TELENOVELA BRASILEIRA: UMA Narrama SOBRE a NAÇÃO

TELENOVELA BRASILEIRA: UMA Narrama SOBRE a NAÇÃO

A AUTORA Maria Immacolata Vassallo de Lopes Professora Livre-Docente no Departamento de Comunicações e Artes da ECA-USP. TELENOVELA BRASILEIRA: UMA NARRAmA SOBRE A NAÇÃO Construção de sentidos sobre os discursos da vida pública e da vida privada brasileira passam pela telenovela uase quarenta anos após a sua A outra face desse processo foi o pro- introdução, é possível afirmar gressivo reconhecimento acadêmico da que a telenovela1 no Brasil importância da telenovela como objeto conquistou reconhecimento privilegiado de estudo sobre a cultura e a público como produto artístico e cultural sociedade contemporânea brasileira2. Esta e ganhou visibilidade como agente cen- situação peculiar alcançada pela teleno- tral do debate sobre a cultura brasileira e vela brasileira é responsável pelo caráter, a identidade do pais. Ela também pode ser senão único, pelo menos muito peculiar, considerada um dos fenômenos mais re- de uma narrativa nacional, popular e ar- presentativos da modemidade brasileira, tística, além de se tomar tema de estudo por combinar o arcaico e o moderno, por consolidado. Este último aspecto não será fundir dispositivos narrativos anacrônicos objeto deste artigo, o qual se propõe a dar e imaginários modernos e por ter a sua his- uma visão abrangente da importância tória fortemente marcada pela dialética alcançada pela telenovela na sociedade e nacionalização-massmediação. na cultura do Brasil. 1. Telenovela é o nome genárico dado ii narrativa ficcional televisiva no Brasil, independente de seu formato ser telenovela srricto sensu, minissérie, caso especial, ou outro. Neste artigo, também me referirei a ela como novela que é seu nome mais conhecido. 2. Os dados mostram um crescente interesse pela telenovela através de dissertações de mestrado e teses de doutorado, que passam de 6 na década de 70, para 76 na de 90, com média de aproximadamente 8 trabalhostano.As tendências principais nos estudos são: análise do discurso (abordagem semiótica, estética, intertextualidade, dramaturgia), estu- dos de recepção (abordagem sociológica, etnográfica), estudos de produção (som, cenografia, autores). O método de pesquisa mais frequente tem sido o estudo de caso qualitativo de uma determinada telenovela ou uma determinada unidade de recepção (famílias, empregadas domésticas, metaliirgicos, jovens). Todo o levantamento de dados relati- vos A telenovela para o presente artigo foi feito no centro de documentação do Núcleo de Pesquisa de Telenovela, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação TELENOVELA NO CENARTO imaginada que a TV capta, expressa e TELEVISIVO BRASILEIRO constantemente atualiza3. A televisão oferece a difusão de in- A presença maciça da televisão em formações acessíveis a todos sem dis- um país situado na periferia do mundo tinção de pertencimento social, classe ocidental poderia ser descrita como ou região. Ao fazê-lo, ela torna dispo- mais um paradoxo de uma nação que, níveis repertórios anteriormente da ao longo de sua história, foi represen- alçada privilegiada de certas institui- tada, reiteradamente, como uma socie- ções socializadoras tradicionais como dade de contrastes acentuados, entre a escola, a família, a igreja, o partido riqueza e pobreza, modernidade e ar- político, a agência estatal. A televisão caísmo, Sul e Norte, Litoral e Interior, dissemina a propaganda e orienta o campo e cidade. E, de fato, a televisão consumo que inspira a formação de está implicada na reprodução de repre- identidades. Nesse sentido, a televi- sentações que perpetuam diversos ma- são, e a telenovela em particular, é tizes de desigualdade e discriminação. emblemática do surgimento de um Mas, também é verdade que ela possui novo espaço público, no qual o con- uma penetração intensa na sociedade trole da formação e dos repertórios brasileira, devido a uma capacidade disponíveis mudou de mãos, deixou de peculiar de alimentar um repertório ser monopólio dos intelectuais, poli- comum por meio do qual pessoas de ticos e governantes, dos titulares dos classes sociais, gerações, sexo, raça e postos de comando da sociedade4. regiões diferentes se posicionam e se Duplamente contraditório é o fato reconhecem umas As outras. Longe de de este espaço público surgir sob a promover interpretações consensuais égide do setor privado, onde, não por mas, antes, produzir lutas pela interpre- coincidência, o produto de maior po- tação de sentido, esse repertório com- pularidade e lucratividade da televi- partilhado está na base das representa- são brasileira é a telenovela; e sob a ções de uma comunidade nacional égide da vida privada, uma vez que a 3. B. Anderson cunhou a noção "comunidade imaginada" para descrever a emergência dos Estados Nacionais na Europa do século XIX e associa a consolidação do sentimento de pertencimento a uma comunidade imaginhria ao sur~imentoda imorensa escrita e das lineuas nacionais. O ritual de leitura do iornal é aoontado como exemolo de ritual quecontribui a consolidação desse sentimento de comunidade nacional.Ánoção k "til para entender ;significado das telenovelas no Brasil, na medida em que o ato de assistir a esses programas num determinado horário, diariamente. ao longo de quase 40 anos, constitui um &tua1compartilhado por pêsso& em todo o território nacional, que dominam as convenções narrativas consolidadas pela telenovela e que tomam os padrões nela mostrados como referenciais de acordo com os quais definem "tipos ideais" (no sentido weberiano) de familia brasileira, mulher brasileira, homem brasileiro e também de compção brasileira, violência brasileira, etc. Parece-me adequado usar a noção de comunidade nacional imaginada para indicar as representações sobre o Brasil, veiculadas pelas novelas e as maneiras como elas produzem referenciais importantes para a reatualização do conceito de nação e de identidade nacional. No caso brasi- leiro, trata-se, como veremos adiante, do fato paradoxal de a telenovela, uma narrativa ficcional, ter se convertido em um espaço público de debate nacional. C.f. ANDERSON, Benedict. Imagined communities (Comunidades imaginá- rias). Londres: Verso, 199 1. 4. J. Meyerowitz sugere o deslocamento de repertórios de esferas restritas a homens ou mulheres, jovens ou adultos, como uma caractenstica importante da televisão. C.f. MEYEROWITZ, Joshua. No sense of place. Oxford: University Press, 1994. Comunicação & Educação, São Paulo, (26): 17 a 34, jan./abr. 2003 narrativa televisiva já foi definida CONSOL~DAÇAODA INDÚSTR~A como uma narrativa por excelência TELEVISIVABRASlLEIRA sobre a família5. Desde os anos 70, pelo menos uma característica da indústria cultural bra- A novela dá visibilidade a certos sileira resulta surpreendente por des- mentir prognósticos feitos acerca de assuntos, comportamentos, sua inescapável situação de dependên- produtos e não a outros; ela cia da produção cultural dos países define uma certa pauta que mais industrializados. A produção de bens culturais tem apresentado crescen- as interseções entre a te índice de nacionalização ?imedida pública e a vida privada6. que o mercado interno se expande. No início da década de 80, cerca de 314 da programação da TV já era nacional e Vendo a telenovela a partir dessas ca- hoje chega a quase 80%'. A nacionali- tegorias, podemos dizer que, durante o zação da produção se dá também no período de 70 e 80, ela se estruturou em setor publicitário discográfico, editorial torno de representações que compunham e de quadrinhos, sendo o cinema a gran- uma matriz capaz de sintetizar a for- de exceção. Na produção de telenove- mação social brasileira em seu movi- la, dos 13 programas de ficção que es- mento rnodernizante. Isto pode ser tra- tão atualmente no ar, nove (56%) são duzido por um quase monopólio da nacionais e quatro (44%) são importa- representação social, calcada a partir doss. Salientamos que a legislação bra- das angústias privadas das famílias de sileira sobre a comunicação de massa classe média do Rio de Janeiro e São ainda proíbe o controle acionário de Paulo. Com a diversificação da estru- grupos econômicos estrangeiros nos tura da televisão (TV a cabo, vídeo, meios de radiodifusão e imprensa9. maior concorrência) e as modificações A televisão foi introduzida no Brasil sociais e políticas em curso nos anos em 1950 e, ao longo de seus cinqüenta 90 (redemocratização política, novos anos de história, o Estado influiu de di- movimentos sociais, processo de glo- ferentes maneiras nessa indústria. De- balização), essa força de síntese do gê- tém até hoje o poder de conceder e can- nero desloca-se para novas representa- celar concessões de TV, embora sua ções que questionam as representações política sempre tenha sido a de estimu- modernizantes anteriores. lar o modelo comercial de TV, não ten- 5. Evocando o intelectual mexicano Carlos Monsiváis, a telenovela seria uma narrativa familiar sobre a nação, em que uma guerra 6 vista como um fato a partir do qual morreu um tio e uma cidade como um lugar onde mora um parente. 6. A telenovela aplica-se tanto o conceito de agenda setting como o de fomcultural. C.f. NEWCOMB, Horace. La televisione da forum a biblioteca. Milano: Sansoni, 1999. 7. Pelas últimas estimativas, 79% da produção da TV Globo é de origem nacional. 8. Observação feita na Semana de 5 a 10 de novembro de 2001. 9. Foi aprovado na Câmara dos Deputados a Emenda Constitucional 203195 que permite a entrada de at6 30% de capital estrangeiro em empresas jornalisticas e de radiodifusão brasileiras. (N.E.d.) Telenovela brasileira: uma narrativa

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