Maat Grada Kilomba X Ines Grosso 2017.Pdf

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SECRETS TO TELL GRADA KILOMBA ÍNDICE / CONTENTS TEXTOS / TEXTS Alfredo Jaar ( PT ) 9 ( EN ) 15 Inês Grosso Quiet as it’s kept (or not) ( PT ) 20 ( EN ) 33 Theresa Sigmund e / and Grada Kilomba Living in a space of timelessness ( PT ) 88 ( EN ) 94 OBRAS / WORKS The Desire Project 44 Plantation Memories 100 Table of Goods 108 Quiet as it’s kept (or not) INÊS GROSSO ( PT ) Receia-se que, se o sujeito colonial falar, o colonizador terá de ouvir. Ela/ele será forçado/a a um confronto desconfortável com «Outras» verdades. Verdades que foram negadas e mantidas no silêncio, como segredos. Gosto muito da frase inglesa «quiet as it’s kept». É uma expressão das comunidades da diáspora africana que anuncia que alguém está prestes a revelar algo que se presume ser segredo. Segredos como a escravatura. Segredos como o colonialismo. Segredos como o racismo.1 Grada Kilomba é uma escritora, uma teórica e uma artista interdisciplinar com um percurso ativo na cena artística berlinense, a cidade onde vive e trabalha. Nascida em Lisboa, as suas raízes estendem-se a São Tomé e Príncipe e a Angola. A sua obra aborda questões em torno dos temas da política de género e de raça e das ideias de trauma e memória, seja no âmbito das problemáticas atuais sobre o colonialismo e o pós-colonialismo no início do século XXI, seja para investigar as relações ambíguas entre memória e esquecimento, o imaginário coletivo e a identidade africana e das suas diásporas. Evocando as tradições orais africanas e o seu poder de perpetuação da palavra, a obra da artista 21 dá voz a narrativas silenciadas com o intuito de reescrever e recontar uma história que foi negada ou omitida. Kilomba tem vindo a explorar práticas artísticas experimentais e pouco convencionais, utilizando e combinando diferentes meios de expressão; desde a performance e a videoinsta- lação, até às leituras de palco e palestras, que criam uma interface entre texto e imagem, entre a linguagem artística e a linguagem académica. Mostrando o seu trabalho em Portugal pela primeira vez, a artista apresenta Secrets to Tell no MAAT — Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia. Inau- gurando o espaço do Project Room, a exposição foi pensada a partir da videoinstalação The Desire Project, uma obra especialmente concebida para a 32.ª Bienal de São Paulo (2016), que é também uma das mais recentes aquisições da Coleção de Arte da Fundação EDP. The Desire Project (2015–2016) é apresentado numa montagem inédita que ocupa quase todo o espaço expositivo do Project Room. Dividida em três atos, como uma peça de teatro — «While I Walk», «While I Speak» e «While I Write»2 —, a obra mostra uma sequência cadenciada de frases e pala- vras que compõem um discurso contundente e politicamente comprometido com uma perspetiva pós-colonial das repre- sentações da história e com a descolonização do pensa- mento na contemporaneidade. Ao entrar, o espectador passa por um altar dedicado à Escrava Anastácia, figura religiosa e política do movimento africano no Brasil do século XVIII e que, ainda hoje, é vene- rada em várias regiões do país, mas também em África. Próximo do altar, um texto da artista conta-nos como ela cresceu com a presença desta imagem na casa da sua avó, que todas as sextas-feiras acendia uma vela e colo- cava uma flor branca, um copo de água limpa e uma tigela de café em homenagem a uma importante figura feminina 22 Inês Grosso da história negra. Personagem real ou lendária, a escrava encarcerada numa máscara de metal3 personifica a luta contra a escravatura e, especialmente, a luta pela eman- cipação da mulher negra, vítima de exploração e violência sexual mesmo depois da abolição da escravatura. Por sua vez, a máscara converteu-se num poderoso símbolo do silenciamento e da opressão praticados durante séculos pelo colonizador sobre o Outro — o colonizado.4 Defronte ao altar, podemos ouvir uma multidão de vozes e batuques que anuncia a videoinstalação, como um chama- mento dos deuses ou orixás do candomblé. Cruzando esse limiar, encontramo-nos num espaço côncavo onde três telas de projeção suspensas do teto exibem textos sobre um fundo negro. O espaço intimista e envolvente evoca um local sagrado de silêncio e meditação. A ausência de imagens dá lugar a uma escuridão vazia onde emergem frases e palavras ao som de uma bateria ritmada — uma composição original do artista Moses Leo —, que remete para os batuques e tambores afro-brasileiros, o chamado «canto da senzala». Esta proximidade entre a palavra poética e a música, recorda-nos, antes de mais, a relação histórica entre esta última e os movimentos de luta e resistência negra ao longo dos séculos — desde a música dos escravos nas colónias ao samba dos afro-brasileiros, passando pelo blues, o jazz, o black spiritual e, mais recen- temente, o rap nos Estados Unidos da América. Associada aos ideais da militância pelos direitos civis e ao combate à segregação racial, a música negra foi, e continua a ser, uma forma de resistência e valorização da identidade negra, mas também um meio através do qual as culturas africanas e afrodescendentes souberam preservar algo das suas origens e tradições e com elas conquistar espaço e visibili- dade na sociedade. Quiet as it's kept (or not) 23 É especialmente estimulante o uso da conjunção temporal «enquanto» para exprimir a ideia de um tempo concomitante, de ações interligadas e simultâneas que estão também em confronto e oposição. Enquanto uma história é contada e celebrada pela historiografia colonial europeia, uma Outra História, a história africana, é silenciada. É também rele- vante a forma como a artista destaca algumas palavras, utili- zando o itálico ou isolando termos e expressões, num texto poético que se baseia numa certa musicalidade e ritmo, um poema-manifesto onde imagem e som contribuem para dar peso adicional à palavra escrita. O que nos é então contado e revelado enquanto a artista caminha, fala e escreve? ATO I Enquanto Caminho «Alguém aponta para mim e diz algo ... Algo sobre ser diferente. Eu pergunto-me a mim mesma: diferente de quem?»5 O primeiro ato é uma denúncia do preconceito e da discri- minação. A artista fala de diferença e do que é ser diferente, do que essa diferença representa para si e para o outro, lembrando-nos que é a discriminação que diferencia. Para Kilomba, «O branco não é uma cor. O branco é uma definição política que representa os privilégios históricos, políticos e sociais de um determinado grupo. Um grupo que tem acesso às estruturas e instituições dominantes da sociedade. Bran- quitude representa a realidade e a história de um determi- nado grupo».6 Nesta perspetiva, o racismo é uma teoria que 24 Inês Grosso se torna real, uma forma de exercer poder sobre o Outro (aquele que é diferente) colocando-o numa posição de infe- rioridade e submissão.7 ATO II Enquanto Falo «Não estamos a lidar aqui com um simples jogo de p-a-l-a-v-r-a-s, mas sim, com uma violenta hierarquia, que define: quem pode falar e sobre o que pode falar.» Este ato resume o tema primordial da sua pesquisa e pensa- mento artístico: quem pode falar e sobre o quê? Quem pode produzir e transmitir conhecimento com autoria e autonomia? Refletindo sobre a maneira clássica de produzir e trans- mitir conhecimento — que, em última instância, determina e restringe as práticas discursivas pedagógicas, artísticas e culturais contemporâneas — e sobre a hegemonia do pensa- mento ocidental eurocêntrico, a artista fala sobre a necessi- dade de descolonização8 do pensamento e do conhecimento, alertando para as dicotomias e contradições criadas pelo pensamento colonial da modernidade, lembrando que o Ocidente constrói a sua própria versão do mundo, não apenas em consonância com as suas ambições económicas e polí- ticas, mas também como forma de subjugar o saber e a capa- cidade de produção de saber do Outro.9 Quiet as it's kept (or not) 25 ATO III Enquanto Escrevo «Então, porque escrevo? Eu escrevo quase como uma obrigação, para me encontrar. Enquanto escrevo, eu não sou o “Outro”, mas o eu, não sou objeto, mas o sujeito. Eu torno-me a que descreve, E não a descrita. Eu torno-me a autora, e a autoridade da minha própria história. Eu torno-me a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou. Eu torno-me eu própria.» No último ato, a artista apresenta-nos a escrita como um território de libertação, de dever e responsabilidade para com a sua própria história, com a sua negritude. Uma voz confessional e autobiográfica cede lugar a um sujeito-enun- ciador, um porta-voz coletivo que denuncia o seu silen- ciamento na história por meio de narrativas coloniais e representações sociais, por meio de uma herança violenta e cruel. Deste modo, embora recupere lembranças que perma- necem «vivas» na memória pessoal e familiar da artista e se relacione com as suas próprias vivências e experiências enquanto mulher negra, esta não é apenas uma história indi- vidual, mas sobretudo uma história coletiva, social e política. Como a própria artista referiu: «Estou interessada em contar histórias, histórias que foram silenciadas durante séculos 26 Inês Grosso e que ainda se refletem na minha biografia».10 Kilomba dá voz àqueles que desejam contar as suas histórias — vozes esquecidas ou subestimadas pela narrativa histórica hege- mónica, identidades fragmentadas pelo colonialismo são resgatadas pela artista como ponto de partida para ques- tionar e discutir o modo como o discurso oficial da história é ainda hoje absorvido e atualizado. Num exercício de reparação histórica e identitária, Kilomba mostra-nos o avesso da história: evidenciando as marcas do colonialismo, desperta-nos para uma reflexão crítica que, essencialmente, se detém sobre a noção de que o pós- -colonialismo nos obriga a pensar as relações neocoloniais e neoimperialistas ainda presentes no Novo e no Velho Mundo.

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