OS MACONDE EM MAPUTO: INTERAÇÕES HISTÓRICAS ENTRE ARTE, CULTURA E POLÍTICA LIA DIAS LARANJEIRA* Introdução – Os maconde de Moçambique O presente trabalho, fruto de uma pesquisa de doutorado em andamento, tem como foco a história do grupo étnico dos maconde de Moçambique (África Austral) no processo de migração para a cidade de Maputo, capital do país, ocorrido no pós-independência, e na produção de arte e cultura do referido grupo na capital. Na investigação mais ampla, na qual este trabalho se insere, há uma preocupação em compreender a ressonância dos movimentos históricos na constituição de uma identidade maconde e a maneira pela qual ela se expressa em manifestações artísticas e culturais, e se extrapola para a constituição de uma identidade nacional. Nesse trabalho apresento alguns aspectos históricos relacionados aos maconde, parte do cenário da produção de arte e cultura do grupo em Maputo, e algumas reflexões preliminares, tendo como base uma primeira etapa da pesquisa de campo realizada em Moçambique entre agosto de 2012 e janeiro de 2013, mais especificamente, no Arquivo Histórico de Moçambique, na comunidade maconde em Maputo e no ateliê da ceramista Reinata Sadimba. Os maconde vivem principalmente nas províncias de Mtwara e Lindi, no sudeste da Tanzânia, e na província de Cabo Delgado, no nordeste de Moçambique, separados pelo rio Rovuma. Em Cabo Delgado, o referido grupo vive, sobretudo, nas zonas altas, nos planaltos de Mueda e de Macomia. Os maconde são citados em diversas publicações sobre os povos de Moçambique, seus hábitos e costumes, produzidos por funcionários do regime colonial ou por antropólogos contratados pelo regime na primeira metade do século XX. Esse é o caso do antropólogo cultural Jorge Dias (1964), responsável por uma das mais importantes etnografias elaboradas em Moçambique no período colonial, cujos protagonistas são os maconde de Cabo Delgado 1. Apesar da riqueza de detalhes quanto aos aspectos culturais, não há relatos densos sobre a origem do grupo. De fato, a partir de uma revisão literária, foi possível constatar uma significativa divergência dos autores ao tratar do assunto. Enquanto António Augusto Pereira Cabral (1925) afirma, categoricamente, que os maconde correspondem a um sub-grupo dos macua, Oliveira Boléo (1951) relativiza tal subdivisão, mas reforça a origem comum entre os dois grupos. António Rita-Ferreira (1982, p. 58), por sua vez, tendo como base a etnografia de Jorge Dias (1964), destaca as proximidades culturais entre os maconde e os chewa, grupo étnico presente em Moçambique, Malawi, Zâmbia, Congo e Lunda. Segundo a tradição oral, os maconde mais velhos referem-se à região do sul do Lago Niassa, onde vivem os chewa, como sua “pátria primitiva”. Rita-Ferreira (idem ) levanta a hipótese de que o deslocamento dos maconde para as zonas planálticas de Cabo Delgado tenha sido motivada pelas “atividades dos caçadores de escravos árabes e afro-islâmicos e, posteriormente, pelas implacáveis incursões dos guerreiros de origem heterogênea comandados pelos Angonis Guangara e Maviti”. Segundo o mesmo autor, “a documentação portuguesa permite garantir que, no início do século XVIII, os maconde se espalhavam até ao litoral e se encontravam agrupados em unidades políticas mais poderosas” (idem ). A tradição de resistência marcou a história dos maconde de Moçambique desde os séculos XVIII e XIX. De acordo com Pélissier (1994, p. 332-33), além dos frequentes ataques às feitorias portuguesas em Cabo Delgado, os macondes fortificaram-se no Planalto de Mueda com o objetivo de escapar dos negreiros. Segundo Pélissier, essa atitude se revestia de uma “sombria xenofobia que os levava a rejeitar tanto o Islão como os Europeus”, apesar da presença do grupo na costa para o comércio de cera, mel, goma copal e borracha. A resistência dos macondes *Universidade de São Paulo, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social, bolsista da FAPESP. 1 A etnografia “Os macondes de Moçambique” foi produzida em parceria com Margot Dias e Manuel Veigas Guerreiro entre as décadas de 50 e 60 e publicada em cinco volumes. expressava-se também na hostilidade em relação a grupos vizinhos menos numerosos, como os angunes, os macuas e os ajauas (PÉLISSIER, 1994, p. 332-33; DIAS, 1964, p. 22-26; DIAS, 1998, p. 17). Entre o início do século XIX e final do século XX essa tradição permaneceu. O difícil acesso ao planalto, considerado uma região remota, sem interesses econômicos e com uma população branca rarefeita, e os enfretamentos acirrados entre os portugueses e a população local adiaram a dominação colonial na região até 1929 2. A partir de então, ostensivas missões militares foram realizadas na região, contando, posteriormente, com o apoio do quartel de Mueda, onde diversos presos políticos foram torturados e mortos, especialmente entre 1963 e 1974 (IGLÉSIAS, 2008). Historicamente, os maconde tiveram uma participação ativa nos movimentos de resistência ao colonialismo — desde sua implantação em finais do século XIX — e uma presença significativa na Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) no contexto das lutas pela descolonização. Na década de 1950, o trabalho forçado e os altos impostos aplicados no Planalto de Mueda intensificaram o processo migratório dos macondes de Moçambique para o Tanganica 3, iniciado por volta de 1920 (RIFIOTIS, 1994 a, p. 156; JOHANSEN, 2000, p. 255). A partir da oposição dos macondes ao regime colonial surgiram, na década de 1950, associações que agrupavam trabalhadores migrantes e refugiados de Moçambique, abrigados nos territórios do Tanganica e do Zanzibar. Estas organizações reivindicavam a independência da região maconde, a qual abrangia parte do norte de Moçambique e do sul do Tanganica, então colônia do Reino Unido (CABAÇO, 2009, p. 280). O alargamento do movimento protagonizado pelos macondes e a mudança do foco reivindicatório de independência do grupo para a independência de Moçambique ocorreu a partir 2 Entre 1894 e 1929, o estado português concedeu a administração de Cabo Delgado e do Niassa a uma Companhia privada de capital majoritariamente britânico, que por prudência não fez investidas na região dos macondes até pouco antes da I Guerra Mundial (PÉLISSIER, 1994, p. 328, 333). 3 Tanganica foi uma colônia alemã de 1880 até 1919, quando se tornou uma colônia britânica. No ano de 1964 foi unificada com o Zanzibar para a formação da República Unida da Tanzânia. da junção entre a União Nacional Africana de Moçambique (MANU) (1959) — formada, sobretudo, por exilados no Tanganica —, a União Nacional Democrática de Moçambique (UDENAMO) (1960) e a União Africana de Moçambique Independente (UNAMI) (1960). A referida fusão resultou, em 1962, na fundação da FRELIMO e a partir de então, o Planalto de Mueda tornou-se “o santuário da libertação nacional” 4 (CABAÇO, 2009, p. 265; HERNANDEZ, 2005, p. 605-606). No pós-independência, a relação entre os macondes e essa agremiação política impulsionou o processo migratório de grupos macondes em direção à Maputo e aos distritos vizinhos. Nesse novo contexto, a produção artística e cultural dos macondes, destacada por estudiosos desde o período colonial, imbricou-se no processo de construção da nacionalidade moçambicana nascida das guerras de independência e das ações e ideologias da FRELIMO. 1. A construção de uma identidade moçambicana: os maconde na produção de arte e cultura A nova identidade moçambicana, defendida pela FRELIMO, pautava-se na construção do “homem novo” a partir de uma realidade “modernizadora”, na qual as principais referências tradicionais, como ritos, símbolos, linhagem, entre outras, seriam substituídas pelos valores nacionalistas, pelos rituais militares, pelos símbolos patrióticos etc. Segundo Cabaço (2009), o contexto da “realidade modernizadora”, assim como o do “homem novo”, diz respeito à “modernidade militar”, com sua ciência, metodologia e seus equipamentos sofisticados que exigiam, para o seu funcionamento e manutenção, um conhecimento técnico e científico muitas vezes inacessível aos camponeses (CABAÇO, 2009, p. 304-11). Honwana argumenta que para a FRELIMO, a tradição era estática e representava a antimudança ou a negação da modernidade (2005, p. 183). Entretanto, deve-se salientar que a prática social no processo de libertação de Moçambique foi fortemente marcada por uma postura ambígua e, 4 O Planalto de Macomia, mais especificamente o Posto Administrativo de Chai, onde a maior parte da população é maconde, foi escolhido como lugar estratégico para o início da luta armada pela descolonização de Moçambique em 1964 (MONDLANE, 1995). muitas vezes, contraditória em relação ao discurso de oposição aos valores tradicionais. Do ponto de vista institucional, no período pós-independência, também houve grande dose de contradição nas práticas políticas, por exemplo, na promoção de expressões culturais como determinadas danças, claramente vinculadas às práticas espirituais (HONWANA, 2005, p. 179). Este parece ser o caso da dança mapiko, na qual se usa uma máscara de mesmo nome 5, que em tempos remotos era executada apenas nos rituais religiosos fúnebres e de iniciação masculina. No pós-independência a dança mapiko tornou-se um dos ícones das manifestações culturais moçambicanas, assim como da resistência ao domínio colonial e parte integrante das comemorações da independência nacional e de festivais de dança e cultura, como o Festival Nacional de Cultura Moçambicana. Macamo (1996, p. 357) explicita que na política da FRELIMO se incluía o encorajamento às manifestações culturais como canto, dança etc;
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