QVAE SVNT CAESARIS CAESARI Commentarii De Bello Gallico

QVAE SVNT CAESARIS CAESARI Commentarii De Bello Gallico

Haroldo Bruno QVAE SVNT CAESARIS CAESARI uma proposta de leitura dos 0300038572 Commentarii de Bello Gallico. RETOM3ADO j^f 3>*c Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, campus de Araraquara, para a obtenção do título de Doutor em Letras, Área de Concentração: Lingüística e Língua Portuguesa. ! da <V/*cus , ri Orientador: Professor Doutor Alceu Dias Lima Araraquara — 1998 — Haroldo Bruno QVAE SVNT CAESARIS CAESAR? uma proposta de leitura dos Commentarii de Bello Gallico. Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, campus de Araraquara, para a obtenção do título de Doutor em Letras, Área de Concentração: Lingüística e Língua Portuguesa. Orientador. Professor Doutor Alceu Dias Lima Araraquara —1998 — 1 Marcos, 22:21. Memoriae Amici João Batista Forti A Maria Joana e Arnaldo, meus pais, pelo exemplo de dignidade e perseverança. A Eduardo Augusto e Thais, meus sobrinhos, pela alegria com que distinguem o tio. A Renata, Daniel e Carla, meus filhos, pelos seres humanos que são. A Regina, minha esposa, por não esmorecer. No ainda cinzento inverno de 1988, ao transferir-me de São Paulo para Araraquara, tive calorosa acolhida dos companheiros da Área de Latim da FCL/Car, Professores Alceu Dias Lima, João Batista Toledo Prado e José Dejalma Dezzoti. Se este trabalho alcançou seu fim, foi certamente por seu incentivo. A todos os três devo estender minha gratidão, sobretudo e especialmente ao Professor Doutor Alceu Dias Lima, por sua perseverança com o orientando indisciplinado. RESUMO Resumo. Observa-se, nos Commentahi de Bello Gallico, uma ligação pouco transparente entre seu plano formal e seu plano de conteúdo. A aparente preocupação de César em relatar, como teriam ocorrido, fatos e ações tê-lo-ia levado a servir-se de um discurso objetivo e despojado dos ingredientes da retórica tradicional. Juntas, essas duas vertentes condicionariam a produção de um discurso claramente denotado. Contudo, a denotação em César parece dissimular dois objetivos que subjazem à obra: de um lado, a criação do mito de um Caesar e, de outro, como conseqüência ou complementação à criação do mito, a instauração dos alicerces do regime monárquico imperial. Ora, se tais objetivos norteiam a obra que, historicamente, é a responsável pelas bases primeiras do cesarismo, não será ingênuo nem fora de propósito supor que, no Bellum Gallicum, a denotação dissimula a conotação. Assim, o objetivo intrínseco desta pesquisa é mostrar como, servindo-se de uma linguagem despojada dos recursos tradicionalmente chamados retóricos, no tocante ao léxico e a morfossintaxe, César produz um discurso fortemente expressivo e manipulador. Resumo / Abstract. It is possible to observe, in Caesar's Commentarii de Bello Gallico, a not so manifest relation between its formal aspects and its contents. It is commonly thought that Caesar's apparent intention to describe facts and actions as they would have really occurred should have driven him to use an objective language, deprived from the traditional rhetoric components. These two textual dimensions should lead to the production of clearly denoted discourses. However, denotation in Caesar's works seems to dissimulate two underlying objectives: first, the creation of a myth, the myth of a Caesar; second, as consequence of or complement to that myth, the establishment of a basis for the imperial monarchic government. If it is true that such objectives guide Caesar's works, which are historically responsible for the very basis of Caesarism, it wil not be ingenuous or inopportune to assume that, in the Bellum Gallicum, denotation disguises conotation. The intrinsic objective of this research is, then, to show how Caesar, using a kind of language which is deprived of the traditional rhetorical resources, as far as lexicon and morphosyntax are concerned, is able to elaborate such an expressive and manipulating discourse. ÍNDICE 1. Apresentação 10 2. Primeira parte: Considerações preliminares 12 I. Introdução 13 II. O aparelho formal da narrativa 29 III. HISTORIA- 33 III. Historicidade 37 IV. Retórica: arte ou armadilha? 40 IV. 1. Retórica 42 IV. 2. A retórica clássica 43 IV.2.1. Retórica: sua significação extensiva 43 IV.2.2. Retórica: sua significaçãôlntensiva 47 IV. 3. Teoria da elaboração 50 V. Mito 57 V. 1. Narrativa mitográfica X constructum mítico 65 V.1.1. Mito cívico 68 V.2. Mitização 70 3. Segunda parte: Os Commentarii 75 I. Introdução aos Commentarii 76 II. Os Commentarii de Bello Gallico 82 II. 1. Commentarii 88 11.1.1. Comentaridade 91 11.1.2. Forma e função dos Commentarii 93 III. Uma proposta de leitura 103 III. 1. Historicidade 104 APRESENTAÇÃO Apresentação. 11 Distribui-se o presente trabalho em duas partes. Na primeira, "Considerações preliminares", expõem-se os conceitos considerados indispensáveis para o estudo dos Commentarii de Bello Gallico, quais sejam, "o aparelho formal da narrativa", "HISTORIA-", "retórica" e "mito". Tomados isoladamente, isto é, sem se ter em vista a finalidade a que se destinam — o estudo do Bellum Gallicum —, poderão parecer distribuídos aleatoriamente; essa é, contudo, uma impressão que se desfará ao alcançar-se a parte seguinte. A segunda parte, "os Commentarii', destina-se, fundamentalmente, ao estudo do Bellum Gallicum, dos elementos constitutivos do gênero commentarii, bem como da proposta de leitura que dele, Bellum Gallicum, se deve fazer. Ainda nessa seção, demonstram-se os resultados alcançados em uma leitura do Bellum Ciuile, sem os quais se poderia considerar prejudicada qualquer conclusão sobre os Commentarii de Bello Gallico. PRIMEIRA PARTE CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES I. INTRODUÇÃO v., Introdução. 14 Rusbrock está enterrado há cinco anos; é desenterrado; seu corpo está intacto e puro (pudera! senão não haveria história); mas: "havia apenas um pontinho no nariz que tinha um leve traço de decomposição". Sobre a figura perfeita e como embalsamada do outro (que tanto me fascina), percebo de repente um ponto de decomposição. É um ponto mínimo: um gesto, uma palavra, um objeto, uma roupa, alguma coisa insólita que surge (que aponta) de uma região de que eu nunca havia suspeitado antes, e devolve bruscamente o objeto amado a um mundo medíocre. Seria o outro vulgar, ele cuja elegância e originalidade eu incensava com devoção? Ei-lo que faz um gesto através do qual se revela nele uma outra raça. Fico alarmado: ouço um contra-ritmo: algo como uma síncope na linda frase do ser amado, o ruído de um rasgo no invólucro liso da Imagem. (Barthes, 1990, p. 19). A epígrafe de Barthes pode parecer estranha ou despropositada; sobretudo por pretender aproximar dados culturais considerados inaproximáveis, como Rusbrock, de Irmãos Karamazov, de Dostoïevski, o próprio Barthes e os Commentarii de César. Maior grau de estranhamento haverá se, a eles, se acrescentar ainda uma passagem de Ruy Castro acerca do irônico "óbvio ululante" cunhado por Nelson Rodrigues: "Só os profetas enxergam o óbvio", dizia Nelson Rodrigues a respeito de certos fenômenos que, por estarem bem Introdução. 15 debaixo dos nossos narizes, tornam-se invisíveis. O óbvio ulula para nós, clamando por reconhecimento, e, apesar disso, passamos invictos por ele, com uma superioridade imbecil e alvar. Um dia, finalmente, alguém o enxerga — e, por enxergá-lo, torna-se um profeta e é carregado em triunfo numa bandeja, de maçã na boca, como um leitão assado (Rodrigues, 1993, p. 11). Que reflexão, afinal, poderia justificar porem-se, lado a lado, Dostoiévski, Barthes, César e Nelson Rodrigues, na abertura de um estudo sobre os Commentarii. Se não se esquecerem os objetivos que norteiam este trabalho, verificar-se-á que as aproximações poderão, sem artifícios de raciocínio, fazer algum sentido. O "pontinho no nariz", denunciador implacável de um leve traço de decomposição, foi, segundo a leitura de Barthes, capaz de comprometer todo o corpo de Rusbrock, o qual, ainda que inumado há cinco anos, se apresentava intacto e puro. O "óbvio ululante" de Rodrigues representa por sua vez, de acordo com Ruy Castro, a realidade que se põe à frente de todos, "clamando" para ser reconhecida, sendo, contudo, "invictamente" ignorada, até ser percebida por um "profeta". Introdução. 16 Quanto às questões de Roma, a tradição humanística defronta-se igualmente com um "pontinho no nariz" e ofusca- se com um "óbvio ululante", por força de uma "reverência litúrgica" que, por êxtase ou por temor, dispensa ela própria aos Estudos Clássicos. Para a demonstração desse comportamento, apresentar-se-ão a seguir, a título de exemplificação não exaustiva, três "casos" em que a "reverência litúrgica" se revela muito fortemente. O primeiro deles diz respeito a um hexâmetro ciceroniano: Cédant arma togae, concédât laurea laudi — de Officiís I, 22, 77. Traduzido como "Cedam as armas à toga e o louro à língua" por Fumagalli, ou como "Que as armas cedam à toga, que o louro ceda à língua" por Rónai, e como "Que les armes le cèdent à la toge; que le laurier <du triomphateur s'incline devant l'éloquence" por Bornecque (sd., p. 129, v. IV), tem freqüentemente sido interpretado como um apelo à ordem, alcançada esta por meio da submissão do poder militar ao poder civil, com a supremacia das palavras sobre as armas. Pode-se, contudo, acreditar haver um equívoco nessas interpretações, produzido pelo jogo antinômico em nível dos significantes "arma" e "togae"; em nível de significado, o antinômico se Introdução. 17 transforma em sinonímico, já que seus significados passam a ser correferenciais, apontando para um único referente: o poder, representado quer pela força das armas, quer pela força das palavras. Assim, antes de ser uma exortação à submissão à ordem civil, é, na verdade, um procedimento retórico com o qual o orador pretende levar a batalha para o seu domínio e travar luta com sua arma: a palavra. Não se pode, pois, afirmar que se almeje a paz; procura-se, sim, apagar, no exercício do poder, os indícios exteriores de opressão e de violência representados por "arma", com a mera substituição de "arma" por "uerba", de opressão e violência mais eficazes porque dissimuladas.

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