Mais Um Fado No Fado

Mais Um Fado No Fado

Música 23 de janeiro 2013 Mais um fado no fado Aldina Duarte © Isabel Pinto O Sentido das Notas, o Canto dos nossos dias, Ana Moura e António das Palavras Zambujo, e através destas os seus versos convertem-se num terreno comum para Apenas o Amor (2004), Crua (2006), o encontro entre outras tantas posturas Mulheres ao Espelho (2008), Contos artísticas idiossincráticas, passando da de Fados (2011). Os títulos dos quatro condição de mera expressão individual álbuns que Aldina Duarte lançou pare- da sua autora ao estatuto de um patri- cem formar, como um mosaico, o retrato mónio partilhado e reestruturante do perfeito da sua postura de artista – o próprio género. E ela mesma revisita – e de alguém para quem a relação com o de algum modo reinventa, nessa viagem Fado passa por um registo constante e – alguns dos fados mais emblemáticos incandescente de paixão, mas também do seu repertório, partindo, para esse por um percurso por vezes quase cruel novo olhar, do desafio que representa a de introspecção e pela descoberta parceria com o piano de Júlio Resende. fascinada de múltiplos olhares sobre o Mais uma vez nos confronta, deste mundo, pela mão dos poetas, dos artis- modo, com esse seu misto tão espe- tas, dos fabricantes de sonhos e de mitos cial de tradição e ruptura, de medo e fundadores. Tudo isto assenta sempre coragem, e – porque não? – de pudor e nos alicerces de um repertório de fados desvario. estróficos depurados pelo tempo, tão firmes e enganadoramente simples nos Rui Vieira Nery contornos essenciais que os definem (Rui Vieira Nery escreve de acordo Voz Aldina Duarte Guitarra portuguesa José Manuel Neto Viola Carlos Manuel Proença como livres e complexos nos desenhos com a antiga ortografia) Convidados Ana Moura, António Zambujo, Júlio Resende novos e inesperados que o seu canto lhes sabe dar em cada revisitação. Tudo Criação artística Aldina Duarte Produção executiva Radar dos Sons acontece pela mediação de um discurso Som Alfredo Almeida Road manager Ana Moitinho Luz Paulo Mendes poético rigoroso, assumidamente con- Aldina Duarte vestida por José António Tenente temporâneo, sem concessões, em que a sua própria voz de poeta emerge com frequência, lado a lado com a de tantos grandes criadores da Língua portu- guesa, como uma força tão marcante como o canto. Aldina Duarte tem este jeito especial de saber ao mesmo tempo dizer o sentido das notas e cantar a melodia das palavras. É por isso que nunca deixa de nos surpreender, que nunca a podemos prever, que é sempre uma descoberta renovada. Assim, neste Qua 23 de janeiro programa o seu caminho cruza-se com o 21h30 · Grande Auditório · Duração: 1h30 · M3 de duas outras vozes relevantes do Fado 3 © Isabel Pinto quase aleatória, preenchem os registos olhos e ouvidos pela fadista, Aldina veio responsabilidade das segundas vozes do da maior parte dos fadistas surgidos pós num alvoroço emocional, como que coletivo liderado pelo ator Pedro Wilson Mísia e Camané. A inteligência e rigor repentina e violentamente puxada para que se anunciava como “uma banda de que dedica a cada álbum tornam-nos o fado. Para aquele fado. A partir daí, é xunga / rock comercial”. objetos de um deleite que convoca todos seguro dizê-lo, a sua vida não mais foi a Na altura em que teve por epifa- os sentidos. Não é só a voz que faz com mesma. nia a visão abençoada de Beatriz da que a terra estremeça – como dela se “Fiquei apaixonada por tudo o que Conceição, Aldina trabalhava como diz e canta – ou a profunda e ajustada ouvi, pedi-lhe conselhos, falou-me de monitora num Centro de Paralisia carga poética. Sobretudo quando a tudo o que é mais importante no fado. Cerebral. E seria aí, junto daqueles com palavra que lhe é oferecida vem de Quis ser fadista. Passei dias a ouvir quem passava os dias que se estrearia na parceiras habituais como Maria do muitos discos de fado, noites a ouvir vida que passaria a ocupar-lhe as noites. Rosário Pedreira ou Manuela de Freitas. muitos fadistas, meses a ler e a decorar O seu primeiro espetáculo seria, por- Ou, inclusivamente, da safra da própria poemas”. Assim lembrou no seu site tanto, para os funcionários do Centro. fadista. O amor enlutado, a paixão oficial esse momento que tudo mudou. Para trás, ficava uma infância de que visceral ou a condição feminina, não há “Foi um fenómeno brutal pela viscera- a fadista prefere não falar. Marcada Aldina Duarte ninguém que os cante como ela. lidade de tudo aquilo”, lembrou ainda por um ambiente ainda pesadamente em entrevista. “Tornei-me uma aluna fascista, Aldina perde o pai para a A revelação da Beatriz. Ia ouvi-la todas as noites”.1 Guerra Colonial – “foi quando eu tinha O fado feminino É habitual dizer-se que há um momento “Aquilo para mim era como estar a dois três meses e morreu lá, tinha eu dois Aldina Duarte chegou tarde ao fado. em que a vida de cada um de nós muda metros da Billie Holiday”.2 anos; representa a injustiça da Guerra, Ou, talvez seja mais acertado dizê-lo, para sempre. E é possível dizê-lo, O arrebatamento foi tão violento que onde morreu tanta gente, estupida- não chegou com a idade com que hoje com maior ou menor grau de precio- Aldina não encontrou imediatamente mente”, confessou 3 – e assiste àquilo a se celebram as novas vozes, augurando- sismo, em relação a inflexões afetivas e o seu lugar dentro do fado. “Não foi que chama o “sofrimento redobrado” de -lhes grandiosos futuros quando ainda profissionais, a acidentes de percurso logo amor, amor sereno, como é agora”, saber-se pobre e ter de testemunhar a mal se cruzaram com a vida. Por isso que rompam com os planos sonhados. explicou. “Era uma espécie de tremor humilhação social dos pais ou, no caso, mesmo, a sua aprendizagem depois da Mas, em muitas dessas vezes, esse que me acontecia sempre que cantava, da mãe. Daí que classifique a infância epifania de ouvir Beatriz da Conceição momento apresenta-se como algo rela- como se fosse outra pessoa. Há sempre como “triste e cruel” e a sinta como uma a dois passos, fez-se com outro fundo, tivamente abstrato, opaco, distendido. uma sensação de vertigem quando se etapa demasiado passageira, substi- uma bagagem emocional sólida e uma Uma acumulação de circunstâncias acorda. Nunca cheguei a ter uma grande tuída por uma idade adulta começada maturidade pessoal que nunca a fez cair e não tanto um momento concreto. paixão. Passou de uma grande confusão precocemente. num registo de excessos. Pelo contrário, No caso de Aldina Duarte, contudo, para um grande amor”.1 Aldina não tem ponta de histrionismo torna-se possível estender o dedo Dois amores no seu canto, não procura impressionar e pousá-lo com segurança aqui: na A infância não dita Os primeiros anos de vida de Aldina de forma gratuita, antes canta buscando noite em que, a pedido do realizador e Aldina tinha 24 anos. Nascida em Duarte, no entanto, trouxeram-lhe dois em cada palavra a sua verdade absoluta encenador Jorge Silva Melo, se dirigiu Lisboa, em julho de 1967, tinha crescido amores edificantes, estruturantes, que e o autêntico espelho daquilo que lhe a uma casa de fados com a missão de num bairro social em Chelas e passado lhe forneceriam um escape para o seu vai na alma. entrevistar Beatriz da Conceição para pelo jornalismo e pelo radialismo. A sua dia a dia. O gosto pela leitura, incutido Apaixonada confessa pela literatura, um documentário em que entrariam sede de cultura colocara-a na rota de desde cedo pela mãe, baseava-se não Aldina não faz dos seus discos os habi- também Fernando Maurício e Celeste gente como Jorge Silva Melo ou do apenas no contacto com a grande lite- tuais apanhados de poemas (mais ou Rodrigues. E em vez de sair de lá com grupo de pop excêntrica Valdez e as ratura em si mesmo, sendo igualmente menos contemporâneos) que, de forma uma entrevista, depois de passados Piranhas Douradas. Aldina assumia a alimentado pela mãe na convicção de 4 5 que “a salvação de um pobre era a inte- Godinho (A Noite Passada) ou Joan Mário Branco. Graças ao contacto com A pausa durou até ao dia 22 de julho, ligência e o conhecimento”. “Os livros”, Baez (Amazing Grace) nas festas da José Mário, a fadista torna-se igual- data do seu aniversário, quando Aldina diz ainda Aldina, “ajudaram em tudo” e escola. mente próxima de Manuela de Freitas, foi festejar com alguns amigos e com o “no início eram mesmo a minha única atriz, letrista, companheira do músico. seu marido, Camané, que se encontrava e grande saída daquele mundo limitado As noites na Comuna “Quando canto”, admite, “canto com as a cantar no Senhor Vinho. Na sua pre- em que vivia – Chelas”. Esta ideia de Na sequência da pesquisa encomen- experiências que tivemos no trabalho sença, Maria da Fé resolveu dedicar-lhe salvação, diz a fadista, é partilhada pela dada por Jorge Silva Melo, Aldina com o Camané [Aldina pesquisava, um fado: “Disse que eu tinha um talento música. “Desde que entrei em contacto Duarte acaba ela própria por figurar José Mário produzia, Manuela escrevia extraordinário mas que estava num com elas fiz tudo para não as perder no filme Xavier, realizado por Manuel algumas letras] e, ainda antes, com a momento de pausa. Foi como quando e para alimentar a presença delas na Mozos e escrito por Mozos, Silva maneira como sempre absorvi a ativi- estamos a ouvir um programa de rádio e minha vida”.3 Melo e Manuela Viegas, interpretando dade artística deles”.3 há uma interferência, só se ouve ruído.

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