Memórias Sobre Rio Branco

Memórias Sobre Rio Branco

Barão do Rio Branco Guardados da Memória Memórias sobre Rio Branco Alvaro Lins Quarto ocupante da Cadeira 17 na Academia Brasileira de Letras. uem houvesse de se encontrar pela primeira vez com a vida Q cultural brasileira logo sentiria a falta de documentos pes­ soais, daqueles livros ou papéis que servem para estudar um homem ou uma obra nas suas fontes mais originais. Esta seria a ausência mais sensível, e se refere tanto aos escritores como aos homens de Estado. Uns e outros morrem sem nada deixar além das obras que lançaram ou realizaram; quase nunca deixam aqueles documentos íntimos que muito serviriam para a compreensão dos seus atos. Em qualquer as­ sunto, em qualquer sentido, nada existe de mais raro no Brasil do que a documentação. Principalmente a documentação de ordem pessoal. Não temos nem o gosto, nem o hábito da correspondência, do diário, do volume de memórias, das notas profissionais. E estes papéis são os que constituem mais tarde aqueles livros de documentação: os mais necessários para os estudos e as exegeses. Mas a maior vigilância não será excessiva quando estamos em face de volumes dessa espécie. Há sempre o perigo de se tomar 293 Alvaro Lins por um documento natural aquilo que foi conscientemente preparado para a posteridade. E um livro de memórias ou um diário que alguém escreveu com o propósito de causar “efeito”, com um propósito de qualquer natureza que não seja de escrever para si mesmo, sem pensar em mais ninguém – um livro destes não apresenta mais nenhum valor como documento pessoal. Pode constituir até uma importante realização literária, mas perderá todo o seu interesse como fonte original de estudo de personalidade. A propósito de memórias, diários e correspondências – devemos sempre distinguir o que tem caráter literário e o que tem caráter simplesmente documentário. Os de caráter documentário são os mais raros no Brasil, são aqueles que mais falta têm feito para o estudo e a compreensão de algumas figuras nacio­ nais. Imagine­se o que representaria o conhecimento de um diário íntimo ou de um volume de memórias para a maior compreensão de um espírito tão misterioso e complexo como o de Floriano Peixoto, na categoria de homem de Estado, ou como o de Raul Pompeia, na categoria de escritor. Confesso que tenho uma invencível predileção por esses livros documentá­ rios que não têm literatura, nem arte. O que me causa horror é a confusão ou a falsificação, de um lado ou do outro: o livro de literatura que se apresenta como um documento espontâneo, ou o livro simplesmente de documentação que se apresenta como uma obra de arte literária. E este último caso é o que se repete com mais insistência. Nada seria mais útil ou mais oportuno do que o reconhecimento de vocação e possibilidades em todos os homens. Estimo por isso os autores que logo reconhecem que não está na literatura, como construção artística, o seu destino. Aqueles que não se sentem escritores – no sentido estrito e rigoroso da palavra – e dedicam o seu gosto de escrever aos livros que estão mais de acordo com as suas tendências: os de documentação, as memórias, os diários, as notas íntimas, as cartas. A leitura de livros dessa espécie me dá sempre um prazer especial, ao lado da utilidade que encontro nas suas páginas. Toda literatura precisa desses livros que não de literatura. Ao Brasil não faria mal nenhum se tivéssemos menos poetas, menos romancistas, menos ensaístas, contanto que fossem substituídos por alguns memorialistas, por alguns autores de diários e correspondências. Mas devemos repetir: todos 294 Memórias sobre Rio Branco esses autores de documentos naturais, e não autores falsificados pela literatice. As qualidades de um livro desta ordem devem ser a naturalidade, a esponta­ neidade, a veracidade. Já fiz uma vez o elogio do que chamei os livros nus, isto é: os livros que têm sentimentos, ideias ou imaginação, mas no seu estado primitivo e virgem, sem os recursos da arte literária. Uma obra dessa espécie, por exemplo, foi a que realizou o sr. Julio Bello com as suas Memórias de um senhor de engenho. Outra obra dessa espécie é o livro de reminiscências – o livro de memórias, podemos dizer – do embaixador Raul do Rio Branco sobre o seu pai1. Representa este livro, por todos os mo­ tivos, o tipo exato do documento. Nada mais é do que um documento íntimo, e nada pretende além desse fim que muito o recomenda ao nosso interesse. Nessa simplicidade está a sua significação, está o seu mérito. Vê­se logo que o seu autor não se apresenta como um escritor, que o seu livro não tem outra pretensão além do seu título. O sr. Raul do Rio Branco teve a inteligência e o senso de tirar do que escreveu qualquer possibilidade de confusão com a arte literária. Este reconhecimento não vem apenas da declaração que faz no prefácio, o que poderia ser o sinal de uma falsa modéstia. Vem da leitura do livro, onde não se sente nenhum sinal de falsificação, onde não se sente nunca o propósito de fazer literatura. É um dos livros mais naturais, mais espontâneos, mais ingênuos – no bom sentido da palavra – que conheço. E somente não gostarão da sua leitura os que estiverem muito intoxicados de arte literária, os que forem incapazes de reconhecer interesse nos documentos simples e puros. Dir­se­ia que nem se destinavam à publicação estas Reminis- cências do Barão do Rio Branco. Elas não têm estilo, nem construção literária: são observações e lembranças do Barão do Rio Branco escritas num à­vontade de quem está em família. Dir­se­ia relatório de caráter privado numa linguagem de intimidade. Nem lhe falta, nos assuntos mais sérios, um certo acacianismo em ideias e expressões, até às vezes atribuídas ao Barão; em outros aspectos, a ingenuidade revela­se enorme, o que dá ao leitor o sabor de um contato direto 1 Reminiscências do Barão do Rio Branco por seu filho, o embaixador Raul do Rio Branco – Livraria José Olympio Editora – Rio de Janeiro – 1942. 295 Alvaro Lins com a realidade. Dessa maneira é que se pode apreciar bem esse livro do sr. Raul do Rio Branco, sem colocar na sua leitura qualquer exigência literária ou artística. Deve ser apreciado, antes de tudo, sob um critério de utilidade, des­ de que o seu caráter é o de documento. Tem assim um inegável valor, e acho que todos os filhos de homens ilustres ou representativos deveriam seguir este exemplo. O seu fim foi o de contribuir para o estudo e o conhecimento da personalidade do Barão do Rio Branco; e apresentou um documento auxiliar que terá sempre a sua significação para todos aqueles que desejem conhecer a figura principal do Itamarati. Que desejem conhecer o Barão do Rio Branco em alguns dos seus aspectos mais íntimos, como o observava o seu próprio filho. As Reminiscências do sr. Raul do Rio Branco, com efeito, não têm um ca­ ráter biográfico, não se destinam mesmo a apresentar um retrato completo do Barão ou uma reconstituição em bloco da sua vida pessoal ou de homem de Estado. Elas se limitam a certos aspectos isolados, a certos episódios que mais se fixaram na memória. Têm uma natureza fragmentária, arbitrária, pessoal. E todas as páginas vêm realmente das reminiscências exclusivas do seu autor, que escreveu longe dos arquivos, dos papéis e dos livros com os quais trabalhou o seu pai. Toda essa documentação se encontra no Itamarati. De qualquer for­ ma, o livro do sr. Raul do Rio Branco tem o dom de nos transmitir uma visão do Barão do Rio Branco; e esta visão sugere que lembremos algumas linhas principais da vida desse grande homem de Estado, sobretudo pela atualidade de haver situado a sua ação naquele plano de vida em que o Brasil joga hoje seu destino, como todos os países: o da política internacional. Para falar sobre Rio Branco num artigo de jornal, tenho a desvantagem de o estar estudando para um livro. Tenho comigo muitos cadernos com as notas que me foram sugeridas pelos estudos que estou realizando sobre a sua figura e a sua obra, ao lado de uma documentação que não poderia resumir ou utilizar em páginas tão rápidas. Tomo o partido de escrever agora sobre Rio Branco sem recorrer aos cadernos, aos livros, a qualquer elemento mais poderoso de documentação. Escreverei de memória, procurando me limitar às sugestões que o livro do sr. Raul do Rio Branco apresenta a qualquer lei­ tor, somente citando dos documentos de que disponho algumas cartas que 296 Memórias sobre Rio Branco possam completar ou sustentar certas afirmações, menos conhecidas, destas Reminiscências. E a sugestão inicial vem logo a ser a da importância do Barão do Rio Branco como assunto de estudo. Já dissera o sr. Gilberto Amado, numa conferência, que era este “o maior assunto do Brasil”. E por que este assunto não foi até hoje estudado e revelado? Fiz esta pergunta a mim mesmo logo que o ministro Oswaldo Aranha me honrou com um convite para escrever a história do Barão do Rio Branco. Examinando a documentação, encontrei alguns artigos e ensaios excelentes, mas nenhum estudo completo sobre a vida e a sua obra. Logo depois pude compreender onde estava a dificuldade fora do comum que tem assombrado todos aqueles que se sentem tentados pelo “maior assunto do Brasil”. Dificuldade que não decorre somente da exten­ são e da complexidade dessa obra; que decorre antes de tudo do seu caráter especializado, dos seus aspectos técnicos. Para compreender os seus atos no Itamarati e os volumes e documentos que elaborou ou reuniu para as questões de limites do Brasil, será necessário acompanhar o Barão do Rio Branco em conhecimentos científicos e técnicos, a cujo domínio ele chegou através de uma vida inteira de estudos: os de Direito Internacional, os de História, os de Geografia.

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