A estratégia russa no conflito da Ucrânia: contribuições para a doutrina militar brasileira Carlos Eduardo de Matos Barboza* Introdução políticos e estratégicos cresceu e, em muitos casos, excedeu o poder da força das armas em sua eficá- interferência da Federação Russa no con- cia. Porém, resta evidente que as ações militares flito da Ucrânia, em 2014, trouxe à tona convencionais não deixaram de existir, mas foram o que muitos consideram um novo con- A aplicadas de uma nova forma e em sinergia com ceito de guerra, conhecido no mundo ocidental as não militares, fornecendo contribuições cujo pelo nome de guerra híbrida ou guerra de nova estudo é útil para a Doutrina Militar brasileira. geração. O que se viu foi a combinação sinérgica de ações de forças convencionais e irregulares, Contexto histórico e geopolítica realizando operações de informação, de guerra eletrônica e de guerra cibernética, gerando efei- Cada país possui uma interpretação específica tos no campo de batalha bem maiores do que se da sua conjuntura geopolítica. Deve-se buscar, realizadas por meio do combate convencional. em uma breve volta ao passado, as condições Para compreender a interferência russa e sua geográficas e políticas que influenciaram a atual participação no conflito, é preciso lembrar sua conjuntura geopolítica russa, justificando assim a história e geopolítica, sua influência étnica-cul- atuação de sua política externa. tural sobre os Estados vizinhos e seus objetivos políticos na pós-bipolaridade. Da outra parte, Contexto histórico é mister entender por que a Ucrânia, que teve Os Vikings da Escandinávia invadiram a re- sua formação territorial umbilicalmente ligada à gião compreendida entre o mar Báltico e o mar Rússia, se fez vítima indefesa dos objetivos políti- Negro, no século IX, procurando ampliar suas cos de Putin, e como suas vulnerabilidades foram rotas comerciais. Ao longo das rotas comerciais exploradas militarmente. Vikings, ficavam as cidades de Novgorod (na Por meio da ligação entre as ações e os fins atual Rússia, a sul de São Petersburgo) e Kiev políticos da Federação Russa, é possível concluir (atual capital ucraniana). sobre a estratégia adotada, verificando-se que o Rurik, o líder de um povo escandinavo cha- papel dos meios não militares de atingir objetivos mado Rus, assumiu o controle de Novgorod em * Maj Cav (AMAN/00, EsAO/08). Atualmente é aluno da ECEME. ADN • 4 862 d.C. Rurik e seus sucessores estabeleceram a Primeira Guerra Mundial fizeram renascer um um governo sobre Kiev e sobre as tribos eslavas movimento ucraniano de autodeterminação. próximas. A grande região sob seu controle era Fruto desse esfacelamento da Áustria-Hun- chamada de Rus. gria, a porção ocidental do território foi incor- Segundo a historiografia russa, o primeiro porada à Polônia e a parte maior, no centro e no líder a começar a unir as terras eslavas do Les- leste, transformou-se na República Socialista So- te, no que se tornou conhecido como Rússia de viética Ucraniana, posteriormente unida à União Kiev, foi Oleg, príncipe viking que, juntamente das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), com seu povo, deslocou-se de sua terra de ori- quando esta foi criada em 1922. gem, a Escandinávia, seguindo o curso dos rios Após a Segunda Guerra Mundial, as fron- do Leste Europeu, fixando-se nesta região. Para teiras da Ucrânia soviética foram ampliadas na melhor controlar as rotas comerciais, Oleg des- direção oeste, unindo a maior parte dos ucrania- locou a capital, de Novgorod para Kiev, que nos sob uma única entidade política. A maioria era um posto avançado central ao longo da da população não-ucraniana dos territórios ane- rota do rio Dnieper e um entroncamento com xados foi deportada e Joseph Stalin incentivou a a rota de comércio terrestre Leste-Oeste, entre migração russa para a região. os khazares, seminômades da Ásia Central, e as A Crimeia, que fazia parte do império russo, terras germânicas da Europa Central. Essas co- teve sua população nativa, os tártaros, deportados nexões comerciais enriqueceram os mercadores após a Segunda Guerra Mundial, bem como per- e príncipes de Rus, financiando forças militares deu sua condição de república autônoma. O gover- e a construção de igrejas, palácios, fortificações no soviético, então, enviou levas de colonos russos e outras cidades. Bielorrússia, Ucrânia e Rússia para ocupar as terras da Crimeia. (RINGIS, 2016) reivindicam a Rússia de Kiev como seu ancestral A fim de conter o movimento nacionalista cultural. (PLOKHY, 2006) ucraniano pós-guerra, a Crimeia foi cedida por Por volta do século XIV, o território hoje conhe- Nikita Kruschev à Ucrânia em 1954. Assim, a cido como Ucrânia foi conquistado pela Polônia e Ucrânia ficou de posse da terra que pertencia ao pelo Grão-Ducado da Lituânia, iniciando a série de povo tártaro, que era muçulmano. Isso colocou, influências externas e migrações populacionais. intencionalmente, as repúblicas da Ásia Central e Uma rebelião em 1648 contra a Polônia oca- os muçulmanos da URSS em oposição à Ucrânia, sionou a partilha da Ucrânia entre a Polônia e que deixaram de considerá-la como aliada con- a Rússia, após o tratado de Pereyaslav. A parti- tra o imperialismo russo. Além disso, outro resul- lha da Polônia, no século XVIII, entre a Prús- tado foi a mudança na relação entre a Turquia e sia, a Áustria e a Rússia, dividiu aquele pedaço a Ucrânia. (INTERNATIONAL COMMITTEE do território ucraniano, conquistado no século FOR CRIMEA, 2005) XIV pela Polônia, entre o Império Austríaco e o Após a dissolução da URSS em 1991, a Ucrâ- Império Russo. nia conquistou sua independência. No entanto, A queda do czar após a Revolução Russa de em seguida, passou por profunda recessão econô- 1917 e o esfacelamento da Áustria-Hungria após mica e por instabilidades políticas, culminando, ADN • 5 em 2004, na Revolução Laranja, grandes mani- do mar Negro e do estreito de Bósforo, uma pas- festações após a disputa eleitoral entre Viktor sagem estreita controlada pela Turquia e que Yushchenko e Viktor Yuanukovych. O resultado facilmente pode ser fechada. O outro é a partir oficial declarou Yanukovych como vencedor e de São Petersburgo, onde os navios podem nave- os protestos alegando fraude eleitoral eclodiram gar através de águas dinamarquesas, passagem em diversas regiões do país. Após novas eleições, também facilmente bloqueável. O terceiro é por Yushchenko foi finalmente declarado presidente. meio da longa rota do Oceano Ártico, a partir de Disputas com a Rússia sobre dívidas de gás na- Murmansk e passando por entre a Groenlândia, tural interromperam brevemente todos os forne- a Islândia e o Reino Unido. Isso mostra a vulne- cimentos de gás à Ucrânia em 2006 e novamente rabilidade que a Rússia enfrenta devido à restri- em 2009, levando à escassez do produto também ção de acessos aos oceanos. em vários outros países europeus (QUEIROZ e Além disso, a maior parte da sua população QUINTSLR, 2018). Logo depois, Viktor Yanuko- concentra-se ao longo da fronteira Oeste, com a vych foi novamente eleito presidente, em 2010. Europa, e da fronteira Sudoeste, com o Cáucaso, Em fins de 2013, a Ucrânia encontrava-se no- entre o mar Negro e o Cáspio. As regiões a Oeste vamente abalada por uma forte crise econômi- e a Sul da Rússia são consideradas as áreas mais ca. O presidente Yanukovych tendia em aceitar produtivas e vitais para o país. Portanto, a maior um empréstimo de cerca de US$15 bilhões da vulnerabilidade russa está no Oeste, e em segun- Rússia, enquanto os cidadãos ucranianos exi- do lugar, no Cáucaso. (FRIEDMAN, 2016) giam uma maior integração do país com a União A Rússia situa-se na planície europeia, com Europeia (UE). A recusa de Yanukovych em as- poucas barreiras naturais para bloquear um sinar um acordo comercial com a UE resultou inimigo que venha de Oeste. A Leste dos Cár- no movimento conhecido como Euromaidan e os patos, estende-se uma planície para o Sul, protestos provocaram a sua destituição pelo Par- abrindo-se “uma porta” para a Rússia. E, com lamento da Ucrânia em 22 de fevereiro de 2014. muitas atividades econômicas próximas à fron- No fim dos anos 90, a OTAN já ia se expan- teira, com poucas barreiras naturais, reside o ris- dindo para leste, desde a Alemanha até as fron- co do acesso facilitado. teiras da Federação Russa com os Países Bálticos. Daí explica-se a histórica tentativa de mover a E em 2014 essa situação era ainda mais preocu- fronteira o mais para Oeste possível, proporcio- pante, com essa expansão ameaçando chegar às nando profundidade a sua defesa, assim como fronteiras russas com a Ucrânia. maiores oportunidades econômicas. Geopolítica Neo-eurasianismo ou Escola O acesso da Rússia aos oceanos, com exceção Expansionista Eurasiana do Ártico (cujos portos ficam em águas congela- O termo eurasianismo surgiu pela primeira vez das na maior parte do ano), é limitado. Os aces- no século XIX. Defendia que o Império Russo fos- sos que possui são limitados por outros países se desenvolvido sobre valores e instituições deriva- europeus, que os controlam. Um deles é através das de tradição autóctone, e não a partir daqueles ADN • 6 importados do ocidente. Rejeitava, categorica- rejeitando a versão Atlântica de globalização. mente, o projeto do Czar Pedro, “o Grande”, O Império Eurasiano será construído sob o para “europeizar” a Rússia. (SANTOS, 2008) princípio fundamental do inimigo comum: a Para Gaspar (2004, apud TEIXEIRA, 2009), rejeição do Atlanticismo - o controle estratégico pretendendo voltar a ser reconhecida como uma dos EUA, e a recusa em permitir que valores li- grande potência e na busca de um reequilíbrio berais nos dominem, escreveu Dugin (1997). geopolítico, surgem, na Rússia, sinais dos antigos ideais do Eurasianismo. Essas ideias tornaram- Doutrina militar russa se marcantes nos governos de Dmitri Medvedev (2008-2012) e Vladimir Putin (2000-2004; 2004- Em 25 de fevereiro de 2013, a revista russa 2008; 2012- 2018; 2018-____).
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