A Mulher Na Capoeira Maria José Somerlate Barbosa

A Mulher Na Capoeira Maria José Somerlate Barbosa

A Mulher Na Capoeira Maria José Somerlate Barbosa Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies, Volume 9, 2005, pp. 9-28 (Article) Published by University of Arizona For additional information about this article http://muse.jhu.edu/journals/hcs/summary/v009/9.barbosa.html Access Provided by CAPES-Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de NÃ-vel Superior at 08/26/11 9:02PM GMT A Mulher Ε α Capoeira Maria José Somerfae Bar- Ñas últimas décadas, a divulgacáo da capoeira no bosa éprofessera de litera- mundo tem sido rápida e constante e o número de tura e cultura brasileiras publicacóes sobre o assunto tem se multiplicado na Universidade de Iowa. a olhos vistos. No entanto, as referencias a mulheres capo- Publicou os seguintes livres: Clarice Lispector: Spinning eiristas sao esparsas e de pouco vulto e nao há uma análise the Webs of Passion (1996), sistemática da sua participaçâo ativa nos cÃ-rculos de capoeira. Mutacóes Falseantes / Spa- Num esforço para diminuir esse vacuo, este estudo traça a rkling Mutations (1997) trajetória da mulher na capoeira, enfocando as mudanças e Clarice Lispector: Des/ ocorridas nos últimos anos e os fatores que lhe propiciaram fiando as Teias da Paixâo uma participaçâo mais significativa ñas rodas, academias e (2001). Organizou Passo e agremiacóes. Estabelece também uma visáo panorámica das Compasso: Nos Ritmos do atividades e contribuicóes femininas para a divulgacáo da Envelhecer (2003) e tem capoeira, no Brasil e nos Estados Unidos, sem perder de vista publicado extensivamente em coletâneas e revistas os obstáculos que a mulher ainda enfrenta. especializadas no Brasil e nos Estados Unidos. Sua A Presença da Mulher na Capoeira1 pesquisa atualse concentra na cultura e na literatura E difÃ-cil precisar a influencia que a mulher exerceu no afro-brasileiras. desenvolvimento da capoeira como jogo/luta/dança/ritual ou traçar com exatidáo o histórico da sua participaçâo ativa porque a capoeira era de tradiçao ágrafa e de dominio quase que exclusivamente masculino. Alguns estudos levantam a hipótese de que a coreografÃ-a dos movimentos da capoeira possa ter se originado numa dança de iniciacáo feminina. Luiz da Cámara Cascudo foi o primeiro a estabelecer uma conexáo entre essa dança angolana e a capoeira2: Entre os Mucope do sul de Angola, há uma dança da zebra, N'golo, que ocorre durante a Efundula, festa da puberdade das raparigas, quando essas deixam de Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies Volume 9, 2005 10 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies ser muficuenas, meninas, e passam reservados aos homens que se destacaram à condiçâo de mulheres, aptas a na capoeira na mesma época. Os esparsos casamento e à procriaçâo. comentarios publicados sobre as atividades O rapaz vencedor no N'golo dessas mulheres referem-se geralmente a tem o direito de escolher a esposa seu comportamento*"masculino" e/ou a sua entre as novas iniciadas e sem pagar o dote esponsalicio. O N'golo é a destreza, como alguns dos apelidos revelam capoeira. {Folclore 184-85) (Maria Hörnern, Julia Fogareira, Maria Pé no Mato). Parece importante também ressaltar que a documentaçâo escrita é Apesar de significante, essa associaçao entre extremamente escassa para que se possa a origem da capoeira e um ritual de iniciaçâo traçar um perfil e/ou avallar com precisáo feminino mostra apenas que, como a N'golo o desempenho feminino no ámbito da estava restrita aos rapazes, as mulheres ti- capoeira nas décadas anteriores a 1970. Seria nham uma participaçâo indireta. arriscado e improprio tanto simplificar a Carlos Eugenio LÃ-bano Soares afirma contribuicáo feminina, reduzindo-a a urnas que até o século XX, "as mulheres que têm poucas capoeiristas, como assegurar que um papel fundamental na cultura escrava urbana número significativo de mulheres tenha estavam, de acordó com todos os indicios, participado ativamente das rodas ou do jogo banidas do universo da capoeira, pelo menos antes dos anos 70, pois nao há suficiente indiretamente" {A capoeira 121). Mas, o documentaçâo escrita para que se estabeleça proprio autor encontrou uma noticia sobre qualquer um dos dois argumentos. a repressáo aos capoeiristas que menciona Embora o "impacto" feminino no duas mulheres: "Isabel e Ana passam a jogo da capoeira, anterior à década de 70, vida a brigar; e para isso desafiam quem seja um aspecto de difÃ-cil comprovacáo, as lhes dirige qualquer palavra desagradável e, mulheres sempre estiveram presentes nas quando empenham qualquer luta, mostram rodas que se formavam nas ruas de Salvador ser peritas na capoeiragem" (A negregada e do Rio de Janeiro. Em City of Women, 303).3 Trata-se, entretanto, ao que tudo estudo em que descreve a mulher como indica, de casos isolados e de pouco vulto, elemento catalisador da cultura de Salvador, principalmente quando comparados ao Ruth Lande menciona que geralmente as número de capoeiristas do sexo masculino rodas de capoeira se formavam em lugares que se destacaram na época. onde havia uma "baiana" vendendo acarajé, Alguns estudiosos e pesquisadores doces ou outras comidas. No Rio de da historia da capoeira no século XX Janeiro, as "quitandeiras"—especialmente costumam mencionar o nome de sete as que se localizavam no Largo da Sé— mulheres que ficaram famosas antes da desempenharam um papel semelhante incursáo feminina sistemática nos cÃ-rculos ao das "baianas" (cf. Soares, A capoeira de capoeira: Maria Hörnern, Julia Fogareira, 175). As cantigas de capoeira, de dominio Maria Cachoeira, Maria Pernambucana, público, confirmam a presença da mulher Maria Pé no Mato, OdÃ-lia e Palmeirona nas proximidades das rodas, como se pode (Bola Sete 27; Araújo, "Sou" 133). No verificar no seguinte corrido: "Dona Maria, entanto, mesmo que algumas capoeiristas o que vende ai? / E coco e pipoca que é do tenham se tornado figuras lendárias, Brasil. /Coro: Dona Maria, o que vende ai?" nao gozam do prestigio e da admiraçâo (Citado em Bola Sete 127). Maria José Somerlate Barbosa 11 Para impor ordem e autoridade, visibilidade nas rodas, nos grupos ou nas esquadrôes atuavam contra os grupos academias revelam que, com raras excecóes, de capoeira e os candomblés, e a policÃ-a ela era vista quase exclusivamente como registrava as prisóes dos capoeiristas e uma peca de apoio na estrutura social do descrevia suas atividades. Nesse contexto jogo/luta/dança/ritual ou como participante repressive os capoeiristas contavam com da resistencia cultural afro-brasileira. o apoio de outros grupos marginalizados Tais argumentos nao sao suficientes para como as prostitutas e trabalhadores de rua, determinar ou explicar uma participaçâo que se uniam para fugir da perseguiçâo da "ativa" da mulher, enquanto capoeirista, ou policÃ-a (Soares, A negregada 336). Segundo estabelecer as razóes que redimensionaram a Waldeloir Regó, na Bahia, "as mulheres sua posicáo e o seu lugar na capoeira. de saia, como eram chamadas as negras Enquanto os homens se bénéficiant africanas ou descendentes" tornavam-se do fato de que a capoeira tem uma longa cúmplices e aliadas dos capoeiristas, pois tradiçâo masculina e de mestres que servem além de avisar os homens da aproximacáo de modelos para as geracóes de rapazes e da policÃ-a, escondiam armas perigosas meninos, só nas últimas décadas, as mulheres (geralmente uma navalha ou uma faca de começaram a ganhar sistemáticamente tal ticum) que retiravam da cabeça, do cábelo projecáo e apoio. Mesmo nao se podendo e do torso e entregavam aos capoeiristas no precisar com acuidade a participaçâo tangÃ-vel exato momento em que eles délas precisavam da mulher na trajetória histórica do jogo, é para atacar ou se defender (297). inegável que a partir dos anos 70, ela tem Nas décadas posteriores ao estabeleci- atuado de forma muito mais ativa e, desde mento das academias de capoeira (meados os anos 80, a sua presença nas rodas, nos dos anos 30), nota-se que a presença da grupos e nas academias se faz cada vez mais mulher nos cÃ-rculos da capoeira se manifesta numerosa. E o que explica Rosângela Costa também em forma de um apoio logÃ-stico ou Araújo, Contra-Mestrejanja, co-fundadora serviçal. Desde que a capoeira começou a do Instituto Nzinga de Estudos da Capoeira sair das ruas e se estabeleceu em academias, Angola e Tradicóes Educativas Banto no é muito comum que a aluna capoeirista seja Brasil (INCAB), dirigente da Orquestra a secretaria e/ou coordenadora do grupo Nzinga de Berimbaus de Sao Paulo e a que ela está afiliada. Por isso, Frederico diretora da revista Toques de Angola: Abreu considera que "se a mulher nao trouxe uma contribuicáo para a 'forma' de jogar A mulher deixou de ser vista como capoeira, trouxe a organizacáo, cuidando de "novidade" nos grupos, academias assuntos burocráticos" (entrevista pessoal, e rodas de capoeira. [...] Novidade Salvador, 03 de agosto de 2002). mesmo é o fato da sua atual represen- tacáo numérica e qualitativa; ou seja, AÃ-nda que haja referencias à mulher o fato délas representarem hoje cerca nas cantigas, que ela atue como elemento de 40% dos praticantes de capoeira, catalisador da roda, ou que seja parte de um numa distribuicáo mundial, indica todo social na capacidade de organizadora que tanto a capoeira, no geral, quan- ou secretaria, este tipo de participaçâo indica to os grupos, academias, mestres, apenas que a sua "presença" nos cÃ-rculos da contra-mestres, professores, etc., no capoeira era constante.

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