ARTIGOS • LIVRE Imagens de Muçulmanos e budistas nos filmes soviéticos sobre a Segunda Guerra (1950 -89) Moisés Wagner Franciscon * Dennison de Oliveira † Resumo A URSS, apesar de oficialmente ateia e possuir a maioria de sua população sem uma crença religiosa, possuía importantes minorias adeptas de algum credo. Ancorados em sua diversidade demográfica, muçulmanos e budistas representavam uma importante fatia dessa minoria. Ao contrário dos ortodoxos eslavos, esses grupos não eram considerados confiáveis pelo regime duplamente: como não eslavos e integrantes de cultos vistos como perigosamente reacionárias e explosivos. O cinema bélico costuma ser importante vetor de ideias nacionalistas ou pró- regime. No caso soviético, esse gênero cinematográfico portava as impressões oficiais sobre ambos os credos – apesar das ambiguidades de alguns diretores. A sócio-história cinematográfica de Marc Ferro permite uma melhor compreensão das relações do poder político e diplomático dos diferentes grupos da sociedade e do filme de guerra na União Soviética. Sua concepção de cinema como produto social com mensagens latentes e lapsos conscientes ou inconscientes mostram um quadro mais complexo do que o de uma estrutura de poder piramidal que suprimiria sentimentos religiosos na sociedade. Os filmes de guerra selecionados (14 filmes produzidos entre 1950-89) são ambientados na Segunda Guerra e possuem como protagonistas ou coadjuvantes personagens caracterizados como membros das populações de tradição muçulmana ou budista dentro das fronteiras soviéticas, ou filmes produzidos por diretores e estúdios localizados nas repúblicas associadas com estas religiões. Palavras -chave: História social do cinema, filme de guerra, religião, União Soviética. Abstrac t The USSR, although officially atheist and possessing the majority of its population without a religious belief, possessed important minorities adhering to some creed. Anchored in demographic diversity, Muslims and Buddhists represented an important share of this minority. Unlike the Slavic Orthodox, these groups were not considered to be trusted by the regime doubly: as non-Slavs and members of cults seen as dangerously reactionary and explosive. War cinema is often an important vector of nationalist or pro-regime ideas. In the Soviet case, this cinematographic genre carried official impressions on both creeds - despite the ambiguities of some directors. Marc Ferro's cinematographic partner-history allows a better understanding of the relations of political and diplomatic power, of different groups of society and of the war film in the Soviet Union. His conception of cinema as a social product with latent messages and conscious or unconscious lapses shows a more complex picture than that of a pyramidal power structure that would suppress religious feelings in society. The selected war films (14 films * Graduado, especialista, mestre pela Universidade Estadual de Maringá. Doutorando pela UFPR. † Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP, Pós-Doutor em Estudos Estratégicos pela UFF. Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. REH. Ano VI, vol. 6, n. 11, jan./jun. 2019 | www.escritadahistoria.com 281 Moisés Wagner Franciscon e Dennison de Oliveira produced between 1950-89) are set in World War II and feature as protagonists or supporting characters characterized as members of populations of Muslim or Buddhist tradition within the Soviet borders, or films produced by directors and studios located in the republics associated with these religions. Keywords : Social history of cinema, war film, religion, Soviet Union. Introdução Foram selecionados quatorze filmes de guerra ambientados durante a Grande Guerra Patriótica, produzidos na URSS entre os anos de 1950 e 1989, perpassando fases de relaxamento e recrudescimento da questão religiosa no país, além de alterações diplomáticas com países limítrofes com a presença de populações islâmicas ou budistas. No stalinismo tardio poucos filmes bélicos foram rodados – bem como todo tipo de filme, sendo essa fase chamada de malokartine , ou “fome de filmes” – em decorrência da alocação de recursos na reconstrução do país. Na segunda metade dos anos 1980 o público do gênero esvaziou-se, atraído pelos temas candentes propiciados pela glasnost , quase paralisando sua produção. As películas sobre a Segunda Guerra ou Grande Guerra Patriótica tornaram-se um elemento de legitimação cultural mais importante para o regime do que a Revolução de Outubro ou a Guerra Civil, pois apresentavam uma vitória importante da nova nação e de seu sistema sobre uma grande potência – conflito que poderia ser transposto para a indicação de novos inimigos (internos e externos) e o contínuo reforço da identidade soviética sobre as identidades étnicas locais. 1 Ignorar ou combater religiões entendidas como perigosas, traiçoeiras e alienígenas também contribuía na tentativa de se forjar a imagem do novo homem soviético, liberto das amarras do passado, além de criar alguma homogeneidade num cenário tão complexo e variado. Todos os filmes apresentam personagens, produtores ou locações relacionados com regiões tradicionalmente budistas ou muçulmanas. Se a temática islâmica apresenta-se totalmente ausente, a budista é severamente criticada pelos filmes – mas não sem algumas dubiedades de alguns diretores, que podem remeter o espectador à tolerância com a espiritualidade, mas não com a religião e clero organizados e, principalmente autônomos. A postura de não-confrontação e mesmo desconhecimento do cinema frente ao islã pode demonstrar o respeito ou temor do regime frente às dimensões reais de sua adesão e os 1 YOUNGBLOOD, Denise. Russian war films : on the Cinema Front, 1914-2005. Kansas: University Press of Kansas, 2007. REH. An o VI, vol. 6, n. 11, jan./jun. 2019 | www.escritadahistoria.com 282 Imagens de mu çulmanos e budistas... previsíveis problemas em suas fronteiras na Ásia Central, fervilhantes com a Revolução Islâmica, ou o desejo de aceitação e incorporação das elites locais ao mundo soviético – como o possível caso dos cineastas do Cáucaso e Ásia Central. A ameaça budista consistia em sua disseminação entre alguns grupos intelectuais (em especial dissidentes) e possibilidades diplomáticas nas relações com a China – matéria muito mais maleável e segura para o regime. Existem indícios de que o cinema de guerra possa ter sido direcionado pelo regime para representar e caracterizar inimigos como membros de uma religião, ou reforçar a auto representação da URSS como laica – o que ia contra os próprios dados oficiais divulgados pelo Kremlin, mas condizia com a retórica política. Bem como de que os próprios produtores destes filmes compartilhassem desses mesmos valores. Além do mais, o cinema era uma indústria que oferecia incentivos materiais segundo a arrecadação nas bilheterias: quanto maior o lucro do filme e maior o número de ingressos, maior era o prêmio de seus produtores. Estes não poderiam desprezar e afastar os 70% de ateus. Portanto, é necessário pensar a temática como um jogo entre forças sociais, políticas, culturais e a autonomia dos agentes, e não de mera imposição programática do regime aos estúdios e diretores, e destes ao público, tornando o Kremlin o grande engenheiro social, monopolizador de toda a cultura e controlador de todo aspecto da vida humana em suas fronteiras. Moscou certamente desejava o total domínio sobre a sociedade durante os anos de Stalin. A impossibilidade de concretizar esse domínio de fato traduz-se na lentidão da ampliação dos adeptos do ateísmo e na rapidez com que mesquitas e madraças brotaram nos momentos de liberalização. Kruschev moveu uma campanha antirreligiosa como forma de reconquistar poder do partido. A era Brejnev caracterizou-se por uma crescente desmobilização e desideologização do regime. A Igreja Ortodoxa conheceu um reflorescimento aberto – inclusive no cinema – durante esta etapa. Apesar do islã e do budismo o fazerem no mundo concreto, tal movimento social não foi reconhecido na política nacional ou na cultura. Para o regime, era mais fácil pressionar estúdios e diretores por imagens favoráveis à sua retórica do que transformar a realidade. A aparição de ambas as religiões no cinema poderia ser negada pelas próprias convicções de uma indústria com forte presença eslava. Seu dualismo, mutismo ou antagonismo presentes em obras de azeris, cazaques e mongóis, trabalhando em Moscou ou em suas repúblicas, apesar do cenário mais aberto para a religiosidade nos anos Brejnev, devem ser encontrados nos próprios interesses dos cineastas. REH. Ano VI, vol. 6, n. 11, jan./jun. 2019 | www.escritadahistoria.com 283 Moisés Wagner Franciscon e Dennison de Oliveira Não se pretende tratar da religião em si, mas de seu uso e da criação de imagens feitos pelo regime e pelos cineastas e de seus respectivos interesses na manipulação de um aspecto importante da sociedade soviética. Não se trata de uma história de ambas as religiões sob o comando soviético, mas sim de sua utilização ou negação pelo regime e a indústria do cinema. Os conceitos da História das Religiões aqui cedem lugar à concepção de arena, como formulada por Bourdieu 2 e Thompson, 3 um espaço de negociação que segue algum conjunto de regras (no caso do cinema soviético, tácitas, não-escritas e maleáveis após a morte de Stalin) entre os agentes em busca de objetivos dissonantes. Nem estúdios e diretores e nem o regime e o aparato de censura possuem poder total sobre a película e suas mensagens, em especial diante da natureza da linguagem fílmica, como Ferro
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