201 Subcapítulo 2.3 Valores Diversos Como Justificações De Diferentes

201 Subcapítulo 2.3 Valores Diversos Como Justificações De Diferentes

Subcapítulo 2.3 Valores Diversos como Justificações de Diferentes Ordens Sociais 2.3.1. O Político e o social como esferas autónomas Com as transformações sociais, económicas e religiosas iniciadas no século XVI, e sobretudo desde a revolução liderada por Cromwell em 1640, os fundamentos da ordem social e política vigentes havia séculos foram fortemente abalados , o que deu origem a uma série de obras em que se discutiam esses fundamentos e procurava alternativas e que constituem a moderna filosofia política. Desde a revolução em Inglaterra que a nova ordem social e política, vinha sendo teorizada por autores como, Hobbes (1642, 1651), Locke (1690), Vico em Principi di una scienza nuova (1721), Mandeville em A Fábula das Abelhas (1723), Pascal e outros jansenistas, como Nicole (1733), Hume no Tratado da Natureza Humana (1739) e “Acerca do Comércio” (publicado em Discursos Políticos) , Hutcheson, no Inquiry Concerning Virtue , Montesquieu em Esprit des lois (1748), Quesnay, o Abade Gabriel Bonnot de Mably, Steuart em Inquiry into the Principles of Political Oeconomnie (1767), Adam Smith no Tratado dos Sentimentos Morais (1759), Pudendorf em Direito da Natureza e das Gentes (1771). Mas foi noutra obra de A. Smith, Inquérito sobre a Natureza e Causas da Riqueza das Nações (publicada pela primeira vez em 1776), que foram tratadas de forma mais sistemática as questões relativas ao que ficou conhecido como economia política, pelas relações estreitas que a teorização da actividade económica tinha com a filosofia política e a ética 1. A economia política, tal como estes filósofos a teorizaram, desenvolveu-se a partir do quadro da filosofia política. A lógica do mercado e da acumulação da riqueza como base para o ordenamento da sociedade no seu conjunto só pode ser compreendida a partir da problemática da refundamentação da ordem social, com base na autonomização da lógica política em relação à religião e à ética.. Hobbes ou Rousseau? No estudo que Dumont fez sobre o individualismo, e que aqui se vinha analisando até se recorrer a Weber para estudar os desenvolvimentos puritanos da doutrina calvinista e a sua relação com as transformações que durante os séculos XVI a XVIII ocorreram na actividade económica, na legitimidade política e no lugar do trabalho na ordem social, é dado particular destaque às filosofias políticas de Hobbes e de Rousseau, sobretudo pelo seu contributo para a constituição do político como esfera que emergiu na sociedade com relativa autonomia; mostrando ao mesmo tempo como a teorização dos processos sociais, embora despontasse, sobretudo na filosofia de Rousseau, permanecia subjacente e subordinada à lógica do domínio político – a uma lógica do ordenamento social, da soberania, fundada na vontade autónoma de indivíduos. No Subcapítulo 2.1, já foi feita referência a uma mudança radical no modo de conceber a fundamentação da lei e da ordem social, quando Guilherme de Occam pôs em causa a concepção de uma ordem social (resultante da acção dos homens comuns) em conformidade com a ordem que Deus teria imprimido na natureza (tal com a interpretavam os teólogos). Viu-se então como, ainda para Tomás de Aquino, o homem 1 No seu conjunto, a obra de Smith (e de Hume) pretende fazer a legitimação a nível filosófico/ético de uma realidade económica emergente, mostrando como a paz social resulta da riqueza geral, mas pondo o assento na mediação de uma relação mercantil e nas instituições. 201 é um ser social e seria possível à razão humana conceber uma ordem ideal a partir da observação e interpretação da natureza 2. S egundo a análise de Villey sintetizada por DUMONT (1992, p. 72), para Tomás de Aquino, o mundo comportaria ele próprio “uma ordem, classes onde se dispõe cada um dos seres singulares [ 3]” em resultado de “um sistema completo de relações entre indivíduos, acima dos indivíduos” com uma existência objectiva, independente do intelecto que as descobre nas coisas; “os «universais», como género ou espécie, as categorias ou classes de seres eram considerados como existindo realmente em si próprios, sendo por isso denominados «substâncias segundas»” (DUMONT, 1992, p. 72, citando Villey) . Este teólogo reconhecia o homem como “indivíduo privado em relação directa com o criador e modelo” (DUMONT, p. 71), mas, ao mesmo tempo, reconhecia, ao nível das instituições terrenas, cada homem como membro da comunidade, parte do corpo social 4. Contrariamente à patrística que, como já aqui se pôde ver (a propósito da Lei Natural), só admitia as instituições criadas pelos homens como “um remédio tornado necessário pelo pecado original” ( idem ) e a consequente «queda» 5, Tomás de Aquino, tal como os gregos, reconhecia à comunidade um valor enquanto instituição racional” (idem ). Occam atacou esta maneira de ver, afirmando que devia ser estabelecida uma distinção nítida entre as coisas ( res ) por um lado, e por outro, os signos, as palavras, os universais: «As coisas não podem por definição deixar de ser ‘simples’, ‘isoladas’, ‘separadas’; ser é ser único e distinto... na pessoa de Pedro não há mais nada a não ser Pedro, e mais coisa nenhuma que dele se distinga ‘realmente’ ou ‘formalmente’. O animal ou o homem – como a animalidade ou a humanidade –, não são coisas, não são seres» (Villey, op. cit., p. 206, cit. in DUMONT, p. 80). Não há «substâncias segundas» como para Tomás de Aquino. Pode considerar-se esta posição como um antecedente da crítica à reificação das ideias e conceitos, mas é também uma negação da realidade das relações entre as coisas. No que se refere ao Direito, resulta daqui a consequência que as leis feitas pelos homens não podem reivindicar uma fundamentação numa lei divina que os homens conceberiam a partir da interpretação da natureza. A lei feita pelo homem devia ser entendida como “a expressão do «poder» ou da «vontade» do legislador” (DUMONT, p. 73) – o que é a concepção fundamental da «teoria subjectiva» do direito – e o direito, que era concebido como o que devia ser uma relação justa entre seres sociais, passa a ser “o reconhecimento social do poder ( potestas ) do indivíduo” ( idem ), que está na base do Direito Natural moderno. Para os modernos, o que se designa por Direito Natural (por oposição ao direito positivo), “não trata de seres sociais mas de indivíduos, ou seja de homens, cada um dos quais se basta a si próprio enquanto feito à imagem de Deus e enquanto depositário da razão” ( idem , p. 81) (E esta é a raiz do radicalismo liberalista ). A partir desta nova concepção do Direito Natural, os princípios fundamentais da vida social e política vão ser deduzidos das propriedades e qualidades inerentes a um arquétipo de homem hipotizado como um ser autónomo, sem qualquer laço social ou político, que teria vivido no estado de natureza antes da fundação do Estado ou mesmo 2 Tenha-se presente que para a grande maioria dos filósofos gregos, a natureza tem uma ordem intrínseca acessível à razão humana. 3 Que seriam, no dizer de Villey, “seres singulares como Pedro e Paulo, [...] entidades auto-suficientes da primeira espécie, «substâncias primeiras». 4 Na noção de corpo social como um todo de que os homens vivos são apenas parte, pode reconhecer-se a noção de todo social que vimos em Durkheim e Mauss. 5 Já se registou, no capítulo 4, que Dumont se baseia para esta análise nas obras de Enst Cassirier, The Myth of the State , de 1946, e de Michel Villey, La formation de la pensée jurídique moderne: Le franciscanisme et le Droit, de 1963. 202 de qualquer sociedade. A mitologia judaico-cristã levou a que se fizesse coincidir esse estado natural hipotizado com o estado do homem antes da «queda» (Cf. Dumont, 1992, p. 44). É esta teoria moderna do Direito Natural que está na base das declarações dos direitos do homem aprovadas nas assembleias constituintes americanas e francesa. Sendo porque Deus fez os homens livres e iguais que a ordem social deve ser baseada na liberdade e igualdade. DUMONT ( idem ) considera que foi confundida a prioridade lógica do “homem considerado como ser autónomo, independentemente de qualquer laço social ou político”, com a anterioridade histórica, e que isso tornou a tarefa “paradoxal e ingrata”. Mostra-o na análise que faz da doutrina calvinista, mas também nas tentativas de Hobbes, de Locke e de Rousseau (e Hegel? V. DUMONT, p. 106) para superar ou evitar o paradoxo 6. E seria esse paradoxo que ressurgiria nas discussões em torno da Declaração dos Direitos do Homem 7 e na sua aplicação e com a evolução da questão social ao longo do século XIX , tal como a descreve Robert Castel 8. No presente capítulo 9, mostra-se, a propósito das obras de BOLTANSKI e THÉVENOT (1991) e de DUBET (2001 e 2005) 10 , como esta fundamentação dos direitos humanos numa igualdade de homens ideais se confronta hoje com as suas contradições: nomeadamente como a educação e a assistência se confrontam com a injunção da “obrigação de ser livre” e de ser igual, e com as noções de “desigualdades justas” e de “igualdades injustas”. Estas problemáticas estão para além da questão da 6 Cf . DUMONT pp. 87, 89, e 99-103 sobre os levellers (Referidos em 1690, no Segundo Tratado do Governo escrito por Locke, (cf. DUMONT, p. 89)] e sobre Babeuf . Segundo Dumont, o questionamento começa na igreja, com Lutero, para quem todos os crentes têm igual autoridade em matéria espiritual (os sacerdotes são ‘ministros escolhidos entre nós, que fazem tudo o que fazem em nosso nome’” (DUMONT, 1992, p. 86,) citando Lutero), e a reivindicação igualitária foi alargada/ estende-se depois da religião para a política no decorrer da revolução inglesa, muito particularmente com os levellers (Mas muitos outros puritanos já o tinham feito, como mostra Weber – ver tb.

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