Na Letra, na Boca e na Mira: uma análise da política cultural patrimonial do governo Bolsonaro Luciano Chinda Doarte Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPC) [email protected] Felipe Augusto Tkac Universidade Federal do Paraná (UFPR) [email protected] Resumo: O patrimônio é forma de inscrição de identidades e memórias no campo da cultura. Como ação estatal de identidade nacional, registro de passado ou de privilegiar algo com dignificação cultural, o patrimônio é ato público, pelo bem e interesse comuns – dada a teoria. Com isso o Estado brasileiro gere pastas, órgãos e leis para formar e manter tais patrimônios definidos como tal, criando para si narrativas em diferentes searas. Entretanto, ultimamente a estrutura estatal tem encontrado empecilhos na sua ação. Partindo dessa constatação, a análise proposta se debruça sobre como a política cultural do patrimônio – se é que o termo se aplica – do governo Bolsonaro pode ser observada em leis e decretos (letra), no discurso (boca) e nas ações da política contemporânea sobre os temas (mira). Com essa análise de história do tempo presente, propõe-se uma leitura sobre a ação estatal do governo federal nos temas da cultura, com foco ao patrimônio cultural, no recorte temporal compreendido entre janeiro de 2019 e junho de 2020. Como base, serve-se das teorias de política de memória, de Caroline Bauer, de identidade cultural, de Stuart Hall, e dos processos de memorialização, de Estela Schindel. Palavras-chave: Política pública. Patrimônio cultural. Governo Bolsonaro. Introdução No dia 22 de maio de 2020, foi tornada pública, pelo ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal, a gravação de uma reunião do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, com seus ministros, gestores do primeiro escalão do governo. O vídeo foi tornado público por meio de um processo que considera as palavras do ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, que em depoimento para a Polícia Federal no dia 2 de maio de 2020, reforçando as acusações feitas quando da coletiva de imprensa na qual anunciou sua saída do governo federal, apontou tentativas do presidente Jair 1 Bolsonaro em intervir na gestão da Polícia Federal. O depoimento completo do ex- ministro foi publicado pelo portal de notícia G1. Com a intenção de avaliar se houve ou não declaração do Presidente da República sobre sua tentativa de interferência na Polícia Federal, em especial na Superintendência do Rio de Janeiro – como acusou Moro –, para privilegiar seus amigos e familiares a gravação da reunião do dia 22 de abril foi solicitada pelo STF e tornada pública em 22 de maio. Dentre todos os assuntos citados na reunião ministerial, um nos chama atenção para os propósitos do texto: o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Por certo, o IPHAN não foi citado como assunto propriamente em pauta, dado que sua importância e função são nitidamente desconhecidas do governo federal vigente, mas esteve na boca de alguns, meio que pela tangente, usado como exemplo. Mas, antes de analisarmos especificamente os trechos da reunião em que o Instituto e o patrimônio cultural são enunciados, nos cumpre salientar que aquela reunião se deu para apresentação de um modelo de retomada econômica para o país após a crise de saúde pública por conta da pandemia do Novo Coronavírus (SARS-CoV-2). Não é motivo para surpresa que boa parte das narrativas promovidas pela maioria dos ministros defendem o capital privado e diminuem a responsabilidade do Estado brasileiro com o investimento financeiro público nessa retomada. Os ministros Paulo Guedes (Economia), Onyx Lorenzoni (Cidadania), Ricardo Salles (Meio Ambiente), Tereza Cristina (Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e Marcelo Álvaro Antônio (Turismo) falam muito claramente em defesa de uma política econômica que poderíamos chamar genericamente de neoliberal, isto é, um discurso fortemente pautado na privatização e ressecamento de inúmeras funções do Estado e uma retórica pouco clara de uma “liberdade”. O discurso de “dar fôlego para a iniciativa privada”, reduzindo impostos e modos de regulação encontrou discordâncias, ao menos naquela reunião, apenas do ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e de Roberto Campos Neto (Presidente do Banco Central do Brasil) que, em concordância curiosa, apontaram que à luz dos exemplos internacionais, são os Estados que devem ou irão assumir boa parte dos riscos da recuperação econômica, e não a iniciativa privada apenas facilitada pelo Estado, como propõem seus colegas de reunião. 2 No plano apresentado pelo ministro Braga Netto (Casa Civil), o capital contemplado é o privado, não o público, e considera o turismo como uma das ferramentas para a atração do capital privado para o país. Sabemos há bastante tempo, tanto pela hierarquia do governo brasileiro, quanto pelos modelos econômicos recentes, que as cidades históricas, os monumentos, os museus e outras formas de patrimônio são intensamente explorados pelo potencial turístico e, inerentemente, pela sua participação na atração de capital privado interno e externo. Muito curiosamente, o tema do turismo com o patrimônio cultural não foi abordado pelo próprio ministro Marcelo Antônio, responsável pela pasta. O patrimônio esteve na boca de dois participantes da reunião, mas muito mais em tom pejorativo que positivo. Apresentamos e analisamos aqui esses dois momentos, ressaltando que as falas aqui exibidas foram editadas seguindo a norma culta da Língua Portuguesa, às vezes readaptando a construção frasal original para dar a ela mais inteligibilidade e ordem. Ainda, salienta-se que a transcrição literal da entrevista pode ser acessada no Laudo Nº 1242/2020 da Polícia Federal, referenciado no fim deste texto. Ademais, explicita-se que nesta pesquisa assume-se o trabalho complexo e por certo inconclusivo que é à historiografia debruçar-se sobre processos não encerrados e hipercontemporâneos. Todavia, para além de tomar o patrimônio cultural e sua gestão federal atual como objeto dada a importância – política, cultural e teórica –, esse movimento se dá também na intenção de perceber as medidas pelas quais se operam ou não as propostas democráticas até então realizadas no Brasil. Enquanto esforço interpretativo denota-se um caráter transitório e construtivo permanente ao qual este estudo – e a História em geral – está submetido ao mesmo tempo em que faz uso deste. Nas palavras de Jacques Rancière: Em suma, o historiador assume como tarefa que Auerbach acusava Tácito de não poder fazer. Ele vai ver o que está por trás das palavras. Ele relaciona o discurso sedutor à realidade não discursiva que nele se exprime e se traveste. O discurso do historiador é um discurso-medida que relaciona as palavras da história à sua verdade. É isso que quer dizer explicitamente interpretação (RANCIÈRE, 2014, p. 49). Para a interpretação proposta, pensam-se as falas dos gestores federais aqui analisadas não só como perspectivas, mas como política constituída uma vez que formam o grupo que administra o Estado Brasileiro. Nessa esteira, falar do patrimônio cultural é, 3 por definição, falar da gestão de campos simbólicos, como o passado no presente, é falar das políticas de memória, portanto, da ação deliberada para a gestão da memória social (BAUER, 2020). Tendo em vista também que as políticas de memória aqui performadas demonstram como se quer cristalizar no presente conhecimentos sobre o passado, ação sempre acompanhada um impulso ativo e uma vontade de incidência política (SCHINDEL, 2009, p. 67) – ou, mais especialmente, acerca de um dos principais órgãos gestores do passado no presente. Toma-se, assim, este estudo, suas fontes e propostas teóricas como uma perspectiva acerca de um processo em polvorosa e que, por certo, aponta para muitas outras análises necessárias. Enquanto partícipe da produção que se propõe “científica” – ou ao menos sistematicamente crítica – ao mesmo tempo em que se afeta pelas lentes de quem a opera, esta proposta realiza uma interpretação do presente brasileiro elevado à máxima, percebendo na longa história e na história recente do Brasil suas articulações e fundamentações. Registra-se ainda que Jair Bolsonaro, desde sua longa carreira como deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro, não costuma demonstrar muita amizade pelo tema da cultura. Só durante o período eleitoral, em sua campanha presidencial em 2018, Bolsonaro delineava sua relação com o tema. O então candidato disse em um evento com apoiadores em Curitiba – talvez adiantando a gestão – que extinguiria o Ministério da Cultura que, segundo ele, servia apenas como centro de negociação da Lei Rouanet (BOREKI, 2018). Também, quando da eleição, o jornal O Globo entrevistou os cinco primeiros colocados na disputa sobre o tema da cultura. Jair Bolsonaro e sua assessoria não responderam às questões (CANÔNICO, 2018). Por fim, salienta-se a passagem da campanha eleitoral que pode muito bem ser lida como um resumo antecedendo a gestão federal da cultura: a reação de Jair Bolsonaro quando do incêndio que atingiu o Museu Nacional em 2 de setembro de 2020 (CALGARO, 2018). Perguntado sobre o caso, Bolsonaro ironizou: “Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê? O meu nome é Messias, mas eu não tenho como fazer milagre”. Ignorando séculos de desenvolvimento científico, tecnológico, especialista sobre Conservação e Restauro de Bens Culturais e áreas afins sobre a possibilidade de recuperação ou reavivamento da instituição e das atividades, o presidente brasileiro 4 prenunciava o descaso com a
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