o cotidiano dos trabalhadores e, o dia-a-dia desses tipos que o próprio Adoniran observava e criava histórias com esses personagens reais da vida comum de São Paulo nos meados do século XX.

A acolhida nas rádios, porém, não foi como Adoniran imaginava, sendo gongado em vários programas. Passado um ano de tentativas, conseguiu ser aprovado no programa de Jorge Amaral, na Rádio Cruzeiro do Sul, cantando “Filosofia” (de Noel Rosa). “O rapaz do gongo devia estar dormindo”, dizia, anos depois, com muito humo. Surgiu-lhe, então, um convite de Paraguaçu para ir cantar semanalmente na Rádio São Paulo, mas mediante cachês que mal pagavam a condução de ida e volta (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.125).

Essas histórias de vida, explicam muito de quem é aquele sambista, pois está explícita em suas letras e melodias, pois estas carregam estas histórias, aqui de Adoniran, ali de Toniquinho, acolá de Osvaldinho e assim por diante. Esses atores que protagonizaram a história do samba paulista urbano, em suas realidades trazem muito de semelhanças.

No final de 1934, Adoniran colocou letra em uma marchinha de J. Aimberê, intitulada “Dona Boa”, e, para sua surpresa, venceu o concurso de músicas carnavalescas organizado pela prefeitura de São Paulo no ano seguinte. A composição, que obteve sucesso regional (inclusive pela gravação de Raul Torres) e rendeu-lhe algum dinheiro [...], porém, Adoniran foi repetidamente demitido da radio e teve que procurar outro emprego. Decepcionado, ficou um ano não longe dos microfones e, só então, voltou a perambular de emissora em emissora atrás de uma nova chance. [...] em 1941, Adoniran Barbosa foi contratado como locutor, discotecário e rádio-ator da Rádio Record, fato que mudou sua carreira (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.125).

Siqueira (2012) discorre, no primeiro capítulo desta pesquisa, sobre o conceito de branqueamento do samba, mas aqui, no caso de Adoniran , não se deve apenas ao fato da questão de ser branco ou não, pois Adoniran era um artista versátil, pois era locutor, ator, compositor e cantor, um cronista social de valor reconhecido, o que não se deve apenas a sua cor da pele.

[...] teve a oportunidade de conviver e trabalhar com o dramaturgo Oswaldo Molles, que o ensinaria a tirar o melhor de si mesmo. Dito assim, parece exagero, mas veja-se alguns trechos do depoimento dado por Raul Duarte ( o mesmo “Bico Doce” de Isaurinha) ao pesquisador Francisco rocha sobre a 101

relação de Molles e Adoniran: “Ele via no Adoniran Barbosa uma outra faceta que o próprio Adoniran não via”.

Na verdade, Adoniran tinha um espírito aventureiro, assim, aberto ao novo, percebe-se isso quando se vê as suas atuações profissionais antes de se tornar artista e, após se tornar artista atuou em diferentes papéis, ora como rádio-ator , ora como compositor de personagens, ora como compositor, ora como cantor e seU maior papel que foi o maior representante do samba paulista. [...] Orientado por Molles, Adoniran passou a valorizar sua já aguda observação dos tipos comuns que encontrava pelas ruas e se tornou um rádio- ator aclamado, com personagens popularíssimos, tais como o taxista italiano Pernafina, o galã de cinema francês Jean Rubnet, o comerciante judeu Moisés Rabinovich e o inesquecível Charutinho, malandro crioulo do Morro do Piolho . Molles também foi o parceiro fundamental da segunda e mais importante fase da obra de Adoniran, iniciada no final dos anos 40, depois de uma longa temporada de baixa produtividade. Com ele, criou sambas geniais, como “Pafunça”, “O casamento do Moacir”, “Tiro ao Álvaro” e “Mulher , Patrão e Cachaça”, entre outras joias do cancioneiro nacional. Molles soube aproveitar o bom melodista que era Adoniran e enriquecer-lhe as letras, estimulando o nascimento de um compositor que em nada lembrava o autor mediano de “Dona Boa”, um verdadeiro cronista da cidade de São Paulo, capaz de combinar crítica social e graciosidade nos versos das canções como poucos. Por tudo isso, quando Molles se suicidou, em 1964, Adoniran ficou absolutamente inconsolável (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.126-127).

É notória a riqueza de detalhes em que envolvem lutas, incertezas, decepções, mortes, etc. E, essas tragédias humanas que parecem refletir em mais riqueza criativa.

Eu e Adoniran fomos grandes amigos e compartilhamos algumas experiências de vida muito importante. Quando ele lançou com repercussão estrondosa a marcha-rancho “Vila Esperança”, Por exemplo, fui convidado para, ao seu lado e dos Demônios da Garoa, subir num caminhão e tocar a música no meio do animadíssimo carnaval de rua da vila homenageada. Embora estivesse chovendo demais – meu bumbo estava com a pele toda encharcada e frouxa –, as ruas estavam tomadas por uma multidão, e, por mais que ele repetisse a música, o pessoal não se cansava de ouvir e nem queria saber de deixar a gente ir embora. Ali, apesar do desconforto da situação, pude comprovar o quanto as músicas de Adoniran eram capazes de tocar a alma e os desejos do povo paulistano (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.127).

Indiscutivelmente Adoniran soube contar o cotidiano do povo, daquelas pessoas das suas músicas, pois ele pegava tipos reais, não enfeitados pela mídia, não mascarava a realidade paulistana dessas décadas, que permeiam os anos 50. Adoniran vivia e viveu muitas daquelas realidades ou presenciou muitas delas. Daí , segundo Osvaldinho, Molles o ajudou a aprimorar seu lado de cronista social e, a junção dessas experiências aos seus talentos de 102

sambista, ator, radialista, resultou no nome de Adoniran Barbosa, um representante de peso do samba paulista.

Quando Adoniran morreu, em 1982, resolvi prestar um tributo à sua memória com um disco. Lembro bem que, na ocasião, fui falar com a mulher dele, Matilde, e perguntei-lhe se havia músicas inéditas guardadas, ao que ela me mostrou quatro composições (algumas inacabadas), mas que não lembravam os seus melhores dias. Acabei gravando com meu grupo, o Velhos Amigos, um compacto simples pela continental com uma música de minha autoria e uma bela homenagem a Adoniran feita por Bráulio de Castro e Paulo Elias, “Véio Mestre”, repleta de citações de sua obra. Nos últimos tempos, volta e meia aparece um antigo amigo dele com um punhado de novas composições recém-descobertas, mas eu tenho minhas dúvidas sobre a real origem – Toninho, ex-integrante do Demônios da Garoa, também tinha. Acontece que é estranho o fato de ninguém ter mostrado nada no falecimento do Adoniran, quando a memória estava mais fresca. Além disso, em sua esmagadora maioria, essas músicas rabiscadas em papéis ordinários são muito inferiores ao que se conhece da obra do genial João Rubinato (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.127-128).

Essas questões das amizades de Adoniran é uma história a parte, pois o que consta é que ele morreu sem dinheiro, pois emprestava , pagava contas dos amigos, gastava muito, sendo assim, não tinha uma situação financeira estável. Convém ressaltar que essa é uma máxima entre os sambistas, na sua maioria, principalmente os negros, poucos conseguiram progredir de forma estável, inclusive os cariocas como Cartola, ou mesmo Noel Rosa. No filme que conta sua biografia, mostra ele sempre numa situação de instabilidade financeira. Nos atendo ao samba paulista, é comum em relatos de muitos sambistas, essa questão de dificuldades financeiras, novamente segundo relatos, os negros eram os menos favorecidos, não que Adoniran não tivesse tido dificuldades, pois como citado anteriormente, ele teve muitas portas fechadas. Mas há de se convir que ele era um homem com multitalentos, o que lhe deu mais possibilidades de tentativas até chegar ao sucesso.

Com muita justiça, Adoniran é lembrado entre os maiores sambistas brasileiros, sendo gravado por astros de todos os tempos, como Elis Regina, Marlene, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Roberto Ribeiro e Djavan. Vale lembrar, entretanto, que ele só começou a ter projeção como intérprete de suas próprias músicas nos anos 70, depois que gravou seus primeiros LPs. Antes disso, sua voz grave e rouca era desprezada e, para que suas músicas ficassem conhecidas, precisava da interpretação de outros intérpretes, sobretudo de um grupo que ele conheceu nos estúdios da Record em meados dos anos 40, o Demônios da Garoa (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.128).

Esse encontro foi perfeito e resultou numa cara do samba paulista urbano e, fez com que a imagem de Adoniran e Demônios da Garoa ficassem associadas para sempre. Pois até 103

hoje Demônios da Garoa é convidado por serem os intérpretes das músicas de Adoniran Barbosa, como já dito anteriormente, o grupo musical com mais tempo em atividade.

Entre xingos e afagos, Adoniran e Demônios criaram uma relação de simbiose musical perfeita a partir do início dos anos 50, quando reinaram no carnaval paulista por dois anos seguidos com o samba “Malvina” (de1955) e “Joga a Chave”(de 1952, parceria com Oswaldo Molles). O Demônios era a voz de que Adoniran tanto precisava, enquanto ele era o compositor que podia fazê- los ultrapassar o “arroz-com-feijão)dos muitos conjuntos vocais da época. Em 1955 esse casamento se consumaria definitivamente com as gravações de “Saudosa Maloca” e “Samba do Arnesto”. Nestas, o grupo mostrou compreender perfeitamente a intenção do linguajar popular de Adoniran, que, com seus erros gramaticais, trazia verossimilhança e comicidade às música (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.128).

Esse casamento bem-sucedido de Adoniran e Demônios da Garoa, tornou-se um símbolo característico e, por que não dizer, identitário, do samba paulistano, pois trazia consigo o trabalho de vocalização que se encaixou perfeitamente às músicas de Adoniran Barbosa.

O maior êxito das carreiras de Adoniran e do grupo Demônios da Garoa foi “Trem das Onze”’, samba que, sem nenhum grande plano de divulgação, arrebatou os carnavais de São Paulo e do Rio em 1965 – os cariocas festejavam o IV Centenário da cidade naquele ano. Foi também o maior exemplo de sua fértil colaboração. A criação original de Adoniran era interessante, mas sem concisão e excessivamente longas em suas vinte e poucas linhas. Foram os Demônios que a dilapidaram e reduziram à perfeição dos 9 versos conhecidos, sem nunca terem (nem cobrarem!) reconhecimento por isso (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.129).

Nessa busca pelo conhecimento historiográfico a respeito de uma criação identitária que foi construída e, para que através dela possa-se ir construindo uma ideia do papel do samba paulista na construção da identidade nacional. Como já mencionado anteriormente essa música, Trem das Onze foi um das músicas mais gravadas tanto no Brasil como no exterior. É uma obra prima de Adoniran Barbosa e, segundo Osvaldinho da Cuíca, aprimorado pelo Demônios da Garoa.

Trem das Onze

Não posso ficar nem mais um minuto com você, Sinto muito, amor, mas não pode ser. Moro em Jaçanã, Se eu perder esse trem que sai agora às onze horas, Só amanhã de manhã.

E além disso, mulher, tem outras coisas: 104

Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar. Sou filho único, Tenho minha casa pra olhar (Adoniran Barbosa)

Os Demônios da Garoa também enriqueceram as obras de Adoniran com algumas introduções interessantíssimas – os célebres “cãs, cãs, cãs” e “quais, quais, quais” – criadas, geralmente, por Claudio Rosa, o principal responsável pela distribuição das vozes do conjunto. Vale ressaltar, porém, que o conjunto não se limitou a ser um porta-voz de Adoniran, tendo boa receptividade com algumas obras de outros autores, a exemplo de “Ói Nóis Aqui travêis” (de Geraldo Blota e Joseval Peixoto) “Quatro Velas”(de Sereno e Ubaldo Silva) (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.129).

Pode-se afirmar que independente das histórias de cada um (Demônios da Garoa e Adoniran), o que se pode avaliar é que essa parceria foi de grande relevância na carreiras artísticas, tanto de Adoniran como dos Demônios da Garoa.

A historia dos Demônios da Garoa é cheia de glórias e lacunas. Nem o site oficial do grupo, nem a Enciclopédia da Música Brasileira, nem mesmo o Livro Guinness dos Recordes (no artigo que lista conjunto paulistano como o que está há mais tempo em atividade ininterrupta no mundo) foram capazes de contar corretamente a sua origem. Os erros são muitos – desde a data de fundação, até a formação original, passando pelo local onde se formou e pela autoria do nome que consagrou o grupo – e exigem uma descrição mais detalhada dos fatos (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.130).

Há que se lamentar essas perdas de informações e documentos que legitimariam ainda mais a importância da história do grupo Demônios da Garoa, mas nos atendo aos Demônios da Garoa, por um instante, notamos o quão legítima é sua contribuição no samba paulista, assim como, na identidade nacional, pois destes vieram uma nova forma de expressão do samba, caracterizando como única a forma de representar o samba paulista para o Brasil.

Em 1939, quando foi formado o grupo semi-profissionais Regional Brasil, seu fundador, o jovem filho de italianos, Waldemar Pezzuol, era um misto de talento e apetite musical irrefreáveis. Apesar de seus 17 anos, já tinha claro para si que queria ser artista profissional e que a única forma de ultrapassar o amadorismo das apresentações em festas e serenatas seria investir para valer na exposição de sua musica no radio, e assim fez, ainda que não tenha conseguido grande resultado. Três anos mais tarde, desfeito o Regional Brasil, Waldemar resolveu formar outro grupo, mas agora um conjunto vocal, seguindo a bem sucedida linha de Bando da Lua, Anjos do Inferno, Quatro Ases e um Coringa e o paulistano Grupo Xis, entre outros conjuntos famosos da época. O grupo foi montado com músicos amigos seus e amigos de amigos seus? Os irmãos Benedito e Antônio Espanha (afoxé e tantan, respectivamente), Bruno Palestrinha (pandeiro) e3 o crooner Mulata, que ficou pouco tempo. Nascia, assim, o Grupo do Luar, embrião do Demônios da Garoa. Seus ensaios eram realizados na casa do pai de Waldemar, uma construção simples situada na esquina das ruas Irmã Carolina e Saturnino de 105

Brito, na extremidade oeste do bairro do Tatuapé, próximo ao Belém, onde formaram seu repertório, centrado em composições do próprio Waldemar, e planejaram seus primeiros vôos (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.130).

Diploma do Guinness Book Retirado do site: http://www.portaldamooca.com.br/demonios-da-garoa - Visto em 20/12/2016

Essa historiografia se faz de extrema importância para que se fomente a informação, destas construções historiográficas, pois através dos dados vão se formando uma identidade da cultura de um povo paulista, paulistano e, que contribui culturalmente para o nacional. Demônios da Garoa não é um conjunto local, regional, apesar de sê-lo, mas se tornou nacional e, além disso, hoje é um grupo internacional. Ainda nos atendo, por mais alguns parágrafos sobre Demônios da Garoa:

Embora poucos saibam, o ano de 1944 foi capital para a história dos Demônios da Garoa. Foi quando o conjunto recebeu um menino magrinho, mas que tinha uma voz maravilhosa, chamado Arnaldo Rosa. Com ele, o 106

grupo conquistou o primeiro lugar num programa da Rádio Bandeirantes que valeu um contrato com o pool Emissoras Unidas (Bandeirantes, Record, Panamericana e São Paulo). Veio, então, o primeiro sucesso na cidade, o singelo samba “Favela”, de Waldemar Pezzuol – “A favela criou/ Batucada e amor/ a tristeza foi embora/ e a alegria ficou...” (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.131).

Uma das primeiras formações do grupo Arquivo: Demônios da Garoa Retirado do site: http://www.portaldamooca.com.br/dem onios-da-garoa - Visto em 20/12/2016

Foi também no final de 1944 que se deu a história da apresentação do conjunto no programa A Hora da Bomba, de Vicente Leporace, que acabou resultando numa mudança de nome, de Grupo do Luar para Demônios da Garoa. Aconteceu que Leporace, entusiasmadíssimo com o que ouviu dos rapazes, sentiu que tinham uma carreira muito promissora pela frente, mas que o nome, parecido com o do Vagalumes do Luar, poderia atrapalhar. Sugeriu, então, a troca. Waldemar saiu da emissora ruminando essa idéia e, naquela mesma noite, ao chegar à casa de sua namorada, Helvetia Ciampi, contou-lhe o caso e ouviu algo despretensioso e genial, semelhante a “Ué, não dizem que vocês são endiabrados? Então por quê não põe ‘Demônios’ e mais alguma coisa como `de São Paulo` ou, sei lá, ‘da Garoa’ ?”. Em fevereiro de 1945, a cidade já podia ouvir os Demônios da Garoa, com Waldemar, os irmãos Espanha, Bruno, Arnaldo e o recém-chegado José , no violão tenor (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.131).

Mas, segundo Osvaldinho da Cuíca, há controvérsias, pois tanto no Guinness como na Enciclopédia, o grupo surgiu na Mooca em 1943, além de divergências quanto aos seus componentes, pois nestas duas fontes, consta que o grupo era composto por: Arnaldo Rosa, Toninho, Claudio Rosa, Artur Bernardo e Francisco Paulo Galo, além da afirmação que o nome do grupo foi dado por Vicente Leporace. Mas a família de Waldemar Pezzuol e fotos 107

afirmam sua participação na formação do grupo e, sua esposa (aquela que sugeriu o nome) foi quem o fez sair do grupo. O seu reconhecimento só aconteceu em 1990 quando Arnaldo Rosa parou o show para homenagear quem estava na plateia que era o primeiro violão dos Demônios da Garoa, segundo o autor, ele se emocionou muito. Segundo Osvaldinho há muitas informações desencontradas nessas histórias propagadas a respeito do samba paulista e, principalmente sobre Demônios da Garoa e Adoniran Barbosa, por exemplo, “Saudosa Maloca” e o “Samba do Arnesto” não teve como inspiração para a forma peculiar de cantá- los, os engraxates do centro da cidade de São Paulo, mas foi inspirado pelo próprio Adoniran, ele inspirou a forma de interpretar dos Demônios da Garoa, além de não ter nenhuma referência de que os Demônios da Garoa frequentassem as batucadas dos engraxates (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.132). No que tange aos engraxates, quem se inspirou e frequentou essas rodas de samba dos engraxates do centro da cidade de São Paulo é Germano Mathias, esse, segundo o autor, conviveu intensamente com os engraxates, batuqueiros e jogadores de tiririca. Contudo, nascido em família branca, lusitana e de classe média do Pari, apreciava as batucadas dos negros, desde sua infância. Além de na sua adolescência ter participado dos cordões marginalizados.

Foi numa roda de samba no centro da cidade que, certa vez, o onipresente Toniquinho Batuqueiro, sabendo do seu talento incomum, encaminhou-o ao rádio. Germano, passou a frequentar, então, os bares da Avenida Ipiranga, onde se reunia boa parte dos radialistas, sobretudo os da Rádio Nacional, e logo começou a cantar em programas de calouros. Já no primeiro deles, o “Aí vem o Pato”, de Jayme Moreira Filho e Odilon Araújo, foi eleito o melhor calouro, entoando corajosamente um samba de sua autoria chamado “Na Barra Funda”. O sucesso se repetiu nos programas seguintes, pois, inteligentemente, Germano elaborou uma fórmula infalível: escolhia músicas alegres e de sua autoria, o que já causava boa impressão, tocava a inusitada e suingadíssima tampinha de lata de graxa e criava divertidos jogos cênicos para incrementar as interpretações, sempre repletas de mímica, caretas, trejeitos e samba no pé – o que, obviamente, só podia ser visto pelo auditório e pelos jurados presentes.[...] em 1955, seguiu essa mesma linha, apresentado sua parceria com Doca (João Firmo Jordão) “Minha Nêga na Janela”. O resultado foi uma vitória ainda mais brilhante do que as anteriores, pois, dessa vez, eram nada menos que 300 concorrentes! (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.131). [...] Já em 1956, Germano Mathias teve ótima repercussão com a gravação de “Minha Nêga na Janela”, editada pela Polydor, e, no ano seguinte, conquistou a critica especializada com seu LP Germano Mathias, Um Sambista Diferente, vencedor dos prêmios Roquete Pinto e Guarany [...] em 1958, com o lançamento do samba “ Guarde a Sandália Dela”, parceria sua com o também paulistano Sereno – esse samba, aliás, voltaria a fazer grande sucesso em 108

meados dos anos 60, numa gravação de Elis Regina e Jair Rodrigues(CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.131).

Germano Mathias tem papel de relevância histórica na composição do samba paulista urbano e na composição do samba nacional. Seu papel traz, assim como Adoniran, uma genialidade peculiar do artista nato, único.

Na foto que ilustra a capa do livro, o mulato Padeirinho da Mangueira e Germano Mathias são os ilustres convidados para o samba na casa de Osvaldinho da Cuíca (à direita), há cinquenta anos. http://mestreananias.blogspot.com.br/2009/05/batuqueiros-da- pauliceia-resgata.html - visto em 20/12/2016

Germano Mathias, mesmo fazendo parte da identidade do samba paulista, pois sambava no gingado da tiririca, também atentava para os artistas “nacionais”, mas mantinha suas caminhadas pelas ruas de São Paulo, seguindo as batucadas dos sambistas anônimos da cidade. Através das rádios pode ter acesso ao que acontecia pelo Brasil, no que se refere a música brasileira, ao samba. Uma das suas principais influencia, foi Caco Velho, este apelidado de “O Sambista Infernal” título inspirado de um samba de Ary Barroso. A partir de 109

Caco Velho, Germano Mathias traça seu progresso da complexidade rítmica que tornou Germano Mathias numa referência obrigatória do samba, sui generis do samba-sincopado. Devido a sua convivência com Caco Velho no período em que ele morou em São Paulo, Germano, absorveu e alcançou um ponto de divisões tão ricas, que, na música brasileira, só pode ser equiparado ao do “Rei do Ritmo”, Jackson do Pandeiro (CUÍCA e DOMINGUES, 2009, p.135-136). Aqui pode-se observar o quão um artista de um estado está ligado a outro e a importância dos meios de comunicação, ainda restrito nos meados do século XX, mas deve-se observar que de alguma forma cada artista traz consigo referências da sua originalidade regional, mas na troca, na soma, cria-se algo novo, “novas identidades”, estas novas identidades podemos observar nas definições dadas por Stuart Hall (1992) na sua obra “a Modernidade cultural na Pós-modernidade”, ele conclui que a sociedade moderna traduz-se em constante mudança, principalmente no que tange ao processo de globalização e sua repercussão na formação da identidade cultural. Stuart Hall, classifica essa modernidade como tardia. Ainda Hall, trata que: “Dentro da cultura, na marginalidade, embora permaneça periférico em relação ao mainstream, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é agora, e isso não é simplesmente uma abertura, dentro dos espaços dominantes, à ocupação dos de fora”. (HALL, 2013, p.375-376)

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa acadêmica se deu, desde o momento em que me reconheço como paulistana – mesmo tendo nascido no estado do Paraná – por ser cantora popular pela Ordem dos Músicos do Brasil, apresentando-me há mais de vinte anos em casas paulistanas e paulistas. Tenho em meu repertório músicas brasileiras, entre elas o samba em suas diversas variações rítmicas. Neste cenário, o interesse pelo samba paulista foi amadurecendo, as leituras foram aguçando esse interesse, levando a busca do conhecimento histórico e social deste gênero, o samba. Após uma vasta leitura bibliográfica, aprofundadas com os autores: José Ramos Tinhorão, Florência Garramuño, Magno Siqueira Bissoli e, Mario de Andrade. Desde o capítulo: A História do Samba, buscou-se a historiografia deste, respondendo algumas questões relevantes, por exemplo, o que é o samba? A partir daí as perguntas foram respondidas, na maioria das vezes por Tinhorão, pois este tem uma vasta obra que busca o conhecimento da formação cultural brasileira. Por ser jornalista teve acesso a informações e 110

documentos valorosos que responderam os questionamentos dessa pesquisa. Desta forma, as respostas coletadas bibliograficamente foram, por exemplo, que samba é uma manifestação popular de descendência africana, que é composta por batuques, danças, ritmos e crenças. Destes elementos surgiram os cordões, os ranchos e o carnaval de rua, principalmente no Rio de Janeiro, este último influenciando totalmente o carnaval paulista . Portanto, o samba é uma forma de representação popular de massa, além de ser a maior festa popular do país. O que esse estudo conclui é que o samba tem seu papel politico, social, cultural e, estes papéis são os que movem este trabalho. A incumbência de ser o símbolo utilizado como catalisador de povos para formação da identidade nacional, não deixando de ser primitivo e moderno, coexistindo esses dois elementos, não podemos nos esquecer de como a vida cultural, e todo o contexto no Ocidente, foi sendo transformado pelas vozes das margens, dos antes marginais. Portanto, o samba paulista, tem-se mostrado dinamizador de povos e culturas, além de etnias e raças. As vozes das margens têm sido forte na representatividade do povo de um país, pois normalmente são a maioria, principalmente nos países menos desenvolvidos economicamente como é o caso do Brasil. O samba tem uma função social que o colocou como símbolo de identidade de um povo, pois através deste símbolo o povo pode sentir-se parte de um todo, de uma nação, identidade formada através do sentimento de pertencimento. Assim nomes que protagonizaram esse cenário deram voz aos antes excluídos politicamente e socialmente, nomes como Clara Nunes, compondo o samba brasileiro em dialogo com os regionais, e por que não dizer, com mais afinidades com o Samba paulista, exemplo, Clara Nunes (descendente de negros e índios brasileiros) e Adoniran Barbosa, celebrando o hibridismo cultural brasileiro. Convém ressaltar a importância de Clara Nunes neste cenário, aproximou-se de Carmem Miranda, no tocante a representação do Brasil para o mundo. As duas morreram jovens, Carmem explorada pelo mercado artístico estadunidense, e Clara vítima da vaidade moderna. Estes detalhes poderão ser desenvolvidos em pesquisa. Um dado de grande relevância, é descobrir o porquê dessa denominação: samba rural paulista. Suas peculiaridades e proximidade com a musica caipira, ou sertaneja tradicional, ou sambas mais melódicos, é específico e abrangente ao mesmo tempo, pois é de fácil percepção pelos temas das letras, pelo instrumentos percussivos que se utiliza, o que se nota é na especificidade paulista nesse tipo de gênero musical. A principal pergunta que essa pesquisa bibliográfica se propôs a responder é: Qual a relação do samba paulista na formação da identidade nacional? O desenvolvimento da pesquisa permitiu a criação de um subtítulo, sendo ele: O Samba Paulista: do rural ao urbano. 111

As contribuições nasceram nos interiores paulistas com as tradições caipiras somadas as dos imigrantes europeus. Essas tradições em Pirapora se fundiram umas as outras, as crenças religiosas africanas com as ocidentais, além das expressões culturais incrementadas com batuques dos bumbos dos sambistas, sendo observados, inicialmente, no início do século XX por Mario de Andrade, que o denominou Samba rural paulista. Essas misturas étnicas culturais deslocam-se para a capital de São Paulo, somando-se ao urbano, transformando o samba. Sendo assim, o samba de bumbo perde esse espaço de celebração e, devido ao conflito entre a religião e a cultura de um povo – que em sua maioria eram negros – há uma mudança na forma de representação cultural de uma expressão específica desta região do Brasil, o interior paulista. Quando o samba rural chega ao espaço urbano, no inicio do século XX, se apresenta nas rodas de samba na Praça da Sé, onde com os engraxates se reuniam para fazer samba, dentre estes engraxates surgiram nomes que ficariam gravados na história do Samba Paulista urbano, estes engraxates na sua grande maioria eram pobres de descendência negra. Quando nos atemos aos grandes nomes da história do samba paulista, encontramos Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini, Geraldo Filme, Demônios da Garoa, Toniquinho Batuqueiro, Osvaldinho da Cuíca, dentre muitos outros nomes, que são a prova que o samba paulista tem identidade própria, esta demonstrada através dos seus músicos e intérpretes. Pode-se concluir que essa é a relação do samba paulista com a formação da identidade nacional, pois músicas como Trem das Onze, Um homem de Moral, Ronda , Tradição, etc. é o retrato da contribuição paulista à cultura brasileira. Além do fato intrínseco na cultura brasileira que é a mistura, a miscigenação, o hibridismo cultual, características estas desde a colonização do Brasil, com o recebimento das contribuições dos portugueses, holandeses, ingleses, italianos, espanhóis, japoneses. Mas o foco desta pesquisa foi a análise do samba rural paulista e o urbano, a partir daí, pode-se fomentar a comparação deste samba paulista urbano com o samba urbano carioca. O objetivo proposto foi atingido nesta pesquisa acadêmica e, apontou o movimento de resgate do samba rural “tradicional” paulista abordando a criação de grupos formados com a intencionalidade de pesquisar e mostrar compositores paulistas, músicos sambistas, em um movimento de recuperação desse samba rural paulista e o urbano, constituídos por sambistas na sua maioria de descendência negra. Nestes movimentos sociais culturais citamos: o Kolombolo, fundado por Renato Dias; Samba autêntico , fundado por T-Kaçula e o Samba da Vela, há mais de 15 anos, uma roda mantém acesa a chama do samba, em Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. 112

Desta forma, a conclusão a qual este trabalho chegou foi de que há um samba rural paulista, que já vem sendo pesquisado por outros acadêmicos e músicos, mas o que trazemos de novo é a observação deste resgate ao samba rural paulista; o samba de bumbo de Pirapora, em um movimento híbrido, formando o samba Paulista urbano. Com este resgate também recuperou-se as manifestações religiosas de descendência africana, que foi de onde o samba surgiu, no Kolombolo, tem-se respeito aos Orixás, aos Santos, além de imagens e velas. Tanto no Kolombolo como no Samba Autêntico, como no Samba da Vela, as reuniões são em círculo, formando as rodas de samba. No Kolombolo só se canta samba paulista tradicional e modernos também. Já no Samba Autêntico canta-se sambas de todas as regiões do Brasil e com enfoque no samba paulista, enquanto o Samba da Vela canta-se apenas músicas compostas por compositores que fazem parte deste grupo, e o samba só acaba quando a vela apaga. A continuidade desta pesquisa com ênfase aos grupos de resgaste ao samba paulista se dará no Doutorado.

113

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