Scanlation: Reprodução E Consumo Subalterno De Mangá Na Cibercultura

Scanlation: Reprodução E Consumo Subalterno De Mangá Na Cibercultura

127 Scanlation: reprodução e consumo subalterno de mangá na cibercultura Tatiane Hirata Mestranda na pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT e integrante do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC) da UFMT E-mail: [email protected] Yuji Gushiken Doutor em Comunicação e Cultura (UFRJ) Professor do Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT e líder do NEC-UFMT E-mail: [email protected] Resumo: Este artigo discute a prática midiática conhecida no campo da cibercultura como scanlation, que consiste em digi- talizar, traduzir, editar e distribuir gratuitamente as histórias em quadrinhos japonesas, chamadas de mangá. O scanlation remete a uma releitura contemporânea de um sistema de dá- Introdução divas, através do qual os objetos da indústria criativa japonesa são apropriados, reproduzidos e redistribuídos em circuitos subalternos de consumo. Neste artigo, analisa-se o fenômeno so- Palavras-chave: Comunicação, scanlation, mangá, cibercultura, ciotécnico e midiático da prática social consumo subalterno. denominada scanlation: a reprodução di- Scanlation: reproducción y consumo subalterno de man- gitalizada e ilegal de mangás (quadrinhos ga en la cibercultura japoneses) levada a cabo por fãs em circui- Resumen: Este artículo discute la emergencia de la práctica tos de sociabilidade na cibercultura. Adota- mediática conocida como scanlation, que consiste en la digi- talización, traducción, edición y distribución gratuita de las se, portanto, a abordagem metodológica que historietas cómicas japonesas, conocidas como mangá. El scan- inclui o modelo de estudos da comunicação lation remite a lectura contemporánea de un sistema de dadiva, a través del cual los objetos de la industria creativa japonesa como ciência da cultura (Lima, 2001). A son apropiados, reproducidos y redistribuidos en circuitos su- partir do campo da comunicação (Weber; balternos de consumo. Bentz; Hohfeldt, 2002), este artigo dialo- Palabras clave: Comunicación, scanlation, manga, cibercultura, consumo subalterno. ga, no modelo escolhido, com as ciências sociais, em especial a antropologia, tendo Scanlation: reproduction and subaltern consumption of como foco a atualização do sistema de dádi- manga in cyberculture Abstract: This article discusses the media practice known in va (Mauss) no capitalismo contemporâneo. the field of cyberculture as scanlation, a process of scanning, No plano metodológico, opta-se por uma translating, editing and free distribution over the internet of análise histórica, suplementada por obser- Japanese comics, called manga. Scanlation refers to a contem- porary revisiting of gift economy, through which the Japanese vação participante hoje aplicada às práticas creative industry products has been used, reproduced and re- da cibercultura (Lemos, 2010), com apoio distributed in subaltern circuits of consumption. Keywords: Communication, scanlation, manga, cyberculture, de uma bibliografia já produzida sobre subaltern consumption. mangá como produto cultural e comunica- Líbero – São Paulo – v. 15, n. 30, p. 127-138, dez. de 2012 Tatiane Hirata / Yuji Gushiken – Scanlation: reprodução e consumo subalterno de mangá na cibercultura 128 cional (Luyten, 2000; 2005). As categorias de pão para promover sua política diplomática análise incluem instituições (mercado inter- conectada diretamente aos valores daquela nacional de mangás) e formações culturais sociedade. Além de mostrar um lado menos (scanlation como prática midiática). Comu- tradicional e menos rígido dos japoneses, es- nicação, nessa abordagem adotada, define-se ses produtos ajudam o país a produzir uma como: “processo simbólico através do qual a imagem de país moderno, sintonizado com o realidade é produzida, mantida, reparada e desejo de consumo de jovens do mundo in- transformada”. (Lima, 2001) teiro, e também a exportar produtos que não se resumem a automóveis e equipamentos eletrônicos. A explosão da indústria criativa, Uma das soluções para em setores como o entretenimento, tornou- que leitores de outros se mais evidente com as crises econômicas enfrentadas pelo Japão nas décadas de 1990 países tivessem acesso às e 2000, que limitaram a produção industrial revistas em quadrinhos do país, mas favoreceram o consumo de japonesas foi montar mangás e animes no cenário internacional. circuitos de distribuição Na década de 90, a imagem do Japão já não de cópias clandestinas é apenas econômica. Sushi, sashimi e ka- raokê são agora símbolos tão bons como Honda e Mitsubishi. Eles fazem parte do fluxo externo da cultura japonesa. As di- As histórias em quadrinhos japonesas, mensões do Japão fazem com que este flu- conhecidas como mangás, são consumidas xo seja inevitável. Assim, torna-se impos- em escala global na versão impressa. Elas são sível para o país deixar de ser influenciado encontradas facilmente à venda em livrarias por outros países, isto é, internacionalizar- se. Ambos os processos vieram para ficar, físicas e online, lojas especializadas e bancas visto que o Japão não existe no vácuo e está de jornal. O mangá, item da cultura pop ja- envolto por outros países do mundo. (Eds- ponesa, é um dos elementos que constituem trom apud Ortiz, 2001: 67) o chamado Cool Japan, campanha que con- siste em ampliar a influência daquele país As origens do mangá remontam a perga- nos campos político, social, cultural e eco- minhos budistas do século XII. Mas, como nômico através de seus produtos mais po- produto da moderna indústria criativa, co- pulares. O Cool Japan, termo adotado pelo meçou a ser descoberto além das fronteiras governo japonês na década de 2000, tem ori- japonesas entre as décadas de 1960 e 1970, gem na reportagem Japan’s Gross National quando animações made in Japan chegaram Cool1, do jornalista norte-americano Dou- às telas das emissoras de TV ocidentais. Ba- glas McGray. Em 2002, ele publicou na re- seados nas histórias em quadrinhos japone- vista Foreign Policy um pequeno panorama sas de grande sucesso, os animes – como as da emergência do Japão “descolado”, cujos animações são chamadas pelos japoneses – produtos são consumidos avidamente pelo surgiram como opção mais barata para pre- próprio público japonês, mas também cada encher lacunas nas grades de programação vez mais exportados. das emissoras de TV em países do Ocidente, Os jogos eletrônicos, as histórias em qua- sendo adquiridos para atender ao público drinhos, as animações, a moda, a gastrono- infantil. Porém, no Japão, mangás e animes mia, o design e a música japoneses, entre não são produtos exclusivos para crianças e tantos outros produtos que possuem uma adolescentes. Mangá e anime fazem parte de aura cool, fazem parte do Soft Power (Poder um sistema mais amplo, que inclui leitores Brando) engendrado pelo governo do Ja- de ambos os sexos, variadas faixas etárias e Líbero – São Paulo – v. 15, n. 30, p. 127-138, dez. de 2012 Tatiane Hirata / Yuji Gushiken – Scanlation: reprodução e consumo subalterno de mangá na cibercultura 129 ocupações profissionais. Como ressalta Re- empecilhos que atrasavam a chegada das nato Ortiz, o mangá e, consequentemente, histórias em quadrinhos japonesas em al- seu derivado, o anime: guns países. [...] não se limita, como em muitos países, [...] os mangás nunca foram concebidos para a um público infantil. Desde o início ele se ser vendidos no exterior. Eles nasceram com volta para leitores diferenciados, exploran- histórias estilizadas e trabalhos artísticos feitos do os enredos em múltiplas direções: aven- para os japoneses, culturalmente específicos e tura, comédia, romance, ação, política, ero- baseados em valores compartilhados, criados tismo. A técnica da narrativa, gramatical e sem preocupação com possíveis respostas es- visual, de cada um desses eixos tende assim trangeiras a sua abordagem do sexo, do cristia- a se enriquecer e a se diversificar.” (Ortiz, nismo e de outras questões polêmicas. (Gra- 2001: 165) vett, 2006: 156) Por conta de seu conteúdo não voltado A falta de licenciamentos de mangás por especificamente para o público almejado editoras estrangeiras praticamente forçou pelas emissoras de TV de outros países, no- os leitores de outros países, que se mostra- tadamente no Ocidente, as animações japo- ram persistentes no consumo do produ- nesas passaram por adaptações na dublagem to, a buscar maneiras diversas para terem ou na edição de cenas. O objetivo era ade- acesso a revistas originais, publicadas no quar o conteúdo para que estivesse de acordo Japão. Uma delas foi montar circuitos de com as normas que garantissem a “formação distribuição de cópias clandestinas das re- saudável” de crianças e adolescentes. O que vistas em quadrinhos, disponibilizando-as as emissoras desses outros países não espe- a integrantes de clubes de fãs de cultura pop ravam é que as séries amealhassem a admi- japonesa. Na Espanha, a animação Dragon ração do público, que começou a demandar Ball tornou-se popular na década de 1980, a produtos correlatos – brinquedos e princi- ponto de fãs se mobilizarem para adquirir, palmente revistas em quadrinhos – em geral por vias não formais, cópias dos mangás da disponíveis em grande quantidade no Japão. série criada por Akira Toriyama. Editoras norte-americanas, asiáticas Como Alfons Moliné relata, e européias passaram a voltar a atenção mercadológica para a então emergente de- [...] o sucesso foi tão grande que, no início, manda dos telespectadores por produtos a não-existência de merchandising base- relacionados às séries. Chegaram a lançar ado na série incentivou os próprios fãs a criarem o seu. Aconteceu um tráfico

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