CAUSA PÚBLICA CAUSA PÚBLICA Coordenação de Rita Marnoto INSTITUTO DE ESTUDOS ITALIANOS DA FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA Título: Causa Pública Coordenação e tradução: Rita Marnoto Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra/Instituto de Estudos Italianos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Série: “Leonardo”, 6 Coordenação da Série “Leonardo”: Rita Marnoto Design e produção editorial: FBA Impressão e acabamento: Tecniforma – Oficinas Gráficas, SA Data de edição: 2011 ISBN: 978-989-26-0130-4 Depósito Legal: 338793/12 Conteúdos sujeitos a avaliação por especialistas A Série Leonardo encontra-se indexada na EBSCO INTRODUÇÃO O SEXTO VOLUME DA SÉRIE LEONARDO assinala a confluência entre duas datas. No passado ano de 2010, foi comemorado em Portugal o centenário da instauração da República (1910­‑2010), ao passo que no presente ano de 2011 estão a ser celebrados os 150 anos da Unificação política de Itália (1861­‑2011). Sob o título de Causa pública, aqui se reúne um conjunto de ensaios em torno de uma reflexão sobre a essência conceptual do domínio público que conta com contributos provenientes de vários domínios disciplinares. Os trabalhos críticos que neste volume são compilados estendem­‑se do âmbito da língua (Omar Calabrese, Rita Marnoto) ao da literatura (Armando Gnisci, Clelia Bettini), da história das insti- tuições (Giuseppe Galasso, Massimo Morigi, Marco Gomes, Nando dalla Chiesa) e ao campo específico das relações entre Portugal e Itália, no âmbito da história e da ideologia literárias (Jorge Pais de Sousa) e do Direito (Rui Manuel de Figueiredo Marcos). A matriz bilingue da veste linguística dos textos vai ao encontro dos leitores que têm vindo a mostrar o seu interesse por esta colecção. A proveniência dos ensaios é diversa. Alguns deles resultam de projectos de colaboração internacionais com Universidades italianas. Outros, estão mais directamente ligados a conferências que foram proferidas no âmbito dos Estudos Italianos da Faculdade de Letras de Coimbra, nomeadamente no VI Encontro de Italianística, em 2010, “A República em Itália. Rupturas e Continuidades”. Mas este sexto volume da Série Leonardo marca a passagem a um novo modelo editorial, em colaboração com a Imprensa da Universidade de Coimbra. A partir de agora, à versão em papel acrescenta­‑se a infor- matizada, no propósito de mais directamente chegar até um público que se interessa por matérias de italianística. 6 | CAUSA PÚBLICA Ao Director da Imprensa da Universidade de Coimbra, Senhor Doutor Delfim Leão, são devidos agradecimentos pela abertura com que concebeu este projecto e pela dedicação com que o pôs em prática. Aos colaboradores nesta Causa pública, fico muito grata pela disponi- bilidade em todos os momentos manifestada. RITA MARNOTO 1. LÍNGUA E LITERATURA DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE LITERATURA COMPARADA. UMA DISCIPLINA PARA A REPÚBLICA1 ARMANDO GNISCI I’d love to learn how things got to be how they are (Gostava de aprender como as coisas acabaram por ser como são) MARILYN MONROE Ita res accendent lumina rebus (É por isso que as coisas acenderão luzes nas coisas, A. Gnisci) LUCRÉCIO Nos, autem cui mundus est patria velut piscibus equor (Nós, para quem a pátria é mundo, como a água para os peixes, A. Gnisci) DANTE ALIGHIERI ESCREVI ESTE TEXTO para todos os que foram meus alunos, para que recordem o que temos vindo a estudar juntos, desde 1983. Quero que saibam, de forma exacta, o que temos vindo a estudar e o que continuaremos a estudar juntos. Escrevi‑o também para os meus colegas, para que possam saber, através desta breve exposição, o que estudei durante todos estes anos ao longo dos quais nos fomos cruzando de passagem pelos corredores ou em congressos. Também não posso esquecer todos 1 A matriz deste título – que tanto me agrada, quer nas suas implicações matriciais, quer no uso que dele pode ser feito no título de um trabalho ou no corpo de um texto crítico – é o de um conto de Raymond Carver, What we talk about when we talk about Love. A bibliografia apresentada no final deste ensaio inclui outro exemplo de um título que segue a matriz de Carver. À correspondência entre a formulação em inglês e em italiano, acrescenta­‑se, a partir deste momento, a correspondência em português. 10 | CAUSA PÚBLICA os meus leitores, por poucos que sejam, leitores casuais, leitores desconhecidos, leitores impensáveis. Asseguro ‑lhes que eles estão no meu pensamento. Sempre escrevi para a juventude, ou seja, para os cidadãos em formação. Depois de tantos anos a ensinar, tenho a certeza disso. Este texto é exemplo de um saber da república. Com a palavra república pretendo recordar, precisamente, o significado antigo, tantas vezes caído no esquecimento, de coisa e/que é/bem comum. As pala- vras democracia e política encontram­‑se hoje esvaziadas de sentido, ou melhor, estão inquinadas pela mentira e pela vulgaridade que inundam o nosso presente. Uma disciplina, hoje, já não constitui só um saber científico­‑crítico institucional e académico – académico no melhor dos significados e na melhor das práticas possíveis, enquanto processo co­‑evolutivo de pes- quisa e de ensino no seu conjunto – que se interessa por um objecto de conhecimento próprio, o qual é cada vez melhor delimitado e descrito através dos seus manuais. Quer sejam as relações entre as literaturas nacionais, quer a lin- guística ugro­‑fínica, o Maneirismo nas artes ou a cirurgia do pé, por exemplo, a serem estudados, o termo­‑conceito da disciplina, se o con- siderarmos na óptica de quem a pratica, a desenvolve e a faz crescer, significa “sector do conhecimento institucional partilhado ao nível internacional”. Uma disciplina, além disso, vive na sociedade, e nas chamadas sociedades democráticas devia garantir a certeza do saber, tal como a magistratura garante a certeza do direito. Entendo que, ao longo da sua evolução, a partir dos tempos iniciais da Academia platónica e aristotélica, até às últimas décadas do século XX e às primeiras do século XXI, uma disciplina tenda a ser vista, cada vez mais, como uma vasta região de encontro mundial entre estudiosos e estudantes que praticam um saber mais ou menos específico, e uma linha defensiva de história, livros e instrumentos, de teorias e de métodos, de práticas, de aquisições e de actualizações contínuas e rápidas no seio do horizonte de uma comunicação planetária, sempre mais densa e refinada. E, enfim, também e inevitavelmente, uma corporação académica, na qual, porém, pululam escolas de pensamento, tendências poéticas diversificadas e com orientações diferenciadas que DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE LITERATURA COMPARADA | 11 se encontram ligadas entre si. Vão e vêm num contínuo movimento que admite reconhecimentos e confrontos, aferições e falsificações. Devo contudo acrescentar que esta definição transitória não representa nem sustém a existência de uma verdadeira e própria transformação geral e total de todas as disciplinas conhecidas e aceites, uma espécie de revolução global de todos os paradigmas do conhecimento, mesmo se o século XX foi um século que introduziu uma revolução, que ainda não teve o seu desfecho, em todos os campos epistémicos, científicos e tecnológicos. Mais simplesmente, quero dizer que a nossa abordagem de um panorama geral do saber compreende disciplinas novas, disciplinas mortas e moribundas, disciplinas paradas e disciplinas que caminham ao ritmo de aberturas e impulsos dinâmicos, críticos e progressivos. Se aceitarmos de bom grado esta síntese, ela pode ser não só reco- nhecida como simples e sucinta arrumação do existente, mas, ao mesmo tempo, entendida e posta em prática no sentido de proporcionar implementos e melhorias, como valor augusto – valor que aumenta o valor – de uma complexidade variegada e partilhada, enquanto tal, em todo o mundo e em todos os sectores do conhecimento. Torna­‑se necessário, pois, aceitar esta perspectiva de valorização transdisciplinar e planetária, na sua identidade crítica e comunitária, na sua responsabilidade ética e política e na sua importância distintiva, relativamente a outras disciplinas vizinhas e aparentadas. Depois da bomba atómica de 1945, de tantos outros horrores do século XX e ainda dos tempos que correm, este é, no mínimo, o passaporte a requerer aos operadores da ciência, ou seja, do saber do saber, regulamentador das várias disciplinas, humanísticas ou não. Contudo, só muito raramente é concedido e é apresentado. Chegados a este ponto, é tempo de nos determos pelos vastos arre- dores das disciplinas literárias, em particular da Literatura Comparada. A etiqueta colocada nesta nossa disciplina, que os estudiosos france- ses da primeira metade do século XX designavam como Littérature Générale et Comparée, continua a indicar, hoje, o estudo da literatura numa perspectiva mundial e geral. Que queremos então dizer quando falamos de Literatura Geral e Comparada numa perspectiva mundial? Hoje, esta etiqueta mais com- prida, a ter necessariamente em linha de conta, pretende enfatizar o estudo, antes de mais e constitucionalmente – bem como criticamente, 12 | CAUSA PÚBLICA sempre –, da literatura numa dimensão mundialista, histórica e trans- disciplinar. Para nós, italianos – e, respectivamente, para cada conti- nente de civilizações (com civilizações no plural) que se reconhecem também numa dimensão continental –, isso significa que a nossa identidade literária nacional é imediatamente pensada, por um lado, no seio da comunidade literária europeia e, por outro lado, através da comum língua­‑história­‑geografia que nos une e nos permite ler pensar falar e comunicar, como italianos. O mesmo se poderia dizer para os portugueses. Nestes últimos anos, os italianos têm vindo a ser levados e têm vindo a ser convidados, várias vezes, a interrogarem­‑se, se não a reconhecerem­‑se, numa possível complementaridade da sua própria identidade, sempre plural e móvel, em torno de uma figura sul- -europeia­‑mediterrânica. Para isso contribuíu um discurso intelectual, como a “teoria meridiana” de Franco Cassano, a minha poética da creolização e a poética transnacional da mediterranidade napolitana de Iain Chambers, para além das intervenções de tantos outros escritores.
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