Os Registros Paroquiais de Terras no estudo do processo de formação do território: o estudo de caso da Freguesia de -SP, século XIX.1

RAFAEL AUGUSTO SILVA FERREIRA2

RENATA BAESSO PEREIRA3

Resumo

Os Registros Paroquiais de Terras, elaborados entre 1854 e 1856 em decorrência da Lei de Terras de 1850, realizaram o registro das propriedades rurais de todas as freguesias do Império. No presente estudo trabalhamos sobre o Registro Paroquial da Freguesia de Caconde, atual município de Caconde-SP que, fundado em meados do século XVIII, teve seu território desmembrado no século XIX com a formação de novos municípios a partir de patrimônios religiosos. O Registro Paroquial de Caconde relaciona 83 propriedades distintas e permite analisar esse processo de formação territorial em curso. Procuramos espacializar, em bases cartográficas, as propriedades contidas no Registro Paroquial de Terras, trabalhando a hipótese de que as mesmas revelam a relação de costumes e usos predominantes com a terra em cada paróquia, evidenciando o processo de transformação da terra rural em urbana no século XIX. A partir de um olhar da micro história, que valoriza as realidades e singularidades locais, objetivamos, em uma perspectiva Braudeliana, relacionar esse evento da micro história às estruturas temporais de longa duração, com vista à ressignificação dessa série documental para o estudo da rede urbana.

Palavras-chave: Registro Paroquial de Terras; formação territorial; século XIX

Contextualização dos Registros Paroquiais de Terras para o estudo da formação urbana

Busca-se, no presente trabalho, demonstrar a utilização dos Registros Paroquiais de Terras (doravante chamados RPT) enquanto uma série documental capaz de auxiliar nos estudos sobre

1 Esse trabalho é fruto de uma pesquisa de mestrado, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Urbanismo da PUC , concluída em 2017, com o título “Entre fronteiras e conflitos: aspectos fundiários da formação do Sertão do Rio Pardo, 1775-1865”, com o apoio da CAPES, em específico de seu capítulo 3 denominado “Transformações do território: política fundiária durante o Império”. 2 Mestre em Urbanismo pelo Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da PUC Campinas, doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela mesma instituição. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de financiamento 88887.284969/2018-00. 3 PUC Campinas, Professora Doutora, titular do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – POSURB-ARQ.

2 a formação da rede e dos espaços urbanos, sob a ótica da propriedade fundiária enquanto um reflexo das práticas sociais que a produzem; ou seja, a prática social em cada lugar define a característica dos registros ora trabalhados (CARRA & LAGUARDIA, 2013, p. 211). Trabalha-se a partir de um estudo de caso, a freguesia de Caconde (atual município de Caconde- SP, localizado no nordeste paulista e que divisa com o Estado de ) em razão do papel desempenhado pela freguesia que, fundada em 1775, concentrou conflitos em torno da definição das fronteiras entre as Capitanias e Províncias de e Minas Gerais. Uma região de mineração no século XVIII, a freguesia passou a receber entrantes mineiros no início do século XIX, com a doação de sesmarias e a formação de grandes fazendas produtoras de gêneros diversificados.

Aplicado de forma sistemática a todas as freguesias do Império, o RPT de 1856 é tratado como um documento que pode revelar as singularidades locais no tocante à hierarquia social do acesso à terra (GODOY & LOUREIRO, 2010; NASCIMENTO, 2016), caracterizar a estrutura agrária local e a dinâmica de transformação da terra rural em urbana. Não constitui objeto do presente artigo, discutir o contexto social da promulgação da Lei nº 601 de 1850 (Lei de Terras), tampouco seu regulamento pelo Decreto nº 1.318 de 1854, que resultou no Registro do Vigário4. O que cabe dizer é que a Lei de Terras – primeira lei agrária de longo alcance no Brasil – alterou a estrutura jurídica da propriedade advinda da Colônia, após um longo hiato entre a interrupção de concessão das sesmarias (1822) e sua promulgação, tornando a terra uma mercadoria e inaugurando nova forma de acesso exclusivamente pela compra. Os RPTs tinham como objetivo o recenseamento de terras no Brasil, extremando as terras devolutas das de domínio particular. A regulamentação impunha condições ao declarante, mas o teor do documento não poderia ser contestado pelos vigários das paróquias, responsáveis pelo registro das declarações5.

4 Para um exame detalhado do contexto social da Lei de Terras e seus efeitos, consultar: SILVA, Lígia Osorio. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1996; CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a política imperial. -RJ: UnB, 1981 e LIMA, Ruy Cirne. Pequena História Territorial do Brasil – sesmarias e terras devolutas. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1990. 5 O artigo 91 do Regulamento de 1854 determinava que todos os possuidores de terras, qualquer que fosse o título, deveriam registrar a sua propriedade ou possessão, com prazos fixados. As declarações eram feitas pelos possuidores e se, mesmo depois de instruídos, quisessem fazer como lhes convinha, os vigários são poderiam fazer objeção (SILVA, 1996, p. 173).

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O RPT de Caconde é tomado no presente trabalho como um evento, dentro de uma estrutura de longa duração (BRADEUL, 2009), que permite alinhavar uma história fundiária através da comparação com outros documentos primários de natureza semelhante, como escrituras de compra e venda de propriedades, inventários post-mortem, cartas de sesmarias e outros recenseamentos de propriedades rurais. Tal evento demonstra as relações sociais de uma elite local, proprietária de terras. Os RPTs são ora vistos como um corpo documental único, embora desacreditado pela historiografia, inexistindo estudos específicos sobre o assunto6.

Maria Linhares e Francisco Silva (1995) já alertavam para a importância da construção de uma história agrária “ao microscópio” (1995, p. 21), uma pesquisa num quadro de uma pequena região, realizada através dos arquivos cartorários e paroquiais mais antigos. Essa história regional, que lida com as dinâmicas sociais e os meios de produção de determinados grupos, contribui para o entendimento e a contextualização de processos sociais de longa duração, evidenciando, e é o que aqui defendemos como nossa hipótese, os aspectos espaciais dos processos sociais. Para Milton Santos, a configuração espacial resulta da cristalização dos meios de ação – formas sociais não-geográficas que tornam-se geográficas:

A lei, o costume, a família, acabam conduzindo ou se relacionando a um tipo de organização geografia. A propriedade é um bom exemplo porque é, ao mesmo tempo, uma forma jurídica e uma forma espacial. A evolução social cria de um lado formas espaciais e de outro lado formas não-espaciais, mas, no momento seguinte, as formas não-espaciais se transformam em formas geográficas” (SANTOS, 2002, p. 75, grifo nosso).

Encarar os RPTs sob essa fundamentação teórica abre possibilidades para a ressignificação dessa série documental. Nesse caso, o objetivo seria visualizar, pela configuração espacial da propriedade fundiária, as formas de organização social, descartando a necessidade de buscar uma precisão de representação espacial, posto que esta condição não fazia parte do processo de elaboração dos registros. Procura-se demonstrar também a existência de uma relação dialética

6 Para Marcelo Godoy e Pedro Loureiro, são três as justificativas para o estudo dos Registros de Terras: “I. Constituem corpo documental quase único em termos das informações que o compõem; II. São largamente desacreditados pela historiografia – sem que se tenha estabelecido demonstração consistente da irrelevância ou do comprometimento dos dados consignados nos RPTs; III. Inexiste estudo que tenha suficientemente contemplado as especificidades dos Registros, portanto, efetivamente avaliado seu potencial e seus limites” (GODOY & LOUREIRO, 2010, p. 97).

4 entre as declarações no RPT e a configuração da propriedade: o modo de percepção sobre o espaço condicionava a forma dos registros e o oposto também era verdadeiro, uma vez que as declarações influíam diretamente sobre a confirmação ou não do domínio dos demais confrontantes envolvidos e sobre sua percepção do espaço físico com o qual se relacionavam.

Das pesquisas que trabalham com o RPT como fonte principal, podemos citar José Antônio Moraes do Nascimento (2016) e Angelo Carrara e Rafael Laguardia (2013), ambos com vinculações com métodos da História Social. Para Nascimento (2016), o RPT pode ser considerado o primeiro censo geral sobre propriedades rurais no Brasil, permitindo identificar os habitantes (posseiros ou proprietários) que se estabeleceram em uma região, bem como a estrutura fundiária dos grupos sociais (NASCIMENTO, 2016, p. 464). Esse autor pesquisou o Registro Paroquial de Terras de Rio Pardo – município do atual Estado do Rio Grande do Sul – e objetivou compreender a estrutura agrária da região, no século XIX, como base para a compreensão da estrutura social enquanto articulação entre o “econômico, o político e o mental” (NASCIMENTO, 2016, p. 464). Como justificativa, o autor afirma que:

Essa atenção à história da região deve-se ao fato de que situações localizadas revelaram complexidades próprias, ou seja, ampliação da fronteira, contatos e conflitos entre as populações, que modificaram a paisagem e a organização social (NASCIMENTO, 2016, p. 465).

Essa abordagem permite desvelar as particularidades e complexidades regionais (NASCIMENTO, 2016) ao mesmo tempo em que demonstra sua relação com o contexto mais amplo, dos processos históricos mais gerais, cerne do método de Fernand Braudel (2009). No caso de Carrara & Laguardia (2013), o foco da pesquisa recai sobre as potencialidades do georreferenciamento dos RPT para a História Agrária, em específico no caso da paróquia mineira de Santo Antônio do Paraibuna7. No presente trabalho, apesar de não utilizarmos os métodos de georreferenciamento, procuramos nos basear nos métodos de interpretação e espacialização propostos pelo autores citados, questionando, inclusive, a necessidade de

7 Correspondente a porções do território dos municípios de Juiz de Fora, Coronel Pacheco, Belmiro Braga e Ewbanck da Câmara, segundo os autores (CARRARA & LAGUARDIA, 2013, p. 209). Consultar também a dissertação do autor: LAGUARDIA, Rafael Martins de Oliveira. Sorte de terras, fazendas, sesmarias: georreferenciamento como instrumento de análise do Registro de Terras. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Juiz de Fora, 2011.

5 precisão geográfica no tocante à análise da estrutura fundiária contida nos citados RPT. Os autores leram integralmente o volume de PRT da freguesia de Santo Antônio do Paraibuna (214 declarações ao total) e demonstraram possibilidades de espacialização de determinadas propriedades, além de um olhar da micro história sobre a estrutura agrária da região, pontuando atores e práticas sociais através dos discursos analisados.

Para os autores supracitados, os Registros Paroquiais de Terras refletem as condições históricas que lhes deram origem (CARRARA & LAGUARDIA, 2013, p. 213). Densidades demográficas baixas possibilitam a constituição de fazendas de grandes dimensões, enquanto que densidades elevadas geralmente relacionam-se a propriedades menores. Para os autores:

Em síntese, são as condições históricas de produção das declarações em cada paróquia que conferem o caráter de cada registro. Estas condições correspondem fundamentalmente à relação com a terra predominante e/ou dominante em cada paróquia. Trata-se fundamentalmente de uma razão material, de fundo, para a ausência de uniformidade dos registros, que não se confunde com razões de forma, como o zelo maior ou menor dos párocos. Os registros paroquiais de terra não só não eram uniformes como não podiam de modo algum sê-lo, porque diversas eram as condições materiais de produção de cada um. Em áreas com amplo predomínio das estruturas de produção camponesas, os registros refletem uma determinada relação com a terra muito distinta da encontrada em regiões em que o latifúndio escravista era o padrão (CARRARA & LAGUARDIA, 2013, p. 211).

Uma questão que o presente trabalho pretende demonstrar é a relação da localização de algumas das propriedades com a topografia e a existência de caminhos e rotas conectando núcleos urbanos, o que acabava por servir de referência para as declarações no registro. A espacialização, portanto, pode suscitar questões sobre os modos de fixação no território, os fatores naturais locais e o tipo de relação que se tinha com a terra.

A Formação da Freguesia de Caconde

A freguesia de N. Sr.ª da Conceição do Bom Sucesso do Rio Pardo (depois freguesia de Caconde, no século XIX) foi criada em meados do século XVIII dentro de um contexto de disputas de fronteiras entre as Capitanias de São Paulo e Minas Gerais. É importante mencionar

6 que a ocupação dessa região deve-se também ao Caminho dos Goiases8, rota tropeirista onde vários pousos foram formados e se tornaram núcleos urbanos. Diversos descobertos auríferos foram feitos na região da freguesia de Caconde, fato que despertou a atenção de governadores paulistas e mineiros. A antiga freguesia, criada em 1775, possuía um termo de grandes dimensões, estendendo-se desde o Rio Pardo até o Rio Grande, e fazia parte do termo da vila de , criada em 1769, pelo governador paulista Morgado de Mateus (CAMPANHOLE, 1979). Essa região paulista de fronteira recebeu grande fluxo migratório de mineiros, que fizeram posses e fundaram fazendas mistas. A freguesia foi desativada, com a perda de seu território, pela criação da freguesia de em 1805. Posteriormente seriam criadas também as freguesias de Casa Branca (1814) e Batatais (1815), todas pertencentes ao termo da vila de Mogi Mirim (1769). Franca seria elevada à condição de vila em 1821, Batatais em 1839 e Casa Branca em 1841. A restauração da freguesia de Caconde ocorreu em 1822, pela doação de um patrimônio religioso, passando a pertencer ao termo da vila de Casa Branca (FERREIRA, 2017). Do território da antiga freguesia de Caconde, outros municípios foram desmembrados no século XIX, fundados, inicialmente, a partir da doação de terras para um patrimônio religioso: Espírito Santo do Rio do Peixe (1834) – atual Divinolândia-SP – e São José do Rio Pardo (1865). O RPT de Caconde permite antever esses processos de formação urbana pela identificação dos atores envolvidos e suas propriedades rurais9.

O método de interpretação e espacialização do Registro Paroquial de Terras

O Registro Paroquial de Terras (RPT) da Freguesia de Caconde é composto por um volume de 121 folhas10, cujo conteúdo relaciona 390 declarações de propriedades. As declarações, numeradas, foram transcritas pelo vigário da paróquia, Pe. Antônio Álvares de Siqueira, que coletou as informações sobre o proprietário, quantidade de terras, nome da propriedade, forma de obtenção e as divisas, quando conhecidas. A abertura do documento foi feita em 1º de junho de 1854, ano em que houve apenas uma declaração, assim como em 1855, concentrando todas

8 Rota bandeirista em direção às minas em Goiás, aberta nas primeiras décadas do século XVIII, que saía de São Paulo, passando por Santana de Parnaíba, Jundiaí, Campinas, Mogi Mirim, Casa Branca, depois cruzando o Rio Pardo em direção ao norte, buscando os rios das Velhas, Paranaíba, Corumbá e Meia Ponte. 9 Tema desenvolvido em nossa pesquisa de mestrado, sobre a ocupação do Sertão do Rio Pardo e a formação da Freguesia de Caconde e seu território, entre 1775 e 1865 (FERREIRA, 2017). 10 Os Registros Paroquiais encontram-se no Arquivo Público do Estado de São Paulo (Rolo RT06, nº de ordem 17.04.038).

7 as restantes em 1856. Contabilizamos 326 proprietários de terras, num total de 83 propriedades distintas em um sistema de posse coletiva, o que significa que os declarantes possuíam partes de terras em fazendas, divididas ou não, cujas divisas foram declaradas11. A imprecisão das informações não significa menor zelo no registro das declarações, mas sim um reflexo das condições materiais de sua produção. São frequentes as expressões “mais ou menos”, além dos limites serem dados pelos nomes dos confrontantes, sem qualquer referencial geográfico, o que dificulta a espacialização das fazendas.

Como método de análise das informações contidas no RPT, foram transcritas, em planilha do Excel, as informações: nome do proprietário12, nome da fazenda, forma de obtenção da propriedade (quando existente) e descrição das confrontações (Tabela 1).

Data do Tipo de Número Proprietário Obtenção Descrição das confrontações registro posse/Fazenda (...) confronta com as fazendas do Salto, com a fazenda do Rio (...) possui do Peixe, José Ferreira da umas terras Costa, Joaquim Gomes situadas nesta 4 de Nogueira e os sócios Pedro Rumão Carlos freguesia de 1º agosto Não menciona Francisco de Toledo, Manoel Nogueira Caconde, com de 1854 Francisco de Toledo e Manoel a denominação Francisco da Silva, sócios da Fazenda da Fazenda Vargem Grande, Fortaleza Moisés Ferreira de Macedo até o Rio Pardo. Tabela 1: Exemplo de declaração transcrita do Registro Paroquial de Terras de Caconde. A ortografia encontra-se atualizada, facilitando o recurso de busca do Excel. As informações são transcritas em inteiro teor. Elaboração dos autores (2019). Uma vez de posse de todas essas informações, referentes às 390 declarações nominais13, buscou-se seguir o método proposto por Carrara & Laguardia (2013), criando um diagrama de

11 Uma constante no RPT de Caconde é a declaração de confrontações sem menção a elementos físicos (cursos de rios, topografia, linhas de espigão, acidentes geográficos) mas somente ao nome dos proprietários que faziam divisa com a propriedade principal. Na maioria dos casos não houve sequer a menção aos pontos cardeais, comuns aos registros fundiários da época. 12 O proprietário não correspondia necessariamente ao declarante, uma vez que menores de idade eram acompanhados de seus tutores, os quais registravam a propriedade, como previsto no Regulamento de 1854, art. 94. 13 Existe no microfilme do RPT de Caconde uma lacuna em relação aos registros de número 158, 159 e 160, os quais não puderam ser contabilizados na presente pesquisa mas que, dado o grande volume de declarações completas, acreditamos não ser representativa.

8 massas a partir das relações entre declarante e confrontante14 (figura 1). Foi utilizada a base cartográfica da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (CGG), folha de Casa Branca, de 1905, onde várias fazendas estão demarcadas com os mesmos nomes do Registro de 1856. A espacialização de todo o Registro Paroquial mostrou-se inviável, pelas seguintes razões: grande quantidade de fazendas com o mesmo nome; descrições vagas entre confrontantes15; declarantes homônimos; diversos declarantes diziam ter terras em mais de uma fazenda, as quais declaravam juntas e com referenciais vagos16; propriedades declaradas em nome de vários proprietários17 e a existência de confrontantes que não aparecem como proprietários. Nessa etapa do diagrama, buscou-se pelas declarações que mencionam rios, barras de rios (ponto em que o rio deságua em outro), referenciais geográficos e a confrontação com patrimônios religiosos – de Caconde, doado em 1822 e do Espírito Santo do Rio do Peixe, doado em 1834 – como pontos de ancoragem da espacialização. Vários diagramas foram construídos e comparados, para assim resultarem na configuração conjectural com 21 propriedades (Figura 2).

14 Uma vez que as confrontações das fazendas ou partes de terras são feitas por nomes de outros fazendeiros, não é possível saber onde a fazenda se localiza a menos que saibamos a quem ela pertence. 15 Joaquim José de Farias declara ser possuidor de “possui seis alqueires e três quartos e meio de terras sitas nesta Freguesia de Caconde, d'alem do Rio Pardo, sitas no lugar da Boa Vista (...) dividindo por baixo com a Fazenda do Dutra Machado e por outro lado com Manoel de Souza e com José de Farias, Modesto de Farias e Flávio José Marques donde teve princípio” (APESP, 1856, nº 45). 16 “João Barbosa de Oliveira possui terras nesta Freguesia, em comum com outros, e que dividem com a província de Minas, Antônio Martins da Costa e outros, - com Joaquim Cândido de Araújo, e seu sócio Antônio Thomaz do Prado – Antônio José de Moraes e outros: cujas terras cujas terras fazem parte da Fazenda de São Matheus, Bom Jesus, em número de cem alqueires mais ou menos, e houve por compra e herança. Caconde, vinte e seis de março de mil oitocentos e cinquenta e seis” (APESP, 1856, nº 92). 17 Caso da declaração nº 79, de José Christóvão de Lima que “possui em sociedade com sus filhos uma fazenda denominada Água Limpa (...) e regulam mais ou menos em duas léguas de comprimento e três quartos de largura (...) as divisas principiam no nascente com o registrante, José Custódio Dias e outros, ao norte com Jeronimo Antônio de São José, ao poente com José Gomes Lima e outros, ao Sul com Joaquim Custódio Dias e outros” (APESP, 1856, nº 79). As declarações subsequentes, de número 80, 81, 82, 83, 84 e 85 são feitas em nomes de seus filhos, que receberam as terras “por herança materna”, e cujas descrições de confrontações idênticas às do pai, José Christóvão de Lima.

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Figura 1: Exemplo de um diagrama correspondente à primeira etapa do processo de espacialização das propriedades. O tamanho das formas não corresponde necessariamente à dimensão da propriedade, pois esse estágio do método serve tão somente para a identificação da localização da fazenda no território e dos confrontantes corretos. Elaboração dos autores (2019). Na Freguesia de Caconde, em 1856, quase a totalidade dos proprietários declararam possuir partes de terras em comum com outros sócios. Assim como no estudo de Carrara & Laguardia, a posse e a propriedade plena não aparecem discriminadas (2013, p. 214), exceto em casos específicos como a Fazenda Peão do Rio Pardo18, que serviu de ponto de partida para a espacialização das demais. No exemplo anterior (figura 1) várias declarações foram lidas e comparadas – as confrontações de sócios da mesma propriedade foram checadas – chegando a uma hipótese de espacialização. Essa configuração conjectural (Figura 2) tomou como pontos de apoio a Fazenda Peão do Rio Pardo, a hidrografia do Rio Pardo, Rio Fartura e Rio do Peixe além do patrimônio doado em 1834 para o Espírito Santo do Rio do Peixe (futuro município de

18 “Francisco de Nogueira possui uma Fazenda de cultura denominada Pião do Rio Pardo desta Freguesia de Caconde, e que houve por compra feita ao Capitão Alexandre Luis de Mello e seu filho o Padre Carlos Luiz de Mello cujas as divisas principiando por baixo do rio Pardo, divisando com terras de da Fazenda de José Machado de Lima, Francisco Rodrigues de Carvalho, Venerando Ribeiro da Silva, confrontando com os moradores das Mococas, divisando águas vertentes do Ribeirão de Canoas, e depois dividindo com terras do Capitão Joaquim Custódio Dias, Dona Ana Custódia da Silva e seus filhos, até entrar no Ribeirão de Guaxupé até por este abaixo até a barra no Rio Pardo abaixo até pontiar com um corregozinho que se acha abaixo da barro do córrego denominado Limoeiro e pelo meio da água do dito corregozinho acima até o alto divizando com o (ilegível) Ananias Joaquim Machado pelo espigão nesta adiante divizando com terras da fazenda Monte Alegre, Manoel Alvez de Carvalho, até embicar no Rio Pardo onde teve princípio esta confrontação: regulando ter de comprimento duas léguas e huma de largura” (APESP, 1856, nº 9).

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Divinolândia-SP)19. Os próprios declarantes se referiam às suas propriedades como estando circunscritas em uma geometria20, o que justifica iniciar a elaboração dos diagramas a partir de uma elipse. O que hoje pode significar uma imprecisão, não o era no momento da declaração, bastando os confrontantes se reconhecerem como tais (CARRARA & LAGUARDIA, 2013, p. 216).

Seguindo a indicação de Carrara & Laguardia (2013) buscou-se a proximidade cronológica das declarações como um indício de proximidade das propriedades. Dessa forma, é possível agrupar as declarações por datas, o que corrobora com a ideia de que os proprietários declaravam suas partes de terras em conjunto, evitando futuros possíveis litígios ou contestações dos registros de terras. Se para os autores, “a informação ao final da declaração quanto às mesmas regiões pode igualmente indicar, se não vizinhança, ao menos proximidade” (CARRARA & LAGUARDIA, 2013, pp. 217-218). Assim, identifica-se que as primeiras declarações eram de fazendas que se localizavam ao sul do Rio Pardo, sendo as que concentravam também maior quantidade de sócios. Essa região – espacializada no mapa (Figura 2) – localiza-se entre importantes caminhos que ligavam a freguesia de Caconde aos patrimônios religiosos do Esp. Santo do Rio do Peixe (1834, atual Divinolândia-SP) e São José do Rio Pardo (que foi doado somente em 1865).

Há, portanto, uma relação intrínseca entre estrutura fundiária, caminhos e o meio natural. A formação de patrimônios religiosos não ocorria ao acaso: a grande concentração de proprietários de terras em um espaço relativamente restrito, pode evidenciar que um evento de ruptura com a dinâmica agrária ocorreria, pela formação de um núcleo urbano através de um patrimônio religioso.

19 Outro patrimônio foi formado em 1865, a partir da doação de 12 alqueires de terras da Fazenda Laje (antiga Fazenda Cachoeira do Lajeado em 1856), por cinco sócios cujas terras se achavam pró-indiviso na mesma fazenda. Sobre a formação desses núcleos urbanos, ver Ferreira (2017). 20 “João Ferreira de Carvalho possui uma parte de terras na Fazenda do Pinhal, desta freguesia divisando pelo lado da nascente com o vigário Prudenciano Antônio Nogueira e seguindo com Antônio Ramos, e Juvenal Marinho de Moura - Prudenciano Marinho de Moura Ramos (...) contém dentro desde círculo setenta alqueires pouco mais ou menos. Caconde, vinte de abril de mil oitocentos e cinquenta e seis (...)” (APESP, 1856, nº 126, grifo nosso)

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Figura 2 - Espacialização das propriedades rurais do Registro de Terras de 1856, relacionadas com a formação dos patrimônios religiosos do Esp. Santo do Rio do Peixe (1844) e de São José do Rio Pardo (1865) e os caminhos, destacados em preto. Constam as seguintes propriedades: 1) Pião do Rio Pardo; 2) Cachoeira do Lajeado; 3) Monte Alegre; 4) Santo Antônio do Rio do Peixe; 5) Fazenda Limoeiro; 6) Fazenda Barra da Fartura (dividida judicialmente em 1859, anteriormente fazenda Fartura); 7) Engenho da Boa Vista da Fartura (dividida judicialmente, anteriormente fazenda Fartura); 8) Sertão Grande do Rio Pardo; 9) Fazenda São Domingos; 10) Fazenda Boa Vista; 11) Fazenda Salto; 12) Fazenda Fortaleza; 13) Fazenda Vargem Grande; 14) Fazenda Matos; 15) Fazenda Ribeirão de São Domingos e Rio do Peixe; 16) Fazenda Três Barras; 17) Fazenda Guariroba; 18) Fazenda Barra do Lambari; 19) Fazenda Barreiro; 20) Fazenda Água Limpa; 21) Fazenda Laje. Em verde no mapa, destacamos ainda os patrimônios religiosos criados no Espírito Santo do Rio do Peixe (1844), São José do Rio Pardo (1865) e Caconde (1822). Desenho dos autores sobre mapas da CGG de 1905 (Folha de Casa Branca ao centro), 1914 (Folha de Caldas à direita) e 1911 (Folha de na parte superior). FONTE: FERREIRA, 2017, p. 230.

A estrutura agrária no Registro de Terras de Caconde

O RPT de Caconde consta de 390 declarações, como mencionamos, mas com um total de 83 propriedades sendo 57,84% de posse coletiva e 42,16% com apenas um proprietário. Comparando os nomes das propriedades com recurso do Excel, chega-se ao total de sócios

12 declarantes que tinham partes de terras dentro das propriedades21. A concentração de terras (42%) com apenas um proprietário é fruto das origens da ocupação da região. Nas primeiras décadas do século XIX, a família do Capitão de Ordenanças Alexandre Luiz de Mello obteve grandes extensões de terras em sesmaria (12 léguas no total), tornando-se grande fazendeiro. Uma de suas sesmarias (ver Ferreira, 2017, p. 207) foi vendida a Francisco de Assis Nogueira, formando a Fazenda Peão do Rio Pardo. De acordo com Di Creddo (2003), Francisco de Assis Nogueira foi um dos pioneiros na ocupação da região do Vale do Paranapanema, sendo responsável pela doação de terras para a fundação de Assis-SP em 1880 (DI CREDDO, 2003, p. 73). A concentração de terras em sesmarias e na grande fazenda de Assis Nogueira explicam a disparidade das propriedades espacializadas no mapa anterior (Figura 2).

Características das declarações no Registro Paroquial de Caconde

Exemplos ilustram como as declarações eram redigidas, em muitos casos diretamente na propriedade do declarante e depois levadas ao vigário da paróquia. Antônio Joaquim Teixeira declara ser possuidor de “cento e sessenta alqueires de terras cultivadas e divididas” (APESP, 1856, nº 86) na Fazenda Fartura. O declarante assina “Fartura, 10 de abril de 1856” e, logo abaixo, a data do registro paroquial em 15 de abril de 1856, ou seja, o documento foi feito antes do registro do vigário, na propriedade do próprio declarante. O mesmo acontece com a declaração de Miguel Vieira Monteiro, redigida na Fazenda Faisqueira em vinte e quatro de abril de 1856 e declarada ao vigário em três de maio do mesmo ano (APESP, 1856, nº 171).

21 Água Limpa (7); Barra (5); Barra do Lambari (8); Barreiro (3); Bicudos (1); Boa Vista (12); Boa Vista da Fartura (3); Boa Vista dos Nunes (38); Bocaina (7); Bom Jesus (12); Bom Sucesso (12); Cabeceiras da Sulidade ou Sulidade (2); Cachoeira (12); Cachoeira de São Domingos (1); Cachoeira do Lajeado (1); Cachoeira do Rio do Peixe (3); Campestre (21); Campo (1); Canoas (1); Cascalho (1); Chácara de São Miguel (3); Cocaes (8); Conceição (11); Conceição do Pinhal (1); Contendas (1); Córrego de São da Boa Vista da Barra (1); Córrego do Engano (16); Córrego do Espírito Santo (1); Córrego do Sarafim (1); Cubatão (2); Destricto (1); Dona Victória Maria de Jesus (1); Engenho da Boa Vista do [ilegível] (1); Espírito Santo (4); Estreito (2); Faisqueira (11); Fartura (18); Fartura dos Coqueiros (1); Fazenda Barreiros (3); Fazenda Bocaina (7); Fazenda Campestre das Três Barras (3); Fazenda Capinzal (1); Fazenda da Grama (3); Fazenda do Pinhal do Rio Pardo (42); Fazenda do Rio do Peixe (9); Fazenda dos Matos (1); Fortaleza (1); Guariroba (1); (5); Lacatrapo (1); Laje (1); Limoeiro do Rio do Peixe (4); Monte Alegre (4); Morro Alto (1); “na beira do Rio Pardo” (1); Parador (2); Pião do Rio Pardo (1); Pinhal da Conceição (1); Pirapetinga (2); Ribeirão (1); Ribeirão da Conceição (1); Ribeirão de Santo Antônio (2); Ribeirão de São Domingos e Rio do Peixe (2); Ribeirão do Espírito Santo (2); Ribeirão Grande (2); Ribeirão São Miguel (1); Rio do Peixe (6); Salto do Rio Pardo (5); Santa Barbara (1); Santo Antônio (1); Santo Antônio do Rio do Peixe (6); São Domingos (6); São Gonçalo (7); São João (1); São Matheus (19); São Miguel (26); São Miguel do Pinhal (1); São Thomaz (2); Serra das Contendas (1); Sertãozinho (1); Tiririca (1); Três Barras (12) e Vargem Grande (9).

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Quais as implicações desse fato? Acreditamos que esse detalhe ajuda a esclarecer uma lacuna sobre o método utilizado para realizar o Registro Paroquial de Terras. Além disso, sendo dessa forma, os proprietários poderiam combinar em conjunto suas declarações, levando-as posteriormente ao vigário e se resguardando de possíveis litígios de terras: o registro era feito de modo que nenhuma irregularidade era detectada, muito menos terras devolutas eram contabilizadas.

Outro caso ilustra a importância do Registro Paroquial para a compreensão da formação da estrutura agrária, em conjunto com outros documentos. As declarações de Vicente Ferreira Pinto, Domiciano Ferreira Pinto e João Nepomuceno Pinto, feitas entre 22 e 24 de abril de 1856, os colocam como possuidores de “terras de cultura e matos” na Fazenda Três Barras, em número de “noventa e nove alqueires mais ou menos” (APESP, 1856, nº 146). Suas terras em comum, principiam no Rio do Peixe e divisam com o Patrimônio do Divino Espírito Santo. O primeiro afirma ter obtido a propriedade “por falecimento de Victória Maria de Jesus e por compra de Miguel da Silva Teixeira” (APESP, 1856, nº 144). Miguel da Silva Teixeira foi o doador do patrimônio para a restauração da Freguesia de Caconde, em 1822. Ocupava a região desde, pelo menos, 1821, quando é citado em um pedido de sesmaria a favor do Padre Ignácio do Prado e Siqueira como morador na paragem do Rio do Peixe (FERREIRA, 2017, p. 204). Miguel da Silva Teixeira também figura como proprietário de terras nas fazendas Rio Pardo e Gumba, pelo documento “Tombamento de Bens Rústicos” de 1818 (FERREIRA, 2017, p. 185), e tinha laços de parentesco com Gabriel da Silva Teixeira que, em 1834, doa 15 alqueires de terras em comum com outros sócios para formar o patrimônio da Capela do Divino Espírito Santo do Rio do Peixe – atual município de Divinolândia-SP (FERREIRA, 2017, p. 250-252). Era também irmão de Simão da Silva Teixeira que, segundo Adriano Campanhole, foi o fundador São Simão-SP; ambos mineiros, naturais de São João del Rei-MG (CAMPANHOLE, 1979, p. 193). O fato de Vicente Ferreira Pinto declarar ser possuidor de terras na Fazenda Três Barras demonstra que esta se localizava próximo ao núcleo urbano do Espírito Santo do Rio do Peixe, que foi capela curada em 25 de janeiro de 1856. Mostra ainda a sucessão na titularidade da área, que passou de Miguel da Silva Teixeira para os declarantes acima citados, desmembrando antigas propriedades e consolidando núcleos urbanos fruto das mesmas.

Os patrimônios religiosos

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Os patrimônios religiosos22 foram uma constante no processo de formação da rede urbana paulista, até as primeiras décadas do século XX. Doar uma parte de terras a um santo de devoção significa, além das benesses religiosas, uma oportunidade de diversificação econômica em virtude do desenvolvimento de uma nova povoação. Após a Lei de Terras de 1850, ocorre rápida valorização das terras tanto em áreas pioneiras de ocupação, quanto naquelas já consolidadas. Muitos fazendeiros viam nessas porções de terras oportunidades para investimentos diferentes das atividades da lavoura. Além disso, em fazendas onde haviam grande concentração de famílias, naturalmente direcionava-se para a criação de uma povoação. A Igreja Católica direcionava essa prática, no sentido em que as terras do patrimônio eram administradas pela Igreja, que recolhia o rendimento dos aforamentos e, também, o dízimo dos fiéis. No RPT encontram-se significativas menções à confrontação dos patrimônios religiosos que, como foi visto, facilitaram a espacialização das propriedades. Ser confrontante de um patrimônio era uma promessa de investimento – as terras das fazendas poderiam ser futuramente divididas e vendidas em lotes, ampliando o tecido urbano da povoação. A declaração de Antônio Cardozo da Silva tem as seguintes confrontações:

(...) principiam na barra do Rio do Peixe com o São Domingos, divisando com terras de Joaquim da Silva Pereira, José Ferreira da Costa, Capitão Thomaz José de Andrade (...) e com o patrimônio da capella do Espírito Santo do Rio do Peixe (APESP, 1856, nº 5).

O mesmo ocorre com o patrimônio de Nossa Senhora da Conceição de Caconde, doado em 1822, que aparece como confrontante em diversas declarações. Vicente Cândido de Araújo declara em 25 de fevereiro de 1856 possuir “uma parte de terras de cultura que formam parte da Fazenda do Pinha (...) [que] dividem com terras do patrimônio desta Matriz e com o Reverendíssimo Prudenciano Antônio Nogueira, José Maria de Almeida, Flávio Leonardo de Salles, e José de Almeida” (APESP, 1856, nº 53).

Os bairros rurais

22 Porções de terras doada a um orago de devoção, para a formação de um povoado, através de uma escritura de terras. Uma constante no Brasil Colônia, essa prática adentrou o Império e mesmo a República e foi responsável pelo controle do solo pela Igreja Católica, através do aforamento de datas de terras.

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Muitas fazendas repetidamente declaradas no Registro de Terras se agruparam em bairros rurais, reconhecidos na cartografia da CGG do início do século XX. A permanência da toponímia de antigas fazendas em bairros rurais e até mesmo núcleos urbanos, é uma evidência do processo de transformação da terra rural em terra urbana. O que se entende por uma propriedade rural poderia corresponder a um bairro rural na medida em que mesmo aqueles que não possuíam a propriedade da terra residiam no local com suas famílias. A declaração de nº 14, feita por Vicente Francisco Ferreira, menciona que este “possui uma parte de terras no campestre sitas nas cabeceiras do Rio do Peixe” (APESP, 1856, nº 14, grifo nosso) e, de fato, o mapa da CGG de 1914 (Folha de Caldas) traz a representação do bairro “Campestrinho”, nas cabeceiras (nascentes) do Rio do Peixe (figura 3).

Figura 3 Recorte do Mapa da CGG, Folha de Caldas (1914). Em vermelho, destaque para o bairro rural de Campestrinho e a fazenda de mesmo nome. Elaboração dos autores (2019).

Considerações finais

Através do presente trabalho, demostra-se a relevância do estudo dos Registros Paroquiais de Terras para elucidar o processo de formação territorial e para a História Urbana. Utilizou-se aqui do exemplo do Registro Paroquial de Terras da Freguesia de Caconde, elaborado entre 1854 e 1856. Buscou-se, com isso, trabalhar a partir dos métodos de outros autores que já utilizaram essa fonte de pesquisa, com a intenção de, a partir do cruzamento de outras fontes documentais, avançar no desenvolvimento de métodos de espacialização de parte das propriedades e exame da estrutura agrária dessa paróquia em específico. O estudo aponta para uma estrutura agrária formada por pequenas fazendas, de posse coletiva em sua maioria, em meio às permanências fundiárias que remontam às primeiras sesmarias concedidas na região e ao domínio de atores sociais responsáveis pela fundação de novos núcleos urbanos na Província de São Paulo. A grande concentração fundiária justifica-se pelas permanências dessas

16 estruturas, ao passo que o sistema de posse coletiva e o tipo de propriedade que se declara – sorte de terras, partes de terras, terras de cultura, etc. – mostra uma pulverização de atores em torno dos patrimônios religiosos já existentes no território.

Esse estudo pode ser ampliado para os registros de terras de outras paróquias, da mesma rede urbana, compreendendo a relação entre os agentes sociais em uma escala geográfica mais ampla. Um estudo como esse pode revelar o aspecto espacial, geográfico por assim dizer, da atuação de uma elite regional – e suas diversas articulações na rede urbana – proprietária de terras, pelo controle tanto do espaço rural como urbano, na medida em muitos desses agentes foram responsáveis pela fundação de núcleos urbanos através da doação de patrimônios religiosos. O trabalho coloca em evidência, também, a relação da propriedade fundiária com o meio natural – relevo e acidentes topográficos, hidrografia, áreas alagadiças e estreitos de rios que condicionam caminhos– com o objetivo de melhor compreender a localização e a característica do tecido dos núcleos urbanos formados justamente a partir do desmembramento de fazendas, pela doação de patrimônios religiosos.

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