Revista Brasileira de Ciências Sociais ISSN: 0102-6909 [email protected] Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais Brasil Frúgoli Jr., Heitor Relações entre múltiplas redes no bairro Alto (Lisboa) Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 28, núm. 82, junio, 2013, pp. 17-30 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10727637002 Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto RELAÇÕES ENTRE MÚLTIPLAS REDES NO BAIRRO ALTO (LISBOA)* Heitor Frúgoli Jr. * Versão modificada de trabalho apresentado no 35º Contextualização Encontro Anual da Anpocs (2011), no GT Dimen- sões do urbano: tempos e escalas em composição. Este artigo apresenta aspectos assinaláveis de Agradeço aos comentários do querido professor Gil- uma investigação etnográfica de um bairro especí- berto Velho (in memoriam) e dos demais presentes, fico de Lisboa – o Bairro Alto –, situado na área bem como à leitura atenta de Graça Cordeiro, de par- ticipantes do Grupo de Estudos de Antropologia da central e dotado de razoável densidade, lembrando Cidade (Geac) e dos pareceristas. Este artigo sintetiza que o próprio conceito de bairro acarreta uma série tópicos da pesquisa desenvolvida no 1º semestre de de desafios para sua apreensão. Um bairro não se 2011 com bolsa de pesquisa no exterior da Fapesp, apresenta como uma realidade a priori, dado que mas que também se vale de idas pontuais anteriores é marcado por planos e escalas distintos, fronteiras (2007, 2008 e 2009), propiciadas pelo CNPq. Agra- fluidas e alvo de múltiplas representações; também deço a todos que participaram da pesquisa, ao Centro pode abranger uma variação significativa conforme de Investigação e Estudos de Sociologia do Institu- os atores sociais, as instituições e as situações em to Universitário de Lisboa (CIES-ISCTE-IUL) pela jogo, bem como os interesses políticos em questão; infra-estrutura oferecida, aos retornos obtidos quando além disso o conceito leva a diferenciações significa- das falas sobre a pesquisa no CIES, na Universidade Lusíada de Lisboa, na Universidade de Coimbra (en- tivas conforme o recorte disciplinar adotado (Cor- contro da Rede Brasil-Portugal de Estudos Urbanos) deiro e Costa, 1999; Agier, 1999; La Pradelle, 2000; e na livraria Círculo das Letras, à acolhida calorosa de Authier et al., 2006; Vidal, 2009; Frúgoli Jr., 2009). alguns amigos portugueses ao longo de minha estada Priorizou-se aqui a reconstituição de diversas e à ajuda de última hora de Marina Frúgoli, Tiago redes de relação que, de certa forma, se condensam Frúgoli e Márcio Macedo. num determinado território – no caso o próprio bairro –, ou seja, procurou-se traçar várias conexões Artigo recebido em 23/12/2011 entre agentes, e embora estas possam levar a um pa- Aprovado em 14/05/2012 norama mais ampliado e extensivo, também reve- RBCS Vol. 28 n° 82 junho/2013 13040_RBCS82_AF6.indd 17 29/07/13 14:25 18 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 28 N° 82 lam, como no presente estudo, uma territorialidade viu em parte de modelo.11 Mais ao final do século mais definida e intensiva (Latour, 1994; Marcus, XX, o bairro passou a ter um afluxo ainda maior 1998; Agier, 2011; Frúgoli Jr., 2007; Sklair, 2010). de frequentadores noturnos, incluindo turistas eu- Ademais, embora sejam inevitáveis classifica- ropeus e estudantes ligados ao Programa Erasmus.12 ções e hierarquizações, procuro evitar nessa aborda- À noite, o local se torna um dos pontos mais movi- gem a defesa de um ponto de vista “mais legítimo”, mentados da cidade, o que causa vários transtornos que poderia ser atribuído, a princípio, aos mora- aos seus moradores. Chegando ao presente, a cena dores do bairro em questão, muito embora eles te- noturna tem sido assinalada por parcela considerá- nham sido levados em conta de forma considerá- vel de frequentadores que consome bebidas alco- vel na pesquisa.1 Cabe ainda frisar que em face da ólicas nas ruas,13 cuja compra (principalmente de tendência recorrente (a começar, pela própria fala cervejas, as “litrosas”) é barateada, prática essa iden- de muitos sujeitos) de separar moradores (idosos) tificada como “botellón”, outra referência espanhola e frequentadores noturnos (a chamada “malta jo- (por vezes aportuguesada para “botilhão”), em que vem”) como dois mundos em permanente conflito, o consumo coletivo e denso de álcool por grupos procurou-se prestar atenção etnográfica às relações juvenis em espaços públicos teria se originado.14 e conexões (por vezes cotidianas) entre ambos, bem De modo geral, o bairro é urbanisticamen- como à configuração de outros tipos de conflito, te delimitado15 ao sul, pela Praça de Luís de Ca- decorrentes ou não da polaridade básica anterior.2 mões, Rua do Loreto, Largo do Calhariz e Calçada Passemos então uma brevíssima contextualiza- do Combro, a leste, pela Rua do Século, ao norte, ção desse bairro (com passagens mencionadas, reto- pela Rua Dom Pedro V, e a oeste, pela Rua de São madas ou reformuladas por vários sujeitos pesqui- Pedro de Alcântara e Rua da Misericórdia (ver Ca- sados). Resumidamente, o Bairro Alto, surgido em rita, 1994, e mapa ao final deste artigo); há demar- 1513,3 pode ser considerado um bairro popular, his- cações “internas”, entre o Bairro “mais comercial” tórico e típico de Lisboa (representações essas mais ou “mais residencial” (respectivamente “ativo” ou consolidadas a partir do final do século XIX)4 – não “ativo”, segundo um morador da “parte ativa”), levando-se em conta os múltiplos significados que delimitada pela Rua da Rosa, que também separa a ideia de bairro evoca no caso português5 –, com duas freguesias (Santa Catarina a oeste e Encarna- a predominância (decrescente) de moradores idosos ção a leste), cujos domínios raramente coincidem, (principalmente senhoras6), protegidos por leis de em Lisboa, com os dos bairros propriamente di- congelamento das “rendas” (aluguéis) e que vivem tos;16 em termos de lazer noturno, novas represen- em edifícios envelhecidos, com pouquíssimos inves- tações espaciais ganham visibilidade, incluindo a timentos de melhoria por parte de seus proprietá- que abrange (por vezes sob a forma de fluxos) uma rios.7 Ao longo de sua história, caracterizou-se por parte do território da vizinha Bica (“o Bairro Alto certa boemia, mais visível a partir de meados do está a descer para cá...”).17 século XIX, tendo em vista a associação entre fado, Cabe ainda nesta introdução mencionar breve- prostituição e marginalidade.8 Durante o século mente certas constatações durante a pesquisa que XIX, o bairro se tornou também um ponto visível serão retomadas adiante: da imprensa local, tendo nele sido localizadas as re- dações dos principais jornais da época.9 Nos anos de Mesmo que algumas representações sobre o 1980, o Bairro Alto viveu um período significativo, Bairro Alto (ou simplesmente Bairro, como quando, de modo geral, desdobramentos frustran- muitos o chamam)18 sejam acionadas por mo- tes da Revolução dos Cravos (1974)10 estimularam radores e comerciantes locais, isso também é mudanças em costumes e atitudes na cidade de Lis- feito, evidentemente, por inúmeros frequenta- boa. Naqueles anos, o bairro serviu como foco cen- dores (atuais e de décadas passadas) que, em- tral para um novo movimento boêmio, a “movida bora não mais residam ali, tomam tal espaço lisboeta”, nome inspirado no movimento espanhol, como parte significativa de períodos de suas “la movida madrileña” (pós-franquista), que lhe ser- vidas ou trajetórias.19 13040_RBCS82_AF6.indd 18 29/07/13 14:25 RelaÇÕES ENTRE MÚltiplas REDES NO Bairro Alto (Lisboa) 19 Diferenças entre representações sobre o Bairro , bem como pela ansiedade em conhecer tal bairro Alto como um espaço boêmio “desde sempre” “por dentro”. Mas logo se evidenciaram os desafios: (expressão portuguesa, recorrente nesse caso) em muitas interações, impunham-se variados temas ou principalmente nas últimas décadas, a pri- ligados de forma geral à relação entre os dois paí- meira bastante acionada entre frequentadores ses: entre as idas de 2007 e 2009, havia menções da noite ou comerciantes locais, a segunda recorrentes à forte presença de brasileiros em Por- mais recorrente entre moradores, muito em- tugal (algo presente com certas particularidades no bora outra clivagem possa ser captada, prin- Bairro Alto, como retomarei adiante) e por vezes o cipalmente entre aqueles que fizeram parte da “recado” era de que o Brasil precisava resolver seus vida boêmia do Bairro entre a década de 1970 problemas econômicos; em 2011, por sua vez, elo- e 1980, quando se ressalta as particularidades giava-se os avanços da gestão Lula, o que explicaria da vida noturna moderna ali criada, em ruptu- inclusive certo retorno de imigrantes brasileiros ao ra com a anterior (popular, marginal, fadista e Brasil, em contraste com a crise econômica portu- ligada à prostituição). guesa (ou europeia, a depender do ponto de vista) – assunto que também se impôs de formas variadas Tendo em vista essas ponderações iniciais, pas- no período mais concentrado de pesquisa.23 semos à discussão de uma questão recorrente du- Eu presumia que, por frequentar certos bares, rante as interações etnográficas, relativas à minha podia por vezes compartilhar alguns pontos de condição de antropólogo brasileiro
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