Eu Nunca Quis Ser Escritor”

Eu Nunca Quis Ser Escritor”

2 A Semana - Sexta-Feira, 11 de Fev. 2005 K R I O L I D A D I “Eu nunca quis ser escritor” Não aceita ser coroado melhor escritor cabo-verdiano da actualidade, mas Germano Almeida é de facto a principal referência da literatura cabo-verdiana de agora. Com best-sellers traduzidos em várias línguas, destacando-se O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo, o autor desvenda nesta entrevista como descobriu o prazer da escrita, fala dos livros que já escreveu dos que lhe falta escrever, faz o diagnóstico da literatura, política e sociedade cabo-verdianas e traça o seu futuro. Sempre com muito humor, pois, como bom cabo-verdiano, ri-se das suas próprias desgraças. ENTREVISTA POR: TERESA SOFIA FORTES A Semana - Aceita o título de melhor tórias que conto no livro “A Ilha Fantástica” eram histórias que escritor cabo-verdiano da actualidade? conheci desde miúdo, mas dizia para mim mesmo que se eu as Germano Almeida - Se me disserem escrevesse, alguém me acharia louco. Mas depois li Cem anos de que sou o mais grande escritor cabo-ver- Solidão, de Garcia Marquez, decidi que iria também escrever so- diano da actualidade, eu aceito, porque bre a minha ilha, Boa Vista, porque as personagens que Garcia de facto não há em Cabo Verde um es- Marquez descreve nos seus livros não são diferentes daquelas da critor mais alto do que eu. Diria que há Ilha Fantástica, e ele ganhou o Prémio Nobel da Literatura. Por- coisas na minha maneira de escrever que tanto, vou escrever também sobre a Boa Vista exactamente para as pessoas gostam, assim como há es- dar a conhecer esta realidade da minha ilha. critores que leio um pouco mais do - Enfrentou dificuldades para lançar um livro, ou teve que outros e do que a mim próprio, sorte na primeira tentativa? aliás, não leio as minhas obras. Tam- - Eu não tive as grandes dores que os autores normalmente bém há escritores que são mais inter- têm. Mas também não passaria essas dores, pela simples razão venientes do que outros. Não acredi- de que eu nunca quis ser escritor. Desde menino, sempre quis ser Literatura Literatura to que seja possível classificar um es- advogado. Ser escritor fazia parte de mim, mas nunca pensei critor como o melhor. Portanto, é evi- em publicar. Vim a publicar por acaso quando fundámos a re- dente que eu rejeito esta definição. vista Ponto & Vírgula e por uma razão muito simples: eu ti- - Como nasceu em sua vida a nha uma série de coisas escritas, sobretudo sobre a ilha da Boa necessidade de escrever? Come- Vista e dizia ao pessoal - ao Leão Lopes e Rui Figueiredo - que çou cedo ou a escrita é uma expe- íamos publicar a revista e que caso faltasse material eu tinha riência da vida adulta? algumas coisas. E, como ao contrário do que esperávamos, não - Comecei a escrever desde os houve material para publicar, entreguei ao Leão os meus con- meus 16 anos e pelas razões mais tos sobre a Boa Vista. Ele leu, gostou muito e disse que íamos diversas. Sempre achei que a es- publicar essas histórias. Publicamos, e de facto, as pessoas gos- crita era uma forma de desabafar taram. Tudo isso se transformou numa bola de neve. Depois e, de facto, comecei a escrever para escrevi O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Ara- me libertar dos meus medos. Uma újo. A Ana Cordeiro leu e me disse que tínhamos de publicar o vez na Boa Vista morreram algu- livro. Na altura, existia o Instituto do Livro e do Disco, que mas pessoas no mar, eu ti- passava anos para publicar alguma coisa. Decidimos que o nha medo delas e escrevi melhor seria fundar uma editora, a Ilhéu Editora, com Filome- uma história imaginando na Figueiredo, Ana Cordeiro, Leão Lopes, Carlos Veiga e Gra- a forma como elas teriam ça Morais, uma pintora portuguesa que estava aqui em Cabo morrido, de modo a liber- Verde e que fez questão de entrar na editora. Quando publicá- tar-me do medo que tinha mos O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo dessa gente. Não me dedi- mandámos dois ou três livros para ela, lá em Portugal. Não co a falar muito com as pessoas conheço muito bem a história, mas creio que Graça Morais deu a nível de confidências, uso muito mais um exemplar ao José Saramago, que leu, gostou e levou o livro o papel para confidenciar e também à editora Caminho. A Caminho contactou a Ilhéu Editora, di- para transformar… zendo que estavam interessados em publicar o livro. E, de facto, - Existem grandes diferenças entre publicaram. Fui então a Portugal, conhecemo-nos, ficámos ami- as suas primeiras experiências literári- gos e neste momento sou considerado um escritor da Caminho, as e os livros que veio a publicar mais quando na verdade sou um escritor da Ilhéu Editora. tarde? - O que despertou em vós, nos anos 80, o desejo de criar - Mudou algo na minha maneira de escre- uma revista como Ponto & Vírgula? ver a partir de certas leituras. Eça de Queirós, - O Leão Lopes tinha na altura o Alternativa, um espaço Jorge Amado posteriormente Garcia Marquéz onde nos reuníamos ao fim da tarde para tomar um chá, beber foram determinantes. Eu não aceito nem rejeito pontche, comer cuscuz com mel e para conversar. Um dia, numa influências literárias. Eu nunca escrevi como al- conversa com o Rui e o Leão, decidimos fundar uma revista. O guém. Nunca disse: vou escrever como Garcia Leão Lopes é que veio com a ideia do nome: Ponto & Vírgula. Marquez. Mas acho que os escritores mais pró- Na altura só existia a revista Raízes, com características dife- ximos de nós dão-nos a libertação. Quando li rentes e mais virada para a investigação. Pensámos então criar Garcia Marquez, a impressão que tive foi esta: uma coisa mais fresca. Além disso, não se publicava nada em afinal, nada é proibido a nível da escrita. As his- Cabo Verde desde a independência, daí pensávamos que as A Semana - Sexta-Feira, 11 de Fev. 2005 3 K R I O L I D A D I pessoas estariam com as gavetas cheias. Agendámos uma data prio sou personagem dos meus livros. Uma vez uma pessoa, qual é o seu nome na vida real. Um homem que julguei, uma para a estreia, mas não tínhamos material. Assim, na falta de cujo nome não vou mencionar, surpreendeu-me, porque eu não vez que fui o procurador da República, o acusador do processo outro material, publicámos os meus contos. Curiosamente, fo- dava nada por ele em termos intelectuais, com uma observação dele, mas que eu não compreendi. Eu também pensava que esse ram os escritores mais da geração da Claridade - Baltasar Lo- curiosa. Leu O Meu Poeta e disse-me que eu estava em todos género de história já não acontecia em Cabo Verde. Passaram pes, Aurélio Gonçalves, Félix Monteiro, Manuel Lopes - que os personagens, mesmo os femininos. E ele tem razão. Eu sei 30 anos e espero que já não aconteçam histórias dessas no nos- mais colaboraram connosco. Entre os mais jovens, tínhamos o que quando lanço um livro acontece quase uma brincadeira em so país. Se compararmos o Cabo Verde de 1975 com o de ago- Arménio Vieira e o José Vicente Lopes. que as pessoas tentam descobrir quem são os personagens dos ra, temos razões para nos sentirmos orgulhosos daquilo que - Então, como conseguiram levar adiante a Ponto & Vír- meus livros. O interessante é que escolhem sempre mal. Eu fizemos. Na Boa Vista seria impensável um irmão bater num gula? tenho um amigo que gosta de um dos personagens de O Meu outro com pau quanto mais com uma faca, quanto mais matar. - Fomos empurrando, pedindo, solicitando… E depois ha- Poeta e que diz que é ele. Realmente ele está no livro, mas não Depois do julgamento, ainda fiquei em Santiago, conheci me- via essa coisa maravilhosa que é a colaboração do povo de São naquela personagem que ele pensa. lhor as pessoas e entendi que aquele era um comportamento Vicente. Os sócios pagavam uma quota mensal de 100 escudos - Essa sociedade cabo-verdiana que descreve nos seus normal na comunidade de onde provinha o acusado. Temos que para de dois em dois meses ter uma revista que, de facto, pode- livros é a verdadeira sociedade destas ilhas ou tem muito reconhecer que temos sub-culturas em Cabo Verde. Desde a riam comprar por 50. No fundo, os privados compravam a re- da sua imaginação? independência e têm-se diluído e estou convencido de que vai vista por 50 escudos quando os sócios, que deveriam benefici- - É como eu vejo e caricaturo a sociedade cabo-verdiana. ser uma só, mas ainda não está. Vim a compreender que esse ar de desconto, compravam a revista por 200 escudos. Tenho consciência de que quando escrevo sobre a Boa Vista o indivíduo de Santiago tinha sido vítima da sua realidade. Ele - O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo meu olhar é particular, diferente do olhar que tenho de São não poderia fazer outra coisa senão aquilo que fez, caso contrá- é um best-seller, com várias edições. Surpreendeu-o a adesão Vicente. Tenho um grande carinho por São Vicente, gosto de rio passaria a ser um homem desprezado. De maneira que eu da sociedade cabo-verdiana a esse seu primeiro livro? viver nesta ilha, mas vejo São Vicente de fora, sempre. Em disse: tenho que me reabilitar escrevendo este livro. Já tinha a - Seja o que for que eu diga agora será à distância.

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