Do N'gola Ritmos Ao Projeto Kalunga Congresso

Do N'gola Ritmos Ao Projeto Kalunga Congresso

Do N’gola Ritmos ao Projeto Kalunga: travessias atlânticas entre Brasil e Angola Maurício Barros de Castro∗ Este artigo focaliza a história recente de Angola entre o período que cobre o surgimento de dois eventos político-culturais ocorridos no país: o N´gola Ritmos e o Projeto Kalunga. O N’gola Ritmos, criado em 1947, e o Projeto Kalunga, realizado em 1980, demonstram um diálogo contemporâneo existente entre o Brasil e o país africano. O que nos diz esse dialogo é que se torna importante analisar. N’gola Ritmos é o nome do grupo musical que, influenciado pelo samba, iniciou a retomada do semba e da cultura local angolana motivados pela resistência ao colonialismo português. O Projeto Kalunga foi uma missão que trouxe a Angola 65 artistas brasileiros, a convite do então presidente Agostinho Neto, líder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). A caravana brasileira realizou shows em três cidades angolanas; Luanda, Benguela e Lobito. Este artigo busca mostrar a contribuição do trânsito atlântico contemporâneo entre Brasil e Angola na construção das identidades nacionais e diaspóricas existentes nos dois países, muitas vezes representadas pela cultura popular, no caso o samba e o semba. Assim, busco reconstituir a trajetória do N’gola Ritmos e do Projeto Kalunga com o intuito de analisar o diálogo cultural e político existente entre Brasil e Angola. Através de relatos, notícias de jornais, letras de música e levantamento bibliográfico espero trazer à tona esta memória esquecida que revela o impacto da África no Brasil contemporâneo e as devoluções da cultura ∗ Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Desenvolve pesquisa de pós- doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS-UERJ) com bolsa da FAPERJ. É autor dos livros Zicartola: política e samba na casa de Cartola e Dona Zica (Azougue Editorial, 2ed., 2013) e Mestre João Grande: na roda do mundo (Biblioteca Nacional/Garamond, 2010). brasileira em Angola. A partir da reconstituição da memória desses dois eventos é possível refletir sobre as mútuas influências, devoluções, recriações e invenções presentes nas culturas mediadas pelo “Atlântico Negro” (GILROY, 2001). Para apresentar estes dois eventos devo começar pelo mais recente, porque foi através do Projeto Kalunga que cheguei ao N’gola Ritmos e às reflexões que movem este trabalho. O motivo desse fio condutor é que nas memórias do Projeto Kalunga a relação entre samba e semba surge em diversas narrativas, nas entrevistas, nos textos dos jornais, nas letras das canções. Assim, o N’gola Ritmos se apresenta como o principal evento musical capaz de dialogar com a missão de músicos brasileiros que desembarcou em Angola. A missão que partiu do Rio de Janeiro levou para Angola grandes nomes da música brasileira. Dorival e Danilo Caymmi, Chico Buarque, Edu Lobo, Francis e Olivia Hime, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Clara Nunes, Dona Ivone Lara, Djavan, Cristina Buarque, Miucha, Grupo Nosso Samba, Martinho da Vila, João do Vale e João Nogueira se apresentaram para o público angolano. A idéia inicial, porém, não era convidar tantos músicos. O convite para se apresentar em Angola feito por Agostinho Neto se restringia a Chico Buarque. Este, por sua vez, convidou o produtor Fernando Faro para dirigir o show. Faro aceitou a tarefa, mas fez uma proposta mais ampla. Segundo contou: Era uma época em que eu vivia na casa do Chico Buarque, e eu cheguei lá, em 1979, e ele me disse assim: “Baixo, eu recebi uma ligação do pessoal de Angola, da parte do Agostinho Neto, me convidando para um show em Luanda. Eu quero saber o seguinte: você topa dirigir?”. Eu disse: “Poxa, baixo, Angola? Como é que faz? tem certeza que você quer ir?”. Ele disse: “Ah, quero”. Eu disse: “Eu acho desperdício a gente ir, nós dois, fazer um show em Luanda, no teatro Karl Marx. Eu achava legal se fosse um grupo como raramente se reuniu no Brasil para ir lá prestar solidariedade ao povo que libertou sua terra”. Ele disse: “Mas será que dá?” Eu disse: “Ué, vamos tentar”1. Fernando Faro e Chico Buarque conseguiram levar para Angola um “grupo como raramente se reuniu no Brasil”. A última apresentação - de volta a Luanda, após terem passado por Benguela e Lobito - aconteceu na Plaza de toros. Na ocasião, os compositores angolanos Felipe Mukenga, Rui Mingas e Valdemar Bastos participaram do show e cantaram com os músicos brasileiros. O evento terminou com todos cantando Cio da Terra. Faro dedicou algumas das poucas linhas escritas que existem sobre o Projeto Kalunga a este final emocionado: Era o último show num lugar chamado Plaza de toros. Artistas brasileiros e angolanos se apresentavam juntos. Aí estavam Caymmi, Djavan, Chico ao lado de Valdemar, Felipe Mukenga etc. O show estava terminando, caía a noite. O pessoal ia se arrumando para o número final, subindo todos para o palco, cantando Cio da terra. Eu estava ali no meio da praça, na mesa de som. tudo terminado, eu me debrucei sobre a mesa, cabeça escondida entre os braços e não pude conter a emoção. Senti os olhos molhados. Percebi que uma mão me tocava os ombros. Olhei, era o Chico. Que me abraçou, encostava sua cabeça na minha e dizia: "Você conseguiu, Baixinho". Eu pensei: a pessoa do verbo estava errada. Não era "você conseguiu". teria de ser "nós conseguimos"...2 Naquele momento se encerrava uma viagem de 18 dias em Angola, onde os artistas brasileiros viveram intensamente a cultura local do país. Entre sambas e sembas N´gola Ritmos é o nome do grupo musical angolano, criado em 1947, responsável pela “invenção do semba”, ritmo considerado representativo da identidade nacional angolana. De acordo com Maria J. Moorman: “A banda é geralmente creditada como criadora de um novo gênero musical, semba, associado com a nação emergente” (MOORMAN, 2008; 60). Além de surgir como música nacional de Angola, o semba também é considerado como origem do samba. Conforme cantou o compositor angolano Dom Caetano na canção Semba Dilema, de 1997: Eu Vim trazer meu semba / Sem querer trazer dilema / Mas é que o universo Tem de saber / Que o rico samba/ Nasceu do meu semba. No entanto, semba significa umbigada, uma prática que não existe no samba contemporâneo. Ao contrário, estaria relacionado mais intimamente a uma outra manifestação cultural de dança e música que precedeu o samba no gosto popular do Império: o lundu. De acordo com o pesquisador angolano Mário Rui, o lundu é “uma dança que está relacionada com o Kaduke de Mbaka (Angola), e que veio a ser uma das danças mais populares em Luanda com o nome de masemba (umbigadas, plural de semba), que se caracteriza pelo encontro dos corpos, na umbigada” (RUI, 1999). Desta maneira, tudo indica que samba e semba são práticas distintas que ganharam um aspecto genealógico na ânsia de se inscrever uma origem africana nas culturas consideradas nacionais e folclóricas. A nação é uma invenção moderna e recente, forjada no início do século xIx, “entendida como Estado-nação, definida pela independência ou soberania política e pela unidade territorial e legal” (CHAUÍ, 2000;16). Antes disso, o termo não tinha este peso jurídico e era atribuído a grupos nascidos em um mesmo lugar, normalmente vistos como pagãos pelos colonizadores, como foi o caso dos índios e negros. Não deixa de ser uma ironia, portanto, que as nações nas Américas tenham sido forjadas no contexto da escravidão, e que o sentido da palavra, anteriormente relacionado ao nativo, tenha sido apropriado para propagar um outro sentido, o de pertencimento territorial ao estados que surgiam. Os africanos escravizados, talvez com um objetivo similar - o de construir um pertencimento ao continente africano em terras estrangeiras - elegeram suas próprias nações. No Brasil, muitos candomblés se organizaram em forma de nações como jeje ou nagô, e são conhecidos, portanto, como “candomblés de nação”. De acordo com J. Lorand Matory: Ainda hoje, muitos descendentes daqueles africanos raptados se reconhecem como integrantes de “nações diaspóricas”, para usar um termo que é especialmente comum na América Latina, mas que também não é raro na América do Norte (considere-se, por exemplo, que os negros norte- americanos têm um hino nacional). Há também as naciones arará, congo e lucumí em Cuba, assim como as naçõe jeje, congo-angola e nagô no Brasil (MATORY,1999;58). O samba e o semba integram o universo destas “nações diaspóricas”, principalmente se levarmos em conta a importância da religiosidade na formação destas culturas profanas. O que torna possível conceber a cultura popular como um conceito ambivalente que representa, ao mesmo tempo, as identidades da “nação diaspórica” e da “nação territorial”. Por isso também é um conceito em permanente disputa para construção de identidades. O mais instigante deste processo de transformação do samba em referência nacional, no Brasil, é que em Angola, apesar de suas particularidades relacionadas à formação histórica da nação e à luta anticolonial, assiste-se a um processo similar. Uma dessas similaridades pode ser encontrada no fato de que tanto o samba como o semba foram popularizados pela Radio Nacional do Brasil e de Angola, respectivamente. Liceu Vieira Dias, um dos fundadores e lideres do N´gola Ritmos, foi quem apontou para a influência da musica brasileira para revalorização da musica angolana. Conforme narrou Marisa J. Moormam, referindo-se a Vieira Dias: No final dos anos 1930, junto com outros jovens assimilados, ele formou o Grupo dos Sambas. Eles inicialmente tocavam música brasileira. Foi a música brasileira, ele disse, “que nos levou a descobrir nossa cultura e o valor que ela tem”. Através de uma prática musical estrangeira Vieira Dias e outros jovens da sua geração retornaram para a sua própria cultura.

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