DESENVOLVIMENTO RURAL: ANÁLISE DAS AGROINDÚSTRIAS FAMILIARES DE -RS

DESENVOLVIMENTO RURAL: ANÁLISE DAS AGROINDÚSTRIAS FAMILIARES DE CAMPINAS DO SUL-RS Rural development: the analysis of the familiar agroindustries of Campinas do Sul - RS MARIN, M. Z. TRENTIN, C. E. G.

Recebimento: 14/08/2009 - Aceite: 28/09/2010

RESUMO: O presente trabalho teve por tema o desenvolvimento rural e as agroindústrias familiares. O problema de pesquisa foi: Quais as características e as perspectivas sócioeconômicas das agroindústrias familiares inseridas no Programa de Desenvolvimento do Meio Rural da EMATER/Prefeitura Municipal de Campinas do Sul-RS? Como hipóteses considerou-se que as agroindústrias familiares têm se manifestado como geradoras de renda e de melhoria da qualidade de vida, estratégia de permanência dos agricultores no meio rural e possibilidade de redução da sujeição dos mesmos aos capitais comercial, industrial e financeiro. O trabalho teve por objetivo geral, portanto, analisar as agroindústrias familiares como estratégia de desenvolvimento do meio rural de Campinas do Sul - RS. A metodologia utilizada baseou-se na pesquisa bibliográfica e na pesquisa de campo. Em 2004, surgiram as primeiras discussões a respeito da necessidade de se criar alternativas de geração de renda no meio rural de Campinas do Sul e, como consequência, promover o desenvolvimento rural. Hoje são vinte projetos que compõem o Programa de Desenvolvimento do Meio Rural, dezesseis vinculados às agroindústrias, que atendem a mais de cem famílias. As agroindústrias têm se caracterizado como alternativa de renda, mas a atividade agrícola é, ainda, a base das unidades de produção. Palavras-chave: Agricultura familiar. Desenvolvimento rural. Agroindústria familiar. Campinas do Sul - RS.

ABSTRACT: The present work had the rural development and the familiar agribusiness as a theme. The research problem was: which are the character- istics and the socio economic perspective of the familiar agribusiness inserted in the Development of Rural Communities Program, developed by EMATER/ Campinas do Sul-RS City Hall? As the hypothesis it was considered that the familiar agribusiness have appeared as income generator and as an improve-

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ment in the quality of life, remain strategy of the farmers’ permanence in the countryside in Campinas do Sul-RS. The methodology used was based on the bibliographic and field research. In 2004, the first discussions about the need to create options of income generation in the countryside of Campinas do Sul- RS aroused, and as a consequence, the promotion of the rural development of the local. Today there are twenty projects that encompass the Program for the Development of Rural Sites, sixteen of them linked to the agribusiness, which help more than a hundred families. The agribusiness has been charac- terized as an income alternative, but the farm activity is still the base of the production unities. Keywords: Family´s agribusiness. Rural development. Familiar agroindustry. Campinas do Sul-RS.

fornecedora destes produtos. Na outra ponta, fazendo parte dos complexos agroindustriais, Introdução quem define quanto vai pagar pelos produtos dos agricultores são as grandes redes de co- O presente trabalho procurou discutir as mércio (atacadista ou varejista), pois são seg- estratégias de desenvolvimento rural a partir mentos altamente capitalizados que exercem das agroindústrias familiares do Município forte poder no mercado. Ainda, e principal- de Campinas do Sul-RS. Para isso buscou-se mente, o mercado internacional exerce hoje analisar as características e perspectivas das forte influência na determinação dos preços agroindústrias familiares de tal Município. da produção agrícola. Os agricultores ficam, O problema de pesquisa foi: Quais as carac- assim, reféns das indústrias e dos mercados terísticas e as perspectivas socioeconômicas (nacional e internacional) tanto a montante das agroindústrias inseridas no Programa de quanto a jusante das cadeias produtivas. Desenvolvimento do Meio Rural da EMA- O aumento da escala de produção, tão 1 TER /Prefeitura Municipal de Campinas do necessário para gerar excedente e tão incen- Sul-RS? As agroindústrias familiares estão tivado na agricultura moderna, tem servido correspondendo às expectativas sociais, para enriquecer os parques industriais e as econômicas e ambientais dos agricultores de grandes redes de comércio, onde o agricultor Campinas do Sul - RS? cumpre o papel de consumidor de insumos Segundo Gomes (2006), a renda que in- e maquinários e de fornecedor de matérias- gressa nas unidades de produção dos agricul- primas para o complexo agroindustrial, co- tores é resultante, principalmente, da produ- mercializando seus produtos com baixo valor ção agropecuária, que é ofertada no mercado agregado. Este modelo de desenvolvimento, para o agricultor adquirir os bens necessários além de excluir grande quantidade de famílias para a reprodução social e econômica da sua de agricultores do campo, vem acentuando família. Nas relações com o mercado, a renda cada vez mais a degradação ambiental. A agrícola das famílias dos agricultores fica implantação de agroindústrias familiares no espremida entre os altos custos de produção meio rural constitui-se, nesse sentido, em e os baixos preços dos produtos, pois quem uma alternativa aos agricultores, sendo de define os preços dos insumos e maquinários grande potencial para o desenvolvimento das necessários para a produção é a indústria famílias rurais (GOMES, 2006).

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Um exemplo disso são as agroindústrias Para Sachs, o ecodesenvolvimento se familiares de Campinas do Sul - RS, que integra com outros aspectos não exatamente estão inseridas no Programa de Desenvol- ambientais para definir um verdadeiro de- vimento do Meio Rural, desenvolvido pela senvolvimento. Os principais aspectos desse EMATER/Prefeitura Municipal. Procurou- desenvolvimento seriam: a satisfação das se caracterizá-las, socioeconomicamente, necessidades básicas dos seres humanos, a preocupando-se com as perspectivas dessas solidariedade para com as gerações futuras, para a melhoria de renda e qualidade de vida a participação da população e o respeito às dos agricultores e demais atores envolvidos culturas nativas (CARMO, 1998). no Projeto. A questão ambiental, no entanto, só come- Quanto à metodologia, a investigação de- çou a ganhar destaque na esfera política com senvolveu-se através de revisão bibliográfica a primeira Conferência das Nações Unidas e entrevistas realizadas a campo. Buscou-se sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, analisar agricultores, EMATER e Secretaria realizada em Estocolmo, em 1972, quando, Municipal da Agricultura, principais atores em função da propagação da teoria do eco- envolvidos no Programa de Desenvolvimento desenvolvimento, a Organização das Nações Unidas (ONU) constatou que a degradação do Meio Rural de Campinas do Sul - RS. ambiental tinha uma profunda ligação com o modelo de desenvolvimento adotado, ba- Desenvolvimento Rural e Agricultura seado no uso intensivo e indiscriminado dos Familiar: Uma Discussão ecossistemas terrestres e aquáticos. Procurar-se-á discutir, inicialmente, a No início da década de 1980, a ONU noção de desenvolvimento. Tomar-se-á como retomou o debate das questões ambientais. base a noção de desenvolvimento sustentá- Indicada pela entidade, a primeira-ministra vel, associada à questão ambiental, pois a da Noruega, Gro Harlem Brundtland, chefiou construção inicialmente realizada em torno a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente da ideia de desenvolvimento sustentável teve e Desenvolvimento, para estudar o assunto. O documento final desses estudos chamou-se como fundamento a problemática ambiental. Nosso Futuro Comum ou Relatório Brun- Posteriormente, discutir-se-á a agroindústria dtland. Apresentado em 1987, propôs o familiar na perspectiva do desenvolvimento desenvolvimento sustentável como “aquele rural e da pluriatividade em unidades de que atende às necessidades do presente sem produção familiar. comprometer a possibilidade de as gerações A preocupação com a degradação e a con- futuras atenderem às suas necessidades” servação do meio ambiente ganha legitimi- (Nosso Futuro Comum, 1991). Em 1992, no dade através do meio científico-acadêmico, Rio de Janeiro, representantes de quase todos a partir da década de 1950, sobretudo nas os países do mundo reuniram-se para decidir ciências naturais. Em 1970, Ignacy Sachs que medidas tomar para conseguir diminuir a apresentou a teoria do ecodesenvolvimento, degradação ambiental e garantir a existência em que relaciona a degradação ambiental ao das gerações futuras. Iniciava-se a segunda modelo de desenvolvimento fundamentado Conferência das Nações Unidas sobre Meio no uso intensivo e exploratório dos recur- Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92. sos naturais, sugerindo, então, mudanças A intenção, nesse encontro, era introduzir no modelo produtivo de desenvolvimento a ideia do desenvolvimento sustentável, (CARMO, 1998). como um modelo de desenvolvimento menos

PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.127, p. 35-51, setembro/2010 37 Mario Zasso Marin - Cláudia Emilia Girelli Trentin consumista e mais adequado ao equilíbrio deve, ao mesmo tempo, oportunizar, em ecológico. cada local, o crescimento da economia a Para Carmo (1998), seguindo a linha da curto, médio e longo prazos, a geração de postos de trabalho com distribuição mais Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e equitativa de renda, respeitando culturas Desenvolvimento, o desenvolvimento susten­ locais e reconstruindo e/ou preservando tável está alicerçado em três eixos: o eco- o equilíbrio ambiental. Com base na nômico, o social e o ambiental. Estão inter- diversidade de situações e de soluções, relacionados num processo de transformação o desenvolvimento toma um teor próprio que transcende limites geográficos e políticos em cada realidade local (ALMEIDA, e coloca a sobrevivência do homem, e de 1998, p.136 apud PREZOTTO, 2002, outras espécies, como seu objetivo maior. p.52-53). Entende-se o sustentável como um desen- volvimento social e de progresso econômico, Nesse caso, cabe destacar o novo papel mantendo e conservando os recursos naturais, a ser desempenhado pelo meio rural, em um origem do futuro comum de uma humanidade novo modelo de desenvolvimento. Para Pre- que pretende tornar os impactos econômicos zotto (2002), a expressão “desenvolvimento sobre o meio ambiente coisa do passado. rural sustentável” englobaria as propostas que prometem um novo padrão produtivo, “O crescimento através da desigualdade, alternativo à forma de desenvolvimento con- modelo até hoje vigente, e que já teve seus vencional. Ele também vê o desenvolvimento anos dourados de 1950 a 1975, levou a uma agrícola sustentável como um novo anseio a produção em massa de alimentos, porém um novo paradigma tecnológico que não agri- com mais fome, miséria e desperdício” da o meio ambiente, servindo para explicar a (HOBSBAWN, 1995 apud CARMO, 1998, insatisfação com a agricultura convencional. p.217). Para Leis (1999) e Leff (2001), a ideia O desenvolvimento rural sustentável procura de desenvolvimento sustentável pressupõe viabilizar os atores rurais do ponto de vista um desafio civilizatório, em que mudanças social e econômico, com participação nos ideológicas e comportamentais devem fun- processos decisórios e proteção aos recursos damentar as mudanças políticas, econômicas naturais. e sociais. Para Carmo (1998), é necessário um es- Diante da dificuldade em definir “susten- forço da pesquisa no sentido de uma transição tabilidade”, Prezotto indica alguns princípios para uma nova agricultura, na qual a manu- que norteiam esse debate. tenção e o aumento da fertilidade do solo, a O desenvolvimento sustentável, enten- preservação de outros recursos naturais e a demos, deve permear uma condição permanência dos valores culturais das po- de equilíbrio entre os aspectos social, pulações rurais sejam partes de um modelo cultural, ambiental e econômico. A de desenvolvimento com novas formas de sustentabilidade está, ainda, associada à produção e organização social, sem que haja viabilidade e à longetividade. Incorpora, o risco da cristalização de uma agricultura neste caso, a ideia de um processo dinâ- sustentável distantes de reformas sociais. mico e durável e, além do crescimento econômico, um caráter de justiça social, Dessa forma, as alternativas de utilização de preservação das culturas locais e de das unidades de produção devem seguir as recuperação e preservação ambiental. metas estabelecidas dentro de um novo pa- Dentro de uma harmonia homem- drão de desenvolvimento (rural) sustentável. natureza, o desenvolvimento sustentável Em primeiro lugar, é preciso considerar a vo-

38 PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.127, p. 35-51, setembro/2010 DESENVOLVIMENTO RURAL: ANÁLISE DAS AGROINDÚSTRIAS FAMILIARES DE CAMPINAS DO SUL-RS cação natural da unidade produtiva, que deve ambientalista conquistou espaço, a agricul- estar alicerçada numa seleção de atividades tura familiar começou a ser “reconhecida”, e práticas agrícolas compatíveis com as apti- pois além de cumprir função econômica, ela dões e capacidades de uso dos diversos tipos também pode desenvolver papel fundamental de solo existentes localmente. Em segundo na preservação ambiental. lugar, o planejamento ambiental dos muni- O debate sobre desenvolvimento rural cípios deve considerar a importância de se no Brasil está ligado ao papel da agricultura conquistar um novo referencial de qualidade familiar e especialmente sua reinserção so- de vida das pessoas que vivem no meio rural. cioeconômica. A diversificação produtiva na A obtenção desse nível de melhoramento da agricultura familiar deveria ser incentivada qualidade de vida das pessoas está condi- como estratégia importante de desenvolvi- cionada ao acesso à saúde, à educação, ao mento. Entretanto, Lages (1998 apud COS- lazer, à informática, à telefonia, aos meios de TA, 2002) enfatiza que, com o processo de transporte e, em especial, às disponibilidades industrialização e urbanização, a agricultura de energia, desde os combustíveis sólidos e familiar perdeu a identidade e o trabalho do líquidos (utilizados na sua grande maioria produtor passou a ser pouco valorizado. No como matriz energética da propriedade Brasil, a grande propriedade, dominante em rural) e, principalmente, a energia elétrica. toda sua história, se impôs como modelo O terceiro aspecto envolve a questão tecno- socialmente reconhecido e recebeu estímulo lógica, ou seja, as tecnologias utilizadas nas das políticas agrícolas. A agricultura fami- atividades agropecuárias, tais como preparo liar sempre ocupou um lugar secundário e do solo, uso de adubos e corretivos, irrigação, subalterno na sociedade brasileira, sendo um mecanização, tratos culturais, colheitas, etc., setor bloqueado e somente passou a receber devem estar de certa maneira adequadas a atenção das políticas a partir de meados da um novo padrão de desenvolvimento rural, década de 1990, com a criação do Programa que tem por base uma agricultura sustentável de Fortalecimento da Agricultura Familiar (CAMPOS, 1999). (Pronaf). As diretrizes políticas formuladas pelo Segundo Carmo (1998), o funcionamento Governo Federal a partir de meados da dé- da exploração familiar vem no sentido de cada de 1990 para o meio rural, reflexo dos apreender uma lógica de produção enquanto resultados e das discussões da ECO-92 e da um equilíbrio da família e o comportamento pressão dos movimentos sociais, destaca econômico circundante. Para uma concei- como principal objetivo o de contribuir na tuação geral, Lamarche (1993, p.15 apud elaboração de uma nova estratégia de desen- CARMO 1998, p. 228) explicita que: “a volvimento rural para o Brasil, tendo como exploração familiar, tal como a concebemos, preocupação maior a agricultura familiar. corresponde a uma unidade de produção Para Candiotto e Corrêa (2004), é surpreen- agrícola onde a propriedade e o trabalho dente como a agricultura familiar é consi- estão intimamente ligados a família”. Esta, derada aquela mais próxima à ideologia do ao mesmo tempo em que é proprietária dos desenvolvimento sustentável. Segundo Costa meios de produção, assume o trabalho no (2002, p. 93). “A agricultura familiar, imersa estabelecimento produtivo. Nesse caso, a em uma crise socioeconômica e ambiental agricultura familiar caracteriza-se por rela- decorrente da modernização tecnológica, ções não capitalistas de produção. tornou-se alvo do desenvolvimento susten- Carmo (1998, p. 228), ao discutir a explo- tável”. No momento em que o pensamento ração familiar, coloca que: “[...] produção,

PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.127, p. 35-51, setembro/2010 39 Mario Zasso Marin - Cláudia Emilia Girelli Trentin consumo e acumulação do patrimônio, atri- agroindustriais. Ao mesmo tempo, o modelo bui-lhe uma lógica de produção/reprodução de integração agroindustrial tradicional vem em que cada geração procura assegurar um passando por mudanças substanciais. Tais nível de vida estável para o conjunto da fa- mudanças trazem repercussões sobre a agri- mília e a reprodução dos meios de produção”. cultura familiar. Para a mesma autora: Segundo Mior (2005), patamares tecno- O funcionamento de uma exploração lógicos, especialização e escalas crescentes familiar passa necessariamente pela estão promovendo um processo de seleção e família enquanto elemento básico de exclusão de produtores integrados às tradicio- gestão financeira, destinação de recursos nais cadeias produtivas. É nesse sentido que monetários auferidos e do trabalho total se tem a contribuição de Wilkinson (2000), disponível [...]. Nesse sentido, as deci- que discute: sões sobre a renda líquida obtida com a A agricultura familiar deveria vir ocupar venda da produção, fruto do trabalho da um lugar de destaque em processos au- família, pouco tem a ver com a categoria tônomos de agroindustrialização, como “lucro puro” de uma empresa, represen- forma de fortalecer sua capacidade de tado pela diferença entre renda bruta e reprodução social. Dentro deste esco- custo total (1998, p. 228). po levanta a necessidade de políticas Dessa forma, para se entender as relações públicas em favor das várias formas de entre a organização interna da produção agroindustrialização, que abrangem des- em bases familiares e o mundo externo, de o mercado informal até mercado de con­substanciado no processo de produção/ nicho, produtos orgânicos e de qualidade reprodução/acumulação, o que esclarece, em diferenciada (apud MIOR, 2005 p.73). parte, a lógica do agricultor face ao processo Segundo Mior (2005), em 1996 foi im- produtivo e o equilíbrio da família, implica- plantado o Pronaf, que trouxe novas perspec- se em extrapolar as avaliações simplesmente tivas socioeconômicas à agricultura familiar. econômicas. A produção familiar, dadas as Mior (2005) considerou o Pronaf como algo suas características de diversificação/integra- novo dentro do conjunto de políticas agríco- ção de atividades vegetais e animais, e por las elaboradas e implementadas nas últimas trabalhar em menores escalas, pode repre- décadas. sentar o lócus ideal do desenvolvimento de Ainda: uma agricultura ambientalmente sustentável. É fundamental, porém, que seja alvo de uma Há uma intensa discussão acerca de um política estruturada e implementada para esse novo eixo de luta, centrado na construção fim. Um novo padrão de desenvolvimento de um modelo alternativo de desenvol- vimento rural. [...] O Pronaf tem por definido pela autossustentabilidade potencia- objetivo geral propiciar condições para liza a participação da agricultura familiar na o aumento da capacidade produtiva, a oferta agrícola, embora não seja um segmento geração de empregos e o incremento da homogêneo (CARMO, 1998). renda, contribuindo para a melhoria da Wilkison (apud MIOR, 2005) argumenta qualidade de vida e ampliação do exercí- que a reprodução da unidade familiar não se cio da cidadania por parte dos agriculto- daria em função da sua superioridade técnica- res familiares (GOVERNO FEDERAL, econômica e sim porque ela seria a estrutura 1996 apud MIOR, 2005, p.164). social que mais converge com o esquema Nessa nova conjuntura do meio rural técnico, produtivo e econômico das estruturas brasileiro e gaúcho, destaca-se a rees-

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truturação de determinadas atividades. identificado apenas com áreas específicas de O espaço rural e a agricultura familiar produção agrícola. O meio rural extrapola passam a incorporar novas funções e ato- essa dimensão. res sociais e econômicos. Esse processo passou a ser chamado de pluriatividade. As funções tradicionais da agricultura brasileira, como abastecimento de produ- Para Alentejano: tos a baixo custo, geração de divisas para o país, servir de mercado para a indústria A pluriatividade caracteriza-se pela emergente, liberar mão de obra para os diversificação das formas de utilização demais setores da economia, financiar o na agricultura, com multiplicação de es- desenvolvimento nacional, gerar energia, tratégias complementares de reprodução cedeu parte deste espaço a significar fon- dos agricultores, que envolve, inclusive, te de emprego, de renda e de ocupação o recurso a outras atividades, seja o as- para as pessoas residentes no meio rural salariamento urbano, seja a transforma- (MAESTRELLI, 2002, p.184). ção industrial ou artesanal da produção agrícola, seja o desenvolvimento de Esse processo tornou-se mais evidente atividades terciárias (serviços e lazer) em regiões com predominância da agricul- na propriedade rural. O fundamental é tura familiar, onde a pluriatividade passou perceber que essas múltiplas estratégias a ser uma meta a ser alcançada, como fator representam o caminho, às vezes único, preponderante na elevação da renda rural. para assegurar a reprodução da unidade Para a família rural, as atividades de natureza familiar agrícola, quer porque a renda não agrícola no rural (que são causa e con- dita complementar é essencial, quer sequência da pluriatividade), além de abrir porque a especialização na atividade espaços para muitos filhos sem condições de agrícola não aparece como opção desejá- se tornarem proprietários rurais, porém, com vel para os descendentes (1999, p. 155). a opção de residência no meio rural, constitui- se numa forma de se evitar o abandono do Maestrelli, analisando a pluriatividade no campo (MAESTRELLI, 2002). meio rural, destaca o papel desempenhado O mundo rural está passando por vários pelas agroindústrias familiares. Segundo o processos de transformação, em que se exi- autor, em determinadas regiões do país, a plu- ge uma análise das diversas teorias, temas riatividade tem-se propagado com expressiva e debates relacionados com a problemática velocidade. Coloca, ainda, que as relações do desenvolvimento rural em tempos de intensas entre o rural e o urbano, nessas re- globalização. giões, se tornam cada vez mais perceptíveis. Como propõe Silva: As áreas rurais estão cada vez mais asso- ciadas ao desenvolvimento de atividades O rural vem se caracterizando como um de natureza não agrícola. Face às mu- espaço de pluriatividade, ligado ao turis- danças que se vislumbram, a população mo e ao lazer, à prestação de serviços, à moradia e à agroindustrialização. Isto rural é compelida a empregar diversas caracteriza a articulação de uma série estratégias de sobrevivência, entre elas de atividades, muitas delas tipicamente a de realizar novas tarefas produtivas urbanas, que visam a garantir a susten- (2002, p.184). tabilidade (1999 apud PREZOTTO, Portanto, o meio rural, sob o ponto de 2002, p.137). vista econômico e social, não pode mais ser

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Ainda: matéria-prima em sua maior parte, ou de vi- Neste novo papel de pluriatividade ou zinhos; processos artesanais próprios; e mão de várias funções, a criação de pequenas de obra da família. Pode, ainda, vir a ser um agroindústrias pode ser apontada como empreendimento associativo, reunindo uma uma das alternativas econômicas para a ou várias famílias, aparentadas ou não. permanência da agricultura familiar e Mior cita o perfil visto por um técnico para a construção de um novo modelo de da Epagri2: desenvolvimento sustentável, que pensa o rural como um todo e não mais apenas Se a agroindústria é organizada por ligado à produção agrícola (MATTEI, uma família individual, um dos passos 1998 apud PREZOTTO, 2002, p.137). decisivos é a busca de uma forma de concretizar a agregação de valor através Para Mior, a legitimidade de estratégias de do processo de comercialização, que agroindustrialização rural teve lugar a partir pode ser feito por alguém da própria fa- dos anos de 1990. Processar alimentos foi mília, através de feiras livres municipais fundamental para a trajetória de desenvolvi- ou outras formas de venda direta [...]. mento da agricultura familiar. Habilidades como a negociação, o rela- cionamento interpessoal e o marketing A agroindústria familiar rural é uma são características fundamentais para o forma de organização em que a família sucesso desta função (2005, p.199). rural produz, processa e/ou transforma parte de sua produção agrícola e/ou Para o autor, a transformação da atividade pecuária, visando, sobretudo à produ- de processamento de alimentos para a agroin- ção de valor de troca que se realiza na dústria familiar rural é vista como um dos comercialização. Enquanto isso, a ativi- maiores desafios para a consolidação desta dade de processamento de alimentos e nova estratégia de produção e consumo de matérias-primas visa prioritariamente à alimentos. Várias são as exigências, que vão produção de valor de uso que se realiza desde a questão fiscal, passam pela ambiental no autoconsumo (MIOR, 2005, p.191). e, principalmente, sanitária, que estão sendo Para o mesmo: enfrentadas pelos agricultores familiares e suas representações. Enquanto o processamento e a transfor- mação de alimentos ocorrem geralmente Segundo a concepção de Prezotto (2002, na cozinha das agricultoras, a agroindús- p.133), a agroindústria familiar é apontada tria rural se constitui num novo espaço como uma das alternativas para a reversão e num novo empreendimento social e das consequências sociais desfavoráveis no econômico. A atividade artesanal de meio rural. Tendo no meio rural não mais transformação de alimentos, sobretudo apenas atividades exclusivamente agrícolas, da mulher agricultora, evidencia ainda a a agroindústria familiar pode impulsionar a existência de aspectos culturais associa- geração direta e indireta de novos postos de dos aos hábitos alimentares de uma de- trabalho e de renda aos agricultores fami- terminada região (MIOR, 2005, p.191). liares, promovendo sua (re)inclusão social Segundo Mior (2005), outros aspectos e econômica. também caracterizam a agroindústria fami- A potencialidade técnica dos agricultores liar, tais como: a localização no meio rural; familiares, em seus diferentes matizes, colo- a utilização de máquinas e equipamentos ca a necessidade de políticas diferenciadas, em escalas menores; procedência própria da concebidas em um processo interativo junto

42 PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.127, p. 35-51, setembro/2010 DESENVOLVIMENTO RURAL: ANÁLISE DAS AGROINDÚSTRIAS FAMILIARES DE CAMPINAS DO SUL-RS aos agricultores. Essa concepção também se relaciona com as ações e políticas públicas Caracterização da Área Objeto da necessárias para impulsionar a agroindustria- Pesquisa lização, com sustentabilidade e cidadania. A agroindústria familiar, para Prezotto: Características físicas e socioeconômicas É uma importante alternativa para pro- Campinas do Sul se localiza no norte do mover a participação dos agricultores Estado do e pertence à Mi- familiares no processo produtivo. Para crorregião Geográfica de Erechim. Os limites eles, a industrialização dos produtos são: a norte, com ; a sul e a oeste, agropecuários não se constitui em uma com ; e a leste, com Jacutinga. O novidade. Isto já faz parte da sua própria Município se localiza entre as coordenadas história e da sua cultura, tendo como 27º 37’59” a 27º 51’ 10” de latitude sul, 52º objetivo atender o consumo da família e, em menor grau, abastecer o mercado 45’ 56” a 52º 33’ 39” de longitude oeste. local com o excedente (2002, p.137). Sua altitude média é de 660 metros acima do nível do mar. Como exemplo, Prezotto coloca: O Município é privilegiado quanto ao A transformação de frutas em doces e quadro natural, pois o relevo apresenta áreas bebidas, a elaboração de conservas em planas ou levemente onduladas, facilitando geral e a fabricação de queijos, embu- a mecanização da agricultura. Nas porções tidos e o beneficiamento dos produtos a norte e nordeste, próximo às margens do agropecuários (secagem, classificação, Rio Erechim, o relevo é mais acidentado. limpeza) e/ou transformação de maté- Em Campinas do Sul predominam a floresta rias-primas gerando novos produtos, de origem animal ou vegetal, como, por e o clima subtropicais, com temperaturas que exemplo, leite em queijo e frutas em variam de 0ºC a 38ºC, com média de 18ºC. doces e bebidas (2002, p.137). A população total do município é de 5.579 habitantes; a população urbana é de 4.176 No momento em que se discute as novas habitantes (74,85%) e a população rural é de funções e atores presentes no meio rural, a 1.403 habitantes (25,15%) (IBGE, 2007). O agroindústria familiar é vista como uma das PIB per capita é de R$ 8.909 (IBGE, 2005). alternativas capazes de impulsionar uma distribuição de renda mais equitativa. O Quanto à estrutura fundiária, observa-se potencial da agroindústria familiar se torna que, 92% dos estabelecimentos agropecu- mais evidente quando articulado com outras ários de Campinas do Sul possuem até 50 iniciativas próprias de cada local ou de cada hectares. Predominam os estabelecimentos região como, por exemplo, o agroturismo. entre 20 e 50 hectares (34,18%) (IBGE, É necessário dizer, entretanto, que a agroin- 1996). O número total de estabelecimentos é dustrialização não representa a solução de de 1.176 e a área total dos estabelecimentos todos os problemas ou necessidades dos é de 20.271 hectares. A área média dos esta- agricultores familiares ou do meio rural. Ela belecimentos é de 40,30 hectares. O pessoal deve ser entendida e trabalhada como parte de ocupado em estabelecimentos agropecuários um conjunto de ações e de outras atividades é de 1.530 pessoas e a média de pessoal ocu- articuladas entre si, que busquem construir pado em estabelecimentos agropecuários é de um desenvolvimento rural nos aspectos so- 3,04 pessoas (IBGE, 2006). De modo geral, cial, ambiental, cultural e econômico, tendo aumenta o número de estabelecimentos sem por base a agricultura familiar. aumentar a área destes, reflexo da fragmen-

PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.127, p. 35-51, setembro/2010 43 Mario Zasso Marin - Cláudia Emilia Girelli Trentin tação das unidades pelo processo de sucessão Programa foram a Emater e a Prefeitura hereditária. Na agricultura predominam os Municipal. cultivos de milho, soja e trigo. Nos últimos anos a economia local ficou estagnada, devido aos reflexos da política agrícola de abertura econômica, preços Características históricas4 baixos, fatores climáticos, dificuldades de O território de Campinas do Sul fez parte comercialização e à crise na Cooperativa Tri- da Fazenda Quatro Irmãos, que o Governo tícola de Erechim, Cotrel, na qual são sócios Brasileiro concedeu à Empresa Inglesa de a grande maioria dos agricultores familiares Colonização Jewish Colonization Associa- do Município. tion (ICA). Pertencia a um grupo de judeus O modelo de exploração adotado nas sediados em Londres, com direito à explo- unidades de produção do município tem ração da madeira de pinheiro, porém com deixado grande parte da mão de obra ociosa a obrigação de promover a colonização da e sem perspectivas para geração de renda. área. Essa fazenda tinha uma área de 93.850 Diante desse contexto, entidades públicas hectares (938,5 Km²). Partes dos atuais mu- de Campinas do Sul procuraram viabilizar nicípios de Campinas do Sul, São Valentim, alternativas para minimizar esse cenário. Ponte Preta, Cruzaltense e Erechim faziam Assim, a Emater-RS, em parceria com a Pre- parte da Fazenda Quatro Irmãos. feitura Municipal, implantou o Programa de Os migrantes que formaram o que é hoje Desenvolvimento do Meio Rural. O projeto Campinas do Sul eram, em sua maioria, de das agroindústrias, que inclui o Programa, descendência italiana e vinham de várias re- antes referido, incentiva a diversificação de giões do Estado, em especial dos municípios atividades e a melhoria na qualidade dos de , Bento Gonçalves, Antônio produtos coloniais a serem ofertados no Prado, Veranópolis, Garibaldi, Guaporé, mercado local, inclusive com recursos finan- ­Encantado, entre outros. ceiros e humanos, organização das famílias, Quando da emancipação, Campinas do qualificação e integração através de visitas e Sul tinha uma área de 379 km², de acordo com excursões a fim de se conhecer experiências a Lei 3.705 de 31 de janeiro de 1959. Com bem-sucedidas em outros municípios. a emancipação do seu Distrito, Cruzaltense, No ano de 2004, quando do processo de em 1996, sua área passou a ser de 261,3 km². planejamento das ações de Assistência Téc- nica e Extensão Rural - ATER no Município, percebeu-se a necessidade de se criar um O Programa de Desenvolvimento do Meio Programa no qual as famílias dos agricul- 5 Rural de Campinas do Sul – RS tores fossem protagonistas e que viesse ao O Programa de Desenvolvimento do encontro dos anseios da comunidade. No Meio Rural de Campinas do Sul - RS teve ano de 2005 foi realizado um diagnóstico das por objetivos a diversificação da produção; a potencialidades e limitações do meio rural redução do custo de transporte e da produção; do Município, para suprir as deficiências de utilização adequada dos dejetos e resíduos produtos de consumo local. das unidades de produção; geração de postos O referido diagnóstico foi realizado de trabalho e renda; diminuição do êxodo atra­vés de uma pesquisa semiestruturada, rural; recuperação e preservação ambiental buscando informações sobre produtos, vo- e aumento da arrecadação de impostos ao lume mensal comercializado, procedência e Município. As entidades coordenadoras do oferta, com qualidade e preços dos produtos

44 PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.127, p. 35-51, setembro/2010 DESENVOLVIMENTO RURAL: ANÁLISE DAS AGROINDÚSTRIAS FAMILIARES DE CAMPINAS DO SUL-RS locais. Essa pesquisa foi realizada em trinta participação de todas as escolas do município e dois estabelecimentos que comercializa- para escolher uma logomarca aos produtos vam, informalmente, produtos da agricultura da agroindústria de Campinas do Sul, com familiar. inscrição de 356 trabalhos. Essa logomarca, Esse trabalho serviu de subsídio para o a partir de então, consta em todos os rótulos fomento de atividades, tais como: derivados de produtos oriundos das agroindústrias, que de cana-de-açúcar, geleias e doces, vitivi- integram 117 famílias. nicultura, derivados de leite, produção de Merece destaque, ainda, o fato de que, ovos, frango caipira, apicultura, extração para desenvolver as agroindústrias fami- vegetal, farináceos, piscicultura, embutidos, liares, fez-se necessário a implantação do pequenos animais, artesanato, horticultura Serviço de Inspeção Municipal e Vigilância orgânica, flores, hortifrutigranjeirosin natura Sanitária (SIM), para garantir a qualidade e processados. dos produtos. Para viabilizar tais atividades, foram re- O Programa solidificou suas ações com alizadas inúmeras ações com o objetivo de a realização do “I Seminário Microrregional motivar todos os segmentos da comunidade, de Desenvolvimento do Setor Primário”, que através de processo contínuo de divulgação e aconteceu no dia 19 de outubro de 2006, com esclarecimento. Nessa etapa contou-se com o atividades de integração, informação e socia- apoio da imprensa local (rádio e jornal), bem lização. Nessa oportunidade, a comunidade como reuniões, visitas, contatos e também a local e regional presenciou as potencialidades apresentação do Programa para os poderes e a grande diversidade de produtos ofertados executivo e legislativo e comunidade escolar. pelas agroindústrias familiares, através da Após a realização do diagnóstico e a sua realização do I Feirão da Alimentação. Esse apre­­sentação para a comunidade, surgiu o evento foi coroado com êxito e comprovou inte­resse e a inscrição das famílias nas agro­ a importância das agroindústrias para o de- in­dústrias dentro do Programa. Depois de senvolvimento rural do município. inscritos, o Conselho Municipal de Desenvol- vimento da Agricultura e Pecuária, através de reuniões, selecionou os interessados basean­ Resultados e discussão do-se na aptidão e objetivos para desenvolver determinada atividade. Essa seção visa a discutir as caracterís- A seleção e a implantação se deram devi- ticas da cadeia produtiva das agroindústrias do ao fato do município dispor de recursos familiares de Campinas do Sul inseridas no do Fundo Municipal de Desenvolvimento Programa da Emater/Secretaria da Agricul- dos Pequenos Estabelecimentos Rurais para tura e Prefeitura Municipal. custear os inscritos nas atividades. Todos os Mesmo antes do desenvolvimento das agricultores envolvidos passaram por etapas agroindústrias familiares no município, os de capacitação em cursos nos centros de agricultores que hoje se inserem nas mes- treinamento, em reuniões, palestras, dias de mas já buscavam diversificar a produção. campo, visitas e excursões a outros Muni- Contudo, os agricultores tinham carência de cípios e regiões. Tais capacitações visaram assistência, treinamento, crédito e principal- a garantir a qualidade da produção ou da mente de apoio. transformação da produção. Atualmente existem 16 agroindústrias fa- Em paralelo à implantação das atividades, miliares estruturadas e há algumas em fase de o Município realizou um concurso, com a implantação e adequação à legislação. Pode-

PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.127, p. 35-51, setembro/2010 45 Mario Zasso Marin - Cláudia Emilia Girelli Trentin se considerar que a agroindústria familiar não especialistas da área, e assim, cada área impede a realização de outras atividades na fazendo a capacitação. propriedade e consiste numa fonte comple- mentar de renda. Pelo projeto proposto pelo Foram aproveitados os cursos de capaci- Poder Público Municipal, em parceria com tação dos Centros de Treinamento dispo- a Emater, cada família se enquadrou no que níveis pela Emater no Estado, como em já estava produzindo e vendendo. Montenegro, para queijos e derivados; Nova Petrópolis e Caxias do Sul, para De acordo com a extensionista da Emater, embutidos e defumados; e Erechim para R.M., de Campinas do Sul: os de panificados e farináceos (2008). As agroindústrias fazem parte do Pro- grama Municipal de Desenvolvimento Nesse sentido, também contribuíram as do Meio Rural de Campinas do Sul. A excursões e visitas técnicas às experiências proposta teve o objetivo de diversificar em andamento no Estado. Tais saídas foram as atividades dos agricultores. Já se tinha promovidas pela Prefeitura Municipal. Ao conhecimento que havia tradição nas mesmo tempo, a experiência das agroindús- atividades, mas que era preciso aprimo- trias familiares no Município, que têm forte rá-las para que obtivessem qualidade e participação de políticas públicas, em dife- rentabilidade, e, para isso, o caminho rentes escalas, tem atraído visitantes de outras seria a capacitação. Então, muitas capa- regiões para acompanhar sua evolução. citações aconteceram, algumas com todo o grupo e outras de forma individual, Reforçando a qualificação da força de conforme as peculiaridades de cada trabalho das agroindústrias familiares, hou- atividade. Inicialmente se trouxe para o ve treinamento promovido pela Agência de município atividades de motivação para Apoio ao Empreendedor e Pequeno Empresá- o bom desempenho das atividades, com rio (SEBRAE - Erechim), com capacitação de a participação do Prefeito do Municí- 72 horas, sobre “boas práticas de fabricação”. pio de , que [...] mudou sua economia em função das agroindústrias As Agroindústrias familiares estudadas familiares, e o Engenheiro Agrônomo (visitadas) foram: de farináceos; congelados Ainor Leutério, do Estado de Santa de farináceos; apicultura; extração vegetal; Catarina, que também foi um motivador derivados de leite; derivados de cana-de- dessa atividade naquele Estado. açúcar; embutidos de suínos; horticultura; produção de frango de corte caipira; e pro- Assim, o grupo participou das atividades dução de ovos caipiras. e promoveu, junto com a Emater e a Pre- feitura, um Seminário para discutir essas Desse modo, a agricultura familiar teve questões, inclusive com a participação da que se ajustar às exigências: realizar capaci- URI [...], para ajudar a mostrar caminhos tação, aprender novas técnicas, cuidar com e procedimentos. a manipulação dos produtos. Após uma grande Feira de Alimentação O município possui o Serviço de Ins- [...] tentou-se avaliar como seria a recep- peção Municipal - SIM - que tem a tividade dos produtos pela comunidade responsabilidade de acompanhar as campinense, e os resultados foram con- agroindústrias e liberar este serviço no siderados positivos pelo grupo. Paralelo rótulo dos produtos a serem comerciali- a isso ocorreu capacitações na área da zados. Este serviço é realizado por um vitivinicultura, com um enólogo, de profissional contratado pelo município aproveitamento da cana-de-açúcar, com com a formação de médico veterinário.

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Toda a cadeia de produção é acompanhada As salas onde são manipulados os produ- também pelo Serviço de Vigilância Sanitária tos devem estar de acordo com as normas. Municipal, que faz acompanhamento na pro- Devem se manter higienizadas e os agricul- priedade e na comercialização, para avaliar a tores, ao manipularem os produtos, devem qualidade do produto junto ao consumidor. usar roupas apropriadas (adequadas), pois A mão de obra em todas as atividades é a fiscalização verifica, periodicamente, as exclusivamente familiar, apesar de já haver condições dos estabelecimentos. indícios de que, num futuro bem próximo, Quanto aos cuidados com a produção e a algumas agroindústrias necessitarão recorrer organização das unidades de produção, con- à prestação de serviços, que poderá ocorrer na vém destacar o depoimento da extensionista forma de troca de serviços ou até contratação da Emater do Município. (EXTENSIONISTA DA EMATER, 2008). Os produtos da agroindústria campinense Os agricultores puderam contar com o passam regularmente por análises onde financiamento do Fundo Rotativo Municipal se avaliam possíveis contaminações da Agricultura e/ou do Pronaf. De acordo biológicas e químicas. São muitos os com a extensionista: cuidados, até porque se procura produzir A maior fonte de recursos é o Fundo produtos diferenciados. Por exemplo, Municipal de Apoio às Propriedades a matéria-prima do leite pasteurizado, Rurais - FUNDEPER, que é um fundo das bebidas lácteas e dos queijos é ho- administrado pelo Conselho Municipal meopatizada (propriedades que usam a de Desenvolvimento e Agropecuária do homeopatia nos animais), para melhorar, Município. Este recurso é resultado do por meio da qualidade, a competitivi- investimento de 1% da arrecadação do dade. Também, as propriedades, onde Município que é depositado para custear estão localizadas as agroindústrias, iniciativas no meio rural. O valor finan- são orientadas como um todo, no as- ciado é convertido em preço mínimo da pecto econômico, social e ambiental, saca de milho [...] e o saldo é em sacas estimulando os proprietários a realizar de milho, que é pago após um ano de práticas de saneamento básico para a carência, tempo para o investimento ser destinação de dejetos e ajardinamento, organizado. Além dos recursos munici- para demonstrar o aspecto agradável das pais, que são o maior volume, algumas propriedades, uma vez que excursões e agroindústrias tiveram recursos de agen- visitações acontecem nas mesmas. tes financeiros em linhas de crédito es- peciais, como Banco do Brasil, Banrisul, À medida que as agroindústrias vão ga­ Sicredi, e uma iniciativa tem recursos nhando espaço, a demanda aumenta. O do PRONAF Mulher, que é uma linha consumidor tem uma boa receptividade, especial para mulheres rurais. Mas em por se tratar de produtos fiscalizados e sem todas as atividades sempre houve com- agrotóxicos e agroquímicos. plementação de recursos das próprias Contudo, ainda há restrições. As agroin- famílias contempladas. dústrias do Município são inspecionadas As agroindústrias são visitadas mensal- pelo Serviço de Inspeção Municipal (SIM) mente ou quando há solicitação para sanar que não permite a comercialização em ou- alguma dúvida ou problema. O abate de tros Municípios ou Estados. Há tramitação frangos, suínos e gado bovino, realizado uma relacionada à comercialização em outros vez por semana, só é feito sob supervisão do Municípios ou Estados, visto que se está profissional responsável. agilizando a inscrição ao Sistema Unifi-

PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.127, p. 35-51, setembro/2010 47 Mario Zasso Marin - Cláudia Emilia Girelli Trentin cado de Atenção à Sanidade Agropecuária abatedouro municipal, que passou a abater (SUASA), que viabilizaria esse processo. O todos os animais naquele local, evitando a município pode adquirir os produtos para a clandestinidade. Merenda Escolar dos agricultores por meio Praticamente toda a matéria-prima é pro­ da nota fiscal de bloco de produtor, porém duzida pelos próprios agricultores, que a a rede estadual de ensino só pode adquirir beneficiam nas agroindústrias. Exceção ainda perante Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica das agroindústrias de embutidos e defuma- (CNPJ), o que prejudica o agricultor quando dos, em que parte da matéria-prima é adqui- da aposentadoria de segurado especial, à qual rida de outros agricultores. Essa adequação ele tem direito. ocorreu ao longo do tempo, pois no início A força de trabalho é familiar e se perce- muitas agroindústrias precisavam adquirir beu que predomina apenas o envolvimento matéria-prima de terceiros. Tal adequação do casal. Há ainda pouco envolvimento dos reforçou o objetivo das agroindústrias, que jovens. Também se observou que a ativi- é agregar valor na própria propriedade. dade é considerada pelos proprietários de Na realidade, as agroindústrias contri­ agroindústrias como mais trabalhosa do que buíram significativamente com muitos a produção de grãos. agri­­cultores. De modo geral, os agricultores As entregas (vendas) são feitas no co- consideram as agroindústrias viáveis. Um mércio em geral, nas casas ou na própria dos aspectos ressaltados é a entrada com propriedade. Para a extensionista da Emater: maior frequência de dinheiro na unidade de produção. A agroindústria campinense já con- quistou alguns interessantes nichos de As dificuldades iniciais relacionaram-se mercado, como o da merenda escolar, com a falta de capital a fim de promover o em que o Município compra diretamente desenvolvimento das agroindústrias. O fi- destas, o hospital municipal de Campi- nanciamento a juro baixo, através do Fundo nas do Sul e o Programa Fome Zero. A Rotativo Municipal, facilitou a entrada dos maior parte do fornecimento é para os agricultores no Projeto das Agroindústrias mercados, restaurantes, padarias e outros Familiares. estabelecimentos locais, assim como As perspectivas, nesse caso, são a manu­ direto aos consumidores. Para integrar tenção das agroindústrias familiares. Algu­ outros nichos, será preciso, ainda, am- pliar a oferta, que é o objetivo de algumas mas têm perspectivas de crescer e se tornar agroindústrias. médias agroindústrias, mas a maioria quer apenas manter-se atualizada e buscando A legalização das agroindústrias reduziu novidades. Os agricultores colocam que a venda clandestina. Realizaram-se trabalhos os filhos, preferencialmente, deveriam dar educativos junto à comunidade; diversos continuidade à atividade. Contudo, muitos produtos foram apreendidos, especialmente têm receio que isso não se realize. A vida os de origem animal; e se aumentou a fisca- urbana parece ser ainda um dos objetivos lização da vigilância sanitária nos estabele- dos filhos. A escassez de mão de obra, às cimentos comerciais (mercados, restaurantes agroindústrias é um dos pontos levantados e padarias), exigindo-se a certificação de pelos agricultores. pro­cedência e tabela nutricional nos produtos Por fim, pode-se considerar a avaliação comercializados. O Município se organi- da extensionista da Emater: “Ainda, o maior zou, também,com relação à recuperação do problema é a vontade política. Quando a

48 PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.127, p. 35-51, setembro/2010 DESENVOLVIMENTO RURAL: ANÁLISE DAS AGROINDÚSTRIAS FAMILIARES DE CAMPINAS DO SUL-RS atividade é prioridade como política pública, na geração de estratégias de renda e emprego como ocorreu em nosso município, as coisas no meio rural de Campinas do Sul. Em linhas acontecem e os resultados são surpreenden- gerais, há melhor qualidade de vida e dos ali- tes”. mentos na agricultura familiar do município. Constatou-se, através da pesquisa, que, na grande maioria das agroindústrias familiares, Considerações finais a força de trabalho é dos pais. O horizonte urbano ainda é almejado pela maioria dos Considerando os dados estudados e os filhos, e a agroindústria tem sido usada como objetivos deste trabalho, afirma-se que foi geração de renda para melhorar as condições possível identificar, verificar e avaliar as educacionais dos mesmos. potencialidades e limites das agroindústrias familiares no município de Campinas do Sul- Comprovou-se que as agroindústrias RS. Observou-se que as agroindústrias não familiares estão sendo de suma importância são a base da economia municipal. Contudo, para o desenvolvimento dos agricultores elas têm gerado nas unidades familiares uma inseridos no Programa. Os resultados estão renda extra, o que tem permitido maior esta- sendo considerados positivos, e vem sendo bilidade frente às limitações da agricultura. divulgados em toda a Microrregião de Ere- Cabe destacar o papel da Prefeitura Munici- chim e em outras regiões do Estado. pal e da Emater na gestão do Programa de Com base nisso, as agroindústrias fami­ Desenvolvimento do Meio Rural, importante liares constituem-se numa alternativa visando política em direção ao desenvolvimento rural. ao desenvolvimento rural. Ainda existem di- São carentes, na realidade da grande maioria ficuldades, mas de modo geral essa iniciativa, dos municípios brasileiros, as políticas de em escala local, tem estimulado os agricul- caráter local que buscam o desenvolvimento tores a permanecerem na atividade. O apoio tendo por base as potencialidades socio- público tem garantido segurança aos sujeitos econômicas e ecológicas locais. Assim, o locais frente às instabilidades e à competitivi- Programa Prefeitura/Emater tem auxiliado dade do mercado em distintas escalas.

NOTAS

1 Associação Rio-grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER). 2 Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina. 3 Os dados e as informações apresentadas nessa seção são do Laboratório de Geoprocessamento e Planejamento Ambiental da URI (Erechim) - CREDENOR e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. 4 Os dados históricos de Campinas do Sul foram baseados em DELLA LATTA, Venâncio Hugo: Cam- pinas do Sul e sua história. Ed. Grafoluz, Campinas do Sul, 2004. 5 Informações que constam no Programa Municipal de Desenvolvimento do Meio Rural - Emater/ Prefeitura Municipal de Campinas do Sul-RS.

PERSPECTIVA, Erechim. v.34, n.127, p. 35-51, setembro/2010 49 Mario Zasso Marin - Cláudia Emilia Girelli Trentin

AUTORES

Mario Zasso Marin – Doutor/PPGG/UFSC. Professor da União Dinâmica de Faculdades Cataratas – UDC, Foz do Iguaçu, PR. E-mail: [email protected] Cláudia Emilia Girelli Trentin – Graduada em Geografia/URI - Campus de Erechim-RS.

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