A ARANEOFAUNA (ARACHNIDA, ARANEAE) DA RESERVA FLORESTAL DUCKE, MANAUS, AMAZONAS, BRASIL Alexandre B. Bonaldo, Antonio D. Brescovit, Hubert Höfer, Thierry R. Gasnier & Arno A. Lise “So that, although many a familiar form will meet the eye of the English arach- nologist on the Amazons, yet there are countless forms differing in size, in struc- ture, and in colour from anything that he can find amongst the spider-fauna of Northern Europe... One must confess, too, that at the present time arachnologists still know next to nothing of the spiders of Brazil” (F. O. Pickard-Cambridge, 1896 apud Hillyard, 1994). “If there are actually 170.000 species of spiders in the world and systematic work continues at the pace it has exhibited since 1955, it will take another 638 years to finish describing the world spider fauna” (Platnick, 1999). IntroduÇÃO As aranhas estão entre os animais mais facilmente reconhecidos pelos seres humanos. Como todos os outros aracnídeos, elas apresentam o corpo dividido em cefalotórax e abdome, um par de palpos, quatro pares de apên- dices locomotores e peças bucais especiais, chamadas quelíceras. Entretanto, esses animais apresentam uma série de caracteres exclusivos, como separação entre o cefalotórax e o abdome por um pedicelo, presença de glândulas pro- dutoras de peçonha, a qual é exteriorizada através das garras das quelíceras, e de glândulas produtoras de seda, a qual é exteriorizada através de apêndices abdominais modificados, as fiandeiras. A faculdade de produzir peçonha e seda fez das aranhas figuras recorrentes na mitologia e no imaginário popular de diversas culturas. Contudo, outras características bem menos conhecidas pelo público são igualmente impressionantes, como por exemplo, as modifi- cações do tarso do palpo do macho que permitem a transmissão de esperma durante a cópula, a imensa variedade de estratégias de predação que utilizam ou os importantes papéis que desempenham, como predadores de insetos e outros animais, na manutenção do equilíbrio de ecossistemas terrestres. O espanto dos cientistas europeus, que no século XIX contemplaram pela primeira vez a fauna de aranhas da Amazônia, só é comparável ao dos araneó- logos atuais, quando vislumbram a real diversidade desde Clerck (1757) e Linnaeus (1758), os pio- de espécies da ordem Araneae e o volume de tra- neiros da nomenclatura binomial, listando 39.882 balho necessário para levar o conhecimento destes espécies descritas em 3.676 gêneros e 108 famílias animais a um nível aceitável. Existe um sentimento em todo o mundo. Entretanto, este número talvez de urgência na realização desse objetivo, uma vez represente apenas cerca de 20% a 50% do total de que, após mais de 380 milhões de anos de evolução, espécies viventes, pois as estimativas acerca do ta- as aranhas enfrentam hoje o maior dos desafios: so- manho real da ordem Araneae variam de 76.000 breviver à destruição de seus ambientes, provocada a 170.000 espécies. Coddington (1991), a partir pela humanidade. Uma das poucas áreas relativa- de porcentagens de espécies novas em revisões ta- mente bem estudadas entre as representativas das xonômicas recentes e de estimativas do volume de florestas tropicais úmidas da Amazônia central, a conhecimento taxonômico acumulado em cada re- Reserva Florestal Adolpho Ducke (Reserva Du- gião biogeográfica, supuseram a existência de cerca cke), sofre com a pressão da expansão urbana já há de 170.000 espécies. Platnick (1999), trabalhando vários anos, e cada vez mais vem adquirindo carac- com comparações entre padrões geográficos de tá- terísticas de uma ilha de mata. Como praticamen- xons relativamente bem conhecidos, estimou algo te nada se sabe sobre o efeito da fragmentação dos em torno de 76.000 a 80.000 espécies de aranhas hábitats nas comunidades de aranhas e de outros no planeta. artrópodes, não se pode fazer previsões sobre o fu- Atualmente as aranhas estão agrupadas em 108 turo desta Reserva, uma área que, como se verá, re- famílias, mas mesmo neste nível a descrição da di- presenta um enorme investimento científico. Nos- versidade ainda não está completa. Nas duas últi- sa tarefa aqui é proporcionar uma síntese do que se mas décadas, o número de famílias reconhecidas conhece sobre a composição e a história natural da permaneceu relativamente constante, mas diver- fauna de aranhas da Reserva Ducke, destacando o sos nomes de família foram abandonados e outros papel histórico desempenhado por esta Reserva na tantos foram validados. Além disso, o número de geração do conhecimento araneológico na Améri- famílias pode aumentar radicalmente no futuro. ca do Sul. Platnick (1999) admitiu que, apenas para a fauna da região Australiana, cerca de 20 famílias adicio- Diversidade E estado DO nais podem ainda ser eventualmente reconhecidas. Assim, um inventário razoavelmente completo da conhecimento da ORDEM real diversidade de espécies, gêneros e mesmo de Araneae famílias de aranhas ainda é um objetivo de longo As aranhas compõem um dos grupos de orga- prazo. Entretanto, graças à utilização cada vez mais nismos mais bem sucedidos, estando presentes em freqüente de técnicas de sistemática filogenética, praticamente todos os ambientes terrestres. Apenas foram feitos avanços significativos na reconstrução as cinco maiores ordens de Insecta e uma ordem de da história evolutiva destes organismos e ao menos Arachnida, a dos ácaros, apresentam número de os grandes grupos de Araneae estão bem estabele- espécies conhecidas superior ao da ordem Arane- cidos. ae (Parker, 1982). Os especialistas em aranhas têm Desde o trabalho de Platnick (1976), são reco- o privilégio de terem acesso ao número preciso de nhecidos em Araneae dois grandes grupos monofi- espécies válidas descritas até hoje, um dado sur- léticos, ou seja, grupos compostos por uma espécie preendentemente difícil de ser obtido em outros ancestral e todas as espécies descendentes desta. grupos de invertebrados. Isto se deve ao trabalho Um destes grupos, a subordem Mesothelae, inclui de catalogação dos avanços taxonômicos realizado aranhas que retiveram diversos caracteres primiti- por Petrunkevitch (1911), Bonnet (1955-1959), vos, tais como traços de segmentação abdominal e Roewer (1942, 1954a,b), Brignoli (1983) e Plat- a presença de quatro pares de fiandeiras, sendo o nick (1989, 1993, 1997). Estes esforços culmina- primeiro par localizado no ventre, ao nível do se- ram no catálogo eletrônico de Platnick (2007), gundo par de pulmões foliáceos. Esta subordem que relacionou os nomes disponíveis em Araneae é composta por apenas 87 espécies em 5 gêneros 202 A FAUNA DE ARTRÓPODES DA RESERVA FLORESTAL DUCKE ESTADO ATUAL DO CONHecIMENTO TAXONÔMICO E BIOLÓGICO de distribuição atual restrita ao sudoeste da Ásia, A Araneofauna da agrupados na família Liphistiidae, infraordem AmazÔNIA Brasileira E da Liphistiomorphae. O outro táxon, a subordem Opistothelae, engloba a imensa maioria das ara- Reserva DUCKE nhas e possui duas infraordens: Mygalomorphae Na região Neotropical, que inclui a América e Araneomorphae. Estas aranhas não apresentam do Sul, Caribe e parte da América Central, ocor- vestígios de segmentação abdominal e as fiandeiras, rem 13 famílias de Mygalomorphae e 68 famí- em número de seis ou menos, estão agrupadas na lias de Araneomorphae. Na Amazônia brasileira extremidade posterior do abdome. A infraordem foram registradas até o momento 58 famílias de Mygalomorphae congrega as aranhas popularmen- aranhas, 10 de Mygalomorphae e 48 de Araneo- te conhecidas na Amazônia como aranhas-peludas morphae (Brescovit et al., 2002; Brescovit et al., ou aranhas-macaco e, em outras regiões do Brasil, 2004). A discrepância entre o número de famí- como caranguejeiras. Estas aranhas são caracteriza- lias ocorrentes na região Neotropical em relação das pela completa ausência das fiandeiras médias ao conhecido atualmente para a Amazônia bra- anteriores, pela redução das fiandeiras laterais an- sileira é, em grande parte, devida à ocorrência teriores e pela simplificação do aparelho copulató- de diversas famílias de distribuição tipicamente rio do palpo do macho (Raven, 1985). As Liphis- austral no Chile e na Argentina, algumas das tiomorphae e Mygalomorphae compartilham uma quais ocorrentes também no sul do Brasil. En- característica primitiva: quelíceras com a mesma tretanto, as amostragens disponíveis da fauna de orientação que o eixo longitudinal do corpo, uma aranhas dos ecossistemas brasileiros em geral, e condição chamada paraxial. Nas Araneomorphae, a dos amazônicos em particular, são ainda mui- as quelíceras tornaram-se diaxiais, ou seja, estão to insatisfatórias. Assim, o incremento destas orientadas transversalmente em relação ao eixo lon- amostragens poderá resultar em novos registros gitudinal do corpo. Outra característica que define de famílias para o Brasil e para a região amazô- Araneomorphae é a transformação das fiandeiras nica. Existem ao menos três exemplos recentes médias anteriores, presentes como tal apenas em destes avanços. Até 1992, um grupo de aranhas Liphistiidae, em uma placa funcional chamada cri- cribeladas de ampla distribuição na Europa, belo. Ao que tudo indica, esta placa estava presente África e Ásia, a família Eresidae, tinha apenas no ancestral de todas as Araneomorphae, apesar de um registro para as Américas, Stegodyphus anu- ter sido reduzida a uma protuberância não funcio- lipes (Lucas, 1857), uma espécie descrita com nal, o colulo, ou ter desaparecido completamente base em material coletado nas proximidades da na maioria das espécies atuais. As Araneomorphae cidade do Rio de Janeiro.
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