revista Fronteiras – estudos midiáticos 20(1):100-114 janeiro/abril 2018 Unisinos – doi: 10.4013/fem.2018.201.09 Lord Fanny, representação queer e um boneco vodu para o mundo Lord Fanny, queer representation and a voodoo doll for the world Henrique Paiva de Magalhães1 [email protected] Dandara Palankof e Cruz¹ [email protected] RESUMO ABSTRACT Apresentamos uma análise da construção da personagem Lord This article presents an analysis of the construction of the Fanny, da história em quadrinhos Os Invisíveis, publicada pelo character Lord Fanny, from the comic book The Invisibles, selo Vertigo da editora DC Comics. Escrita por Grant Morrisson, published by Vertigo – a DC Comics publishing label. Written by a série não apenas foi uma nova abordagem do gênero de super- Grant Morrisson, the series was not only a new approach to the heróis, como também uma transposição da visão de mundo e genre of superheroes but also a transposition of the worldview das experiências do autor, com o intuito de transformar nossa and of the author’s experiences, in order to transform our own própria realidade – nas palavras de Morrisson, uma espécie de reality – in the words of Morrisson, some sort of “voodoo “boneco vodu”. Lord Fanny, em específico – uma bruxa travesti doll”. Lord Fanny, in particular – a Brazilian transvestite witch brasileira de ascendência mexicana –, trouxe para os quadrinhos of Mexican descent –, brought to the mainstream comics mainstream a experiência estética do queer, quebrando o padrão the aesthetic experience of the queer, breaking the standard de heteronormatividade comum ao gênero e aproximando a heteronormativity common to the genre and bringing the proposta da série à proposição de Serge Moscovici sobre o papel series proposal closer to Serge Moscovici’s proposition on the fundamental da comunicação de massa na transformação das fundamental role of Mass communication in the transformation representações correntes na sociedade. of the current representations in society. Palavras-chave: histórias em quadrinhos, representação social, Keywords: comic books, social representation, queer. queer. Por que estudar Histórias como o conhecemos hoje nasceram no final do século XIX, e a publicação nas páginas dos jornais tornaram as em Quadrinhos HQs intrínsecas à cultura jornalística (Cohen e Klawa, 1977) – logo, dos meios de comunicação de massa. Há As histórias em quadrinhos são uma mídia relati- algumas décadas, se vêm investigando como esses meios, vamente nova. As histórias que deram origem ao formato através dos discursos que disseminam em seus conteúdos, 1 Universidade Federal da Paraíba. Cidade Universitária, s/n, Castelo Branco III, 58051-085, João Pessoa, PB, Brasil. Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC-BY 4.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados. Lord Fanny, representação queer e um boneco vodu para o mundo influem no sentido de senso comum que permeia a convi- de suas amarras; mudanças causadas pelo curso natural vência social, perpetuando ou transformando as diversas de transformação da sociedade e também por razões de representações sociais nele existentes. mercado. Tudo isso influiu diretamente nas representa- Particularmente desde a ascensão do campo dos ções apresentadas nas páginas dos gibis, incluindo as dos Estudos Culturais, em meados da década de 1970, tais personagens homossexuais. representações vêm sendo investigadas mais a fundo, sob Uma das transfigurações mais significativas no o viés da influência dos meios de massa na população; cenário das histórias em quadrinhos norte-americanas desde a inclusão das teorias feministas entre os ECs, se deu com o lançamento do selo Vertigo, em 1993. ganharam destaque os trabalhos sobre as representações Pertencente à editora DC Comics, o selo se propunha de gênero e seus papéis sociais dentro dos meios de co- a apresentar histórias de conteúdo voltado para leitores municação (Messa, 2008). Sendo o papel dos meios de adultos – reflexo do aumento da faixa etária média dos comunicação tão relevantes nesse sentido, é essencial que leitores. Sem ostentar nas capas de suas publicações o nos debrucemos sobre outros grupos cujas representações selo CCA, o Vertigo proporcionava maior liberdade aos podemos encontrar nos meios de massa. criadores na abordagem de temas mais polêmicos, bem Dentre esses meios, as histórias em quadrinhos como de não se preocupar com restrições quanto à lingua- ainda são um dos mais populares do mundo, possuindo gem ou à violência gráfica. Algumas das séries publicadas uma sólida base de fãs, e constituindo um relevante mer- pelo selo hoje são consideradas clássicos modernos das cado; a venda de gibis ainda movimenta cifras conside- histórias em quadrinhos – como Monstro do Pântano, ráveis no mercado dos EUA (cerca de US$ 540 milhões Sandman, Transmetropolitan etc. – e seus criadores, até em 2014 [Comichron, 2014]), bem como as adaptações então grandes promessas no meio, alcançaram o reconhe- cinematográficas das histórias de super-heróis (o primeiro cimento como verdadeiros gênios da chamada nona arte. filme dos Vingadores, sozinho, lucrou US$ 1,518 bilhão Dentre estes roteiristas, estava o escocês Grant Morrison; e é, até esta data, a maior bilheteria do gênero [Yahoo! para o selo, ele viria a escrever aquela que é considerada, Cinema, 2015]). Além disso, as histórias em quadrinhos ainda hoje, um de seus trabalhos mais revolucionários: a de super-herói passaram a constituir uma espécie de mito- série Os Invisíveis. logia moderna (Knowles, 2008), transcendendo o próprio meio e passando a fazer parte do imaginário coletivo do Quem são Os Invisíveis? mundo contemporâneo. Torna-se, portanto, imprescin- dível que os discursos disseminados pelos produtos que A trama da série, em um breve resumo, acompa- constituem esse imaginário sejam expostos, analisados nha uma das células da Universidade Invisível, grupo e discutidos enquanto perpetuadores ou renovadores anarquista que há séculos tem como objetivo evitar o de valores morais – principalmente quando estes dizem domínio e consequente destruição da humanidade pelos respeito a uma minoria estigmatizada, que pode, nesses Arcontes, seres transdimensionais há muito presentes em discursos, encontrar elementos de aceitação ou perpetu- nossa realidade e que, através de seus agentes infiltrados ação das violências sofridas. em posições estratégicas e insuspeitas, direcionam nosso Enquanto produto da cultura de massa, as histórias destino de acordo com seus propósitos. Formadas por em quadrinhos, em sua maioria, reproduzem valores de células de cinco indivíduos, cada qual representando um cunho machista e heteronormativo presentes em nossa elemento (terra, ar, água, fogo e espírito), as fileiras dos sociedade – principalmente naquelas identificadas com o Invisíveis já contaram com nomes como Lord Byron e gênero de super-heróis. O chamado mainstream, compos- Percy Shelley (ou, talvez, seria mais apropriado dizer que to pelos títulos de grande popularidade, publicados pelas ainda contam, uma vez que um dos conceitos da série é a grandes editoras como Marvel e DC Comics e estrelados apropriação das ideias metafísicas de que o tempo seria em maioria esmagadora por super-heróis, sofria regulação um só – passado, presente e futuro como uma dimensão do Comics Code Authority (CCA): o código que, em 1954, una; apenas a percepção humana da mesma é que seria li- instituiu uma autocensura às editoras norte-americanas near). Os Invisíveis travam a batalha contra os Arcontes se de quadrinhos, entre outras diretrizes, proibia qualquer utilizando de seu conhecimento sobre universos paralelos, menção à homossexualidade. Ao longo do tempo, não magia – muitas das vezes tendo como gatilho o uso de uma apenas o CCA sofreu diversas alterações como também diversa gama de psicotrópicos – meditação transcendental a indústria, gradualmente, desprendeu-se voluntariamente e, claro, uma generosa dose de violência física. Vol. 20 Nº 1 - janeiro/abril 2018 revista Fronteiras - estudos midiáticos 101 Henrique Paiva de Magalhães, Dandara Palankof e Cruz Apesar disso, a série apresenta uma gama de con- possui uma longa tradição na magia em sua linhagem ceitos um tanto quanto interessantes sobre nossa própria feminina (Figura 1). realidade, interpretando teorias de física quântica, de Apesar de publicado por um selo voltado a um viagem no tempo e teoria das cordas à teoria do caos, público leitor mais seleto, Os Invisíveis tinha como casa entremeados a teorias metafísicas e sobre o verdadeiro uma das maiores editoras de HQs dos Estados Unidos significado (e funcionalidade) da magia; tudo ligado por – o que a configura como parte do cenário mainstream. uma dose substancial de referências históricas, à literatura Dessa forma, Lord Fanny rompe uma série de paradigmas clássica e à cultura pop: uma leitura que se mostra um com relação à heteronormatividade e à visão de gênero tanto quanto densa. Morrison afirma que se trata de uma presentes na sociedade, trazendo o queer para o mundo obra semiautobiográfica: estão transpostas nas páginas de dos quadrinhos em uma posição de questionamento e Os Invisíveis não apenas os interesses do roteirista, mas empoderamento com relação às representações da ho- mossexualidade nos meios de comunicação de massa. também, ele clama, suas experiências com transcenden- talidade e abdução. Uma das principais integrantes da célula que Lord Fanny: Magia e Queer acompanhamos ao
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