JOÃO DAL POZ NETO N O P A Í S D O S C I N T A L A R G A Uma etnografia do ritual Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo São Paulo 1991 Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Antropologia Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social N O P A Í S D O S C I N T A L A R G A Uma etnografia do ritual João Dal Poz Neto Orientação: profa. dra. Manuela Carneiro da Cunha Redação final (revisada) da Dissertação defendida e aprovada em 27/08/1991 BANCA EXAMINADORA profa.dra. M. Manuela L. Carneiro da Cunha prof.dr. Eduardo Viveiros de Castro prof.dr. José Guilherme Cantor Magnani São Paulo 1991 in memoriam meu pai Alexandre Dal Poz meus amigos Raimundo Kabân Vicente Canhas Ezequiel Ramin Arthur Nantes Agradecimentos Foi um longo caminho, tantas pessoas, dum lado e outro. Se faço memória de alguns, são os que tiveram parte direta. De alguma maneira, dívidas antropológicas. Primeiro, por onde comecei. Ivar, Anni e Thomaz, que me levaram a primeira vez aos Cinta Larga, e Joãozinho e Inês, com quem convivi convivendo nas aldeias. Aprendi com eles mais do que por mim. Ao povo Cinta Larga, pãzérey: destemidos, hospitaleiros - se ninguém aceitou o papel de informante, porque não caberia entre amigos. E Paulo Kabân e Taterezinho, etnógrafos competentes. E Bubura Suruí, que fez o possível nas traduções dos cantos. E João, Parakida, Naki, Sabá, Manoel, Eduardo, Capitão, Roberto, Manezinho, Nasek, Pio, Japonês, Baiano, Pra-Frente, Gabriel, Pedrão, Chico, mulheres, crianças e as velhas senhoras - com eles conheci a floresta, e atravessei fronteiras. Também aos moradores de Aripuanã, novos e antigos, que deram guarida: Durval, Gonçalino e Sueli, Lira, finado Arthur, João Dourado, Salomé, Paraibão, Mauro e Tina. A Manuela, orientadora, que apostou. E Nádia, entre outras coisas, também por isso. As colegas Lucia e Mara, simpatias que aplainaram minha aculturação na Usp. A Lux e demais professores da Antropologia. Em particular, Aracy, Renate e José Guilherme, que me argüiram no exame de qualificação e, gentis em suas sugestões e críticas, animaram-me a prosseguir. Ainda em São Paulo, João e Júlio, fundamentais: a casa, as ruas, as noites e toda aquela conversa a mais. Ao grande amigo Márcio, por seu incansável estímulo antropológico. Gílio, com quem conversei sobre as diferenças Zoró. E Priscilla, sobre a música dos Cinta Larga. Antônio Carlos e Rinaldo, aos quais falei das dificuldades da pesquisa, e assim desfizeram meus temores. E Marco Antônio e Bruna, se não pude debater meu trabalho, o convite para fazê-lo afinal deslanchou esta dissertação. Calorosamente, Bethinha e Jussara, documentalistas preciosas do Museu do Índio. E, ainda aí, Carlinhos, atencioso nas buscas bibliográficas. E Marcão, sócio das tardes de pesquisa. A Mirthes, pela língua francesa. Cnpq, Capes e Fapesp, com as bolsas estudei, pesquisei e vivi. Obrigado. Aos companheiros da Opan, apoio funda- mental. E a Rosa, Ivo, Sandrinha, Ivar, Thélia e Vanda que, compartilhando o trabalho na Coordenação, compartilharam este trabalho de várias maneiras. Paula e Taiana, que suportaram os piores dias. E sempre, Vera, Mário, Margareth e Márcia, Ivone, Regina, Sérgio e Marcus e todos meus sobrinhos. RESUMO O foco da dissertação é o ritual no qual os Cinta Larga, povo de língua Tupi-Mondé que habita o noroeste de Mato Grosso e sudeste de Rondônia, dançam, cantam, bebem e, ao fim, sacrificam uma vítima animal. Apresenta-se uma descrição extensa das etapas do ritual, e procura-se decifrar o código simbólico que aciona, recorrendo ao contexto etnográfico, mitológico e escatológico. Para isto, a parte inicial do trabalho traz dados sobre a história e a sociedade Cinta Larga, indicando as principais questões. Este ritual ou festa é o evento social mais significativo nesta sociedade, o único capaz de mobilizar um grande contingente de pessoas e também de recursos. Neste sentido, o ritual revela-se um tema privilegiado para compreender a sociedade Cinta Larga. O método aqui assumido toma o ritual enquanto um instante privilegiado no continuum da vida social, que se distingue pela dramatização de temas e questões fundamentais para a sociedade. Os dados para esta dissertação provêm de inúmeros períodos de campo, distribuídos entre os anos de 1980 e 1988, e pesquisas bibliográficas exaustivas. ÍNDICE I - PRELIMINARES 1. Objetivos ................................ 1 2. A trajetória da pesquisa ................. 5 3. Nota ortográfica ......................... 15 II - A HISTÓRIA E SEUS ATORES 1. Os povos Tupi-Mondé ...................... 17 2. Demografia, formas e classificações ...... 31 3. O começo da história: guerras e migrações 50 4. A pacificação: uma outra guerra .......... 67 Notas .................................... 91 III - OS RITMOS DA SOCIEDADE 1. Nomes, parentes e pessoas ................ 97 2. A aliança mesquinha ...................... 108 3. Ciclos, artes e alimentos ................ 124 Notas .................................... 154 IV - A FESTA: TEXTO E CONTEXTO RITUAL 1. Observações e modelo ..................... 157 2. Visitas e cumprimentos ................... 185 3. O convite: condições e recíprocas ........ 191 4. O anfitrião e os convidados .............. 203 5. Chicha, danças e cantos .................. 211 6. Comida, pedidos e etiqueta ............... 230 7. Pequenas comédias ........................ 240 8. A vingança: o anfitrião transformado ..... 248 9. O sacrifício: a vítima e as flechas ...... 257 10. O banquete: os inimigos devorados ....... 272 Notas .................................... 281 V - FRONTEIRAS E PASSAGENS: RITUAL E SOCIEDADE 1. Homens, animais e inimigos ............... 285 2. A contradição canibal .................... 299 3. Somas e totais ........................... 313 BIBLIOGRAFIA ..................................... 323 APÊNDICES 1. Alguns cantos ............................ 341 2. Mitos e outras narrativas ................ 347 3. Fotografias .............................. 363 DIAGRAMAS. QUADROS E MAPAS Carta etnográfica de Rondônia (Roquette-Pinto) xii Mapa da localização das etnias citadas ....... 16 Mapa das áreas indígenas .................... 36 Áreas indígenas e população ................. 37 Relações matrimoniais e divisões patrilineares 46 Mapa de localização das aldeias (J.v.Puttkamer) 86 Terminologia de parentesco: Ego masculino ... 104 Terminologia de parentesco: Ego feminino .... 105 Modelo avuncular ............................ 113 Terminologia da afinidade ................... 120 Ciclo anual de atividades ................... 126 Espécies animais e resguardo alimentar ...... 134 Festas e estações ........................... 198 “Eu conseguia inventar homens na minha cabeça, pois era um deles; mas, as mulheres era quase impossível escrever sobre elas sem as conhecer de fato. Assim, eu as pesquisava intensamente, e sempre descobria seres humanos lá dentro. Deixava a escrita de lado. A escrita representava muito menos que o episódio vivido em si, até que terminasse. A escrita era apenas o resíduo.” Charles Bukowski 1 I - PRELIMINARES “Método singular: trata-se de aprender a ver o que é nosso como se fôssemos estrangeiros, e como se fosse nosso o que é estrangeiro. E não podemos sequer fiar- nos em nossa visão de despatriados: a própria vontade de partir tem seus motivos pessoais, podendo alterar o testemunho. Se quisermos ser verdadeiros, deveremos dizer também esses motivos, não porque a etnologia seja literatura, mas porque, ao contrário, não deixa de ser incerta a menos que o homem que fala deixe de cobrir-se com uma máscara.” M.Merleau-Ponty (1980 [1960]) 1. Objetivos O foco da dissertação é o ritual no qual os Cinta Larga, povo de língua Tupi-Mondé que habita o noroeste de Mato Grosso e sudeste de Rondônia, dançam, cantam, bebem e, ao fim, sacrificam uma vítima animal. E pensar o ritual é pensar a sociedade, uma vez que a “festa”, como traduzem, se impõe como fato social total, de acordo com a expressão consagrada de Mauss, seja por situar-se na cadeia sintagmática das relações e acontecimentos centrais para os Cinta Larga, seja por oferecer um modelo para a vida social. Ao mesmo tempo, trata-se de um registro etnográfico de uma sociedade ainda pouco estudada (o que se aplica igualmente aos Tupi-Mondé em geral). Concretamente, apresento uma descrição extensa do ritual, sistematizando observações e informações, e procuro decifrar o código simbólico que aciona. Como para isso é 2 necessário colocar os signos em relação no seu contexto etnográfico, para fazê-los significar, a parte inicial do trabalho traz dados sobre a história e a sociedade Cinta Larga. Ainda que sirvam para indicar as principais questões que aí surgem, o objetivo é antes fornecer um quadro descritivo ao qual a interpretação do ritual vai recorrer. E como exercício, no capítulo final trato dos temas do ritual nos contextos mitológico e escatológico, tentando daí alcançar outros níveis de compreensão. Embora de maneira secundária, este esboço da vida social Cinta Larga evidenciará certas dificuldades que a análise etnológica vem enfrentando para descrever as sociedades das terras baixas sul-americanas, qual seja o baixo rendimento de princípios sociológicos, políticos ou econômicos (Kaplan 1977; Seeger et alii 1979). Sendo assim, é cada vez mais evidente a necessidade de rever o aparato conceitual da antropologia e, em termos mais apropriados, adotar uma posição estratégica para abordar estas sociedades. No
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