Os Nomes Próprios nas Sociedades indígenas das Terras Baixas da América do Sui Marco Antonio Gonçalves A sociologia da nominação não é um te­ do estudo da onomástica dentro das cosmo- ma novo na Etnologia sul-americana. De um logias indígenas sul-americanas. modo geral, as monografias sobre esta região Apresentamos, de forma sumária e es­ fazem referência ao emprego dos nomes quemática, alguns sistemas onomásticos en­ pessoais, mas um interesse específico sobre contrados na literatura etnográfica sobre as os sistemas de nominação é algo recente terras baixas (Tupinambá, Aché-Guaiaki, (Lopes da Silva, 1984; Petesch, 1984). Apapocuva-Guanani, Nandeva-Guarani, Ta- O fio condutor deste trabalho é a inter­ piraré, Sirionó, Araweté, Yanomami, Jívaro, ferência seminal feita por Viveiros de Castro Txicão, Apinayé, Krahó, Krikati, Suyá, Kaya­ em nota a seu trabalho sobre os Araweté pó, Xikrin, Bororo, Xavante, Tukano, Kain- (1986). No jogo das comparações entre a gang, Suruí, Xinguano, Matis, Marubo, Pi- onomástica Araweté e as de outras socieda­ rahã). Nesta empresa, correremos o risco de des indígenas, o autor esboça um sistema de empobrecer as interpretações destes siste­ transformações. De um lado, estariam os mas de nominação, uma vez que teremos de “sistemas canibais” ou exonímicos (Tupi- recortá-los com vistas a uma formalização. nambá, Tupi-Guarani, Txicão, Yanomami) Buscaremos examiná-los a partir do esque­ e, de outro, “os sistemas centrípetos” ou ma proposto por Viveiros de Castro (1986), “dialéticos” (sistemas Timbira; Kayapó, Tu­ que estabelece um continuum entre os siste­ cano). Nos “sistemas canibais”, os nomes mas de nominação designados canibais e vêm de fora: dos deuses, dos mortos, dos ini­ centrípetos. Os sistemas canibais trabalham migos, dos animais; são sistemas onde se re­ a partir de uma ênfase em: individualização, cebe, essencialmente, o nome dos outros. aquisição, renomeação, séries diacrônicas, “Sistemas centrípetos” são aqueles em que história social e pessoal, abertura, distintivi- “os nomes designam relações sociais, podem dades suplementares. Os sistemas centrípe­ definir grupos corporados com uma identi­ tos trabalham a partir da classificação, da dade coletiva” (idem, p. 384). Se nos siste­ conservação, da transmissão, dos conjuntos mas “canibais” a onomástica é mediatizada sincrônicos, da referência mitológica, da con­ pela metafísica e tem uma função individua- tinuidade de identidades complementares. lizadora, nos “dialéticos” ela é da ordem da Nossa apresentação dos sistemas ono­ sociedade, e exibe uma função classificatõria.1 másticos procurará marcar que ênfase 6 da­ Viveiros de Castro avança a questão quando da aos sistemas, se “exonímicos” ou “endoní- atribui certas particularidades a cada um dos ti­ micos” (Viveiros de Castro, 1987, p. 279). pos de sistema onomástico (idem, p. 388), con­ Iniciaremos pelos Tupinambá. tribuindo, assim, para realçar a importância Na sociedade Tupinambá havia os no­ BIB, Rio de Janeiro, n. 33,1.° Semestre de 1992, pp. 51-72 51 mes de infância e os nomes de adulto. Os no­concediam a um homem poderes suficientes mes de infância “os tiram [...] dos animais para que pudesse suportar normalmente e selvagens e tomam para si muitos, com uma resistir vantajosamente às forças negativas diferença' porém: após o nascimento é dadodesencadeadas pelo morto, sem precisar re­ um nome, que menino usa somente até que petir todas as provas a que se submetiam os se torne capaz de guerrear e mate inimigos. iniciados”. Então recebe tantos nomes quanto inimigos Em outro lugar, diz que o jovem Tupi­ tenha matado” (Staden, 1974, p. 169). nambá deve passar por certos ritos, entre Os nomes de infância são também bus­ eles a troca de nomes, para ingressar na vida cados entre os nomes dos antepassados, con­adulta. O nome, aqui, localiza o jovem na es­ forme Hans Stadenpode observar (idem, p. trutura social (idem, p. 201). Sobre o nome 170). Segundo Metraux (1979, p. 97), forma­ adquirido da vítima, Fernandes comenta: “O va-se um conselho para eleger um nome para a nome adquirido por intermédio do massacre criança. O nome escolhido deveria exprimir a ritual não provinha estritamente desta, em­ personalidade da criança, bem como identificarbora seja provável que o sacrificante captas­ qual dentre seus parentes já falecidos teria res­ se através da ação sacrificatória, uma parte suscitado. Em toda a bibliografia consultada, o dos poderes do sacrificado, inerentes à por­ que se encontra com mais ênfase é a forma ção destrutível de sua pessoa[...] é permitido de adquirir nomes via os inimigos: “A maior interpretar o nome como sendo o símbolo honra de um homem é capturar e matar carismático do benefício recebido de uma muitos inimigos, recebendo um novo nome entidade sobrenatural através da vítima por cada novo inimigo morto. Ter muitos (idem, p. 312). nomes significa ter matado muitos inimigos, Uma outra fonte sobre os Tupinambá o que consideram uma alta honra” (Staden, explicita que os nomes não podem ser ditos 1974, p. 172). senão no momento dos rituais: “[...] os cava­ Monteiro (1949, p. 409) chegou mesmo leiros nunca fazem menção dos seus nomes, a dizer que os Tupinambá só se casavam senão quando há festa de vinhos[...]” (Mon­ após adquirir nomes ligados à guerra e ao teiro, 1949, pp. 409-10). canibalismo. Disse ainda que, “[...jtomando Outro processo de receber nome dá-se novos nomes, conforme aos contrários que através do fiího do cativo (inimigo) com uma matam dos quais chegam a ter cento e mais mulher Tupinambá, como registrou Montei­ apelidos, e em os relatar são mui miúdos, ro: “[...jlhe dão (ao prisioneiro) por mulher porque em todos os vinhos, que é a suma filha daquele que o tomou ou uma parenta festa deste gentio, assim recontam o modo das mais chegadas; e a causa é pela honra com que os tais nomes alcançaram, como se que daquele casamento lhe nasce, porque aquela fora a primeira a tal façanha aconte­ tendo filhos do tapuia, neles hão de tomar os cera; e daqui vem não haver criança que não mesmos nomes, e com a mesma solenidade saiba os nomes que cada um alcançou, ma­ que no pai, porque cuidam estes bárbaros, tando os inimigos, e isto é o que cantam e que na criança não tem a mãe parte alguma, contam[...]” (pp. 409-10). e que não concorre para a geração, e assim Cardim registra a relação entre nomes e dizem que não serve mais que um saco; e guerra entre os Tupinambá: “De todas as por esta causa comem os filhos que foram honras e gostos da vida, nenhum é tamanho gerados dos contrários...” (idem, p. 411). para este gentio como matar e tomar nomes Examinando as descrições sobre a ono­ nas cabeças de seus contrários...” (Cardim, mástica Tupinambá, observamos que a ênfa­ 1939, pp. 159-60). Fernandes (1963, p. 283) se recai nos nomes adquiridos mediante o sa­ dá uma interpretação do papel dos nomes crifício da vítima. O nome parece, por um la­ entre estes fndios: “O primeiro sacrifício ri­ do, estar associado a uma qualidade que se tual e as primeiras cerimônias de renomação adquire. Por outro lado, parece produzir 52 uma diferença. Aqui, o nome é o emblema os índios dizem: “eu sou a alma de fulano”. da diferença. À cada morte de inimigos, os O canibalismo é o meio pelo qual alguém se indivíduos, através dos nomes adquiridos, torna a alma de um morto. Na concepção contrapõem-se aos inimigos. Os nomes de­ nativa, a alma é um princípio neutro, impes­ notam o homicídio e a guerra, evocam os soal, sem influência sobre o novo ser vivo eventos da morte e do canibalismo. que habitará, sendo indiferente ao seu sexo. Os Tupinambá privilegiam o acúmulo O caso Kimiragi é elucidativo: Dokogi estava de nomes. Se identificam a guerra e o cani­ grávida quandoTerygi morreu. Os Guaiaki balismo como produtores de sua sociedade ofereceram o pênis deTerygi a Dokogi para (Viveiros de Castro e Carneiro Cunha, 1987), que ela o consumisse no ritual antropofági- os nomes são símbolos, a concretização desta co. A intenção da doação do pênis àquela concepção mais geral nos indivíduos. A re­ mulher grávida era devida ao desejo de que cordação dos nomes durante os rituais faz seu filho nascesse homem. Entretanto, nas­ reviver o modo como foram adquiridos, co­ ceu uma menina — chamadaKimiragi — locando em operação os temas do canibalis­ que passa a ser identificada como a “alma de mo e da guerra. Terygi” (idem, pp. 338-9). Nesse caso, a alma A prática da “produção de inimigos” procede do morto canibalizado. Entre os através do casamento de uma mulher Tupi­ Guaiaki temos, assim, as seguintes equações nambá com um inimigo produz também no­ onomásticas: mes. Na sociedade Tupinambá, os nomes chegam do exterior (da morte dos inimigos). Estão sempre vinculados à prática guerreira miilíi.er grávida — — — criança \ s corae | bikwa - nome de alguma e ao hábito canibal. Temos assim: caçador _ _ animal parte do animal mata (qualidade) hom icídio natureza sociedade T u p in a m b á--------------inimigo caça homens produção de nomes canibalismo I m arca da diferença bikua NOMES ALMA Entre os Guaiaki observa-se um sistema onomástico com propriedades semelhantes ao dos Tupinambá. Através do caso “belles • MULHER GRÁVIDA" cornes”, Clastres (1972, p. 252) explica o processo de nominação. A criança, ainda no ventre materno, recebe um nome referente a A partir destas duas equações vemos uma qualidade da caça (vaca) consumida que a onomástica se realiza de du;is forma:; por sua mãe: belos chifres. Neste momento pela natureza e pelos mortos canibalizadns. o feto passa a ter bikwa — essência da caça No caso do canibalismo funerário, incorpo­ transmitida ao feto. Uma forma de nomina­ ra-se a alma e esta engedra um processo no­ ção metonímica e particularizante: uma vaca vo de referência: “animanímia”.
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