MODESTO BROCOS (1852-1936) E A QUESTÃO DO ENSINO NA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES (1890-1915) Heloisa Selma Fernandes CapelI O texto integra pesquisa em curso sobre Modesto Brocos e seu ideal de figuraçãoII. A reflexão se estrutura basicamente em torno de um documento: o livro de autoria de Modesto Brocos A Questão do Ensino de Bellas Artes, Seguido da Crítica sobre a Direção Bernardelli e Justificação do Autor, publicado no Rio de Janeiro no ano de 1915III. As inquietações da pesquisa alimentam o esforço de compreender o pensamento do artista compostelano, professor da Escola Nacional de Belas Artes em torno de algumas questões. De forma geral, trata-se de investigar, sob a perspectiva da dinâmica identitária dos confrontos culturais, como Modesto Brocos interpretou a sociedade brasileira e construiu seu agenciamento como educador e artista? Qual a consistência de seus ideais republicanos e como formou sua posição sobre a mão de obra escrava no contexto abolicionista? Quais as tensões confrontadas em suas ideias sobre as relações entre a técnica e a invenção na formação que preparava o artífice e o artista na Academia e Escola de Belas Artes? E, finalmente, qual sua concepção de administração pública e as relações de poder que atuaram sobre sua produção? A pesquisa pretende contribuir para problematizar essas questões, cujas respostas devem ser ora encaradas como fragmentos em estado inicial de reflexão. O autor justifica a escrita do livro logo no prólogo. Segundo Brocos, houve falhas na Reforma dos Estatutos da Escola Nacional de Belas Artes no ano de 1911 e é seu desejo contribuir para “apontar lacunas e induzir ideias que possam compor um novo regulamento”. Brocos escreveu o livro após graves dificuldades financeiras. Quando desembarcou no Brasil em 1900IV, depois de uma empreitada não tão bem sucedida na Europa, estavam à sua espera a esposa e filho pequenoV, família que deveria manter com seus recursos de artista imigrante desempregado. Ele afirma: “tive que lançar mão de todos os meus meios para sobreviver durante onze anos de vida incerta, podendo parodiar as palavras de Cezar em Munda: Até ali tinha lutado pela glória, depois lutei pela vida!.VI Façamos algumas notas sobre o momento em que o professor publica o livro e conforma sua posição como artista no Brasil da Primeira República. Brocos havia renunciado ao cargo de professor de modelo vivo em 1896 e viajado à Espanha e a Roma, logo após o casamento e nascimento de seu filhoVII para tentar dar novos rumos à sua carreira profissional. Depois de uma curta estadia em RomaVIII, retornou ao Brasil em 1900 com a clara intenção de retomar suas atividades com xilografia, atividade que não pode exercer em sua plenitude, visto que a gravura química havia se desenvolvido e ele diz que esse recurso lhe falhou. Em função disso acabou por se lançar a um desafio novo, embora já conhecido em sua parceria com o irmão Isidoro Brocos na Espanha: a escultura. É deste período a maquete do Frontão da Biblioteca Nacional por ele idealizadoIX. Logo que chegou da Europa, Brocos retomou a participação nos Salões de Arte. No Salão de 1902 realizou pinturas de paisagem de TeresópolisX e o retrato do Sr. Dr. DuranXI, Benfeitor da Sociedade Espanhola de Beneficência e algumas águas fortes sem maiores repercussões, a não ser por seu apuro técnicoXII. No Salão de 1904, pintou o quadro Cena DomésticaXIII, que Gonzaga-Duque interpretou como obra “fria, desajeitada e banal”, comparando-o a Almeida Jr. que, segundo o crítico, havia se tornado, com o tempo “um pintor pastoso, amaneirado e duro”. Gonzaga-Duque, entretanto, atribuiu Heloisa Selma Fernandes Capel 180 à obra certa importância, devido ao fato dos pintores terem “associado cenas de costumes à tentativa de fundamentar uma arte nacional”, mas considerou que o exemplo poderia ser “atenuado pelo apuro educativo de novos artistas”XIV. Ou seja, era mais um quadro de gênero um pouco fora de moda, na interpretação do crítico. Frei Frapesto também considerou a falta de atualidade do quadro e argumentou que, por apresentar um tema rural em tempos que “evoluíam a passos acelerados”, era um “brado hostil e rancoroso de reacionarismo, que apresentava em processos antiquados de refinação do açúcar, uma mulher acocorada numa cozinha lôbrega que mexia e remexia um caldeirão colocado sobre um braseiro” XV. Brocos continuou expondo paisagens e retratos nos Salões de 1905XVI e 1907 e, neste último, Bueno Amador diz que seu retrato de Olavo Bilac é de “ingrata fatura e colorido fantasiado” e sua vista do Bico do Papagaio “é uma paisagem seca em que se sente falta de ar e luz” XVII. Telas que, segundo Bueno Amador, Brocos havia pintado com “má vontade”. Em 1909, Brocos apresentou o que expressaria sua nova aposta: um busto e a maquete do frontão da Biblioteca Nacional, referidos no Jornal do Commercio como arte em que as figuras alegóricas formavam um conjunto “airoso e delicado”.XVIII Em síntese, ao voltar aos trópicos, Brocos se deparou com uma nova conjuntura político-artística e suas velhas estratégias precisaram ser repensadas. Ao lado das dificuldades próprias das exposições e do complexo lugar estratégico ocupado pela Escola nos inícios da República, Brocos procurou manter a subsistência de sua família com um tipo de arte mais vendável e encontrou dificuldades em recolocar- se nos novos contornos institucionais arquitetados por Rodolfo Bernardelli. O crítico Gonçalo Alves deu o tom a que a pintura de Brocos tomaria nesse novo momento. Nas Notas do “Salon” de 1912, Gonçalo Alves refere-se a Brocos como um “medalhão enferrujado”XIX. Brocos tentou retornar à ENBA por ocasião do falecimento do professor de Desenho Figurado Daniel BerardXX (1846-1906), mas Rodolfo Bernardelli, velho amigo da antiga Academia negou-lhe a solicitação, dizendo que Belmiro de Almeida já lhe havia feito o mesmo pedido e que a vaga estava “reservada para os moços, pois os velhos ele já conhecia”. Brocos respondeu-lhe que “os moços poderiam esperar”, e relembrando que foi a pedido dele e sob suas promessas que deixou seu cargo de professor de xilografia nas Escolas de Segundo Grau em 1891 para assumir a cadeira de modelo vivo na recém criada Escola Nacional de Belas Artes, deixou o recinto magoadoXXI. A despeito do incidente, segundo Brocos, em função das articulações do político que se tornaria Ministro da Fazenda, Dr. RivadaviaXXII, Bernardelli não teve outra opção a não ser propor a ele um novo cargo interino, o que foi confirmado pela Reforma de 1911. O livro A Questão do Ensino de Bellas Artes apresenta duas questões que me parecem particularmente interessantes para se compreender o pensamento de Brocos. A primeira delas está relacionada às pistas que contém sobre a concepção original de seu quadro Redenção de Cã, premiado com a medalha de ouro em 1895 e suas ideias sobre a escravidão. O quadro foi largamente utilizado no início da República como metáfora da ideia de branqueamento supostamente defendida pelo artistaXXIII. Entretanto, ao defender a composição em uma pintura e não apenas o esmero técnico como critério para a concessão dos Prêmios de Viagem, Brocos rememora o ensino da velha Academia Imperial e elogia a iniciativa de seu antigo professor Victor Meirelles que em sua aula de pintura no ano de 1876, quando o artista tinha apenas vinte e quatro anos, sugeriu aos alunos um tema para composição: “Noé Bêbado”XXIV. Se compararmos a defesa da composição com as recomendações de execução de um quadro no livro Retórica dos Pintores, publicado em 1933, veremos que o uso dos elementos da retórica clássica (invenção, disposição, elocução, pronunciação e fundo) para a pintura na obra de Brocos, acentua a intenção do artista de conferir à Redenção de Cã um tom mais anedótico do que verossímilXXV. Heloisa Selma Fernandes Capel 181 A posição de Brocos sobre a escravidão é ambígua. Sua obra contém tendências eugênicas, mas ao mesmo tempo, o tema da escravidão parece seduzir-lhe com a predileção por certo exotismoXXVI e escolha consciente de representar negros para contribuir com uma representação verdadeiramente original sobre o BrasilXXVII. Brocos tem inclinações republicanas e isso talvez se deva ao fato de ter deixado a Espanha ainda jovem, sob uma conjuntura política de lutas entre conservadores e liberais, além de ter sido influenciado por seu pai, o pintor e gravador Eugênio Brocos e seu tio Juan, escultor, ambos liberais e republicanosXXVIII. Ele tinha intenção de se aperfeiçoar na pedagogia artística desde sua volta à Europa no final do ImpérioXXIX. Trabalhou em Paris como xilógrafo e figurou com dois quadros no Salão de 88. Ele se preparava para ser professor na Espanha e estudou a disposição das aulas e os métodos de ensino nas Escolas Comunais em Paris. Vivendo de xilografia e cansado de esperar pelo concurso, decidiu voltar ao Brasil. Acrescente-se a isso as inferências possíveis a partir de duas citações suas: uma no livro sobre a Questão do Ensino de Bellas Artes quando ao iniciar sua justificação à crítica ao Diretor Bernardelli, afirma: “já se vão longos annos que isto aconteceu (...); foi na época do Império, ainda havia a escravidão, ainda existia aquele resto de barbaria”XXX. Outra, ao ser simpático às ideias de mudança em sua ficção utópica Viaje à Marte. Nela defende reformas radicais e faz citações do comunista belga Ernest Gilou ao afirmar que os Estados haviam mantido “boas intenções ineficazes”, nada que pudesse remediar os males do mundoXXXI. Brocos era um inconformado. Na contramão de seu apelo por uma reforma que valorizasse a capacidade da composição inventiva para além da habilidade técnica, outro aspecto me parece particularmente interessante no documento: sua concepção sobre a formação na Escola, a defesa do ensino profissional como meio de inclusão e de preparo dos artífices, potenciais artistas.
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