The Notion of Applied Psychoanalysis in the Early Years of the Psychoanalytic Movement

The Notion of Applied Psychoanalysis in the Early Years of the Psychoanalytic Movement

Psicologia USP http://dx.doi.org/10.1590/0103-656420140014 104 A noção de psicanálise aplicada nos primeiros anos do movimento psicanalítico Caio Padovana* Vinicius Darribab aUniversitè Paris 7. Paris, França bUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicanálise. Rio de Janeiro, RJ, Brasil Resumo: Levando em conta a inserção da psicanálise no contexto científico da segunda metade do século XIX, o objetivo deste artigo será discutir a noção de psicanálise aplicada sustentada por Freud e seus pares nos primeiros anos do movimento psicanalítico. Para tal serão consultados trabalhos considerados pelo movimento como aplicados, assim como algumas contribuições de caráter metodológico, todos publicados durante este período inicial da história da psicanálise. Cabe ressaltar que, neste artigo, será priorizado o estudo das fontes primárias ligadas ao debate em questão. Palavras-chave: psicanálise aplicada, método psicanalítico, história da psicanálise. Introdução da ciência, como Francis Bacon, D’Alembert e Augusto Comte. À sua maneira, cada um destes autores já havia No campo das ciências naturais, a distinção en- estabelecido uma distinção clara entre os ramos teórico e tre um saber dito puro, por vezes também chamado de prático, paralelo do que aqui denominamos puro e apli- conhecimento básico ou fundamental, e outro dito apli- cado. Comte, por exemplo, baseando-se em seus anteces- cado não pode ser considerada um detalhe, um capricho. sores, dirá que todas as realizações humanas são “ou de Em primeiro lugar porque não se trata de uma distinção especulação ou de ação”, o que daria base ao âmbito mais recente na história destas ciências. Em segundo, pelo fato geral de sua classificação do conhecimento. Tal classifica- de se tratar de uma distinção que parece orientar todo o ção incluiria, por um lado, o saber teórico considerado mais ideal moderno de ciência, de acordo com o qual é preciso fundamental e, por outro, o saber prático, necessariamente antes conhecer a natureza, para poder então prevê-la, con- derivado daquele primeiro (Comte, 1830/1936, p. 55). trolá-la e agir sobre ela. No caso particular da medicina científica, que tem Nesse sentido, como argumenta Koyré (1943/1986), na obra do médico francês Claude Bernard (1813-1878) um o cientista moderno representa um salto em relação ao homo dos seus principais representantes, podemos observar o faber que, embora fosse capaz de exercer controle sobre a mesmo movimento que buscava opor estes saberes de or- natureza, limitava o seu agir pela técnica. Nesses termos, dens distintas. Como aponta Bernard em sua obra mais co- o cientista moderno – personagem que passaria a se iden- nhecida, Introdução ao estudo da medicina experimental tificar com figuras como as de Galileu e Descartes – surge (1865/1966), é Eugène Chevreul o seu autor de referência como um teórico, um sujeito mais próximo da filosofia do em tudo que concerne à “filosofia da ciência experimental” que dos ofícios, sujeito comprometido com a construção de (p. 12). Com base na obra de Chevreul, figura importante modelos distantes até certo ponto da experiência cotidiana: no cenário científico francês do século XIX e responsável pela introdução da nomenclatura puro e aplicado, Bernard A ciência destes [de Galileu e Descartes] não é assumiria a distinção entre conhecimento teórico e aplica- de engenheiros ou artesãos, mas de homens cuja do. O primeiro deles seria alcançado pelo estudo experi- obra raramente ultrapassou a ordem da teoria. mental do homem, sendo o segundo o seu desdobramento Galileu não aprendeu o seu ofício com aqueles que prático; neste caso, aquele que orientaria o médico em sua se atarefavam nos arsenais e estaleiros navais de prática clínica cotidiana. A propósito dessa nomenclatura, Veneza. Muito pelo contrário: ensinou-lhes o dele segue a citação de Chevreul (1866): (pp. 12-13). As ciências médicas [entendidas como ciências O que expõe Koyré na primeira metade do século naturais aplicadas] cujo objetivo é curar as doen- XX já se mostrava presente na obra dos grandes arautos ças não têm . qualquer característica essencial, pois elas tomam de empréstimo, para atender este objetivo, a totalidade dos conhecimentos que con- * Endereço para correspondência: [email protected] cernem às ciências naturais puras e às ciências 2016 I volume 27 I número 1 I 104-114 104 A noção de psicanálise aplicada nos primeiros anos do movimento psicanalítico 105 matemáticas. é impossível não admitir que o união entre os pesquisadores em psicanálise (Ferenczi, conhecimento dos defeitos estruturais dos órgãos 1910/2011d), o Congresso aceita a sua proposta, dando humanos e as doenças fazem parte integrante da assim origem à Associação Psicanalítica Internacional anatomia e fisiologia, isto é, do domínio da ciência (IPA). Outro sucedâneo deste congresso seria a Revista pura. (p. 269, grifo e tradução nossos) central de psicanálise [Zentralblatt für Psychoanalyse], editada pelo psicanalista vienense Wilhelm Stekel e diri- Oriundo do campo médico, o movimento psicana- gida por Freud. Na época, já circulavam dois periódicos lítico da primeira década do século XX adotou essa mes- nos meios psicanalíticos, o Anuário de pesquisas psicana- ma terminologia, que, por sua vez, carregara consigo essa líticas e psicopatológicas [Jahrbuch für psychoanalytis- mesma carga semântica estabelecida em diferentes domí- che und psychopathologische Forschungen], fundado em nios pelos fundadores da ciência moderna. Não por acaso, 1909 por ocasião do primeiro Congresso Psicanalítico, e Freud e seus colaboradores, certos do pertencimento da re- os Escritos de psicologia aplicada [Schriften zur ange- cente ciência psicanalítica ao campo das ciências naturais, wandten Seelenkunde], que tiveram o seu primeiro volume nele enquadrariam a pesquisa e a prática da psicanálise. publicado em 19071. Os dois primeiros priorizariam as pes- Nesses termos, seriam então definidas na ata de fundação quisas de cunho teórico e técnico em psicanálise, enquanto da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) as duas vi- o segundo, junto com a revista Imago, fundada em 1912 cissitudes dessa nova ciência, entendida como: “psicologia e editada por Otto Rank e Hans Sachs, seria destinado à pura” e “em sua aplicação à medicina e às humanidades” aplicação da psicanálise àquilo que nos objetivos da IPA (Ferenczi & Jung, citado por McGuire, 1974/1976, p. 641). seria chamado de humanidades [Geisteswissenschaften]. Sendo o objetivo deste artigo discutir, com relação Cabe ressaltar que a revista Imago tinha como subtítulo à inserção da psicanálise no campo da ciência, o lugar da a seguinte definição: Revista voltada para a aplicação da psicanálise aplicada, e levando em conta as particulari- psicanálise às humanidades. dades que acompanham tal inserção, a questão que nos No Anuário apareceriam trabalhos importantes ocupará será a seguinte: em que sentido a/uma psicanáli- como: o caso Hans e o Homem dos Ratos, publicados por se pode ser concebida como uma disciplina ou uma prá- Freud (1909/1996e, 1909/1996f); “Transferência e intro- tica aplicada? Ou, simplesmente, o que vem a significar jeção”, por Ferenczi (1909/2011c); e as investigações de aplicação em psicanálise? Restringiremos a discussão, Alphonse Maeder (1910) sobre a demência precoce, as quais aqui, ao exame da apropriação das categorias de puro e seriam retomadas por Freud no caso Schreber (1911/1996g). aplicado nos primeiros anos do movimento psicanalítico, Tratam-se aqui, portanto, de trabalhos que, em sua maio- privilegiando o que diz respeito à noção de aplicação e ria, poderiam ser entendidos como contribuições à psica- focando em publicações realizadas nas duas primeiras nálise enquanto psicologia pura. Vale observar que a nota décadas do século XX. Com base nisso, buscaremos si- editorial que acompanha o primeiro volume da revista, tuar o sentido que vem a assumir a relação entre o puro e escrita por Jung sob a orientação de Freud, já sugere uma o aplicado na experiência analítica. distinção entre o “desenvolvimento de uma psicologia” e Por fim, cabe lembrar que este trabalho é um estudo de “sua aplicação às doenças nervosas e mentais” (Jung, de história da psicanálise. Nele privilegiaremos a apresenta- 1909/1970, citado por McGuire, 1974/1976, pp. 253-234). ção de um problema, o da aplicação da psicanálise, restrin- Quanto à Revista Central, tal periódico, como consta em gindo assim uma possível abordagem crítica dirigida a ele. sua “Apresentação ao leitor” (Stekel, 1911/1964a), estaria voltado à publicação de trabalhos mais breves, incluindo O puro e as suas aplicações em psicanálise contribuições técnicas e comentários mais gerais de caráter introdutório. Freud (1910/1989c), por exemplo, publicaria Em 1910, em meio ao segundo Congresso nessa revista as “Perspectivas futuras da terapêutica psi- Psicanalítico realizado em Nuremberg, Sándor Ferenczi canalítica”, Stekel (1911/1964b) escreveria sobre “O trata- sugere a criação de uma Associação Internacional de mento psíquico da epilepsia” e Isidor Sadger (1911/1964), Psicanálise, cujo objetivo, conforme seu estatuto, inclui a psicanalista vienense, publicaria “Seria a asma bronquial delimitação que indicamos anteriormente: uma neurose sexual?” Embora a Revista não se limitasse apenas a este O cultivo e a promoção da ciência psicanalítica tal tipo de contribuição, todos esses trabalhos poderiam ser como iniciada por Freud, tanto em sua forma como pensados como aplicações da psicanálise à medicina, le- pura

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