A Bombardier E O Apoio Bilionário De Quebec: “Hospital De Empresa” Ou Lição Para O Mundo?

A Bombardier E O Apoio Bilionário De Quebec: “Hospital De Empresa” Ou Lição Para O Mundo?

Aeronáutica BNDES Setorial 43, p. 119-165 A Bombardier e o apoio bilionário de Quebec: “hospital de empresa” ou lição para o mundo? Paulus Vinicius da Rocha Fonseca Sérgio Bittencourt Varella Gomes João Alfredo Barcellos* Resumo Este artigo trata do apoio fi nanceiro ao Grupo Bombardier pela província de Quebec, Canadá, onde se localiza sua sede. Aborda de forma sintética a história da empresa, desde sua origem como fabricante de veículos para neve até chegar ao grupo atual, integrado por indústrias aeronáuticas e de material de transporte ferroviário, um dos maiores do mundo nesses seg- mentos. Fazem-se então uma análise de indicadores econômico-fi nanceiros da empresa e uma breve comparação com a Embraer, principal concorrente aeronáutico. As operações de aporte fi nanceiro estatal na Bombardier, de US$ 1 bilhão, feito pela província de Quebec, e de US$ 1,5 bilhão pela Caisse de Depôt et Placement du Québec (CDPQ) são analisadas tendo em vista a crise fi nanceira gerada pelo Programa CSeries e as novas e inovado- ras aeronaves comerciais da Bombardier. Por fi m, são avaliadas possíveis consequências desse ativismo governamental tanto para o Canadá quanto para outros países fabricantes de aeronaves, como o Brasil. * Respectivamente, contador, com MBA em Controladoria e Finanças pela Universidade Candido Mendes (Ucam-RJ), engenheiro e gerente com PhD em Dinâmica de Voo (Cranfi eld University, Inglaterra) e ar- quiteto, com mestrado em Engenharia Civil/Área de Transportes pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp-SP), do Departamento de Comércio Exterior 1, da Área de Comércio Exterior do BNDES. 120 Introdução O legítimo sucesso alcançado pela Embraer no mercado global é sempre motivo de admiração e orgulho nos mais diversos círculos da sociedade brasileira. Tal sucesso costuma ser entendido, quase exclusivamente, com base na excelência dos produtos e na qualidade das ações de marketing e vendas da empresa. Pouco se discute ou se debate a respeito do principal concorrente da Embraer: a empresa canadense Bombardier, de origem anterior e inventora do jato regional, há mais de 15 anos o carro-chefe do faturamento da Embraer. O presente artigo visa começar a preencher essa lacuna. A principal motivação para sua elaboração foi a recente “megaoperação” fi nanceira que injetou recursos da ordem de US$ 2,5 bilhões na Bombardier, oriundos da província de Quebec, onde estão a sede da empresa e suas principais unidades fabris. Embora seja consenso que governos costumam apoiar as indústrias aeronáuticas localizadas em seus respectivos territórios (GOMES, 2012) via compras de itens de defesa, fomento a Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) etc., não é todo dia que se assiste a uma injeção de capital estatal bilionária em uma empresa privada do setor. O que estaria em jogo e quais as consequências para o mercado em geral e para a Embraer em particular? As próximas cinco seções tentam elucidar essas questões. A seção “Breve histórico” aborda desde a origem da Bombardier até a formação do conglo- merado atual. Menciona o contencioso Brasil-Canadá, o qual fez com que a Organização Mundial do Comércio (OMC) fosse palco para que brasileiros e canadenses entrassem em litígio pelos apoios ofi ciais providos a seus respectivos fabricantes no fi nanciamento às exportações de aeronaves. A seção “Qual seria o real porte empresarial do Grupo Bombardier?” procura A Bombardier e o apoio bilionário de Quebec: “hospital de empresa” ou lição para o mundo? ou lição para “hospital de empresa” e o apoio bilionário de Quebec: A Bombardier fazer uma rápida radiografi a da Bombardier atual com base nos dados de balanço publicados, começando pelo grupo, “descendo” para a Bombardier Aerospace e, em seguida, fazendo algumas comparações entre os números desta última e da Embraer. Já a seção “Por que Quebec resolveu investir?” tenta entender o investimento bilionário da província de Quebec, tema central do artigo. A seção “Algumas consequências do aporte governamen- tal” procura avaliar as consequências dessa ação, fazendo um esforço para extrair possíveis lições para o setor em todo o mundo. Por fi m, conclui-se o artigo com os pontos principais levantados nas seções anteriores, apontando algumas possíveis questões para o futuro. Breve histórico 121 Aeronáutica Origens familiares A história da Bombardier tem início em 1936 quando Joseph-Armand Bombardier consegue a patente de um veículo motorizado para uso em ter- renos cobertos por neve – o snowmobile. Em 1942, é criada a Bombardier Snow Car Limited. Depois de sua morte, em 1964, a empresa, baseada na província de Quebec, Canadá, passou a ser dirigida por seu genro, Laurent Beaudoin, que cinco anos depois abriu o capital, ao vender dois milhões de ações e listar a Bombardier Ltda. nas bolsas de valores de Montreal e Toronto. Havia dois tipos de ações: as da família (com direito a dez votos cada) e as dos demais investidores (com direito a um voto cada). Isso mantinha o controle da empresa por parte dos herdeiros de Bombardier: a viúva e seus cinco fi lhos. Atualmente, mantendo o controle na família, são cinco os herdeiros de Joseph-Armand Bombardier entre os 17 membros que compõem o Conselho Diretor da empresa. Ao longo dos anos, questionamentos sobre a condução dos negócios e o controle da empresa pela família ocorreram em função da geração de lucros ou reveses nos negócios. A formação do conglomerado O sucesso do veículo criado por Bombardier na década de 1930 e seus vários modelos foi muito grande, de tal sorte que, se no inverno de 1959- -1960 foram vendidas 225 unidades, em 1969 as vendas anuais atingiram quatrocentas mil unidades (HADEKEL, 2004). Em 1972, foi fundada a Bombardier Credit, Inc. (atualmente Bombardier Capital, Inc.) como o braço fi nanceiro da empresa, cuja fi nalidade inicial era a concessão de fi nancia- mento aos compradores dos snowmobiles. Todavia, a dependência de um único produto, que já apresentava dezenas de concorrentes, aliada a um inverno mais ameno em 1973 no Canadá, à crise mundial do petróleo e à recessão econômica, que impactaram diversos países, fez as vendas diminuírem de modo considerável. Isso resultou em uma necessidade de diversifi cação no portfólio dos investimentos. Inicialmente, a atenção da empresa voltou-se para a indústria ferroviária. Em meados dos anos 1970, a Bombardier adquiriu a fabricante de locomo- tivas de Montreal (Montreal Locomotive Works – Worthington Ltda.). Esta era, então, a terceira maior fabricante de locomotivas diesel-elétricas, após 122 uma compra de ações feita pela Société Générale de Financement (SGF).1 Sete anos mais tarde, a Bombardier ganharia uma licitação para fornecer trens de subúrbios para a cidade de Chicago. Na década de 1980, o Canadá decidiu privatizar suas empresas estatais fabricantes de aeronaves (Canadair e de Havilland) em decorrência dos altos custos para o desenvolvimento de projetos e de uma nova recessão mundial. Foi quando a Bombardier aproveitou a oportunidade para investir na indús- tria aeronáutica, adquirindo a Canadair Ltda. em 1986, que já contava com uma aeronave executiva a jato: o Challenger. Ampliando seus negócios na indústria aeronáutica, em 1989 a Bombardier comprou do governo britânico a fabricante de aeronaves Short Brothers PLC, instalada na Irlanda do Norte. Estimulada pelas novas necessidades das companhias aéreas americanas, a Bombardier desenvolveu seu jato regional a partir do projeto do Challenger, que, com algumas modifi cações e o alongamento de sua fuselagem, resul- tou no Canadair Regional Jet (CRJ) de cinquenta assentos (Figura 1), que recebeu várias encomendas durante o Paris Air Show em 1989. Figura 1 | CRJ 100 A Bombardier e o apoio bilionário de Quebec: “hospital de empresa” ou lição para o mundo? ou lição para “hospital de empresa” e o apoio bilionário de Quebec: A Bombardier Foto: Anthony92931/Wikimedia Commons/CC BY-SA 3.0. 1 A SGF foi constituída em 1962 para fi nanciar, com recursos públicos, projetos que gerassem cresci- mento econômico na província do Quebec. Nessa época, a Embraer já tencionava desenvolver um jato regional como 123 consequência natural do sucesso que a empresa vinha tendo no mercado Aeronáutica americano, com os modelos a turbopropulsão Bandeirante e Brasília, de 19 e trinta assentos, respectivamente. Essa intenção materializou-se no Embraer Regional Jet (ERJ-145), lançado em 1995, com capacidade para cinquenta assentos, e que veio a concorrer com o CRJ. Ainda em 1989, a Bombardier comprou dois fabricantes de equipamento ferroviário: o belga BN Construction Ferroviaires et Metalliques e o fran- cês ANF Industrie, fornecedor dos trens de alta velocidades (TGV). Foi quando também ganhou o contrato para fornecimento dos trens que fariam a travessia do Eurotúnel, ligando a França à Grã-Bretanha. Já nesse perío- do, estava claro para a empresa que a disputa por contratos nesse setor, no continente europeu, teria mais sucesso se tivesse participação acionária ou contasse com fabricantes locais de material ferroviário. No ano seguinte, a Bombardier comprou o fabricante britânico de equipamento ferroviário Procor Engineering Ltda. Com o crescimento do mercado aeronáutico nos anos 1990, novas aquisições foram feitas pela Bombardier: Learjet Corp., um dos fabri- cantes americanos de jatos executivos (ao lado da Gulfstream Aerospace Corp. e da Lockheed Aircraft Manufacturing Company); e a fabricante canadense de aeronaves, de Havilland Aircraft Company, então de pro- priedade da Boeing. Em 1995, com a criação da subsidiária Flexjet, a Bombardier inovava ao possibilitar o compartilhamento de um mesmo jato executivo (por ela fabri- cado) por diferentes coproprietários e detentores de parcelas da aeronave. Na década de 1990, a empresa canadense continuaria suas aquisições no setor de transporte ferroviário: a Constructora Nacional de Carros de Ferrocarril S.A, a Waggonfabrik Talbot, a Deutsche Waggonbau e a Adtranz, que, além de produzir trens, também produzia seus sistemas elétricos de propulsão. Isso ajudou a Bombardier a competir com a Siemens e a Alstom por novos contratos de fornecimento de equipamentos ferroviários.

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