O Caso Das Línguas Bantu No Sul De Moçambique LINGUISTIC O

O Caso Das Línguas Bantu No Sul De Moçambique LINGUISTIC O

ISSN 2307-3918 Artigo original ORDENAMENTO LINGUÍSTICO E CONCEPÇÃO DE CATEGORIAS LINGUÍSTICAS: o caso das línguas bantu no sul de Moçambique Gregório Firmino Faculdade de Letras e Ciências Sociais, Universidade Eduardo Mondlane (UEM), Moçambique RESUMO: A conquista e administração de territórios coloniais, na sequência da Conferência de Berlim, impôs necessidades de gestão, o que pressupôs o estabelecimento de uma certa ordem e consequente concepção de categorias para a apreensão da realidade dos referidos espaços territoriais. Neste sentido, diversos actores coloniais (missionários, administradores, exploradores, aventureiros, etc.) procuraram apreender a realidade social dos territórios coloniais, projectando uma ordem social, através da qual se dava uma configuração aos espaços coloniais. Um exemplo disso é a ordem social criada com a definição de categorias (etno)-linguísticas. O artigo tem o objectivo de rever o processo de ordenamento linguístico em Moçambique, tendo em conta a (re)criação de categorias (etno)-linguísticas, com especial incidência na região sul do país. Para o efeito, recorre-se a uma junção de pesquisas documental e bibliográfica. Partindo de abordagens percursoras de missionários e académicos, ou apelando a trabalhos recentes de estudiosos nacionais, serão apresentados elementos que revelam o processo de mapeamento das línguas autóctones, comummente reconhecidas no sul do país. Este processo começa pelas caracterizações e classificações iniciais, feitas pelos primeiros colonizadores europeus, principalmente missionários, que identificaram e configuraram línguas para uso no processo de evangelização. Com a ocupação colonial e sofisticação do instrumentário epistemológico, a que se associa o proselitismo religioso, intensificou-se o trabalho de categorização e mapeamento linguístico, a medida que as categorias linguísicas, como representações da paisagem linguística, foram concebidas e consolidadas. No artigo aponta-se que estas construções linguísticas ainda têm impacto no ordenamento das sociedades actuais, como se demonstra com o caso do sul de Moçambique. Palavras-chave: Categorização, ordenamento, línguas, Moçambique. LINGUISTIC ORDERING AND THE CONCEPTION OF LANGUAGE CATEGORIES: the case of Bantu languages in southern Mozambique ABSTRACT: The conquest and administration of colonial territories, in the aftermath of the Berlin Conference, imposed management needs, which implied the establishment of a certain order and the consequent making up of categories to capture their realities. In this regard, different colonial agents (missionaries, administrators, explorers, adventurers, etc.) sought to apprehend the social realities of the colonial territories by projecting a certain social order, through which a profile was given to the colonial space. An example is the social ordering created by the definition of ethnolinguistic categories. The objective of this article is to revisit the process of linguistic ordering in Mozambique, taking into account the (re)creation of (ethno)linguistic categories, focusing on the southern region of the country. For this purpose, the study resorted to documentary and bibliographic research. Starting from pioneering approaches from missionaries and academics, or resorting to more recent work by national scholars, the article will present an overview of the mapping process of autochthonous languages, usually recognized in the south of the country. The process starts with the initial descriptions and classifications, undertaken by the first European colonizers, mainly missionaries, who identified and concocted languages for evangelization. With colonial occupation and sophistication of epistemological tools and religious proselytism, work on language categorization and mapping intensified, and language categories as representations of the language landscape were devised and consolidated. It is argued that these language constructions still have an impact on the ordering of current societies, as shown by the case of southern Mozambique. Keywords: Categorization, ordering, languages, Mozambique. ____________________________ Correspondência para: (correspondence to:) [email protected] Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 2, No 2, pp 59-79, 2021 59 Ordenamento linguístico e concepção de categorias linguísticas: o caso das línguas bantu no sul de Moçambique INTRODUÇÃO estratégias para a interpretação da situação colonial, de que resultaram processos de Reconhece-se que África é um continente categorização e hierarquização dentro da com uma diversidade de línguas, relação entre colonizadores e colonizados. geralmente agrupadas em várias categorias, Uma das estratégias fundamentais foi o nomeadamente, afro-asiáticas (corno de estabelecimento de uma ordem linguística a África e norte de África), nigero- que estavam subjacentes representações congolesas, que inclui o grupo das línguas linguísticas (GILMOUR, 2006, p. 2-3) que bantu (quase toda a África sub-sahariana), impuseram ideologias linguísticas (ou seja, khoisan (sudoeste de África) e nilo- atitudes e opiniões sobre as línguas e seus saharianas (entre Tanzânia e Sudão e entre falantes, hierarquização social, bem como Chade e Mali), austronésias (Madagáscar), sobre formas de falar adequadamente, indo-europeias (Afrikaans, no sul de África, incentivando-se certas práticas crioulo, e línguas ex-coloniais) (cf. HEINE; linguísticas). Estudos coloniais, efectuados NURSE, 2000, p. 1). por viajantes, exploradores, marinheiros, As línguas bantu cobrem quase toda a autoridades coloniais, etnógrafos, África sub-sahariana, incluindo antropólogos, filólogos, etc. produziram Moçambique, onde todas as línguas estas representações linguísticas, através de consideradas autóctones, pertencem a este gramáticas, dicionários, listas de palavras, grupo. Apesar da sua similaridade, estas livros de leitura, tratados filológicos, línguas apresentam peculiaridades literatura litúrgica, etc. que legitimaram a distintivas, que, muitas vezes, se conceptualização e categorização das correlacionam com distinções sociais, ou formas linguísticas presentes no espaço seja, o que se pode designar por grupos colonial. Ou seja, as representações étnicos. De facto, como acontece muitas linguísticas foram uma forma de dar vezes, estas línguas, na forma como são sentido, sob um olhar europeu, a realidade concebidas, acabam tendo influência na encontrada em África, com construção, invenção e criação de criação/invenção de categorias linguísticas, identidades étnicas, que, actualmente, têm seguindo uma visão epistémica ocidental. É implicações na imaginação e vivência das assim que se pode argumentar que: “… o nações-estado em África, já que muitos estudo de línguas e a perseguição da países africanos, tal como Moçambique, são classificação de línguas eram parte e parcela caracterizados por uma diversidade de tentativas de ‘dar sentido’ a África, etnolinguística (LYNCH, 2018). através do mapeamento de categorias A enumeração destas línguas que compõem homogéneas no que parecia aos Ocidentais ser realidades africanas confusamente o mosaico linguístico que caracteriza os 1 vários países africanos, bem como, heterogéneas” (GILMOUR, 2006, p. 12, sobretudo, a conceptualização e o tradução para português do autor). reconhecimento da sua existência, levantam Esta prática de recurso a uma visão questões relevantes sobre a natureza desta epistémica ocidental para interpretar a diversidade (etno)linguística (Quais são? realidade colonial foi comum em diversos Como são? Como são nomeadas? Por quem contextos de colonização. Severo (2016, p. são nomeadas? Como e por quem são 11-12), descreve uma situação similar, ao descritas, com que olhar?). De facto, estas apontar que também houve um processo de questões estão no cerne da imposição do discursivização das línguas americanas, poder colonial, com repercussões no partindo-se de uma matriz de poder central período pós-colonial, uma vez que no seu na lógica da modernidade/colonialidade, de esforço de controlar os territórios que resultou o enquadramento dos povos e colonizados, os ocidentais desenvolveram línguas numa chave de interpretação Rev. cient. UEM: Sér. ciênc. soc.. Vol. 2, No 2, pp 59-79, 2021 60 G Firmino colonial, cujos efeitos ainda perduram na e primordialista das categorias sociais (cf. actualidade. Trata-se de um argumento que GEERTZ, 1973, p. 259; VITALI, 2019, p. caracteriza um aspecto central da crítica à 151), procurar-se-á evidenciar o carácter chamada Linguística Colonial historicamente contingencial das (ERRINGTON, 2001; GILMOUR, 2006; concepções das unidades linguísticas IRVINE, 2008), que defende que línguas e (correlativamente, das unidades povos coloniais não foram descobertos, mas etnolinguísticas), que têm a sua génese inventados (SEVERO, 2016, p. 11). numa visão epistémica eurocêntrica. Makoni e Pennycook (2007, p. 9) ilustra Mostrar-se-á também que estas categorias esta situação, com o trabalho de Sir George acabam sendo naturalizadas, ao ponto de Abraham Grierson, no âmbito de uma serem um elemento estruturante das pesquisa linguística na Índia colonial: sociedades sob colonização, com Um problema central de Grierson, repercussões no contexto pós-colonial. como para tantos outros linguistas, Tendo em conta o seu objectivo, depois da era decidir sobre fronteiras que definem línguas e dialectos. Os apresentação da abordagem metodológica, dialectos tendiam a ser considerados que assenta na pesquisa documental e como formas faladas e as línguas bibliográfica, o artigo procura mostrar recebiam

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