Transferir Este Ficheiro

Transferir Este Ficheiro

SOFIA VIEIRA LOPES [email protected] Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança / Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa Portugal no Coração – música e performance no Festival RTP da Canção enquanto veículos de narrativas identitárias Resumo Este artigo é resultado do trabalho realizado no âmbito do Doutoramento em Ciências Musicais – Etnomusicologia (FCSH-UNL), financiado pela FCT e orientado pelo Professor Doutor João Soeiro de Carvalho. Pretende-se analisar de que forma a música e a performance no Festival RTP da Canção veiculam discursos identitários nomeadamente no que respeita à saudade. Apresentam-se algumas linhas gerais para compreensão desta problemá- tica, assim como algumas linhas de pensamento relativas à performance e à forma como as memórias são mediadas através de uma “performance utópica” (Dolan, 2001). Este artigo está dividido em três secções, sendo as duas primeiras de cará- ter teórico relativas à saudade, à Europa, à Eurovisão e à performance. Na terceira parte, apresento uma análise à canção portuguesa concorrente ao Festival Eurovisão da Canção de 1996 como forma de verificar o modo como é apresentada uma narrativa identitária num contexto internacional, cruzan- do a análise da música e da letra com uma reflexão em torno do conceito de lusotropicalismo (Freyre, 1953). Palavras-chave Festival RTP da Canção; Festival Eurovisão da Canção; identidade; saudade; lusotropicalismo INTRODUÇÃO1 A televisão é sem dúvida um medium privilegiado para a transmissão de comportamentos expressivos. Desde 1956 que o Festival Eurovisão da Canção (FEC) é um evento que congrega milhões de telespetadores dentro 1 Portugal no Coração é o título da canção vencedora do Festival RTP da Canção em 1977. 150 Sofia Vieira Lopes Portugal no Coração – música e performance no Festival RTP da Canção enquanto veículos de narrativas identitárias e fora da Europa, promovendo “a união pela diferença” e a “construção de pontes”2 culturais entre países. Pela sua longevidade e pela sua dimensão, este é um campo em constante definição baseado em premissas que es- tão muito para além da música3. No Festival Eurovisão da Canção (FEC) e no Festival RTP da Canção (FRTPC) as várias identidades nacionais e europeias são expostas num display mediático. A partir do alargamento do Festival Eurovisão a Leste, o interesse dos académicos internacionais4 tem vindo a crescer e a sua importância na mediação de discursos identitários através da música e da performance é amiúde debatida. No contexto portu- guês, a investigação sobre a relevância do Festival RTP da Canção no cam- po da chamada “música popular” (Castelo-Branco & Cidra, 2010) está em curso com o trabalho por mim realizado no âmbito do meu Doutoramento em Etnomusicologia (FCSH-UNL), tendo sido lançada a discussão com a entrada sobre o Festival da Canção na Enciclopédia da Música em Portugal (2010) (Cesar & Tilly, 2010). Por outro lado, o trabalho publicado por Man- gorrinha (2015) assenta na importância deste concurso no que respeita às questões sociais: “à impressão generalizada de que o FEC é estética e in- telectualmente pobre, os autores [Raykoff & Tobin, 2007] contradizem-na, demonstrando que o concurso tem tido uma relevância significativa para as transformações sociais, culturais e políticas na Europa do pós-guerra” (Mangorrinha, 2015, p. 17). Deste modo, considero fundamental o estudo do Festival RTP da Canção e da sua importância enquanto mediador identi- tário no contexto da Etnomusicologia. A reflexão teórica apresentada na primeira e segunda partes deste ar- tigo serve de base para análise das narrativas identitárias apresentadas na canção e performances analisadas na última parte. O exemplo escolhido, a concorrente portuguesa ao Festival Eurovisão da Canção 1996 – O meu co- ração não tem cor, interpretada por Lúcia Moniz, aparece num contexto de consolidação da posição portuguesa numa União Europeia cujas fronteiras se alargavam a Este. Pretende-se assim contribuir para a compreensão das estratégias dos autores, intérpretes e produtores do Festival RTP da Can- ção na construção musical e performativa como mediadora de discursos identitários. Porém, e uma vez que este é um trabalho ainda em desenvol- vimento, as questões aqui levantadas serão futuramente cruzadas com o 2 Slogan da edição Festival Eurovisão da Canção 2015. 3 Para um conhecimento do Festival Eurovisão da Canção no âmbito dos estudos culturais, aconselha- -se a leitura de Raykoff & Tobin (2007) e Fricker & Gluhovic (2013). 4 No âmbito da Etnomusicologia, interessa considerar o trabalho de Bohlman (2004, 2007) e Tragaki (2013). 151 Sofia Vieira Lopes Portugal no Coração – música e performance no Festival RTP da Canção enquanto veículos de narrativas identitárias discurso direto dos intervenientes, uma metodologia crucial no domínio da Etnomusicologia. A SAUDADE Se uns acreditam que a saudade é um sentimento unicamente portu- guês, outros defendem que essa é uma visão essencialista e errónea (Leal, 2000). Apresento aqui duas perspetivas antagónicas da questão, mas é ne- cessário salientar a constante discussão acerca deste assunto e as diversas nuances na sua abordagem. Todavia, a verdade é que o discurso saudosista está patente em inúmeras criações no âmbito da música popular e está presente nos discursos quotidiano e académico. Com Teixeira de Pascoaes (1998), no início do século XX mas com raí- zes anteriores, surge no panorama literário e filosófico português uma nova corrente de pensamento – o saudosismo – fundamentando-se na literatura popular e exaltando as glórias dos descobrimentos. No entender de Leal (2000), a invenção da saudade a partir de Pascoaes é um novo paradigma na psicologia étnica portuguesa. Uma mudança operada por poetas e não por etnólogos; um movimento literário e artístico contra o cosmopolitismo (Leal, 2000, p. 273) e por isso importa distinguir entre saudosismo como sistema filosófico e saudosismo como expressão cultural (Botelho, 1990, p. 6). Desde então, diferentes argumentos têm vindo a ser apresentados. Durante o Estado Novo, o resgate do fado do seu contexto margi- nal e a sua apropriação enquanto canção nacional faz a saudade reemergir enquanto estereótipo discursivo para a “alma portuguesa” (Leal, 2000, p. 277), beneficiando da difusão dos média e da emigração. Os discursos na- cionalistas e saudosistas enfatizaram a ligação entre saudade, desejo, tris- teza, mágoa e ausência; a união do material com o espiritual, do passado com o presente. No pós-revolução de 1974, a saudade é vista por alguns agentes como uma ferramenta de perpetuação dos discursos reacionários e neste contexto, a canção vencedora do Festival RTP da Canção de 1977, Portugal no Coração, que dá título a este artigo, é um exemplo curioso. Os autores, Ary dos Santos (Félix, 2010) e Fernando Tordo (Silva & Tilly, 2010), atrevem- -se a dizer: “Portugal é ter a vontade de acabar com a saudade” e Paulo de Carvalho (integrante do conjunto “Os Amigos”) canta este verso sozinho, com uma entoação próxima do fado, muito mais percetível na versão gra- vada em Portugal e emitida pela RTP do que na versão interpretada ao vivo na Eurovisão. No entanto, em simultâneo com esta visão de corte com o 152 Sofia Vieira Lopes Portugal no Coração – música e performance no Festival RTP da Canção enquanto veículos de narrativas identitárias passado, como afirma Leal, a saudade parece voltar gradualmente à vida e cultura portuguesas (2000, p. 219). Para Eduardo Lourenço, a saudade é uma imagem “que de nós mes- mos temos forjado” (1978, p. 12) e para Leal é uma tradição inventada, uma versão da cultura portuguesa que alguns portugueses produzem para o estrangeiro (2000, p. 280). É o resultado da tendência de construção e circulação de símbolos nacionais: apesar de dirigidos a toda a população nacional, na verda- de estes são seletivamente apropriados por determinados grupos culturais e sociais que os reproduzem enquanto símbolos do seu próprio entendimento acerca de um sen- timento geral: “ser-se português”. (…) O que é português não é a própria saudade, mas a forma como determinadas pessoas continuam a falar a seu respeito enquanto algo especificamente português. (Leal, 2000, p. 282) Lourenço vê a saudade como um símbolo negativo nos discursos identitários, produto de um “irrealismo pródigo”. No seu entender, as nações, com a responsabilidade histórica da gente por- tuguesa, não podem imobilizar-se extaticamente, nem de- vem iludir-se infantilmente; têm que desentranhar suces- sivamente da massa das suas tradições e aspirações um ideal coerente com a conjuntura histórica, que exprima e defina o seu estar mudável em concordância com o seu ser permanente.(Lourenço, 1978, p. 17) Mesmo com a publicação de artigos que desconstroem a saudade como “capital cultural nacional” (Lôfgren, 1989 citado em Leal, 2000), no âmbito da música popular estas perspetivas mais críticas não têm tido ex- pressão significativa e as canções vencedoras no Festival RTP da Canção em 1989, 1991 e 1996, são exemplo disso. Aqui e tal como em Pascoaes (1998), combinaram-se a memória do passado e o desejo no futuro, a tris- teza e a esperança. EUROPA, EUROVISÃO E PERFORMANCE Para compreender as dimensões em que o Festival RTP da Canção se desenrola, importa ter em consideração os contributos de alguns autores relativamente à problemática das identidades na Europa e na Eurovisão, assim como do papel da performance como veículo para a mediação de discursos identitários. 153 Sofia Vieira Lopes Portugal no Coração – música e performance no Festival RTP da Canção enquanto veículos de narrativas identitárias Sassatelli considera que, desde o final da II Guerra Mundial, a ideia de Europa e a sua identidade têm-se sustentado na procura de instrumen- tos de legitimação simbólica para simular uma sensação de pertença e par- tilha (Sassatelli, 2002, p. 436). A autora adverte: a cultura não pode ser a “cola” da integração Europeia; pelo contrário, a ideia de identidade europeia é por vez- es apresentada enquanto algo prejudicial, uma vez que poderá pôr em perigo a diversidade cultural considerada uma das características fundamentais da Europa.

View Full Text

Details

  • File Type
    pdf
  • Upload Time
    -
  • Content Languages
    English
  • Upload User
    Anonymous/Not logged-in
  • File Pages
    16 Page
  • File Size
    -

Download

Channel Download Status
Express Download Enable

Copyright

We respect the copyrights and intellectual property rights of all users. All uploaded documents are either original works of the uploader or authorized works of the rightful owners.

  • Not to be reproduced or distributed without explicit permission.
  • Not used for commercial purposes outside of approved use cases.
  • Not used to infringe on the rights of the original creators.
  • If you believe any content infringes your copyright, please contact us immediately.

Support

For help with questions, suggestions, or problems, please contact us