Os Registros Paroquiais De Terras No Estudo Do Processo De Formação Do Território: O Estudo De Caso Da Freguesia De Caconde-SP, Século XIX.1

Os Registros Paroquiais De Terras No Estudo Do Processo De Formação Do Território: O Estudo De Caso Da Freguesia De Caconde-SP, Século XIX.1

Os Registros Paroquiais de Terras no estudo do processo de formação do território: o estudo de caso da Freguesia de Caconde-SP, século XIX.1 RAFAEL AUGUSTO SILVA FERREIRA2 RENATA BAESSO PEREIRA3 Resumo Os Registros Paroquiais de Terras, elaborados entre 1854 e 1856 em decorrência da Lei de Terras de 1850, realizaram o registro das propriedades rurais de todas as freguesias do Império. No presente estudo trabalhamos sobre o Registro Paroquial da Freguesia de Caconde, atual município de Caconde-SP que, fundado em meados do século XVIII, teve seu território desmembrado no século XIX com a formação de novos municípios a partir de patrimônios religiosos. O Registro Paroquial de Caconde relaciona 83 propriedades distintas e permite analisar esse processo de formação territorial em curso. Procuramos espacializar, em bases cartográficas, as propriedades contidas no Registro Paroquial de Terras, trabalhando a hipótese de que as mesmas revelam a relação de costumes e usos predominantes com a terra em cada paróquia, evidenciando o processo de transformação da terra rural em urbana no século XIX. A partir de um olhar da micro história, que valoriza as realidades e singularidades locais, objetivamos, em uma perspectiva Braudeliana, relacionar esse evento da micro história às estruturas temporais de longa duração, com vista à ressignificação dessa série documental para o estudo da rede urbana. Palavras-chave: Registro Paroquial de Terras; formação territorial; século XIX Contextualização dos Registros Paroquiais de Terras para o estudo da formação urbana Busca-se, no presente trabalho, demonstrar a utilização dos Registros Paroquiais de Terras (doravante chamados RPT) enquanto uma série documental capaz de auxiliar nos estudos sobre 1 Esse trabalho é fruto de uma pesquisa de mestrado, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Urbanismo da PUC Campinas, concluída em 2017, com o título “Entre fronteiras e conflitos: aspectos fundiários da formação do Sertão do Rio Pardo, 1775-1865”, com o apoio da CAPES, em específico de seu capítulo 3 denominado “Transformações do território: política fundiária durante o Império”. 2 Mestre em Urbanismo pelo Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da PUC Campinas, doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela mesma instituição. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de financiamento 88887.284969/2018-00. 3 PUC Campinas, Professora Doutora, titular do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – POSURB-ARQ. 2 a formação da rede e dos espaços urbanos, sob a ótica da propriedade fundiária enquanto um reflexo das práticas sociais que a produzem; ou seja, a prática social em cada lugar define a característica dos registros ora trabalhados (CARRA & LAGUARDIA, 2013, p. 211). Trabalha-se a partir de um estudo de caso, a freguesia de Caconde (atual município de Caconde- SP, localizado no nordeste paulista e que divisa com o Estado de Minas Gerais) em razão do papel desempenhado pela freguesia que, fundada em 1775, concentrou conflitos em torno da definição das fronteiras entre as Capitanias e Províncias de São Paulo e Minas Gerais. Uma região de mineração no século XVIII, a freguesia passou a receber entrantes mineiros no início do século XIX, com a doação de sesmarias e a formação de grandes fazendas produtoras de gêneros diversificados. Aplicado de forma sistemática a todas as freguesias do Império, o RPT de 1856 é tratado como um documento que pode revelar as singularidades locais no tocante à hierarquia social do acesso à terra (GODOY & LOUREIRO, 2010; NASCIMENTO, 2016), caracterizar a estrutura agrária local e a dinâmica de transformação da terra rural em urbana. Não constitui objeto do presente artigo, discutir o contexto social da promulgação da Lei nº 601 de 1850 (Lei de Terras), tampouco seu regulamento pelo Decreto nº 1.318 de 1854, que resultou no Registro do Vigário4. O que cabe dizer é que a Lei de Terras – primeira lei agrária de longo alcance no Brasil – alterou a estrutura jurídica da propriedade advinda da Colônia, após um longo hiato entre a interrupção de concessão das sesmarias (1822) e sua promulgação, tornando a terra uma mercadoria e inaugurando nova forma de acesso exclusivamente pela compra. Os RPTs tinham como objetivo o recenseamento de terras no Brasil, extremando as terras devolutas das de domínio particular. A regulamentação impunha condições ao declarante, mas o teor do documento não poderia ser contestado pelos vigários das paróquias, responsáveis pelo registro das declarações5. 4 Para um exame detalhado do contexto social da Lei de Terras e seus efeitos, consultar: SILVA, Lígia Osorio. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1996; CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a política imperial. Rio de Janeiro-RJ: UnB, 1981 e LIMA, Ruy Cirne. Pequena História Territorial do Brasil – sesmarias e terras devolutas. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1990. 5 O artigo 91 do Regulamento de 1854 determinava que todos os possuidores de terras, qualquer que fosse o título, deveriam registrar a sua propriedade ou possessão, com prazos fixados. As declarações eram feitas pelos possuidores e se, mesmo depois de instruídos, quisessem fazer como lhes convinha, os vigários são poderiam fazer objeção (SILVA, 1996, p. 173). 3 O RPT de Caconde é tomado no presente trabalho como um evento, dentro de uma estrutura de longa duração (BRADEUL, 2009), que permite alinhavar uma história fundiária através da comparação com outros documentos primários de natureza semelhante, como escrituras de compra e venda de propriedades, inventários post-mortem, cartas de sesmarias e outros recenseamentos de propriedades rurais. Tal evento demonstra as relações sociais de uma elite local, proprietária de terras. Os RPTs são ora vistos como um corpo documental único, embora desacreditado pela historiografia, inexistindo estudos específicos sobre o assunto6. Maria Linhares e Francisco Silva (1995) já alertavam para a importância da construção de uma história agrária “ao microscópio” (1995, p. 21), uma pesquisa num quadro de uma pequena região, realizada através dos arquivos cartorários e paroquiais mais antigos. Essa história regional, que lida com as dinâmicas sociais e os meios de produção de determinados grupos, contribui para o entendimento e a contextualização de processos sociais de longa duração, evidenciando, e é o que aqui defendemos como nossa hipótese, os aspectos espaciais dos processos sociais. Para Milton Santos, a configuração espacial resulta da cristalização dos meios de ação – formas sociais não-geográficas que tornam-se geográficas: A lei, o costume, a família, acabam conduzindo ou se relacionando a um tipo de organização geografia. A propriedade é um bom exemplo porque é, ao mesmo tempo, uma forma jurídica e uma forma espacial. A evolução social cria de um lado formas espaciais e de outro lado formas não-espaciais, mas, no momento seguinte, as formas não-espaciais se transformam em formas geográficas” (SANTOS, 2002, p. 75, grifo nosso). Encarar os RPTs sob essa fundamentação teórica abre possibilidades para a ressignificação dessa série documental. Nesse caso, o objetivo seria visualizar, pela configuração espacial da propriedade fundiária, as formas de organização social, descartando a necessidade de buscar uma precisão de representação espacial, posto que esta condição não fazia parte do processo de elaboração dos registros. Procura-se demonstrar também a existência de uma relação dialética 6 Para Marcelo Godoy e Pedro Loureiro, são três as justificativas para o estudo dos Registros de Terras: “I. Constituem corpo documental quase único em termos das informações que o compõem; II. São largamente desacreditados pela historiografia – sem que se tenha estabelecido demonstração consistente da irrelevância ou do comprometimento dos dados consignados nos RPTs; III. Inexiste estudo que tenha suficientemente contemplado as especificidades dos Registros, portanto, efetivamente avaliado seu potencial e seus limites” (GODOY & LOUREIRO, 2010, p. 97). 4 entre as declarações no RPT e a configuração da propriedade: o modo de percepção sobre o espaço condicionava a forma dos registros e o oposto também era verdadeiro, uma vez que as declarações influíam diretamente sobre a confirmação ou não do domínio dos demais confrontantes envolvidos e sobre sua percepção do espaço físico com o qual se relacionavam. Das pesquisas que trabalham com o RPT como fonte principal, podemos citar José Antônio Moraes do Nascimento (2016) e Angelo Carrara e Rafael Laguardia (2013), ambos com vinculações com métodos da História Social. Para Nascimento (2016), o RPT pode ser considerado o primeiro censo geral sobre propriedades rurais no Brasil, permitindo identificar os habitantes (posseiros ou proprietários) que se estabeleceram em uma região, bem como a estrutura fundiária dos grupos sociais (NASCIMENTO, 2016, p. 464). Esse autor pesquisou o Registro Paroquial de Terras de Rio Pardo – município do atual Estado do Rio Grande do Sul – e objetivou compreender a estrutura agrária da região, no século XIX, como base para a compreensão da estrutura social enquanto articulação entre o “econômico, o político e o mental” (NASCIMENTO, 2016, p. 464). Como justificativa, o autor afirma que: Essa atenção à história da região deve-se ao fato de que situações localizadas revelaram complexidades próprias, ou seja, ampliação da fronteira, contatos e conflitos entre as populações,

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