Sardella, O Caviar Dos Pobres No Bixiga Investigações Preliminares

Sardella, O Caviar Dos Pobres No Bixiga Investigações Preliminares

1 SARDELLA, O CAVIAR DOS POBRES NO BIXIGA INVESTIGAÇÕES PRELIMINARES ISABELLA MAGALHÃES CALLIA * INTRODUÇÃO Este é um trabalho original, baseado em hipóteses, que se vale de uma amarração conceitual consolidada pela historiografia. Propõe-se a investigar as origens históricas da pasta em conserva chamada sardella. Para tal, estabelece o momento de sua vinda da Calábria para São Paulo através dos fluxos migratórios, entre 1870 e 1920, e analisa o motivo de sua quase onipresença, em versões de receitas adaptadas, nas mesas das cantinas e restaurantes paulistanos 1. Durante as investigações preliminares, de abril a julho do presente ano, não foi identificada nenhuma bibliografia sobre a conserva, tornando necessária uma futura pesquisa aprofundada in loco, na Calábria e no Bixiga. Trata-se de uma conserva em forma de pasta espessa, cujos ingredientes são os alevinos: minúsculas sardinhas recém-nascidas, a páprica doce ou picante, as sementes de erva-doce e o sal grosso marinho. O azeite extravirgem é adicionado posteriormente, como elemento conservante e umectante. Esta especialidade mediterrânea possui outros nomes de acordo com a localidade onde é produzida, dentre eles, Garo, Rosamarina ou Caviale dei Poveri (Caviar dos Pobres). Varia o nome, não os ingredientes. A sardella é um produto estritamente calabrês, de produção limitada e difícil de ser encontrado nas mesas italianas de outras regiões, o que suscita a indagação que motiva a pesquisa, de como esta conserva tão peculiar, exclusiva de um território, acabou por tornar-se um popularíssimo antepasto paulistano. O artigo consiste em uma introdução sobre a região originária da receita, apresentando a relação dos ingredientes com o território, bem como seu modo de preparo. Uma hipótese emergiu nesta fase da pesquisa: devido a algumas similitudes de ingredientes, * Centro Universitário SENAC Aclimação São Paulo, 2014. Pós-graduanda em Gastronomia: História e Cultura 1 De origem italiana meridional 2 artefatos utilizados e modos de fazer, surgiu a suposição de que o condimento líquido da Antiguidade greco-romana, o garum , pudesse vir a ser seu predecessor. Teoria que se aplica também a uma verdadeira linhagem de outros condimentos e conservas, os quais contam, porém, com ampla bibliografia. Em seguida, o trabalho aborda brevemente os fluxos migratórios, forma pela qual supostamente a conserva chegou e se estabeleceu em São Paulo. Em seu processo de adaptação e transformação em um novo território, a sardella calabresa se torna sardela paulistana. Finalmente esta investigação preliminar analisa duas receitas. A primeira, de 1950, pertence a um livro de receitas de família, e a segunda de 2007, encontrada na internet. Método para evidenciar, grosso modo , o que se manteve da receita original calabresa, algumas das adequações tecnológicas, e as miscigenações ocorridas com o passar do tempo, conforme o gosto pela conserva foi se disseminando entre cantinas, padarias e restaurantes paulistanos. É sabido que o conjunto de códigos referentes às práticas alimentares que permeiam os processos migratórios seja de grande relevância nas mestiçagens culturais. Porém o que aqui é digno de ênfase é a particularidade de a sardella não ser um alimento do quotidiano, mas uma iguaria, atestando que para o imigrante ocorre, dentre tantos efeitos psicosociológicos, também uma inversão de valores onde “O objeto de desejo não é mais o alimento abundante, mas aquele raro”, (MONTANARI, 2004:94) (tradução própria) num processo de diferenciação de forte cunho simbólico, como se houvesse uma “[...] necessidade do intelecto anterior à do estômago.” (PRAVETTONI, 2010:9) (idem) 1. Calábria: sardella e Antiguidade Mediterrânea A Calabria é uma região da Itália meridional cuja identidade culinária remonta a 3.000 anos de tradição. O livro Ars Culinaria (2012) promove um minucioso estudo sobre os pratos dos antigos romanos e de como estes se apresentam reconfigurados nas mesas italianas da atualidade. As autoras afirmam que a Calábria, juntamente com a Sicília, é onde hoje melhor se preservaram as receitas da antiga cozinha greco-romana. A região pertenceu à Magna Grécia até 280 a.C. e, após a batalha de Heracléia, foi anexada ao território do Império Romano. Cultivou sua tradição costeira de pratos e molhos à base de peixes, como tantas outras regiões mediterrâneas, porém com o diferencial de ser rota estratégica de navegação, portanto, encontrava-se em contato constante com o comércio internacional de outros povos e das culturas fenícia, grega, romana, árabe, normanda, bizantina, sarracena e aragonesa. Uma 3 característica marcante da região é a importância dada aos alimentos em conserva, como as anchovas marinadas (e posteriormente imersas no azeite), os embutidos de porco, como a ‘nduja 2 e a soppressata 3 calabresa, os queijos, as verduras em conserva de azeite e os tomates secos. A longa duração destas conservas garantia a sobrevivência dos povoados durante as carestias, além dos frequentes períodos de cerco e de invasões dos piratas turcos. As pesquisadoras também afirmam que o salame macio ‘nduja, “já era apreciado pelos romanos.” (DOSI; SARTORIO, 2012:375) (tradução própria) Naturalmente não na versão atual, uma vez que a pimenta caiena, peperoncino , e os pimentões, peperoni , são de origem milenar mexicana, da família Capsicum annuun, e só chegariam à Espanha com as expedições do século XVI 4. Pela historicidade de seus ingredientes, outra hipótese que o presente trabalho apresenta é que o surgimento da sardella, sob sua configuração atual, tenha se dado somente após o século XVI, quando o continente europeu tomou conhecimento da existência destes dois ingredientes. Na Itália chegaram através da Espanha, também por intermédio da Calábria. Este é um dado de grande relevância para a narrativa das origens da sardella, pois a partir do século XIII os Aragoneses conquistariam a Dinastia Angioina e, desta forma, hegemonizaram todo o sul da Itália 5. Por esta razão certos componentes americanos se condensaram de forma particular no sul da Itália e não no resto da península. Os pimentões e a pimenta caiena são uma prova disto. Não por acaso, a Calábria concentra alta incidência de produtos de picância elevada. O fato se deve a dois fatores: custo e adaptabilidade. Quando a pimenta caiena foi trazida da América, a Coroa Espanhola esperava lucrar muito com sua comercialização, juntamente com a de outras especiarias, vindas da Índia e de outros confins. O que se desconhecida, porém, era a grande adaptabilidade da planta em novas terras e climas. A pimenta caiena se adaptou e prosperou onde quer que fosse plantada, tonando-se uma verdadeira “droga dos pobres”. Enquanto as especiarias eram caras e inacessíveis, o peperoncino estava ao alcance de todos 6. Devido à localização geográfica da Calábria, a história da sardella se desenrola através de um fio condutor que une a região à Espanha, chegando à civilização greco-romana, e por tal motivo uma mistura de diversas culturas. Graças ao artigo científico Il Pesce (2011), uma particularidade linguística veio à tona. A conserva em sua região originária é conhecida 2 O salame macio, de carne porco moída, e muito picante ‘nduja , é típico da cidade de Spilinga. 3 Embutido feito de porco, com grãos de pimenta preta, sementes de erva-doce, sal e pimenta vermelha. 4 Fonte: http://www.eusebiano.it/rubriche/cucina/peperone...e-peperoncino 5 Fonte: http://www.treccani.it/enciclopedia/regno-di-napoli/ 6 Fonte: http://www.peperoncino.org/old/storia.html 4 sob diversos nomes, através de várias denominações, de acordo com a localidade onde é produzida. Na província de Crotone, banhada pelo Mar Jônico, encontram-se duas cidades com diferentes denominações para a sardella . Garo , mustica e bianchetto salato , em Cirò Marina, e sardella crucolese em Torretta di Crucoli. Já na província de Catanzaro, encontra-se a sardella impepata , em Catanzaro Lido (Mar Jônico), e nas cidades de Amantea e Campora San Giovanni, ambas banhadas pelo Mar Tirreno, a Rosamarina . Dentre algumas de suas designações, os pesquisadores explicam que, A sardella foi apelidada de ‘Caviar dos Pobres’, devido ao prestígio que o produto tem no mercado, tirando desta forma seu estigma de origem pobre. O vermelho apimentado, o prateado da sardinha e o dourado do azeite extra virgem constituem um insolúvel trio de amantes, como são definidos popularmente pela sua “simbiose de mar e terra, água e sol”. (MARRONE; LIGUORE, 2011:117) (tradução própria) Ainda segundo o artigo, é produzida na versão original, e taxativamente calabresa, apenas com alevinos , de Sardina pilchardus, ou de anchovas. Após pescados, os alevinos deverão ser lavados em água doce, colocados sobre tampos de mármore para secar e imersos por algumas semanas em salmoura dentro de recipientes que poderão ser de terracota, tarzaruli , ou de madeira, tineddri . Em seguida serão amalgamados delicadamente ao pó vermelho da páprica e finalmente serão acrescentadas sementes de erva-doce selvagem. Esta pasta espessa será conservada em vidros pequenos ou médios, de abril a outubro, em local seco, protegido da luz e do calor. O produto artesanal acabado se apresenta como uma pasta de vermelho escuro, de cheiro intenso e de sabor que pode variar do suave ao picantíssimo, com uma validade de 6 a 12 meses. A pasta pode ser utilizada como antepasto, sobre o pão com um fio de azeite extravirgem, como condimento para um prato de spaghetti , junto com ovos mexidos, para acompanhar queijos ou rechear pães 7. O artigo se conclui ressaltando que a pesca dos alevinos da Sardina philcardus no mar Mediterrâneo é rigidamente controlada como forma de precaução contra sua extinção e prevê que o período de pesca de pescados juvenis aconteça somente entre 15 de fevereiro a 15 de abril. 1.2 Império Romano (Garum e Allec) e atualidade (Colatura di Alici e Pissalat ) 7 Fonte: http://spazioinwind.libero.it/ingcelsi/crucoli/primosito/index.html 5 No decorrer das pesquisas feitas sobre a tradição greco-romana na culinária do território da Calábria, foram examinadas informações sobre as possíveis raízes etimológicas da conserva, analisando alguns de seus nomes.

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