28 economia & história: crônicas de história econômica eh O “Círculo de Giz”: Democracia, Legalidade e Golpe no Brasil José Flávio Motta (*) Luciana Suarez Lopes (**) Quando o povo luta pela revisão constitucional está certo. O fetichismo da ordem jurídica intocável é absurdo. O nosso compromisso é o da democracia verdadeira, que é o regime do povo. Leonel Brizola (Editorial do Panfleto. Rio de Janeiro, 23 de março de 1964, p.8; apud FERREIRA, 2004, p. 206) Não podemos ficar encerrados no “círculo de giz” da legalidade. Luiz Carlos Prestes (Conferência na ABI-Associação Brasileira de Imprensa, em 17 de março de 1964; apud VILLA, 2004, p. 187) Nas eleições de 1955, Juscelino escolha do tema para nossa crônica dade e golpe –, estiveram presen- Kubitschek e João Goulart foram deste mês, e os acontecimentos em eleitos, respectivamente, presiden- torno a essa posse serão o ponto de das ações que deram forma àqueles te e vice-presidente da República. partida para nossa discussão. Os acontecimentos.tes na justificativa De e/ou resto, na crítica esses Foram empossados em 31 de ja- elementos selecionados para com- mesmos elementos integraram o neiro de 1956.1 A data dá sentido à por o título –democracia, legali- discurso utilizado em outros mo- janeiro de 2016 economia & história: crônicas de história econômica 29 mentos de crise de nossa história Levantou-se de imediato a voz da opositores de Vargas. Nada mais republicana, como ilustrado pelas reação, opondo-se à decisão das ilustrativo dessa contrariedade do epígrafes por nós selecionadas, que urnas. que as palavras de Carlos Lacerda, nos remetem às turbulências de [...] em artigo publicado em seu jornal, - a Tribuna da Imprensa, em 01 de Goulart (1961-1964). Alguns desses pedir a posse de Juscelino e Jango junho de 1950: fins do governo do presidente João momentos serão também por nós valendo-seA UDN, oficialmente, de recursos tentava legais. Porim contemplados. E tais elementos, exemplo, apresentara emenda à O Sr. Getúlio Vargas, senador, não outrossim, fazem-se mais uma vez Constituição Federal prescreven- deve ser candidato à presidência. presentes intensamente no discur- do: na eleição presidencial que Candidato, não deve ser eleito. Elei- não alcançasse maioria absoluta, so empregado em meio ao contexto to, não deve tomar posse. Empos- o processo eleitoral seria decidido de crise política e econômica no sado, devemos recorrer à revolução qual nos encontramos nesses iní- pela Câmara Federal (...). Porém, a Emenda Constitucional fora re- para impedi-lo de governar. (apud cios de 2016, no segundo ano do 6 chaçada. Diante da inexistência de DELGADO, 2006, p. 3) segundo governo da presidente meios legais para frear a ascensão Dilma Vana Roussef. de Juscelino Kubitschek e João Gou- Almino Affonso (2014, p.30-31) lart, o golpismo ganhava adeptos, forneceu-nos sucinto relato da Juscelino Kubitschek de Oliveira solução dada ao imbróglio que an- recebeu 3.077.411 votos e graças do Exército e da Aeronáutica. Pelo tecedeu o segundo governo Vargas: a esse contingente de eleitores silêncio,sobretudo a UDN na jovem ia enrolando oficialidade a ban- iniciou o décimo sexto período de deira da legalidade democrática. 2 Sob a roupagem jurídica, a cons- governo republicano no Brasil. (negritos nossos) piração avançava. Basta recordar Essa cifra superior a três milhões, que o ministro da Guerra [do go- todavia, correspondeu a não muito Democracia, legalidade, golpe, de- mais do que um terço (35,7%) do fendidos ou repudiados, são, por- Canrobert Pereira da Costa – fora, total de votos válidos. O segundo tanto, elementos apontados tam- verno Dutra-JFM/LSL] – general colocado na preferência do eleito- bém por Affonso como presentes em visita ao presidente do Superior rado, General Juarez Távora, amea- na posse de JK e de Jango. Em ver- Tribunal Eleitoral – ministro Luís lhou 30,3% do mesmo total; ao ter- dade, é oportuno lembrarmos, essa Galotti –, tentar induzi-lo a apoiar ceiro, Adhemar de Barros, foram “tese da Maioria Absoluta” fora le- a tese da Maioria Absoluta. Pois se dados 25,8% dos votos.3 JK con- vantada na eleição presidencial an- o TSE a acolhesse, seria denegado o correra pela coligação partidária terior, vencida por Getúlio Vargas. reconhecimento da vitória eleitoral cujos principais integrantes eram O ex-ditador do Estado Novo voltou de Getúlio Vargas e Café Filho, o o PSD (Partido Social Democrático, à Presidência da República em 31 que levaria à convocação de novas sua legenda) e o PTB (Partido Tra- de janeiro de 1951 por receber eleições. (...) balhista Brasileiro, legenda de seu 48,7% (3.849.040) dos votos váli- A decisão do Superior Tribunal 5 vice, João Belchior Marques Gou- dos nas eleições de 1950, obtendo Eleitoral, por unanimidade de vo- 4 lart). O resultado das eleições não larga vantagem sobre o segundo tos, foi contrária à aventura jurídica foi recebido com tranquilidade pela colocado, o Brigadeiro Eduardo da Maioria Absoluta. Em decor- oposição, como descrito, entre ou- Gomes (29,7%; 2.342.384 votos). rência proclamou eleitos Getúlio tros, por Almino AFFONSO (2014, Esse resultado, como não poderia Vargas e Café Filho, presidente e p. 62 e 64): ser diferente, muito contrariou os vice-presidente da República, res- janeiro de 2016 30 economia & história: crônicas de história econômica pectivamente. Como escreveria Carlos Lacerda, na com força constitucional para Tribuna da Imprensa [...]: “Esses ho- depor o presidente Carlos Luz, Desnecessário observarmos que, mens não podem tomar posse, não apesar do interinato. Mas os se a mencionada “tese da Maioria devem tomar posse, nem tomarão pressupostos determinaram os Absoluta” fora defendida a partir posse.” (AFFONSO, 2014, p. 65) fatos. (AFFONSO, 2014, p. 66-67, dos resultados eleitorais de 1950 negritos nossos)10 (vale dizer, os 48,7% dos votos Dessa forma, a instabilidade polí- válidos de Vargas), maior seria o tica que antecedeu a posse de JK Aí está onde queríamos chegar! estímulo para a UDN retomar a teve seu auge no governo interino Talvez a fórmula de que se valeu questão em 1955, embasada nos de Carlos Luz, o qual durou apenas Almino Affonso, “os pressupostos 35,7% dos votos válidos obtidos três dias. Em 11 de novembro, ele determinaram os fatos”, pudesse 7 por JK. De fato, tornou-se bastante foi “deposto por um dispositivo mili- ser substituída com acerto pelo turbulenta a etapa derradeira do tar e considerado impedido de exer- clichê “os fins justificam os meios”. décimo quinto período de Governo cer o cargo de Presidente da Repú- E uma interpretação possível do Republicano no Brasil. Após o sui- blica pelo Congresso Nacional”.9 Na 11 de novembro é a de que ele nos cídio de Getúlio (aos 24 de agosto - fornece uma ilustração exemplar de 1954) e tendo em vista o afas- piração impeditiva da posse dos do “golpismo democrático”, efeti- tamento temporário de Café Filho eleitos,iminência que da teria deflagração o apoio dode presicons- va contradição em termos que se aos 03 de novembro de 1955, “em dente interino, assumiu inequívoco manifesta concretamente. Demo- virtude de um distúrbio cardiovas- protagonismo o general Henrique cracia, legalidade, golpe, esses ele- cular”,8 tomou posse interinamen- Teixeira Lott, então ministro da mentos aparecem de certa maneira te como presidente da República Guerra, insurgindo-se contra a dita misturados, carecendo de maior o então presidente da Câmara, conspiração e fornecendo susten- nitidez, mistura esta manifesta, Carlos Coimbra da Luz, em 08 de tação militar para a ação do Legis- por exemplo, na expressão “golpe novembro de 1955. Menos de um lativo que concretizou a deposição preventivo” utilizada por Maria Vic- mês antes da posse de Luz, Carlos de Luz: toria Benevides: Lacerda destilava seu veneno em prosa semelhante à de seu artigo Enquanto o presidente Carlos Luz, A perspectiva de golpe parecia de junho de 1950 acima citado, na companhia dentre outros do iminente até [...] a intervenção do fazendo uso uma vez mais de seu jornalista Carlos Lacerda, [...] em- General Lott; foi o “golpe preventi- jornal: barcavam para Santos no cruzador vo” do 11 de novembro (deposição Almirante Tamandaré, na Câma- do presidente em exercício, Carlos A Tribuna da Imprensa, a 14 de ou- ra dos Deputados era aprovado Luz), “legitimado” pelo Congresso tubro (onze dias depois da eleição o estado de sítio por 30 dias e, no mesmo dia e consolidado a curiosamente, através de uma 21 de novembro, quando Café Fi- em primeira página: “Não espe- moção, declarado Carlos Luz lho foi igualmente impedido pelo [de 1955-JFM/LSL]) estampava rem solução da Justiça Eleitoral!”. impedido de exercer a presi- Exército de retornar ao governo. E acrescentava, numa audácia dência da República. O Senado, Estava garantida a posse dos elei- sem precedentes: “Ou os chefes de imediato, repete-lhe o ritual. tos, que assumem a presidência e a militares agem imediatamente ou Desnecessário acentuar que a vice-presidência a 31 de janeiro de haverá luta e sangue!” (AFFONSO, moção não era uma medida, à 1956. (BENEVIDES, 1979, p. 23-24, 2014, p. 62) semelhança de um impeachment, aspas no original) janeiro de 2016 economia & história: crônicas de história econômica 31 Em outras palavras, Lott atuara alternativa: sair temporariamen- posteriormente, o golpe civil e mili- para fazer cumprir a Constituição; te do quadro legal para chefiar tar (1964) fornecem-nos subsídios porém, no comentário perfeito um movimento que afastasse o adicionais para adensar nossos de Almino Affonso (2014, p. 68), Presidente moralmente incapaz “salvara-se a legalidade, no âmbito de exercer as altas funções, assim comentários. Ademais, ao fim e ao dos Três Poderes, recorrendo-se sem como outras autoridades militares de Brizola e de Prestes referem-se cabo, as afirmações selecionadas pejo à ilegalidade”. O próprio gene- favoráveis à solução ilegal. (apud precipuamente aos eventos que ral Lott, em depoimento à revista CARLONI, 2014, p.
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