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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA APLICADA MESTRADO ACADÊMICO EM LINGUÍSTICA APLICADA

SOFIA NICOLAU AMOREIRA

A COSMOVISÃO CARNAVALESCA EM , AN AMERICAN MUSICAL: “O MUNDO DE CABEÇA PRA BAIXO”

FORTALEZA – CEARÁ 2019 1

SOFIA NICOLAU AMOREIRA

A COSMOVISÃO CARNAVALESCA EM HAMILTON, AN AMERICAN MUSICAL: “O MUNDO DE CABEÇA PRA BAIXO”

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Linguística Aplicada do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Linguística Aplicada. Área de Concentração: Linguagem e Interação.

Orientador: Prof. Dr. João Batista Costa Gonçalves

FORTALEZA – CEARÁ 2019 2

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Raquel, por ter me apoiado incondicionalmente durante todos esses anos. The best of mothers and best of women. Às professoras Vera Lúcia Santiago Araújo e Élida Gama Chaves, por terem me introduzido no caminho da pesquisa acadêmica. E às professoras Élida Chaves, Astrid Leão e Conceição Lima, a minha holy trinity da UECE, por terem me ajudado tanto durante minha graduação. Ao meu irmão, Liam. Pride is not the word I'm looking for. There is so much more inside me now. Aos meus amigos, que compartilharam a minha dor e que me mantiveram, durante a maior parte do tempo, sã durante o processo de escrita. São eles: Igor. You will never find anyone as trusting or as kind. Anna Kesya. When you smile, I fall apart. And I thought I was so smart. Thiago. He’s seen injustice in the world and he’s corrected it. Ivina. Her power of speech: unimpeachable. Renatta. Your lieutenant when there's reckoning to be reckoned. Ao meu orientador, João Batista Costa Gonçalves, meu Washington durante essa batalha, pelo seu apoio e pelas orientações, sem as quais este trabalho não poderia ter sido feito. Aos professores que fizeram parte da minha banca examinadora, Dina Maria Machado Andréa Martins Ferreira e Benedito Francisco Alves, por todas as importantes considerações feitas durante a qualificação do projeto de pesquisa que culminou com esta dissertação. À Elayne Gonçalves Silva e Maria Eduarda Gonçalves, por terem me apresentando a Mikhail Bakhtin, um homem ainda mais brilhante do que o próprio Alexander. A todos os membros do grupo do GEBACE, que me ajudaram a compreender e a me apaixonar pelas palavras do Círculo de Bakhtin. À Anne Searcy, por ter compartilhado comigo seu artigo Bringing Dance Back to the Center in Hamilton, muito valioso para esta pesquisa. A Mikhail Bakhtin, por ter escrito teorias que mais parecem poesia. You built palaces out of paragraphs, you built cathedrals. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro atráves da bolsa que tornou possível que essa pesquisa fosse feita.

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“Por mais terrível que sejam o preconceito racial, a injustiça e a ignorância, podemos lutar contra o tempo se os enfrentarmos francamente e ousarmos nomeá-los e dizer a verdade; mas se continuarmos a nos esquivar e encobrir a questão, e dissermos meias verdades porque a verdade completa dói e envergonha; se fizermos isso, convidaremos a catástrofe. Vamos, então, com toda a caridade, mas com firmeza inabalável nos opor a toda a política que segue em tais direções”.

W.E.B. DuBois

“[O] riso, menos do que qualquer outra coisa, jamais poderia ser um instrumento de opressão e embrutecimento do povo. Ninguém conseguiu jamais torna-lo inteiramente oficial. Ele permaneceu uma arma de libertação nas mãos do povo.”

Mikhail Bakhtin 6

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo principal investigar a cosmovisão carnavalesca na construção do discurso carnavalizado em Hamilton: An American Musical. A abordagem teórica da pesquisa está pautada, em especial, na proposta de Bakhtin (2010a, 2010b) sobre a carnavalização, entendida esta, em linhas gerais, como a transposição do espírito do carnaval para a literatura e para outras formas de arte. A metodologia usada para a realização desta pesquisa foi a de natureza aplicada, com abordagem qualitativa, interpretativa e exploratória. O corpus de análise constituiu-se mais especificamente da canção Alexander Hamilton e os aspectos que englobam a sua performance, incluindo o elenco de atores, a letra e a coreografia do musical, que foi analisada segundo as categorias da cosmovisão carnavalesca: familiarização, excentricidade, mésalliance e profanação. Dentre os resultados encontrados, a partir da análise do corpus da pesquisa, percebemos que a categoria da familiarização se destacou, entre as demais, através da aproximação das distantes figuras históricas e da quebra de hierarquias presentes, principalmente, na escalação de atores afro-americanos e latinos que representam a nação dos Estados Unidos atual e do uso de linguagem familiar. A categoria da excentricidade, por sua vez, se mostrou presente, em Hamilton, nos elementos cênicos que romperam com o passado histórico. Tal quebra ocorreu através do uso de linguagem informal, de danças e músicas modernas, como o rap, e da presença de atores afro-americanos e latinos que interpretaram os pais-fundadores por meio de uma coreografia baseada em ações e gestos extraídos da vida cotidiana do homem comum. Já quanto à categoria das mésalliances, esta apareceu no musical, por exemplo, através da relação entre um personagem branco sendo interpretado por um ator negro, bem como através da relação entre mestre/escravo e opressor/oprimido, além da mistura de vários estilos de músicas e de danças presentes em todo o espetáculo. Por fim, a categoria da profanação se mostrou, na paródia musical da narrativa histórica da fundação do país norte-americano, por meio do tratamento crítico desmascarador da figura de Thomas Jefferson, por exemplo.

Palavras-chaves: Carnavalização. Cosmovisão Carnavalesca. Hamilton: An American Musical. 7

ABSTRACT

The present work has its main objective to investigate the carnivalesque worldview in the construction of the carnivalesque discourse in Hamilton: An American Musical. The theoretical approach of the research is based, mainly, on Bakhtin's studies (2010a, 2010b) regarding carnivalization, which is broadly understood as the transposition of the carnival spirit into literature and other art forms. We used a methodology grounded on applied nature, with qualitative, interpretative and exploratory approach. The corpus of analysis was constituted specifically the song Alexander Hamilton and the aspects regarding its performance, including the cast of actors, the lyrics and the choreography of the musical, which was analyzed according to the categories of the carnivalesque worldview: familiarity, eccentricity, mesalliance and profanity. Among the results found from the analysis of the corpus studied, we noticed that the familiarization category stood out from all the others, through the approximation of distant historical figures and the breaking of hierarchies, present mainly in the casting of African- American and Latin American actors. That alone represents the current United States and the use of familiar language. The eccentricity category, on the other hand, was present in Hamilton in the scenic elements, which broke with the historical past. Such breaking occurred using informal language, modern dances and music, such as rap; as well as the presence of African- American and Latin American actors, who interpreted the founding fathers through a choreography based on actions and gestures drawn from the everyday life of the common man. As for the mesalliances category, it appeared in the musical, for example, through the relationships between a white character being played by a black actor, between master/slave and oppressor/oppressed, as well as the mixture of various styles of songs and dances present throughout the show. Finally, the profanation category was shown in the musical parody of the historical narrative of the American founding fathers, through the “unmasking” critic treatment of the figure of Thomas Jefferson, for example.

Keywords: Carnivalization. Carnivalesque Worldview. Hamilton: An American Musical.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - A Traição das Imagens de Magritte (1898-1967) ...... 40 Figura 2 - Pôster de In The Heights………………………………………………... 84 Figura 3 - Pôster de Hamilton……………………………………………………… 86 Figura 4 - Alexander Hamilton na nota de 10 dólares...... 114 Figura 5 - Print 1 da coreografia...... 115 Figura 6 - Print 2 da coreografia...... 115 Figura 7 - Print 3 da coreografia...... 117 Figura 8 - Print 4 da coreografia...... 124 Figura 9 - Print 5 da coreografia...... 124 Figura 10 - Print 6 da coreografia...... 124 Figura 11 - Print 7 da coreografia...... 124 Figura 12 - Print 8 da coreografia...... 126 Figura 13 - Print 9 da coreografia...... 127 Figura 14 - Pintura de Jefferson...... 129 Figura 15 - Foto de Daveed Diggs...... 129 Figura 16 - Print 10 da coreografia...... 135 Figura 17 - Print 11 da coreografia...... 136 Figura 18 - Print 12 da coreografia...... 136 Figura 19 - Elenco de Les Misérables………………………………………………... 138 Figura 20 - Game of Thrones………………………………………………………… 139 Figura 21 - Elenco de Hamilton……………………………………………………… 141

Figura 22 - Print 13 da coreografia………………………………………………….. 147

Figura 23 - Print 14 da coreografia………………………………………………….. 149 Figura 24 - Print 15 da coreografia………………………………………………….. 149

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Letra de Alexander Hamilton...... 103 Quadro 2 - Trecho 1 de Alexander Hamilton...... 110 Quadro 3 - Trecho 2 de Alexander Hamilton………………………………………….. 112 Quadro 4 - Censo demográfico de Nova York de 2010...... 121 Quadro 5 - Trecho 3 de Alexander Hamilton………………………………………….. 122 Quadro 6 - Trecho 4 de Alexander Hamilton………………………………………….. 130 Quadro 7 - Trecho 5 de Alexander Hamilton………………………………………….. 131 Quadro 8 - Trecho 6 de Alexander Hamilton………………………………………….. 144 Quadro 9 - Trecho 7 de Alexander Hamilton………………………………………….. 145

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO………………………………………....………..……………..……… 13 2 NO PRINCÍPIO ERA O DIÁLOGO: A LINGUAGEM SOB A PERSPECTIVA 18 BAKHTINIANA ……………………………..………………………………………....

2.1 MIKHAIL BAKHTIN………………………………………………………………...... 18

2.2 A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM SAUSSURIANA X A CONCEPÇÃO 20 DIALÓGICA…………………...... 2.3 DIALOGISMO………………………………………………………………………...... 22 2.4 HETERODISCURSO………………………………………………………………...... 25 2.5 CARNAVALIZAÇÃO………………………………………………………………...... 27

2.5.1 A paródia……………………………………………………………………...... 32 2.5.2 Categorias da cosmovisão carnavalesca……………………………………...... 35 2.6 O VERBAL E O NÃO-VERBAL NA CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS NO 39 DISCURSO…………………......

3 POR TRÁS DA CORTINA: UM HISTÓRICO DAS PEÇAS MUSICAIS DO 44 TEATRO ANTIGO AO MUSICAIS MODERNOS...... 3.1 GÊNERO MUSICAL...... 44 3.1.1 Teatro grego: o início...... 45 3.1.2 Teatro em Roma...... 46 3.1.3 Teatro medieval...... 48 3.1.4 Iluminismo...... 51 3.1.5 Musicais modernos...... 52 3.1.5.1 Racismo na Broadway, o minstrelsy...... 53 3.1.6 The Seven Sisters...... 55 3.1.7 Os musicais da Guerra da Secessão...... 55 3.1.8 O início do teatro musical afro-americano em Nova York...... 56 3.1.9 Uma história dos musicais da Broadway nos anos 1900...... 58 3.1.9.1 Os anos 190-1910...... 58 3.1.9.2 Os anos 1920...... 60 11

3.1.9.2.1 Black musicals: o retorno...... 61 3.1.9.3 Os anos 1930...... 62 3.1.9.4 Os anos 1940...... 64 3.1.9.5 Os anos 1950...... 66 3.1.9.6 Os anos 1960...... 69 3.1.9.7 Os anos 1970...... 71 3.1.9.8 Os anos 1980...... 74 3.1.9.9 Os anos 1990...... 75 3.1.10 Os anos 2000-2011...... 79 4 I’M NOT THROWING AWAY MY SHOT: O SUJEITO POR TRÁS DE 82 HAMILTON…………………………………………………………………………….

4.1 A VIDA DE LIN-MANUEL MIRANDA……………………………………………...... 82

4.2 PRINCIPAIS OBRAS DE LIN-MANUEL MIRANDA……………………………...... 83

4.2.1 In The Heights………..……………………………………………………………...... 83

4.2.2 Hamilton: An American Musical - o que é e o que a crítica especializada tem a 85 dizer……………………….…………………………………………………………......

4.2.3 Gêneros musicais em Hamilton: uma profusão de ritmos………………...... 88

4.2.3.1 Hip-hop e Rap……………………………………………………………………...... 88

4.2.3.2 Rap, Dialogismo e Carnavalização………………………………………………...... 94

5 THE WORLD UPSIDE DOWN: UMA ANÁLISE DA COSMOVISÃO 99 CARNAVALESCA EM HAMILTON: AN AMERICAN MUSICAL......

5.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA………………………...... 99

5.1.2 Tipo de pesquisa…………………………………………………………………...... 99

5.1.3 Constituição do corpus da pesquisa...... 100 5.1.4 Delimitação do corpus e categorias de análise...... 102

5.1.5 Procedimentos de análise do corpus da pesquisa...... 107 12

5.2 ANÁLISE DOS ELEMENTOS DA COSMOVISÃO CARNAVALESCA DE 108 HAMILTON: AN AMERICAN MUSICAL......

5.2.1 A familiarização em Hamilton……………………………………………………...... 108

5.2.1.1 A familiarização no elenco……………………………………………………...... 108

5.2.1.2 A familiarização na canção………………………………………………………...... 109

5.2.1.3 A familiarização na coreografia…………………………………………………...... 115

5.2.2 A excentricidade em Hamilton…………………………………………………...... 118

5.2.2.1 A excentricidade no elenco………………………………………………………...... 118

5.2.2.2 A excentricidade na canção………………………………………………………...... 122

5.2.2.3 A excentricidade na coreografia …………………………………………………...... 124

5.2.3 As mésalliances em Hamilton……………………………………………………...... 128

5.2.3.1 As mésalliances no elenco...... 128

5.2.3.2 As mésalliances na canção...... 129

5.2.3.3 As mésalliances na coreografia...... 134

5.2.4 A profanação em Hamilton...... 137

5.2.4.1 A profanação no elenco...... 138

5.2.4.2 A profanação na canção…………………………………………………………...... 143

5.2.4.3 A profanação na coreografia……………………………………………………...... 146

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………………...... 151

REFERÊNCIAS……………………………..………………..………………..………. 153

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1 INTRODUÇÃO

“Seria eu, então, mais americano do que aqueles que respiraram pela primeira vez em solo americano?” Alexander Hamilton, 1795.

A Broadway é uma indústria cultural multimilionária que inclui peças de teatro musicais e não-musicais. Se considerarmos apenas a última temporada de 2018/2019, os musicais movimentaram cerca de 1.825 bilhões de dólares1. Nesse gênero, existem os musicais históricos, dentre os quais podemos citar 1776 (1969), Evita (1978), Les Misèrables (1987), Hair (1968) e Hamilton: An American Musical (2015), sendo este último objeto de análise da presente pesquisa Geralmente, esses musicais se mantêm próximos dos eventos históricos retratados, por meio do estilo de música tradicional da Broadway, os chamados showtunes. No entanto, certas peças musicais “subvertem”, de alguma forma, o cânone, renovando a sua estrutura, seja em relação aos gêneros musicais presentes, como Hair, que introduziu o rock, seja em relação a outro tipo de inovação, como Oklahoma!, que solidificou a fórmula do musical integrado2. Uma dessas obra foi Hamilton, que conta a história de Alexander Hamilton, primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, e a revolução que formou o país. O sucesso inesperado da Revolução Americana contra a maior máquina militar da época, a Grã-Bretanha, fez com que seus líderes e idealizadores, conhecidos como os pais-fundadores, como George Washington, John Adams, Thomas Jefferson, James Madison, dentre outros, fossem glorificados tanto na época em que viveram quanto pela posteridade. Os rostos de Washington e Jefferson, por exemplo, foram esculpidos em pedra no Monte Rushmore, ao lado de Theodore Roosevelt e Abraham Lincoln. Se a história foi gentil com Washington, ela certamente não o foi para o caribenho Alexander Hamilton, uma das figuras mais controversas e influentes da história americana. Hamilton foi herói da Revolução Americana, chefe dos ajudantes de ordens do general George Washington, advogado proeminente, Secretário do Tesouro, conselheiro e braço-direito de Washington, criador da guarda costeira, fundador do jornal New York Post, do partido dos

1 Fonte: . Acesso em out. 2019. 2 Esses e os demais termos relacionados ao teatro musical serão explicados na seção 3.

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Federalistas e do Banco de Nova York. Além disso, Alexander também foi responsável pelo primeiro grande escândalo sexual dos Estados Unidos, ao publicar um panfleto em que relatou em detalhes como tinha traído sua esposa, Eliza Hamilton, para se defender de uma acusação de desvio de dinheiro. Odiado pelos outros pais-fundadores John Adams, Thomas Jefferson e James Madison e pelo senador e vice-presidente, Aaron Burr, que matou Alexander em um duelo, a imagem de Alexander era vista negativamente. A série da BBC intitulada John Adams, por exemplo, retrata Hamilton como seu grande inimigo. Até mesmo o governo americano anunciou que iria tirar o rosto de Alexander da nota de dez dólares. Com o sucesso do musical Hamilton, o governo mudou de ideia e manteve o rosto de Alexander na nota. Apesar do musical resgatar o legado do fundador da guarda costeira, a obra também traz uma visão crítica e familiar dos pais-fundadores, mostrando suas falhas e conquistas. Outro ponto em que Hamilton subverteu carnavalizadamente o cânone da Broadway se deu na escolha do hip-hop e o rap como gêneros musicais para representar uma narrativa histórica. Além disso, há a questão de se escalar um elenco diverso, composto principalmente por atores negros e latinos, para interpretar os pais-fundadores dos EUA. Tal aspecto torna a obra ainda mais relevante durante o governo de Donald Trump, que persegue imigrantes - como Alexander, personagem do musical que esta pesquisa pretende analisar - além de outras minorias, como pessoas negras e latinas. Esses aspectos fazem com que a obra que selecionamos como corpus seja marcada pelo espírito do carnaval. Sendo assim, neste trabalho, temos como objetivo geral investigar a cosmovisão carnavalesca na construção do discurso carnavalizado em Hamilton: An American Musical. Esse objetivo será realizado através dos seguintes objetivos específicos: a) investigar como são construídas as zonas de contato familiar em Hamilton: An American Musical; b) analisar as cenas de excentricidade como recurso discursivo para a construção da carnavalização de Hamilton; c) investigar de que forma as mésalliances carnavalescas contribuem para a construção do discurso carnavalizado em Hamilton e, por fim, d) analisar de que forma a profanação adentra em Hamilton para construir sua dimensão carnavalesca. A questão geral de nosso trabalho é: como a cosmovisão carnavalesca constitui o discurso carnavalizado em Hamilton: An American Musical? Para respondermos essa questão, nos focaremos nas categorias da cosmovisão carnavalesca contempladas em nossas questões específicas, que são: a) como são construídas as zonas de contato familiar em Hamilton? b) como a excentricidade coopera para a construção do discurso carnavalizado em Hamilton?; c) 15

de que maneira as mésalliances carnavalescas contribuem para a construção do discurso carnavalizado em Hamilton?; e, por último, d) de que forma a profanação adentra em Hamilton para construir sua dimensão carnavalesca? Para conseguirmos atingir os objetivos traçados e responder às perguntas levantas por esta pesquisa, nossa análise terá, como base teórica, os estudos do Círculo de Bakhtin, fundamentados na Metalinguística proposta por Bakhtin (2010b), principalmente, tendo, como fundamento, as reflexões de Bakhtin (2010a; 2010b) a respeito da carnavalização. Dentro dos estudos sobre a carnavalização, conceito principal desta pesquisa, podemos citar a dissertação de Oliveira (2012), intitulada Paródia e carnavalização no cancioneiro Chico Buarque de Holanda, que analisou os aspectos paródicos e carnavalescos presentes nas músicas de Chico Buarque; e o trabalho Análise Do Discurso Carnavalizado Na Narrativa Fílmica De Animação Valente: “Eu Decidi Fazer O Que É Certo E... Quebrar A Tradição”, de Silva (2016), que analisou a carnavalização, o signo ideológico, o cronotopo, conceitos advindos da teoria bakhtiniana, juntamente com a noção butleriana de gênero no filme Valente (2012). Com relação ao estudo de musicais sob a perspectiva bakhtiniana, há a dissertação de Serni (2014), intitulada Gênero discursivo cinema, o filme musical: análise dialógica de Across the Universe. Esse trabalho analisou a relação dialógica entre as cenas do filme Across The Universe (2007), um musical feito a partir de canções da banda inglesa The Beatles. Porém, o estudo se serviu do conceito de dialogismo bakhtiniano, e não exatamente no de carnavalização, como é o caso da nossa pesquisa. Feito este breve estado da arte da pesquisa, discutiremos, a seguir, como chegamos a esse corpus, de modo que se compreenda o meu envolvimento com os musicais como gênero e, consequentemente mostre a justificativa desta pesquisa em um nível mais pessoal. Um primeiro contato das crianças com musicais, geralmente, acontece através dos filmes dos Estúdios Disney. Esse foi o meu caso. Quando ainda criança, já tinha, como filmes favoritos, Rei Leão (1994) e O Corcunda de Notre Dame (1996), filmes musicais. Com o passar do tempo, o meu interesse só aumentou por este gênero artístico ao assistir ao vivo a montagens amadoras de Chicago e Wicked, estreladas por amigas que participavam do grupo de teatro de minha escola. Em 2015, uma dessas amigas, inclusive, recomendou-me que escutasse a trilha sonora de Hamilton, disponível na plataforma de streaming Spotify3.

3 Spotify é uma plataforma de transmissão de músicas pela internet. 16

A ideia de analisar, então, o musical sob a perspectiva da carnavalização só surgiu quando estava na graduação, durante uma cadeira de Projeto Especial, no curso de Letras/Inglês (Bacharelado), ministrada pela então mestranda Elayne Gonçalves Silva, que estava fazendo seu estágio de docência sob a orientação do Professor João Batista. A disciplina era voltada para a Análise Dialógica do Discurso com concentração na discussão da teoria da carnavalização. Nela, Elayne Silva discorreu teoricamente sobre o carnaval bakhtiniano e, como avaliação prática da disciplina, pediu para que os alunos analisassem alguma obra de cunho carnavalizado. Infelizmente, neste período, a universidade entrou em greve, e a mestranda não pôde continuar com a disciplina. Depois da greve, outra professora assumiu a disciplina que, entretanto, explorava um conteúdo diferente. Todavia, perto do fim da graduação, outra cadeira de Projeto Especial, dessa vez, ministrada pela professora Maria Eduarda Gonçalves, tratou da Análise do Discurso sob diferentes abordagens teóricas, sendo uma delas a Análise Dialógica do Discurso, proposta pelo chamado Círculo de Bakhtin. Nessa cadeira, consegui aprender, mais profundamente, a respeito da teoria bakhtiniana. Quando me graduei no curso de bacharelado de Letras/Inglês e, logo após, entrei no mestrado de Linguística Aplicada da UECE, decidi escrever um projeto que analisasse, com base na teoria bakhtiniana, a carnavalização em Hamilton: An American Musical e, assim, levar a cabo um desejo já antigo de estudar academicamente este tipo de discurso artístico. Quanto à relevância acadêmica desta dissertação, acreditamos que esta pesquisa pode ampliar os estudos com base no pensamento do Círculo de Bakhtin que tratam de corpora verbo-visuais. Além disso, também pretendemos contribuir para uma área pouco explorada dentro da Metalinguística, que é o estudo da carnavalização em musicais. Em relação à organização deste trabalho, além dessa primeira seção introdutória, em que apresentamos o objeto de estudo da pesquisa, nosso estudo conta com mais cinco seções. Na segunda é apresentada uma breve biografia de Mikhail Bakhtin, além de dedicarmos um tópico para mostrar a visão de linguagem do Círculo bakhtiniano, destacando, em especial, os conceitos de dialogismo e de carnavalização. Já a terceira seção, por sua vez, traz uma breve biografia do criador de Hamilton, Lin-Manuel Miranda, discutindo suas principais obras, bem como apresenta uma discussão dos estudos do rap. A quarta seção, por sua vez, traz um histórico dos musicais norte-americanos, ressaltando peças carnavalizadas e peças que influenciaram Hamilton. A quinta seção apresenta os procedimentos metodológicos de nossa pesquisa para prosseguir com a análise das categorias da cosmovisão carnavalesca presentes no 17

elenco, na letra e na coreografia do musical Hamilton. Por fim, a sexta seção apresenta as considerações finais da pesquisa, discutindo os resultados encontrados ao longo da análise.

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2 NO PRINCÍPIO ERA O DIÁLOGO: A LINGUAGEM SOB A PERSPECTIVA BAKHTINIANA

“A palavra é uma ponte que liga o eu ao outro” (VOLÓCHINOV 2017, p. 205)

Nesta seção, será apresentado o referencial teórico usado para a realização desta pesquisa. Primeiramente, trataremos sobre alguns dados biobibliográficos de Mikhail Bakhtin (e o Círculo) e sua visão sobre a linguagem. Logo após, nos deteremos mais especificamente em expor a teoria bakhtiniana da carnavalização, em especial sobre a cosmovisão carnavalesca e suas categorias. Em seguida, discutiremos sobre a verbo-visualidade da linguagem sob a perspectiva bakhtiniana, tendo em vista que o corpus desta pesquisa é constituído de material multissemiótico.

2.1 MIKHAIL BAKHTIN

De acordo com Fiorin (2011), Mikhail Mikhailovich Bakhtin nasceu em 16 de novembro de 1895 na cidade de Orel na Rússia. A família de Bakhtin foi morar em Vilna, Lituânia, quando o estudioso tinha nove anos. Nessa cidade, o jovem Bakhtin pôde conviver com várias culturas e línguas, como o polonês, o iídiche e o lituano. Aos 15 anos, ele se muda novamente, dessa vez, para Odessa, outra cidade com pluralidade linguística, onde ele se matricula na universidade. A convivência com a diversidade de vozes influenciou o pensamento de Bakhtin, o qual é atravessado pelo heterodiscurso (a presença de diversas vozes). Aos 16 anos, o estudioso russo transfere seu curso para a Universidade de São Petersburgo, onde ele se forma em História e Filologia. Depois de sua formatura, Bakhtin trabalha como professor em Nevel, onde começa a se reunir com um grupo de estudiosos. Tal grupo iria crescer e se expandir, sendo posteriormente conhecido como “O Círculo de Bakhtin”. O termo “Círculo de Bakhtin” engloba um grande e diversos grupo de estudiosos das mais variadas áreas, que incluía “[...] a pianista e professora Maria Veniaminova Yudina (1899), [...] o biólogo, filósofo e historiador da ciência Ivan Ivanovich Kanaev (1893), o poeta e escultor Boris Mikhailovitch Zubain (1894).” (BRAIT, 2009, p. 18-19), dentre vários outros. O grupo se reuniu, principalmente, durante as décadas de 20 e 30 do século XX, na União Soviética e seus membros mais famosos são o 19

filósofo, Mikhail Bakhtin (1895-1975), o linguista, Valentin Volóchinov (1895-1936) e o teórico literário, Pável Mediédev (1891-1938). Em 1921, dois grandes acontecimentos marcam a vida de Bakhtin: seu casamento com Elena Okolóvitch e a descoberta de uma doença óssea: a osteomielite crônica. Mesmo doente, Bakhtin consegue publicar Arte e responsabilidade, seu primeiro ensaio, em que discute sobre a arte e a vida. Stam (1992) explica que, no período entre 1918 e 1924, Bakhtin escreve mais ensaios sobre a arte e a responsabilidade que exploram a relação entre o “eu” e o “outro” e sobre a responsabilidade de cada pessoa sobre seus atos. Segundo Stam (1992), nesses ensaios Bakhtin defende que o sujeito, não vive de forma isolada, mas sim que o mesmo “existe somente em diálogo com os outros eus. O eu necessita da colaboração de outros para poder definir-se e ser “autor” de si mesmo”. (STAM, 1992, p, 17) De acordo com Fiorin (2011), a saúde de Bakhtin se deteriora em 1924, forçando- o a se mudar para Leningrado, onde desempregado, sobrevive devido a ajuda do governo. Apesar da osteomielite crônica, o filósofo tem uma de suas épocas mais produtivas e consegue publicar vários estudos. Em 1929, provavelmente, devido à forte ligação de Bakhtin com a Igreja, o autor é preso, mas, por causa de sua saúde fraca, a sentença de trabalhos forçados em Solóvki é aliviada para exílio em Kustanai. Durante sua sentença, Bakhtin trabalha como contador e também dá aulas de contabilidade para trabalhadores de fazendas coletivas, enquanto desenvolve uma teoria sobre o romance. Após o fim de sua sentença, em 1936, Bakhtin viaja para Saransk e Savelovo, onde trabalha, novamente, como professor, dessa vez, dando aulas de russo e alemão. Em 1940, no Instituto Gorki, o pensador escreve sua tese de doutorado sobre a obra do escritor francês François Rabelais4, intitulada Rabelais e a cultura popular. Infelizmente, Bakhtin não consegue defender sua tese até o final da Segunda Guerra Mundial, em 1946. A tese do estudioso mostra a influência da cultura cômica popular na obra de Rabelais. Alguns dos temas discutidos são as imagens grotescas, o rebaixamento para o plano do baixo corporal e, principalmente, o espírito do carnaval, que questiona a autoridade e o status-quo, possibilitando que as pessoas

4 François Rabelais foi um médico e escritor francês do século XVI. Ele nasceu na cidade de Seuilly em 1483 e morreu em Paris em 1553, Rabelais escreveu cinco livros sobre as aventuras dos gigantes Gargântua e Pantagruel. Fonte: . Segundo Bakhtin (2010a), a literatura de Rabelais retrata a cultura popular medieval e apresenta uma concepção de mundo carnavalesca. 20

experienciem uma segunda vida sem hierarquias ou regras. Tais temas, apresentados durante o governo autoritário de Stálin causaram polêmica e Bakhtin não conseguiu o título de doutor. Em 1945, Bakhtin retorna a Saransk, onde trabalha no Instituto Pedagógico de Saransk, como professor de Literatura e chefe do Departamento de Estudos Literários até se aposentar em 1961. Devido a seus problemas de saúde, Bakhtin se mudou para Moscou para se tratar de sua doença, onde continuou morando até sua morte em 1975. Como podemos ver, Bakhtin teve uma vida árdua, o que não o impediu de refletir sobre diversos campos de estudo, como a psicologia, a história, a crítica literária e, principalmente, a linguagem. Bakhtin, em conjunto com o Círculo, desenvolveu uma filosofia da linguagem chamada de Metalinguística. Mas antes de discutirmos sobre a visão bakhtiniana da linguagem, é necessário entender a abordagem linguística tradicional da época à qual Bakhtin se contrapõe, o que veremos no próximo subtópico.

2.2 A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM SAUSSURIANA X A CONCEPÇÃO DIALÓGICA

Renfrew (2017) explica que, nos primeiros anos do século XX, na Rússia, e no mundo em geral, perdurava uma abordagem formalista que compreendia a língua e a linguagem como um sistema de elementos abstratos e fixos. Essa abordagem foi popularizada pela publicação póstuma de O Curso de linguística geral, de Ferdinand de Saussure, em 1916. Nessa obra, Saussure propõe, principalmente, quatro contribuições. A primeira envolve uma divisão entre os conceitos de langage (linguagem), o sistema linguístico homogêneo e abstrato, e de parole (língua), o uso da língua em situações da vida real. Como a parole é heterogênea por natureza, Saussure não via como ela poderia ser passível de análises linguísticas e escolheu eleger a langue como objeto primário da ciência linguística. A segunda é a nomeação dessa ciência de Semiologia e a delimitação de sua área de estudo: os signos. Para Saussure a natureza do signo é dual, sendo formado pelo significante, que corresponde à imagem acústica da palavra e pelo significado, que corresponde ao conceito da palavra. Além disso, o teórico postula a existência de um referente, a entidade à qual o signo se refere. A terceira é a dicotomia entre análises diacrônicas, que estudam como a linguagem muda com o passar do tempo, e sincrônicas, que estudam a linguagem em determinado recorte de tempo. Saussure afirma que a langue deve ser estudada de forma sincrônica. 21

A quarta trata dos dois eixos que organizam a língua, o eixo sintagmático, e o paradigmático. O primeiro é a combinação de formas linguísticas em que um termo tem valor ao se opor a outro. O segundo são as possibilidades de combinação possíveis dentro da língua. O Curso de linguística geral influenciou o modo como a linguagem era vista fundando a linguística como uma ciência própria e propondo uma abordagem para estudá-la que ficou conhecida como estruturalismo. Mussalim (2001) explica que essa abordagem linguística acredita que ao se focar na regularidade da langue é possível compreender toda linguagem, pois os fatores extralinguísticos que geram irregularidade não são vistos como parte integrante da estrutura e, logo, não exercem influência na mesma. Dessa forma, a língua não é vista como ação sobre o mundo, e sim, como parte integrante de um sistema fechado, de uma estrutura, por isso, o nome “estruturalismo”. De acordo com Renfrew (2017), na Rússia, em particular, os estudos de Saussure fortaleceram a abordagem formalista que estava em voga devido às publicações de Filipp Fortunatov e Jan Baudouin de Courtenay e, posteriormente, das obras do Círculo Linguístico de Moscou. Além disso, a abordagem saussuriana também afetou o campo da crítica literária na Rússia, através da parceria intelectual entre o Círculo Linguístico de Moscou e o Opoiaz (Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética), um grupo formado por estudiosos das regiões de São Petersburgo, Petrogrado e Leningrado. Em contraponto com a visão estruturalista da linguagem, Bakhtin e o Círculo como um todo discutiram questões de linguagem voltadas para a riqueza heterodiscursiva da parole através da ciência da Metalinguística. Em Problemas da Poética de Dostoiévski, doravante PPD, o autor define essa ciência como “[...] um estudo - ainda não constituído em disciplinas particulares definidas - daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam - de modo absolutamente legítimo - os limites da linguística.” (BAKHTIN, 2018, p. 207). Em PPD, Bakhtin (2010b) também define o objeto de análise da metalinguística, o discurso, “[...] a língua em sua integridade concreta e viva, e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso.” (BAKHTIN, 2010b, p. 207). Ao escolher se debruçar sobre a parole, o teórico resgata os aspectos extralinguísticos que haviam sido ignorados pela linguística, como o contexto socio-cultural-histórico e as relações dialógicas entre os enunciados, que veremos mais aprofundadamente no próximo tópico. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (MFL), Volóchinov (2017) também critica as abordagens estruturalistas e formalistas. Segundo Volóchinov (2017), se a imagem acústica 22

da palavra for isolada, não se chegará a língua. Mesmo adicionando a imagem acústica, o processo fisiológico responsável por sua produção, o processo de percepção dessa imagem acústica e a “vivência (os signos interiores) do falante e do ouvinte” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 144), ainda assim, não é possível chegar a língua. Para o autor, seria essencial levar em consideração o sujeito e o meio social em que este está inserido e no qual a comunicação se realiza. Volóchinov (2017) acredita que a linguística saussuriana estuda “a língua morta, escrita e alheia” e um “enunciado isolado, finalizado e monológico.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 186). O que pode nos levar a questionar: se para Volóchinov (2017) a língua não é um sistema de normas então qual é a realidade da língua? A resposta é: a interação discursiva, na qual o diálogo embora não seja o único elemento, é o aspecto mais importante. O autor propõe uma visão ampla de diálogo que engloba “qualquer comunicação discursiva, independentemente do tipo.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 219). Para exemplificar, o autor afirma que um livro impresso, que constitui um enunciado verbal, também é compreendido como parte de uma comunicação discursiva, visto que, ele interage com outras obras já produzidas. Bakhtin (2003) também defende essa ideia, afirmando que

[a] obra é um elo na cadeia de comunicação discursiva; como a réplica do diálogo, está vinculada a outras obras – enunciados: com aquelas às quais ela responde, e com aquelas que lhe respondem; ao mesmo tempo à semelhança da réplica do diálogo, ela está separada daquelas pelos limites absolutos da alternância dos sujeitos do discurso. (BAKHTIN, 2003, p. 279)

E é por essa natureza dialógica e responsiva que Volóchinov (2017) ressalta que o enunciado não pode ser estudado separado dos outros enunciados. O linguista defende que “[o] enunciado em sua totalidade se realiza apenas no fluxo da comunicação discursiva” (VOLÓCHINOV, 2017, 221). A natureza dialógica da linguagem é um dos pontos centrais da Metalinguística proposta pelo Círculo de Bakhtin, sobre o qual discorremos no próximo tópico.

2.3 DIALOGISMO

O Círculo de Bakhtin considera que o sujeito na construção do discurso, sempre traz a voz do outro, já que “[e]m todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa.” (BAKHTIN, 2002, p. 88). Dessa forma, às relações de sentido que derivam dessa interação entre os discursos dá-se o nome de dialogismo. 23

Fiorin (2011) aponta que o termo “dialogismo” pode nos remeter à palavra “diálogo”, causando a falsa impressão de que as relações dialógicas somente ocorrem quando dois enunciados se corroboram entre si. No entanto, o autor ressalta que isso nem sempre é verdade, pois “[s]e a sociedade é dividida em grupos sociais, com interesses divergentes, então os enunciados são sempre o espaço de luta entre vozes sociais, o que significa que são inevitavelmente o lugar da contradição.” (FIORIN, 2011, p. 21). Dessa forma, as relações dialógicas podem ser tanto de concordância quanto de discordância. Podemos citar como exemplo o enunciado “Ele não”, levantado por opositores do discurso extremista do até então candidato à presidência Jair Bolsonaro que, por sua vez, provocou como resposta o enunciado “Ele sim” dos apoiadores desse candidato5. Fiorin (2011) explica, ainda, que Bakhtin desenvolve o conceito de dialogismo em três tipos, sobre os quais discutiremos abaixo. O primeiro conceito de dialogismo refere-se à própria natureza da linguagem, e como esta se manifesta no discurso. Nesse caso, o dialogismo é compreendido como o “[...] modo de funcionamento real da linguagem: todos os enunciados constituem-se a partir de outros” (FIORIN, 2011, p. 72). Desse modo, os enunciados respondem e se relacionam uns com os outros em uma cadeia discursiva infinita e ininterrupta, sejam estas relações de concordância ou discordância. Podemos citar, como exemplo do nosso corpus, a música Farmer Refuted em que Samuel Seabury, um legalista, e Alexander, um revolucionário, discutem sobre a revolução. Seabury defende a coroa britânica: “Caos e derramamento de sangue não são soluções6” e afirma “Eu rezo para que o rei se mostre misericordioso7” enquanto Alexander responde: “Caos e derramamento de sangue já nos assombram8” e ao ouvir a ameaça de punição do rei, pergunta: “Ele está em Jersey?9” O discurso de Alexander é uma resposta para cada comentário de Seabury que mantém relações de discordância com este. Primeiro, Alexander afirma que o caos e derramamento de sangue já estão acontecendo então é preciso se rebelar contra o governo. Em relação à segunda fala de Seabury, Alexander defende que o rei não tem como ameaçar os rebeldes porque está do outro lado do oceano na Inglaterra, sendo o dever dos colonos lutar pela sua liberdade. Para Bakhtin (2002) “[a]penas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, [...] somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua- orientação dialógica do discurso alheio para o objeto.” (BAKHTIN, 2002, p. 88).

5 Fonte: . 6 Em inglês: “Chaos and bloodshed are not a solution”. 7 Em inglês: “I pray the king shows you his mercy”. 8 Em inglês: “Chaos and bloodshed already haunt us.” 9 Em inglês: “Is he in Jersy?” 24

Já no segundo conceito, o teórico russo examinou os enunciados pelo ponto de vista composicional. Nesse contexto, o dialogismo: “[t]rata-se da incorporação pelo enunciador da voz ou das vozes de outro(s) no enunciado” (FIORIN, 2011, p. 32). Essas vozes podem ser incorporadas de forma explícita, por exemplo, através de uma clara separação entre o discurso do eu e do outro em uma citação direta, ou de forma implícita, na qual não existe separação clara entre os dois ou mais discursos, como em uma citação velada. Uma incorporação direta acontece na música Take a Break de Hamilton. Nela, Alexander escreve uma carta para Angelica que contém a seguinte passagem da peça Macbeth: “O amanhã, o amanhã, o amanhã avança em passos mesquinhos dia a dia10”. Alexander explícita a referência nos versos seguintes: “Acredito que você entenderá a referência a/ Outro drama escocês sem que eu tenha que lhe dizer/ Me consideram Macbeth, e a ambição é o meu pecado [...]11”. A peça Macbeth é usada pela comparação feita entre o protagonista e Alexander, ambos conhecidos por sua ambição e serve de foreshadowing para o final trágico que o próprio Alexander terá. Além disso, já que a carta é escrita para Angelica, vemos que ela é a confidente de Alexander, podendo representar Lady Macbeth no musical. Por último, temos o terceiro conceito que trata das relações sociais que formam o sujeito. Nessa abordagem, o dialogismo se faz presente na própria formação do sujeito, cujo “[...] mundo interior é constituído de diferentes vozes em relações de concordância ou discordância. Além disso, como está sempre em relação com o outro, o mundo exterior não está nunca acabado, fechado, mas em constante vir a ser.” (FIORIN, 2011. p. 51). Essas vozes apontadas por Fiorin (2011) podem pertencer a uma instituição como a Igreja ou, até mesmo, ao grupo social ao qual o sujeito faz parte, moldando o horizonte valorativo do sujeito. Podemos perceber esse conceito na construção de personagem Burr em sua música-tema. Em Wait for It (Espere o Momento Certo), Burr descreve as vozes do grupo social que o formou: “Meu avô/ Pregava fogo e enxofre/ Mas há coisas que as homilias e os hinos não te ensinam/ Minha mãe era um gênio/ Meu pai exigia respeito/ Quando eles morreram eles não deixaram instruções/ Apenas um legado para proteger12” (MIRANDA, 2015, tradução nossa). Em outro trecho, vemos como a morte prematura da família de Burr e o peso de carregar um legado afetou sua filosofia de vida: “E se há uma razão para eu ainda estar vivo / Quando todo mundo que me

10 Em inglês: “Tomorrow and tomorrow and tomorrow/ Creeps in this petty pace from day to day.” 11 Em inglês: “I trust you’ll understand the reference to/ Another Scottish tragedy without me having to name the play/ They me Macbeth, and ambition is my folly.” 12 Em inglês: “My grandfather/ Was a fire and brimstone preacher/ But there are things that the homilies and hymns/ Won't teach ya/ My mother was a genius/ My father commanded respect/ When they died they left no instructions. Just a legacy to protect.” 25

ama morreu / Estou disposto a esperar por isso13” (MIRANDA, 2015, tradução nossa). Podemos observar, através desse exemplo, como Burr tornou-se cauteloso e calculista, por ter sido criado em uma família com um legado a preservar, em oposição a Alexander que é impulsivo e corajoso, pois não tem nada a perder. Não é por acaso que a música-tema de Burr seja sobre esperar enquanto a de Alexander é sobre não desperdiçar oportunidades. Essas músicas-tema marcam a diferença entre os dois, um sempre espera e o outro sempre age, dinâmica que será preservada pela maior parte do musical até ser invertida no fim, com consequências drásticas. Outro conceito que se relaciona com o dialogismo que interessa a esta pesquisa é o de heterodiscurso, sobre o qual discorremos a seguir.

2.4 HETERODISCURSO

O heterodiscurso lida com a incorporação de vários discursos e de várias vozes, e seus horizontes sociais e ideológicos no discurso. O termo foi cunhado por Bakhtin (2015) em O Discurso no Romance, para ser aplicado na literatura, mais especificamente, no romance humorístico inglês produzido por Charles Dickens e William Thackeray, dentre outros escritores. No entanto, é importante ressaltar que o conceito de heterodiscurso pode ser aplicado a outras linguagens. Para Bakhtin (2015, p. 113), o heterodiscurso no romance se constitui como o “discurso do outro na linguagem do outro, que serve à expressão refratada das intenções do autor”. No heterodiscurso, as palavras têm a propriedade de serem bivocais e representar dois sentidos e dois desígnios, o desígnio explícito do personagem e o desígnio implícito do autor, que usa o discurso do personagem para refratar suas intenções. Segundo o autor, existem três formas de inserção do heterodiscurso: no discurso do autor que traz outras vozes, no discurso do herói ou na mistura de gêneros. O autor pode inserir o discurso do outro de “forma dissimulada” (BAKHTIN, 2015, p. 82), ou seja, sem o uso do discurso direto ou do discurso indireto. Nesse caso, não podemos separar claramente o discurso do autor do discurso alheio. Como exemplo, podemos citar a frase abertura de Orgulho e Preconceito: “É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa.” (AUSTEN, 1982, p. 9). A narradora traz, sem uma clara separação, o discurso do “senso comum” do século XIX para expô-lo ao ridículo.

13 Em inglês: “And if there's a reason / I'm still alive / When so many have died / Then I'm willin' to / Wait for it”.

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Outra possibilidade é a inserção do discurso do outro de forma aberta através do discurso indireto. Para exemplificar, trouxemos outro trecho de Orgulho e Preconceito em que a narradora descreve o Sr Bennet: “Mr. Bennet era um misto tão curioso de vivacidade, humor sarcástico, reserva e capricho, que a experiência de vinte e três anos juntos tinha sido insuficiente para que a sua esposa lhe conhecesse o caráter.” (AUSTEN, 1982 p. 11). Além disso, Bakhtin (2015) aponta a existência de construções híbridas para a formação do heterodiscurso. Tais construções são formadas por enunciados que aparentemente pertencem a um falante específico, mas que, na verdade, são compostos por dois enunciados, apresentando “dois estilos, duas ‘linguagens’, dois universos semânticos e axiológicos” (BAKHTIN, 2015, p. 84). Nesse tipo de construção, não existe uma clara separação entre as vozes, e uma mesma palavra ou expressão pode estar revestida de dois acentos contrários, como podemos ver no seguinte trecho.

Mas o amigo, Mr. Darcy, atraiu desde logo a atenção da sala, pela sua estatura, elegância, traços regulares e atitude nobre, e também pela notícia que circulou, cinco minutos depois da sua entrada, de que possuía um rendimento de dez mil libras por ano. Os cavalheiros declararam que ele era uma bela figura de homem, as senhoras foram de opinião que era muito mais elegante do que Mr. Bingley. (AUSTEN, 1982, p. 16)

O excerto mostra o momento em que o Sr. Darcy é apresentado, conquistando a atenção de todos por sua aparência, o que só foi aumentado quando descobriram que ele também era rico. A narradora reproduz o discurso dos personagens, ao mesmo tempo, em que critica o fato de que os cavalheiros e as senhoras admiram Darcy pela sua fortuna. A penúltima forma de inserção do heterodiscurso dentro do romance são os discursos dos heróis. Bakhtin (2015), ao discutir essa forma, afirma que os discursos dos heróis “[...] quase sempre influenciam (às vezes de forma poderosa) o discurso do autor, disseminando nele palavras de outro (o discurso dissimulado do herói)”. (BAKHTIN, 2015, p. 100). Para exemplificar o discurso do herói, iremos utilizar outro excerto da obra Orgulho e Preconceito: “O que mais surpreendeu Elizabeth foi a extraordinária deferência que ele manifestava por Lady Catherine e a sua louvável intenção de casar, crismar e sepultar os seus paroquianos, em qualquer ocasião em que isto fosse necessário” (AUSTEN, 1982, p. 64). Nesse trecho, a voz de Elizabeth e suas opiniões sobre as funções de um clérigo parecem “contaminar” a voz da narradora. De acordo com Bakhtin (2015), a última forma de inserção do heterodiscurso nos romances são os gêneros intercalados. Neste caso, diversos gêneros são introduzidos, sejam estes literários ou não, que “estratificam a sua unidade linguística e, ao seu modo, aprofundam 27

a sua natureza heterodiscursiva” (BAKHTIN, 2015, p. 109). Esses gêneros podem servir apenas como um elemento na narrativa, sendo “objetais em sua totalidade” ou podem atuar para refratar as intenções do autor, sendo “diretamente intencionais” (BAKHTIN, 2015, p. 109). Como exemplo, citaremos o trecho de uma carta escrita pelo Sr. Collins em Orgulho e Preconceito, que está reproduzido abaixo:

Hansford, perto de Westerham, Kent. 15 de outubro. Caro senhor: [...] Cheguei agora comigo mesmo a uma decisão sobre o assunto, pois, tendo recebido ordens durante a Páscoa, tive a felicidade de ser distinguido com a proteção de Lady Catherine de Bourgh, viúva de Sir Louis de Bourgh, cuja largueza e generosidade me escolheram para preencher a importante reitoria daquela paróquia, onde me esforçarei por me conduzir sempre com o maior respeito para com Sua Excelência Lady Catherine, e onde estarei sempre preparado para cumprir os ritos e cerimônias da Igreja da Inglaterra. (AUSTEN, 1982, p. 63)

Em Orgulho e Preconceito, essa carta é o modo como o personagem é apresentado no livro. A autora se utiliza desse recurso para usar a linguagem do Sr. Collins para debochar de seu estilo pomposo, sua arrogância: “a importante reitoria” e de sua deferência a Lady Catherine, presente no excerto “cuja largueza e generosidade”. A mistura de vários gêneros, por permitir a inserção de outras vozes, também é uma das características da carnavalização. Essa teoria norteará com mais força nosso estudo e a qual será apresentada na próxima subseção.

2.5 CARNAVALIZAÇÃO

Em PPD, Bakhtin (2010b) afirma que o carnaval é um dos fenômenos mais intrigantes e complexos da cultura, o que pode nos levar a perguntar no que consiste o carnaval ao qual o estudioso se refere. Bakhtin (2010b) elucida essa questão, afirmando que o carnaval deve ser entendido como:

[...] um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não sem contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval mas vive-se nele, e vive-se conforme as suas leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma “vida às avessas”, um “mundo invertido” (“monde à l’envers”). (BAKHTIN, 2010b, p. 140)

Essa vida carnavalesca “de cabeça pra baixo” era muito importante no período medieval, pois ela fornecia uma nova concepção de mundo para o homem, sem divisões entre as pessoas ou tabus, dando esperança que um dia essa liberdade poderia ser alcançada. Além 28

disso, Renfrew (2017), interpretando o carnaval sob a ótica bakhtiniana, explica que esse fenômeno era importante porque enquanto este existir, ele “lembrará à autoridade que ela não é eterna nem imune à mudança - que outras forças existem fora e independentemente dela e que também ela deverá passar” (RENFREW 2017, p. 170). São por esses motivos que Bakhtin se interessa pelo carnaval, mas, como explicamos antes, o estudioso russo se debruçou sobre o carnaval na literatura e não pelo carnaval, propriamente dito. Essa passagem do espírito do carnaval para a linguagem é chamada por Bakhtin (2010b) de carnavalização da literatura. Fiorin (2011), procurando esclarecer esse conceito, enumera algumas características da literatura carnavalizada:

preocupa-se do presente e não do passado mítico; não se apóia na tradição, mas critica- a e opta pela experiência e pela livre invenção; constrói uma pluralidade intencional de estilos e vozes (mistura o sublime e o vulgar; usa gêneros intercalares, como cartas, manuscritos encontrados, paródias de gêneros elevados, citações caricaturadas, etc.). Nela, a palavra não representa; é representada e, por isso, é sempre bivocal. Mesclam- se dialetos, jargões, vozes, estilos [...]. (FIORIN, 2011, p. 72)

Uma obra carnavalizada apresenta uma cosmovisão carnavalesca, um modo especial de se perceber o mundo sob a ótica do carnaval, um “mundo de cabeça pra baixo”. Bakhtin (2010b) defende que essa cosmovisão carnavalesca está presente na obra de Fiódor Dostoiévski, que está inserida na tradição dos gêneros sério-cômicos que são influenciados pelo carnaval. Para o autor, os gêneros sério-cômicos apresentam uma cosmovisão carnavalesca que é responsável por três peculiaridades. A primeira peculiaridade refere-se a como as obras sério- cômicas são voltadas para a atualidade e o contato familiar que se contrasta com a distância épica. Já a segunda peculiaridade trata da forma como a lenda é abordada de modo crítico desmascarador. Por fim, a terceira peculiaridade engloba a grande variedade de vozes e estilos que atravessam o gênero sério-cômico. Além de Dostoiévski, Bakhtin (2010a) identifica essa cosmovisão carnavalesca também na obra de François Rabelais, que é atravessada pela cultura cômico popular, da qual o carnaval faz parte. Como dissemos no tópico que apresenta uma breve biografia de Bakhtin, o estudioso russo analisou a obra de Rabelais em sua tese. Apesar de Bakhtin não ter sido aprovado no doutorado, ele publicou sua tese em 1955. Em português, a versão atualizada da tese de Bakhtin é intitulada A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais (doravante CPIMR). Em CPIMR, Bakhtin (2010a) defende que a obra de Rabelais não foi interpretada de forma correta pelos críticos porque estes não a analisaram considerando a cultura cômica 29

popular, na qual Rabelais estava inserido. Para o teórico, Rabelais “recolheu sabedoria na corrente popular dos antigos dialetos, dos refrões, dos provérbios, das farsas dos estudantes, na boca dos simples e dos loucos” (BAKHTIN, 2010a, p. 1, grifos do autor). Dessa forma, o único modo de se conseguir compreender as imagens rabelesianas é estudar de forma profunda a cultura cômica popular. Segundo Bakhtin (2010a), os movimentos da cultura popular cômica podem ser classificados em três tipos:

1) As formas dos ritos e espetáculos (festejos carnavalescos, obras cômicas representadas nas praças públicas, etc.); 2) Obras cômicas verbais (inclusive as paródicas) de diversa natureza: orais e escritas, em latim ou em língua vulgar; 3) Diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos, juramentos, blasões populares, etc.). (BAKHTIN, 2010a, p. 4, grifos do autor).

O primeiro tipo corresponde às festas carnavalescas que ocupavam uma posição de destaque na vida medieval chegando a durar três meses. Essas festas englobam tanto os carnavais, como as outras festas cômicas, tais quais a “festa dos tolos” e a “festa do asno” e até mesmo os ritos religiosos medievais que eram atravessados pelo riso. Para que possamos compreender a dimensão da força cômica, Bakhtin (2010a) afirma que “[n]enhuma festa se realizava sem a intervenção dos elementos de uma organização cômica, como, por exemplo, a eleição de rainhas e reis “para rir” para o período da festividade.” (BAKHTIN, 2010a, p. 4). Esses festejos permitiram que fosse criada uma segunda vida, não-oficial, longe das restrições da Igreja e do regime feudal, vivida durante o tempo específico do carnaval. Dessa forma, o homem medieval participava de duas vidas: a oficial e a não-oficial, que conviviam lado a lado. De acordo com Bakhtin (2010a), a convivência entre rituais sérios e rituais cômicos, já fazia parte de nossa cultura desde que éramos povos primitivos. No entanto, o teórico ressalta que, na época primitiva, porque não havia separação de classes, os rituais cômicos também eram considerados oficiais. É somente com o estabelecimento de classes sociais distintas e da criação do aparelho do estado que o riso foi relegado à esfera do não-oficial, onde evoluiu e impregnou a cultura popular. Ao discutir sobre a natureza das festas carnavalescas, Bakhtin (2010a) afirma que estas são mais próximas do teatro do que dos ritos religiosos. Todavia, o teórico adverte que no carnaval não há palco e nem fronteiras entre o público e os artistas, porque não há espectadores, todos participam ativamente. Segundo o teórico, não é possível fugir do carnaval pois este “[...] não tem nenhuma fronteira espacial. Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com as suas leis, isto é, as leis da liberdade.” (BAKHTIN, 2010a, p. 6, grifos do autor). 30

Vale ressaltar que Bakhtin (2010a) considera que os festejos, não importam de que tipo, são um aspecto “primordial” da vida humana que emanam de “fins superiores” em tempos de crise, como uma espécie de libertação temporária. O estudioso classifica esses festejos em oficiais e não-oficiais explicando a diferença entre eles. Para Bakhtin (2010a), as festas oficiais têm os olhos fixos no passado, considerado glorioso. Elas pregam a manutenção do status quo e representam a imutabilidade de todas as coisas, o sério e a hierarquia. As festas não-oficiais, por sua vez, têm os olhos fixos no futuro não idealizam o passado, pregando uma subversão do status quo e representam a relatividade do mundo, o riso e o contato familiar, O contato familiar entre os homens é uma consequência da quebra das rígidas barreiras hierárquicas do regime feudal durante o carnaval. Bakhtin (2010a) considera essa aproximação entre os homens como “uma parte essencial da visão carnavalesca do mundo” (BAKHTIN, 2010a, p. 9). Outra consequência dessa quebra das barreiras hierárquicas é o surgimento de uma forma diferente de comunicação entre os homens, impensável em situações oficiais, a linguagem carnavalesca, que será comentada no nosso trabalho mais à frente, junto com o contato familiar de forma mais aprofundada no tópico sobre as categorias da cosmovisão carnavalesca. Por enquanto, vamos passar para o segundo tipo de movimento da cultura cômica popular: as obras cômicas verbais. As obras cômicas medievais expressavam a visão carnavalesca de mundo através da linguagem e das imagens do carnaval e eram ligadas aos festejos carnavalescos. Bakhtin (2010a) explica que essa literatura teve origem na Antiguidade Cristã e foi aperfeiçoada durante mil anos, servindo como expressão da cultura cômica popular. Nesse período, foram desenvolvidos diversos gêneros e obras, que, inclusive, subverteram os ritos religiosos. Bakhtin (2010a) cita, como exemplo, duas obras escritas em latim que iniciaram a literatura cômica medieval e a influenciaram fortemente: A ceia de Ciprião (Coena Cypriani), que carnavalizou a bíblia; e Vergilius Maro grammaticus, que parodiou a gramática latina e a erudição eclesiástica. Devido à influência dessas duas obras, com o passar do tempo, todos os elementos dos ritos religiosos foram parodiados, fenômeno que ficou conhecido como parodia sacra. Esse fenômeno originou “liturgias paródicas (Liturgia dos beberrões, Liturgia dos jogadores, etc.), paródias das leituras evangélicas, das orações [...] das litanias, dos hinos religiosos, dos salmos, assim como de diferentes sentenças do Evangelho, etc.” (BAKHTIN 2010a, p. 12), Tais paródias eram admitidas, até certo ponto, pela Igreja, sendo algumas apresentadas durante a festa dos tolos. 31

As obras cômicas verbais latinas atingiram seu ápice com a publicação de Elogio da loucura, de Erasmo de Roterdã, que critica a sociedade do século XV e XVI e Cartas de homens obscuros, que questiona a doutrina eclesiástica. As obras cômicas em língua vulgar são tão abundantes quanto as em latim, sendo formadas por “preces paródicas, homilias paródicas (chamadas em França sermons joyeux), canções de Natal, lendas sagradas paródicas, etc.” (BAKHTIN 2010a, p. 13). O teórico cita, como exemplo, as obras A mula sem freio e Aucassin et Nicolette, que são romances de cavalaria. Apesar desses escritos em latim e em língua vulgar expressarem as imagens e a linguagem carnavalesca, Bakhtin (2010a) afirma que são as peças medievais que mantém uma relação mais próxima com o carnaval. A primeira peça cômica de que se tem notícia é Le jeu de la feuillée escrita por Adam de la Halle. Segundo o teórico russo, essa peça “é uma excelente amostra da visão e da compreensão da vida e do mundo puramente carnavalescos; contém em germes numerosos elementos do futuro mundo rabelaisiano” (BAKHTIN, 2010a, p. 13). O terceiro tipo de movimento da cultura cômica popular são as formas e gêneros de vocabulário familiar e grosseiro. Como mencionamos anteriormente, a quebra de hierarquia durante o carnaval causou um contato familiar entre os homens e uma linguagem familiar. Para Bakhtin (2010a), a linguagem carnavalesca é formada por símbolos que refletiam os ideais do carnaval, como o inacabamento, a imperfeição, a mutabilidade e a efemeridade. Tendo como principais características a “lógica original das coisas ‘ao avesso’, ‘ao contrário’ [...] e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos” (BAKHTIN, 2010a, p. 10). Bakhtin (2010a) assinala que todos esses tipos de movimentos da cultura cômica foram analisados anteriormente, mas nunca sob a perspectiva de sua verdadeira essência: a cultura cômica popular. Por esse motivo, as imagens cômicas presentes em todas essas manifestações não foram entendidas por serem sempre investigadas pela ótica da modernidade a qual elas não pertencem. O que pode nos levar a questionar quais imagens são estas e qual é a sua natureza e origem. Bakhtin (2010a) exemplifica as imagens cômicas a partir da obra de Rabelais, rica no princípio material e corporal, que está presente nas cenas rabelaisianas que retratam o corpo com proporções distorcidas e exageradas, a bebida e o sexo em abundância. O teórico explica que essas cenas derivam do realismo grotesco. O realismo grotesco é definido por Bakhtin (2011a, p. 17) como o “sistema de imagens da cultura cômico popular”. Nesse sistema, o princípio material e corporal não é 32

mostrado de forma negativa como em nosso tempo, mas, sim, de forma positiva e alegre, pois ele representa o corpo do povo unido e festivo. E, por isso, suas proporções são distorcidas e hiperbólicas. De acordo com Bakhtin (2010a), o princípio material corporal dentro do grotesco é “percebido como universal e popular, e como tal opõe-se a toda separação das raízes materiais e corporais do mundo, [...], a toda pretensão de significação destacada e independente da terra e do corpo” (BAKHTIN, 2010a, p. 17). A principal característica do realismo grotesco é o rebaixamento, definido por Bakhtin (2010a) como “a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN, 2010a, p. 17). O teórico cita, como exemplo, a Coena Cypriani, mencionada anteriormente, em que o plano do baixo corporal é mostrado dentro da narrativa bíblica. Bakhtin (2010a) explica que o rebaixamento não tem sentido negativo, ele é positivo pois destrói o antigo para dar caminho ao novo, assim como a terra tem que se limpa no inverno para que as flores da primavera possam nascer. Nas palavras de Bakhtin (2010a), “[...] o baixo é a terra que dá vida, e o seio corporal; o baixo é sempre o começo” (BAKHTIN, 2010a, p. 19). O mesmo acontece com a degradação, que também é ambivalente, destrói para poder dar espaço para o novo. É por esse motivo que a paródia medieval, um dos aspectos mais fortes da cultura cômico popular, não é apenas destruidora e sim regeneradora, como iremos explicar a seguir.

2.5.1 A paródia

Aristóteles, em A Poética, considera que a origem da paródia deriva de Hegemon de Tarso (séc. V. a.C.). Tarso teria sido o primeiro a retratar os homens como pessoas normais vivendo uma vida comum, o que contrastava com a visão heroica e quase divina dos homens na epopeia e nos outros gêneros épicos. Hutcheon (1985, p. 47-48), ao discutir a origem e significado do termo “paródia”, explica que grande parte dos estudiosos apontam que etimologicamente a palavra deriva do grego parodia, que significa “contra-canto”. No entanto, a autora afirma que enquanto odia tem um significado claro, conectado com a palavra odos, canto, o prefixo para tem dois significados. O primeiro é o de “contra” ou “oposição”, por essa perspectiva a paródia constituiria uma relação de oposição entre dois textos ou mais textos. Já o segundo significado possível de para é “ao longo de”, nessa concepção a paródia seria uma relação de proximidade 33

e acordo, no lugar de oposição. Para Hutcheon (1985), esse último significado alarga o escopo da paródia. Dessa forma, a autora não percebe a paródia apenas em seu caráter negativo de oposição para destruir um texto, segundo Hutcheon (1985):

[a] paródia é, pois, na sua irónica <> e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser destrutiva. O prazer da ironia da paródia não provém do humor em particular, mas do grau de empenhamento do leitor no <> intertextual (bouncing) para utilizar o famoso termo de E.M. Foster, entre cumplicidade e distanciação. (HUTCHEON, 1985, p. 48, grifos da autora).

A autora cita como obras que apresentaram essas duas tendências, de homenagear criticando, os quadros de Picasso que fizeram uma releitura de Las Meninas de Velásquez e o livro Amante do Tenente Francês de John Fowles, que o próprio autor comparou com Lovel the Widower de Thackeray. Hutcheon (1985) afirma que, ao comparar os dois livros, Fowles não quis dizer que copiou Thackeray, mas, sim, que ele trouxe Lovel the Widower para um novo contexto, mas que ele deu uma nova forma a obra de Thackeray, renovando-a. Essa visão de paródia é bem representada no poema A Parodist’s Apology escrito por J.K. Stephen, em que ele diz: “[s]e ousei rir de ti, Robert Browning,/ Foi com olhos que contigo muitas vezes choraram:/ Mais vezes ainda me deixaste com um sorriso ou com um franzir de cenho, / Do que qualquer outro, à excepção de um bardo” (HUTCHEON, 1985, p. 49). Essa paródia positiva se relaciona mais aproximadamente com que Bakhtin (2010a) aponta como a paródia medieval. O teórico, inclusive, distingue a paródia moderna e a paródia medieval, baseado nesse ponto. Para Bakhtin (2010a), a paródia medieval, diferente da paródia moderna, ao mesmo tempo em que nega uma realidade constrói outra, ou seja, a paródia tanto destrói o antigo como o renova. Por isso, ela é a modalidade mais propícia às formas carnavalescas na literatura, pelo seu caráter ambivalente realizado através de uma estrutura heterodiscursiva, em que as palavras representam dois significados e dois horizontes socioideológicos distintos que renovam a obra. Ao abrir espaço para outras vozes, a paródia questiona e recontextualiza o status quo, agindo como uma força centrífuga. Mas o que seria uma força centrífuga na perspectiva dialógica-discursiva e no que ela consiste? 34

Fiorin (2011) explica que na linguagem agem forças centrípetas14, que lutam para suprimir as outras vozes e concentrar o poder, e forças centrífugas15, que lutam para trazer outras vozes e descentralizar o poder. Neste sentido, a paródia e a carnavalização, em geral, se configuram como uma força centrífuga, pois ela “[...] dessacraliza e relativiza o discurso do poder, mostrando-o como um entre muitos e, assim, demole o unilingüismo fechado e impermeável dos discursos que erigem como valores a seriedade e a imutabilidade [...]” (FIORIN, 2011, p. 77). A dessacralização do discurso de poder é feita na paródia, principalmente, pelo rebaixamento que traz o alto e o sagrado para o plano do baixo material corporal. Esse rebaixamento, como já explicamos antes, não tinha sentido negativo, mas, sim, ambivalente. Dessa forma, as paródias medievais não intencionavam apenas destruir os ritos religiosos. Nas palavras de Bakhtin (2010a):

[...] as paródias da Idade Média não eram de maneira alguma pastiches rigorosamente literários e puramente denegridores dos textos sagrados ou dos regulamentos e leis da sabedoria escolar: elas transpunham tudo isso ao registro cômico e sobre o plano material e corporal positivo, elas corporificavam, materializavam e ao mesmo tempo aligeiravam tudo o que tocavam. (BAKHTIN, 2010a, p. 72).

Os parodistas percebiam o riso como um filtro legítimo para se discutir a verdade. E é, por isso, que o riso se estende a todas as camadas, inclusive ao que é considerado sagrado. A este respeito, Bakhtin (2010a, p. 74) afirma: “[n]ão havia nenhum texto ou sentença do Velho ou do Novo Testamento de que não se tivesse tirado pelo menos [...] uma ambigüidade suscetível de ser [...] travestida, traduzida na linguagem do “baixo” material e corporal”. Na obra de Rabelais, esse movimento de arrastar tudo que é elevado para o plano do material e corporal é simbolizado na figura de frei Jean. Bakhtin (2010a) cita, como exemplo, os últimos enunciados ditos por Jesus: Sitio, que significa “tenho sede” e Consummatum est, que significa “tudo está consumado” que, em Rabelais, adquiriram outro sentido, passando a se referir ao consumo de bebidas e à gula. Após essa breve exposição sobre a paródia medieval, iremos discutir as categorias da cosmovisão carnavalesca que, segundo a orientação bakhtiniana, atravessam todas as manifestações da cultura cômica popular, incluindo a paródia.

14 “A força centrípeta é a força que atua num corpo, obrigando-o a descrever uma trajetória circular, isto é, a que num movimento de rotação, atua sobre o corpo, atraindo-o na direção do centro”. Fonte: . 15 “A força centrífuga consiste numa força aparente (de inércia) que se manifesta nos corpos em rotação e cujo efeito é o afastamento dos corpos do centro de rotação.” Fonte: . 35

2.5.2 Categorias da cosmovisão carnavalesca

Bakhtin (2010b, p. 140-141) enumera algumas categorias da cosmovisão carnavalesca, a forma de se perceber o mundo sob a ótica do carnaval, que são: “o livre contato familiar entre os homens”, em que as relações hierárquicas são abolidas; “a excentricidade”, em que a vida é mostrada fora de seu centro, rompendo o que é considerado usual; as “mésalliances carnavalescas”, que consistem nas aproximações entre contrários; e a “profanação”, que engloba as ofensas carnavalescas e a profanação do sagrado através da paródia. Estas categorias são carnavalescas, por apresentarem a lógica do carnaval das coisas ao contrário, subvertendo os padrões da cultura oficial. Por mostrarem uma mesma concepção de “mundo de cabeça pra baixo”, elas estão intrinsecamente ligadas entre si, em que uma complementa a outra, mas, como elas são nossas categorias de análise, para efeitos de expansão, iremos explicá-las de forma separada. Para tal, iremos trazer algumas definições do dicionário Michaelis on-line (2015), escolhido por sua facilidade de acesso, para elucidar o significado mais comum das categorias, em seguida, comentaremos suas características num plano mais teórico e daremos exemplos. Começaremos, primeiro, pelo livre contato familiar. O livre contato familiar entre os homens é considerado um acontecimento muito significativo para Bakhtin (2010b) e ocorre devido à quebra das rígidas barreiras hierárquicas que separam os homens em sua vida oficial. Para compreendermos essa categoria, precisamos entender o que significa a palavra “familiar”. O dicionário Michaelis on-line traz sete definições da palavra “familiar” como adjetivo, dentre elas temos: “Que se familiarizou; que se tornou ou é considerado da família; íntimo” (MICHAELIS, 2015, on-line); “Que já é bem conhecido por ter sido visto ou praticado muitas vezes; habitual, trivial, comum, vulgar” (MICHAELIS, 2015, on-line) e “Sem cerimônia ou formalidades; [...]” (MICHAELIS, 2015, on-line). Ao relacionar a definição da palavra com a categoria da cosmovisão carnavalesca, podemos, então, perceber que um contato familiar entre os homens constituiria relações entre pessoas mais genuínas, francas e livres, sem cerimônia ou distância. Tal contato e suas particularidades que são típicas entre pessoas próximas se estende a todos os participantes do carnaval. Podemos exemplificar essa categoria através da linguagem familiar. Bakhtin (2010a) compara o fenômeno da linguagem familiar com o modo como as pessoas atualmente se relacionam umas com as outras quando travam relações de proximidade. Quando isso acontece, as pessoas passam a usar formas linguísticas informais e familiares. Essa familiaridade se reflete através do uso do pronome “tu”, do uso de apelidos ou diminutivos e, 36

até mesmo, o emprego de palavras consideradas ofensivas como modo de se referir a um amigo. No entanto, Bakhtin (2010a) afirma que existe uma diferença importante entre o contato familiar atual e o da época medieval. Para Bakhtin (2010a), atualmente, “[f]alta um elemento essencial: o caráter universal, o clima de festa, a idéia utópica, a concepção profunda do mundo” (BAKHTIN, 2010a, p. 14). Mas no que exatamente consiste a linguagem familiar medieval? Bakhtin (2010a) explica que essa linguagem “caracteriza-se pelo uso freqüente de grosserias, ou seja, de expressões e palavras injuriosas, às vezes bastante longas e complicadas (BAKHTIN, 2010a, p. 15). Para o teórico, as grosserias se constituem como um gênero verbal típico da linguagem familiar. Como exemplo desse gênero, Bakhtin (2010a) cita as blasfêmias feitas para as divindades e os juramentos. As blasfêmias são ambivalentes, ao mesmo tempo, destroem e renovam. Segundo Bakhtin (2010a), essas blasfêmias adquiriam uma nova natureza durante o carnaval, elas: “perdiam completamente seu sentido mágico e sua orientação prática específica, e adquiriam um caráter e profundidade intrínsecos e universais” (BAKHTIN, 2010a, p. 15). Essa mudança de natureza nas blasfêmias estabelecia um clima em que a liberdade e o cômico reinavam. Outro gênero da linguagem de praça pública são os juramentos. Bakhtin (2010a) aponta que os juramentos compartilham algumas características em comum com as blasfêmias, que são seu “caráter isolado, acabado e auto-suficiente” (BAKHTIN, 2010a, p. 15). Apesar de os juramentos não terem uma origem cômica, depois de seu expurgo da cultura oficial, eles passaram a habitar a esfera da cultura cômica popular, na qual adquiriram um caráter cômico e ambivalente. Não são somente as blasfêmias e os juramentos que sofreram mudanças ao passarem para a esfera da cultura cômica popular, o mesmo aconteceu com as obscenidades e os outros fenômenos verbais medievais. Desse modo, a linguagem familiar passou a englobar as formas linguísticas que foram suprimidas da cultura e da vida oficial que ao integrarem a cultura não-oficial passaram a exprimir os ideais carnavalescos. Bakhtin (2010a) explica que essas formas, ao serem empregadas para outros propósitos, “adquiriram um tom cômico geral e converteram-se, por assim dizer, nas centelhas da chama única do carnaval, convocada para renovar o mundo.” (BAKHTIN, 2010a, p. 15). Em sua dissertação, Silva (2016) defende que a linguagem carnavalizada pode ser percebida de forma mais elástica. Para tal, a autora cita a visão de Paula & Stafuzza (2013) sobre a linguagem do carnaval que engloba tanto a dimensão verbal, como a não verbal, e a junção das duas em uma dimensão “sincrética”: 37

compreendemos a linguagem de maneira ampla: verbal – a linguagem familiar, o vocabulário ‘baixo’, sem restrições e sem condutas polidas, entre outras manifestações; não verbal – a gestualidade e a corporalidade, por exemplo; e sincrética – o conjunto harmônico ou não, em diálogo – no sentido bakhtiniano do termo – entre as duas anteriores. (PAULA; STAFUZZA, 2013, p. 139)

Desta forma, como Silva (2016) fez analisando o filme Valente, em nossa análise de Hamilton: An American Musical, iremos também considerar que tanto os aspectos verbais como os não-verbais podem ser carnavalizados em uma dimensão sincrética. A linguagem familiar repleta de palavras excluídas e de gestos obscenos põe em foco um outro lado da vida que não costuma ser mostrado em público, relacionando-se assim com a segunda categoria da cosmovisão carnavalesca, a excentricidade. A excentricidade é definida por Bakhtin (2010b) como “a violação do que é comum e geralmente aceito; é a vida deslocada de seu curso habitual” (BAKHTIN, 2010b, p. 144). O dicionário Michaelis on-line apresenta sete definições para excentricidade, dentre as quais podemos citar: “Qualidade ou condição de excêntrico” (MICHAELIS, 2015, on-line); “Afastamento do centro” (MICHAELIS, 2015, on-line); “Modo de ser extravagante” (MICHAELIS, 2015, on-line). Segundo essas definições, a excentricidade pode ser entendida como algo que é diferente, que está afastado do centro. Para entendermos a excentricidade, é interessante saber a definição de uma palavra que nos é mais familiar, a palavra “excêntrico”, definida pelo mesmo dicionário como: “Que está fora do centro” (MICHAELIS, 2015, on-line); “Que tem centro diferente” (MICHAELIS, 2015, on-line) e “De atitudes e pensamentos fora dos padrões comuns; extravagante” (MICHAELIS, 2015, on-line). A partir dessas definições, podemos pensar em excentricidade como algo que foge ao centro da cena, ou seja, as posturas, as relações, as pessoas ou os rituais que fogem aos padrões e as regras estabelecidas e que não são aceitos pela cultura oficial ou que não estão colocados em destaque pela mesma. Como exemplo da excentricidade, Bakhtin (2010b) cita o uso de objetos fora de seus usos habituais, como “roupas pelo avesso, calças na cabeça, vasilhas em vez de adornos de cabeça, utensílios domésticos como armas, etc.” (BAKHTIN, 2010b, p. 144). Uma cena assim ocorre no capítulo XXX do Livro I de Gargântua de Rabelais, onde o gigante Gargântua limpa seu ânus com vários objetos que não foram feitos para esse propósito, como um chapéu, uma echarpe, um boné de pajem, e, até mesmo, um gato. De acordo com Bakhtin (2010a) esse episódio mostra como os objetos usados como “limpa-cus” - como o próprio teórico os 38

denominam - são rebaixados e ao mesmo tempo renovados, ganhando um novo significado ligado ao baixo material e corporal, o que simboliza a ambivalência carnavalesca. Os aspectos considerados extravagantes e excêntricos apresentam grande contraste quando comparados com o que é aceito, o que se relaciona com a terceira categoria, as mésalliances. Mésalliances é uma palavra de origem francesa. Segundo o Online Etymology Dictionary16 a palavra é formada pelo prefixo mes, que deriva do latim mis, cujo significado é “ruim, mal, errado” (ONLINE ETYMOLOGY DICTIONARY, 2001-2019) e alliance que significa “aliança, vínculo, casamento, união” (ONLINE ETYMOLOGY DICTIONARY, 2001-2019). A palavra mésalliance é definida pelo Michaelis on-line (2015) como: “Casamento de uma pessoa com outra cuja condição social é inferior à sua” (MICHAELIS, 2015, on-line), o que seria, portanto, um casamento indesejável, “uma má aliança/união”. Já para Bakhtin (2010b), as mésalliances carnavalescas são jogos entre opostos, como seria considerado um casamento entre uma pessoa rica e uma pessoa pobre. Esses jogos entre opostos, como rico e pobre, livre e escravo, ocorre devido a familiarização que “estende-se a tudo: a todos os valores, ideias, fenômenos e coisas. Entram nos contatos e combinações carnavalescas todos os elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos outros [...]” (BAKHTIN, 2010b, p. 141). Um dos rituais centrais do carnaval que mostra a aproximação dos contrários é a coroação bufa e o destronamento do rei do carnaval. Este ritual, consiste na coroação de um bobo, bufão ou escravo que seja o antípoda, o oposto do rei, e no destronamento do rei que é despojado de seus símbolos de poder e de sua autoridade. É importante ressaltar que as mésalliances, como os outros fenômenos carnavalescos, não têm caráter puramente negativo e sim ambivalente, que ao mesmo tempo destrona e coroa. Esse aspecto é discutido por Fiorin (2011, p. 74) que afirma que “[n]essa elevação e queda, revela-se a festa em seu caráter destruidor e regenerador, de morte e de renascimento. [...] Entroniza-se como rei o bufão ou o escravo: é o mundo ao inverso”. Assim, as aproximações entre os contrários podem, por vezes, misturar coisas consideradas superiores com coisas consideradas inferiores, o que se relaciona com a quarta e última categoria, a profanação. A profanação é definida pelo Michaelis on-line como “Ato ou efeito de profanar” (MICHAELIS, 2015, on-line); “Ação irreverente contra pessoas, lugares ou coisas sagradas;

16 Disponível em: . Acesso em jun. 2019. 39

profanidade” (MICHAELIS, 2015, on-line) e “Uso aviltante das coisas dignas de apreço” (MICHAELIS, 2015, on-line). A partir dessas definições, podemos perceber que as profanações ocorrem quando se combina algo considerado sagrado ou elevado com algo terreno e baixo. Como exemplo dessa categoria citaremos a obra paródica Coena Cypriani. Bakhtin (2010a) explica que em Coena Cypriani estão presentes vários personagens do Antigo e do Novo Testamento em um banquete. Essa paródia oferece uma nova realidade que segue, uma certa lógica bíblica que explica onde os convidados sentam e as comidas consumidas por cada, por exemplo, “[...] serve-se a Cristo vinho de uvas secas que tem o nome de passus, porque o Cristo padeceu a “Paixão”. (BAKHTIN, 2010a, p. 250). Em determinado momento, é descoberto que vários objetos foram roubados durante o banquete e todas as figuras religiosas são consideradas suspeitas e vistas como ladrões. No fim, Agar, serva de Sara, é morta e enterrada com uma grande festa para expiar todos os pecados dos convidados. Bakhtin (2010a), ao discutir esta obra, afirma que

[a] Coena é um jogo de uma total liberdade com todas as personagens, coisas, motivos e símbolos sagrados da Bíblia e do Evangelho. Seu autor não recua diante de nada. Os sofrimentos de Cristo, em função de uma simples semelhança verbal, obrigam-no a tomar vinho de passas; todas as personagens sagradas são ladrões, etc. A fantasia com a qual as personagens se relacionam, as associações insólitas de imagens sagradas são espantosas. (BAKHTIN, 2010a, p. 252).

Dessa forma, Coena Cypriani, pela imagem do banquete, profana e rebaixa as figuras bíblicas para o plano do baixo material e corporal, ao mesmo tempo, que renova através do riso e aproxima os outrora distantes personagens sagrados. Após termos discutido a carnavalização, nossa principal teoria, e as categorias da cosmovisão carnavalesca, que também serão nossas categorias de análise, iremos discorrer sobre a dimensão verbo-visual da linguagem. O que se faz necessário, visto que nosso corpus é formado por um musical, como elementos tanto visuais quanto verbais.

2.6 O VERBAL E O NÃO-VERBAL NA CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS NO DISCURSO

Brait (2013), em seu artigo intitulado Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica, discute a verbo-visualidade sob a orientação teórica bakhtiniana. Segundo Brait (2013), às dimensões verbais e visuais de um enunciado não devem ser estudadas de forma separada, pois isso prejudicaria seu entendimento, visto que o enunciado foi criado para ser tanto visual como verbal ao mesmo tempo. 40

No entanto, a autora afirma que há uma tradição teórica de análises nos estudos da linguagem e do discurso que consideram apenas a dimensão visual, e não a verbo-visual. Como exemplos de trabalhos que abordaram o visual inspirados no Círculo, Brait (2013) cita o trabalho de Haynes (1995) intitulado Bakhtin and the Visual Arts (Baktin e as Artes Visuais), no qual a autora estuda como a estética na visão de Bakhtin e a teoria da criatividade pode contribuir para a arte. Brait (2013), para exemplificar uma abordagem verbo-visual, cita o famoso quadro de René Magritte, que podemos ver a seguir.

Figura 1 - A Traição das Imagens de Magritte (1898-1967)

Fonte: Brait (2013).

No quadro A Traição das Imagens, podemos perceber, segundo a autora, a importância da dimensão visual e verbal para a construção do sentido. É através da imagem do cachimbo, juntamente com a frase irônica “Isto não é um cachimbo”, que podemos construir relações de sentido em que a imagem não é um cachimbo de fato, e sim uma mera representação deste. Já que, conforme Volóchinov (2017), ao se representar um objeto do mundo, um signo é criado. Com a transformação em signo, o objeto material não deixa de existir na realidade física, mas sua representação já não é uma representação fiel do objeto. Nesse caso, o quadro se transforma em um signo ideológico. Para Volóchinov (2017)

[q]ualquer corpo físico pode ser percebido como a imagem de algo; [...] Essa imagem artístico-simbólica de um objeto físico já é um produto ideológico. O objeto físico é transformado em um signo. Sem deixar de ser uma parte da realidade material, esse objeto, em certa medida, passa a refratar e a reflitir outra realidade. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 92).

É com base no pensamento de Volóchinov e de Bakhtin que Brait (2013) afirma que as contribuições do Círculo são “para uma teoria da linguagem em geral e não somente para 41

uma teoria da linguagem verbal, quer oral ou escrita” (BRAIT, 2013, p. 44). No entanto, assim como vários estudiosos, o foco no verbal também está presente em Bakhtin e seu Círculo, que se concentraram em estudar a dimensão verbal, o que podemos perceber em várias obras. Por exemplo, em um trecho de MFL, Volóchinov afirma que “[a] palavra é o fenômeno ideológico par excellence” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 98, grifos do autor). Em outro trecho, o autor defende que

A palavra acompanha e comenta todo ato ideológico. Os processos de compreensão de todos os fenômenos ideológicos (de um quadro, música, rito, ato) não podem ser realizados sem a participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica, isto é, todos os outros signos não-verbais são envolvidos pelo universo verbal, emergem nele e não podem ser nem isolados, nem separados dele por completo. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 101).

Volóchinov (2017) destaca a importância do fenômeno verbal, como se vê, no entanto, ele também ressalta que a palavra não é a única construtora de sentido ideológico: “Isso não significa que a palavra é capaz de substituir qualquer outro signo ideológico” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 101). Dessa forma, apesar de o Círculo de Bakhtin se voltar para a linguagem verbal, os estudiosos não afirmam que esta dimensão é a única que pode ser estudada. A partir dessa abertura para o estudo de outros sistemas sígnicos, Gonçalves, Gonçalves e Guedes (2015) procuraram refletir sobre o verbo-visual no signo ideológico a partir de MFL. Os autores defendem que é possível analisar dialogicamente obra verbo-visuais. Para fundamentar essa tese, eles citam um trecho de PPD, onde Bakhtin (2010b) afirma: “[...] as relações dialógicas são possíveis entre imagens de outras artes” (BAKHTIN, 2010b, p. 211). Nesse trecho, Bakhtin (2010b) propõe a metalinguística, que iria além da linguística, estudando, principalmente, as relações dialógicas. Apesar do teórico afirmar que as relações dialógicas entre as imagens “ultrapassam os limites da metalinguística” (BAKHTIN, 2010b, p. 211), o teórico não nega que tais relações possam existir e que elas são passíveis de serem estudadas. Outra obra citada por Gonçalves, Gonçalves e Guedes (2015) é Estética da criação verbal, em que Bakhtin (1997) expande sua análise da linguagem para incluir também signos não verbais de diversos sistemas semióticos e áreas. O que pode ser comprovado pela definição de texto mais elástica apresentada pelo autor russo, que não se restringe ao signo verbal: “[s]e tomarmos o texto no sentido amplo de conjunto coerente de signos, então também as ciências 42

da arte (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) se relacionam com textos (produtos da arte)” (BAKHTIN, 1997, p. 330). Além de Volóchinov e Bakhtin, Gonçalves, Gonçalves e Guedes (2015) também citam Medviédev (2012) em O método formal nos estudos literários, onde ele refletiu sobre diferentes sistemas semióticos oriundos de “[t]odos os produtos da criação ideológica – obras de arte, trabalhos científicos, símbolos e cerimônias religiosas etc.” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 48). O teórico afirma que esses produtos de criação ideológica "são objetos materiais e partes da realidade que circundam o homem. É verdade que se trata de objetos de tipo especial, aos quais são inerentes significado, sentido e valor interno. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 48). Em outro trecho da obra, Medviédev (2012) aprofunda sua reflexão, afirmando que os signos não-verbais também são ideológicos:

[a]s concepções de mundo, as crenças e mesmo os instáveis estados de espírito ideológicos também não existem no interior, nas cabeças, nas “almas” das pessoas. Eles tornam-se realidade ideológica somente quando realizados nas palavras, nas ações, na roupa, nas maneiras, nas organizações das pessoas e dos objetos em uma palavra, em algum material em forma de um signo determinado. Por meio desse material, eles tornam-se parte da realidade que circunda o homem. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 48-49).

Gonçalves, Gonçalves e Guedes (2015) apontam que essa discussão de Medviédev (2012) sobre outros sistemas signos serem ideológicos é retomada de forma mais detalhada por Volóchinov (2017) em MLF. Nessa obra, o autor afirma que a “[...] imagem artístico-simbólica de um objeto físico já é um produto ideológico” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 92). Essa preocupação com a ideologia e o signo é o ponto central de MFL, segundo Volóchinov (2017), “[t]udo o que é ideológico possui uma significação: ele representa e substitui algo encontrado fora dele, ou seja, ele é um signo. Onde não há signo também não há ideologia” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 91). Dessa forma, podemos ver que para Volóchinov (2017), signo e ideologia estão relacionados de forma imbricada, compartilhando da mesma esfera, um não pode existir sem o outro. Gonçalves, Gonçalves e Guedes (2015) trazem novamente o foco para o verbo- visual, afirmando que “tudo que é ideológico possui um valor semiótico de representação, seja o signo verbal, como a palavra, seja o signo não verbal, como a imagem” (GONÇALVES; GONÇALVES; GUEDES, 2015, p. 166-167). Os estudiosos explicam que os signos ideológicos, além de representar a realidade, também agem como uma parte material dela, seja através de um som ou de uma cor ou de qualquer outro tipo de material. 43

É importante ressaltar que, apesar disso, o signo não apresenta apenas uma realidade, Volóchinov (2017) afirma que o signo também “reflete e refrata uma outra realidade, sendo por isso mesmo, capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico e assim por diante” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 93). Gonçalves, Gonçalves e Guedes (2015) afirmam ainda que essa refração é parte essencial do signo ideológico, devido à diversidade de pessoas que compõe uma comunidade linguística que reinterpretam os signos de acordo com suas crenças e experiências. Como Volóchinov (2017, p. 109) defende que “as formas do signo são condicionadas, antes de tudo, tanto pela organização social desses indivíduos quanto pelas condições mais próximas da sua interação. A mudança dessas formas acarreta uma mudança do signo”. Desse modo, o signo é afetado diretamente pelos membros de uma comunidade linguística, por isso, Volóchinov (2017), considerando o fenômeno social, sugere três requisitos para o estudo do signo, que são:

1) Não se pode isolar a ideologia da realidade material do signo [...] 2) Não pode isolar o signo das formas concretas da comunicação social (pois o signo é uma parte da comunicação social organizada e não existe, como tal, fora dela, pois se tornaria um simples objeto físico). 3) Não se pode isolar a comunicação e suas formas da base material. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 110).

Assim, para o autor, as análises têm que considerar tanto as dimensões verbal e não-verbal, formadas pelo “horizonte social” de uma época específica e de um grupo social específico. Seguindo os requisitos propostos por Volóchinov em nosso trabalho, iremos considerar tanto a dimensão verbal quanto a dimensão não-verbal para a construção dos sentidos em nossa análise. E, por isso, na próxima seção, iremos apresentar o panorama histórico dos musicais para vermos como estes influenciaram na construção dialógica do nosso corpus.

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3 POR TRÁS DA CORTINA: UM HISTÓRICO DAS PEÇAS MUSICAIS DO TEATRO ANTIGO AOS MUSICAIS MODERNOS

“Não faz sentido dizer o que um musical deve ou não ser. Ele deve ser qualquer coisa que quiser ser e, se você não gosta, não precisa assisti-lo. Há apenas um elemento absolutamente indispensável a um musical: ele deve ter música. E há apenas uma coisa que ele tem que ser: tem que ser bom”. Oscar Hammerstein II.

Nessa seção, voltaremos nossa atenção para as vozes históricas e sociais do passado que ecoam em nosso corpus, seja de forma direta ou indireta. Para tal, apresentaremos uma breve história do teatro antigo e do teatro musical, mostrando, para usar os termos e Bakhtin (2010b), um pouco da archaica do gênero. Faremos isso destacando peças carnavalizadas e, ao mesmo tempo, ressaltando obras que influenciaram Hamilton, musical de onde construiremos nosso corpus de análise. Nortearemos essa historicização com base no pensamento de Bakhtin (2010b) de que um gênero sempre conterá traços de sua archaica. Nas palavras do estudioso: “[o] gênero vive do presente, mas sempre recorda o seu passado, o seu começo” (BAKHTIN, 2010b, p. 121), visto que ele continuamente se renova; no caso em questão, através da evolução do teatro como um todo e da realização, ao mesmo tempo, de peças individuais.

3.1 GÊNERO MUSICAL

Antes de discutirmos a história dos musicais, é necessário entender sua definição. Segundo Kenrick (2010), um musical pode ser definido como: “uma produção teatral, televisiva ou cinematográfica que utiliza estilos populares de canções para contar uma história ou para mostrar os talentos dos escritores e/ou artistas, com diálogo opcional17” (KENRICK, 2010, p. 14, tradução nossa). Para o autor, os musicais são formados por cinco elementos principais que são as músicas e as letras; o livro/libreto, que engloba a história a ser contada que pode estar

17 Em inglês: “a stage, television, or film production utilizing popular style songs to either tell a story or to showcase the talents of writers and/or performers, with dialogue optional.” 45

escrita em forma roteiro ou de diálogo; a coreografia; montagem (staging), que se refere ao processo de seleção e montagem do espetáculo e a produção física, o(s) cenário(s), figurinos e os aspectos técnicos. Após essas explicações conceituais, prosseguiremos para um histórico dos musicais, iniciando com o período grego.

3.1.1 Teatro grego: o início

Kenrick (2010) defende que as origens do teatro musical remontam à Grécia antiga. Os gregos empregavam diálogo, música e dança para contar uma história, sendo a tragédia grega um tipo de musical. Dramaturgos, como Ésquilo, Sófocles e Aristófanes, além de escreverem peças de teatro também escreviam as letras das músicas e definiam sua melodia. Para consolidar seu argumento, o autor faz um breve histórico do teatro grego. Segundo Kenrick (2010), os gregos tradicionalmente honravam Dionísio, deus do vinho e do teatro, com releituras de mitos em performances de coral conhecidas como ditirambo. Os espetáculos eram acessíveis, sendo gratuitos ou tendo como entrada uma pequena quantia de dinheiro. O autor explica que, inicialmente, o dramaturgo atuava tanto como diretor quanto ator principal de suas peças, mas, com o passar do tempo, essa situação mudou e homens passaram a se voluntariar para participar das peças. As mulheres consideradas respeitáveis não tinham vida pública, exceto as sacerdotisas e as prostitutas, e por isso não tinham direito de participar dos espetáculos. No fim do século 50 A.E.C, os atores passaram a ser pagos pelo estado e designados para vários espetáculos. Eles usavam máscaras para demarcar os personagens que interpretavam, podendo, às vezes, interpretar vários personagens na mesma peça. Interessante destacar que algumas peças da Broadway, como Hamilton, à semelhança das peças gregas desse período, também contam com atores interpretando vários personagens. Além dessas máscaras, outro elemento do teatro grego ressaltado por Kenrick (2010) é o coro, que ainda prepondera nos palcos da Broadway, inclusive em Hamilton. De acordo com Kenrick (2010), cabia ao coro as funções de cantar, dançar e proporcionar o acompanhamento musical através de instrumentos, tais como a flauta e harpa. Assim, era através das músicas que o coro interagia com a narrativa de forma direta, participando de fato na história ou indireta, comentando os acontecimentos. 46

Tendo apresentado uma breve explicação sobre o teatro grego e sua conexão com o musical moderno, iremos agora mostrar as conexões desse teatro com a nossa teoria de análise, a carnavalização. A própria natureza do teatro grego está relacionada com a carnavalização, visto que, como Boal (1991) aponta, o teatro grego surgiu como uma forma de arte livre, sem roteiro, que não impunha barreiras entre atores e espectadores. Definição esta que se relaciona diretamente com o conceito de carnavalização dado por Bakhtin (2010b), de um espetáculo “sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores” (BAKHTIN, 2010b, p. 140). A partir dessa natureza em comum, várias peças gregas apresentavam características da carnavalização, como exemplo, podemos citar, as obras de Aristófanes. Berthold (2001), a este respeito, afirma que o grego usava em suas obras obscenidades e piadas fálicas, empregando em seu trabalho a “herança cultural das desenfreadas orgias satíricas, das danças animais e das festas de colheita” (BERTHOLD, 2001, p.120). Desse modo, podemos dizer que as peças de Aristófanes têm origem na cultura cômica popular, apresentando elementos carnavalescos, como o uso de obscenidades e o rebaixamento para o plano do baixo material corporal. Além disso, podemos encontrar exemplos da categoria de excentricidade na cena final da peça A Paz de Aristófanes. Nessa cena, Trigeu propõe que vários objetos de guerra sejam usados com um novo propósito. Dessa forma, um penacho se torna um espanador; uma couraça vira penico; um clarim de guerra serve vinho e uma lança se transforma em uma estaca para a lavoura. Esse episódio é semelhante à passagem dos limpa-cus no Livro I de Gargântua, analisado por Bakhtin (2010a). Atentando para a cena sob a ótica do carnaval, podemos ver, assim, que Trigeu rebaixa os objetos de orgulho bélico e, ao mesmo tempo, os renova, criando uma nova realidade em que materiais usados para matar e destruir adquirem uma natureza pacífica e doméstica. Após apresentar o teatro grego e sua conexão com a carnavalização, discutiremos, em seguida, o teatro romano que sucedeu ao teatro grego.

3.1.2 Teatro em Roma

O Império Romano pode ter conquistado a Grécia militarmente, mas, culturalmente, a Grécia influenciou fortemente Roma. Sobre esta influência estética-cultural, Kenrick (2010) explica que os romanos mantiveram a mesma estrutura das peças gregas que continham uma mistura de diálogo, músicas e danças. 47

As peças romanas eram feitas para honrar os deuses, porém, diferentemente dos espetáculos gregos, elas não eram patrocinadas pelo governo, porque, durante muito tempo “a elite romana viu o teatro, com sua suspensão da realidade e a inversão das normas sociais, como uma influência potencialmente perigosa18” (KENRICK, 2010, p. 25, tradução nossa). Sem o apoio financeiro do estado, as peças eram realizadas em estruturas de madeira que podiam ser facilmente montadas e desmontadas. Outra diferença do teatro romano para o teatro grego era a ausência do coro, o que resultava em um elenco menor e em peças mais interativas. Há de se destacar também que o palco romano consistia de uma plataforma de madeira elevada que não era separada do público, como o “teatro sem ribalta” do carnaval, em que o início do espetáculo era sinalizado pela queda de uma cortina. Em relação aos atores, Kenrick (2010) explica que o elenco era composto apenas de homens e as idades dos personagens eram definidas por um sistema de perucas. As perucas brancas representavam um personagem velho, já as perucas pretas, um personagem jovem enquanto as perucas vermelhas, um personagem que era escravo. Além disso, havia também um sistema simbólico de cor nas vestimentas. Desse jeito, uma túnica amarela representava uma mulher e uma borla amarela representava um deus. Quando o Império Romano caiu, o teatro romano foi censurado pela Igreja Católica que o considerou uma má influência. A desaprovação da Igreja foi responsável por séculos sem a existência do teatro profissional no continente europeu. Decisão essa que só seria revogada durante os séculos XII e XIII na Idade Média, período histórico que abordaremos mais à frente, no próximo subtópico. No entanto, antes de falarmos sobre a Idade Média, iremos comentar sobre a relação entre o teatro romano e a carnavalização. No começo desse subtópico, explicamos que o teatro grego influenciou profundamente o teatro romano, mas é importante salientar que os romanos também foram influenciados por outro grupo, os etruscos. De acordo com Berthold (2001), Lívio e Horácio eram da opinião que “as origens do teatro romano deviam ser procuradas nas fesceninas - os satíricos e sugestivos diálogos carnavalescos com origem na cidade etrusca de Fescênia” (BERTHOLD, 2001, p. 139-140). Dessa forma, podemos perceber uma influência carnavalesca na origem desse teatro. Para que possamos perceber, então, essa ligação entre a carnavalização e o teatro romano, citaremos um dos mais famosos dramaturgos romanos, Plauto, cujas peças de comédia

18 Em inglês: “the Roman establishment saw theatre, with its suspension of reality and reversals of social norms, as a potentially dangerous influence”.

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usavam canções, coreografia e música instrumental para contar a narrativa. O dramaturgo, assim como Rabelais, usava a língua do povo em suas peças, o chamado latim vulgar. Estas eram releituras de peças gregas com personagens que, eventualmente, se tornaram os personagens estereótipos do teatro ocidental, influenciando diretamente tanto a commedia dell’arte quanto o revue, que veremos posteriormente. É importante notar que, segundo Berthold (2001), as peças de Plauto contavam com elementos da farsa e dos chistes, gêneros que apresentam forte ligação com o carnaval. Além da presença desses elementos, Plauto inovou em suas peças ao criar personagens escravos de uma forma diferente. Pita (2014) afirma, nesta direção, que estes personagens se destacavam nas peças por sua astúcia, confiança e orgulho, e cabia a eles a felicidade dos personagens principais. Nas palavras do autor, “[...] o escravo era o rei da comédia plautina” (PITA, 2014, p. 1). Essa subversão hierárquica e a entronização do escravo são características da literatura carnavalizada, segundo a orientação bakhtiniana. Agora que já discorremos sobre a história teatro do romano e mostramos sua relação com o carnaval, falaremos sobre o período da Idade Média, momento em que o teatro voltou a ser aprovado pela Igreja.

3.1.3 Teatro medieval

Como mencionamos anteriormente, foi durante a Idade Média que a Igreja Católica retirou sua reprovação do teatro. O motivo era simples: a descoberta de que os dramas musicais litúrgicos poderiam ser usados para fins propagandísticos, facilitando, assim, o acesso ao texto bíblico em uma época em que a maior parte da população não era letrada. A este respeito, Kenrick (2010) assevera que as peças de teatro católicas, assim como, as peças gregas, eram geralmente apresentadas durante festas religiosas, e seu elenco consistia de clérigos, meninos de coro e freiras. Essas peças eram divididas em quatro categorias de acordo com seu conteúdo: “peças de mistério que eram dramatizações de histórias bíblicas; peças de milagre que envolviam as vidas [...] dos santos; peças de moralidade que eram alegorias dos sete pecados capitais e peças folclóricas que envolviam mitos populares [...]”19 (KENRICK, 2010, p. 27, tradução nossa).

19 Em inglês: “Mystery plays were dramatizations of Bible stories. Miracle plays involved the lives (true or fictional) of saints. Morality plays were allegories illustrating the seven deadly sins. Folk plays involved popular myths”. 49

Como exemplo desses textos, o autor cita The Play of Herod e The Play of Daniel, que continuam, segundo Kenrick (2010), sendo interpretadas até os dias de hoje. Essas obras eram completamente cantadas, e o acompanhamento musical era feito através de instrumentos como a harpa, a gaita de foles e a rabeca. No século XIV, nos anos 1400, surgiu uma nova forma de teatro, a commedia dell’arte, que se desenvolveu na Itália e reteve sua popularidade até o século XVIII, influenciando diversas formas de comédia ocidentais, como as comédias musicais. Essa modalidade de teatro tem uma ligação estreita com carnaval a ponto de ser descrita por Minois (2003) como uma “espécie de Carnaval sobre o palco, [...] existência do avesso, com criados que mandam em seu senhores [...]. As autoridades religiosas e civis tentam, em vão interditar essas impertinências que fazem até os grandes senhores rir.” (MINOIS, 2003, p. 210-211). Berthold (2001) também atrela a commedia dell’arte ao carnaval. Para a autora, as origens dessa peça remontam aos mimos e à festa do carnaval, com suas máscaras, veiculadas através de sátira social representada pelos bufões, acrobacias e apresentações de pantomimas20. De acordo com Berthold (2001), “[a] commedia dell’arte estava enraizada na vida do povo, extraía dela sua inspiração [...].” (BERTHOLD, 2001, p. 353). É preciso assinalar que as peças da commedia dell’arte não seguiam um roteiro, e eram improvisadas a partir de um grupo de personagens arquétipos ou personagens-modelo que apareciam em vários cenários arquétipos. Para a construção dessas peças, os italianos se inspiraram na tragédia grega e, por perceberem o uso recorrente do coral, nessas peças, pensaram que as tragédias gregas eram cantadas do começo ao fim. Esse erro de interpretação fez com que o compositor italiano Claudio Monteverdi e o grupo da Camerata Fiorentina baseassem a ópera no teatro grego. Dessa forma, Kenrick (2010) afirma que, apesar de existir a crença de que foi a ópera que inspirou o teatro musical, a verdade é justamente o contrário, as origens da ópera já estão no musical. Feito este percurso histórico, em seguida, iremos apontar a relação das peças medievais com a carnavalização. Para tal, daremos o exemplo da versão da tirolesa dos autos de Neidhart von Reuenthal, que remonta ao século XV. Essa versão é rica em “[t]rajes coloridos, gestos animados, episódios humorísticos e grotescos [...]” (BERTHOLD, 2001, p. 248), o que gera um interessante contraponto com a linguagem e a roupa formal da época.

20 A pantomima é uma forma de teatro influenciada pelas comédias e tragédias do teatro grego e romano. Ela consiste em uma espécie de “teatro gestual” em que o ator tenta se expressar através de gesto e não de palavras. Esse gênero é praticado por palhaços, comediantes, atores e bailarinos. Fonte: . Acesso em ago. 2019. 50

Segundo Berthold (2001), essa versão apresenta personagens em cena permeadas de elementos grotescos e excêntricos, tais como as cenas com os demônios baderneiros, cenas com camponeses usando pernas de paus e megeras que brigam com estalajadeiros. Posteriormente, Hans Sachs, a quem Bakhtin (2010a) faz menção em sua obra, afirmando ser um praticante da “literatura dos bufões alemães” (BAKHTIN, 2010a, p. 10), adaptou os autos de Neidhart para uma peça ainda mais carnavalizada em forma de Schwank21. A autora também cita uma peça de Sachs que conta a história de Aristóteles e Fílis, um dos assuntos preferidos em autos carnavalescos, nos quais a jovem exige do filósofo uma prova de amor, que ele ande de quatro, o que ele faz enquanto é chicoteado por ela. Segundo Berthold (2011), os autos carnavalescos apresentavam uma linguagem da praça pública, discutindo temas que descreviam desde atos sexuais e fisiológicos até questões relacionadas à política e à moral. A estudiosa enumera algumas cenas típicas destes autos:

[a]s velhas se convertem em jovens donzelas na roda dos bufões: juízes de paz matreiros tiram vantagem de seus demandantes, principalmente se forem mulheres; um pai de três filhos promete sua herança ao filho que demonstra ser o mais rematado caluniador vadio; camponeses lascivos têm de suportar punições cuja obscenidade faria enrubescer um soldado. (BERTHOLD. 2001, p. 252).

Em seguida, Berthold (2001) discute a farsa medieval e a sotties, ambas ligadas ao carnaval e à cultura popular. De acordo com a estudiosa, na farsa, assim como no carnaval, o riso se estendia a tudo e a todos; tendo a ironia como o principal ingrediente para o seu sucesso. A autora explica ainda que as farsas transformavam cenas reais em alegorias, como o episódio da anexação da Bretanha à França, que foi transformado na história de um ferreiro que luta para colocar uma ferradura em uma mula, levando no processo um doloroso coice. A farsa apresentava ainda personagens e cenas cômicas, como casos de identidades trocadas e golpes. Já a sottie, uma peça satírica cômica, apresenta, segundo a autora, uma forte ligação com os Enfants sans Souci (Crianças sem Preocupações), um grupo francês que coroava diversas figuras carnavalescas, como o rei bufão, o prince des sots (príncipe dos bobos) e a mère des sots (mãe dos bobos). Essas figuras aparecem em várias obras francesas, como a peça Jeu du Prince des Sots et de la Mère Sotte de Pierre Gringoire, que critica ferozmente a Igreja através de bufonarias. Depois de termos discutido a emergência do teatro na Idade Média e sua relação com as obras teatrais carnavalescas, desse período, iremos passar para o próximo período

21 Bakhtin (2010b) afirma que o Schwank, na tradução de Paulo Bezerra Schwänke, é uma espécie de bufonaria alemã que possui imagens grotescas.

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histórico, o Iluminismo. A partir desse momento, iremos fazer observações mais pontuais em relação à carnavalização. Antes, porém, cabe um comentário: a partir da segunda metade do século XVII, a força da cultura cômica popular começa a ser diminuída. Nas palavras de Bakhtin (2010a), “assiste-se a um processo de redução, falsificação e empobrecimento progressivos das formas dos ritos e espetáculos carnavalescos populares” (BAKHTIN, 2010a, p. 30). É preciso ressaltar que, mesmo “empobrecido” o caráter cômico, este espírito carnavalesco transposto para o mundo artístico continuará presente em diversas manifestações, inclusive, no teatro.

3.1.4 Iluminismo

Durante o Século das Luzes, países europeus, como a Inglaterra, Alemanha e França, experienciaram grande crescimento econômico e cultural. Para Kenrick (2010), tal crescimento, aliado à expansão das cidades, foi responsável pelo desenvolvimento de um público sedento por novas formas de se entreter. Nos anos 1700, a programação do teatro era formada por várias peças de diferentes estilos e durações. Os espectadores assistiam primeiro a uma apresentação composta de apenas um ato, para em seguida, assistir a uma peça com duração normal, e, por último, a uma peça mais curta. É importante que se diga que qualquer uma dessas apresentações poderia ser um musical. Kenrick (2010) explica que os espetáculos musicais dessa época foram descritos de formas tão diferentes que os estudiosos tiveram dificuldades para classificá-los. Devido a esses problemas de classificação, vários teóricos reduziram todas as produções musicais dos séculos XVII e XVIII ao termo Comic opera (Ópera cômica). No entanto, Kenrick (2010) não concorda com essa redução, afirmando que é possível apontar três formas distintas de espetáculo musical, que são: a Comic opera, a Pantomima e as Ballad operas. A primeira delas “[...] usava convenções operísticas e estilos de composição para produzir efeitos divertidos, geralmente envolvendo uma forte dose de romance22” (KENRICK, 2010, p. 29, tradução nossa). Essa forma de ópera deu origem a operetta23. Um exemplo de

22 Em inglês: “[..] used operatic conventions and compositional styles to amusing effect, usually involving a heavy dose of romance.” 23 “É um gênero de ópera mais leve e curta. É caracterizada pela música alegre e viva, pelo enredo descontraído e pelos diálogos falados entre números de música cantada”. Fonte: . 52

Comic opera é a obra The Bohemian Girl de 1845, escrita pelo compositor irlandês, Michael Balfe. A segunda “[...] incluía músicas e diálogo, dança, comédia física, acrobacias, efeitos especiais e os personagens palhaços da commedia dell’arte, como o Arlequim24” (KENRICK, 2010, p. 29, tradução nossa). Podemos citar, como exemplo, a produção The Necromancer do diretor inglês, John Rich. Essas peças se aproximam mais da farsa e, por isso, apresentam vários elementos carnavalescos, como personagens cômicos e ações de bufonarias. Por fim, a terceira “[...] usava baladas populares e árias de ópera, geralmente de tal forma que o título original ou a letra de uma música acrescentassem algo ao seu significado25” (KENRICK, 2010, p. 29, tradução nossa). Um dos exemplos mais famosos que continua sendo apresentado até os dias de hoje é A Beggar’s Opera, escrita pelo dramaturgo inglês, John Gay. Depois de termos retratado as formas teatrais embrionárias do moderno musical, iremos agora discutir os primeiros musicais da cidade de Nova York e os teatros da Broadway.

3.1.5 Musicais modernos

Segundo Kenrick (2010), a primeira obra teatral musical moderna em língua inglesa foi The Beggar’s Opera, uma ballad opera, apresentada no dia 3 de dezembro de 1750. O espetáculo é uma mistura de sátira com comédia, com músicas folclóricas britânicas e árias. É importante ressaltar que The Beggar’s Opera se distancia das clássicas óperas italianas ao usar a linguagem da praça pública e representar personagens, como ladrões, prostitutas, que tentam usar sua astúcia para enganar as pessoas. A peça apresenta uma dura crítica a instituições, como o governo, a sociedade e o casamento. Segundo o site da Encyclopaedia Britannica26, nessa obra são “particularmente evidentes os paralelos feitos entre degeneração moral dos protagonistas da ópera e a sociedade rica contemporânea” . Dessa forma, podemos notar traços carnavalescos, como a conexão com a cultura popular e seus personagens, bem como o uso da linguagem de praça pública. The Beggar’s Opera foi apresentada, pela primeira vez, em um teatro modesto localizado ao leste da Broadway na Nassau Street. Com o tempo, teatros mais elaborados

24 Em inglês: “included songs and dialogue, dance, physical comedy, acrobatics, special effects, and such commedia dell’arte clown characters as Harlequin.” 25 Em inglês: “used existing popular ballads and operatic arias, usually in such a way that the original title or lyrics of a song added to their meaning.” 26 Disponível em: . Acesso em ago. 2019. 53

passaram a ser construídos. Um destes foi o Teatro John Street27, construído em 1767 e em cujos palcos vários espetáculos aconteceram durante um período de 30 anos. Kenrick (2010) explica que, aos poucos, a população de Manhattan começou a se espalhar para o norte, o que fez com que a rua Broadway se tornasse o centro cultural e econômico da cidade. Nessa época, o grau de prestígio de um espetáculo era medido pela sua distância da Broadway28. E, com a importância do lugar, os preços aumentaram e os teatros localizadas na Broadway passaram a ser o entretenimento das classes altas, enquanto, as classes com menor poder aquisitivo se voltaram para a rua Bowery para entretenimento que ficava ao sul de Manhattan. E foi na região da Bowery que um novo gênero de teatro musical nasceu, o Minstrelsy, um gênero de teatro com conteúdo racista que seria popular por mais de 50 anos.

3.1.5.1 Racismo na Broadway, o minstrelsy

Os Minstrel shows consistiam em um gênero teatral em que os atores pintavam uma blackface, ou seja, atores brancos pintavam o rosto de preto para simular um personagem negro. É importante notar que o blackface usado em espetáculos por atores brancos é subvertido em Hamilton, no qual os prestigiados e privilegiados políticos brancos são interpretados por atores afro-americanos. Segundo Kenrick (2010), o blackface foi criado por Thomas Rice, um performer branco, que viajava pelo país apresentando músicas e danças com as quais ele ridicularizava os negros com estereótipos racistas. Em suas performances, Rice se apresentava em blackface com um personagem criado por ele, Jim Crow29. Os personagens eram estereótipos como Jim Crow, o ingênuo camponês constantemente humilhado e Zip Coon, o vigarista cosmopolita cuja autoconfiança causava o humor. Durante os anos 1850, os Estados Unidos estavam divididos sobre a questão da escravidão e os Minstrel shows tiveram um papel importante para tranquilizar a consciência

27 É interessante mencionar que o Teatro John Street era frequentado pelo General Washington e pelo seu braço- direito Alexander Hamilton. Segundo McCarter e Miranda (2016), Washington, em especial, era aficionado pelo teatro e para aumentar a moral e inspirar o exército durante um rigoroso inverno em Valley Forge, organizou uma produção de Cato, uma peça escrita por Joseph Addison, que trata da luta contra um governo tirânico. 28 Atualmente, os teatros da Broadway são tão importantes que servem como referência. Teatros com mais 500 assentos são considerados Teatros da Broadway, enquanto teatros com até 499 assentos são chamados de Off- Broadway e teatros com menos cadeiras são conhecidos como Off-Off Broadway. É comum que peças sejam apresentadas primeiro em teatros Off-Broadway e, com o tempo, passem a ser apresentadas na Broadway, como é o caso de Hamilton. Fonte: . 29 Foi por causa das performances de Thomas Rice que “Jim Crow” passou a ser um modo pejorativo de se referir a pessoas negras. Posteriormente, quando os estados sulistas passaram um conjunto de leis racistas, estas passaram a serem chamadas de “as leis Jim Crow”. 54

branca, pois estes “ofereciam imagens reconfortantes de negros, agradecidos pela vida com “massha”, ou presos em alguma cidade do norte perguntando-se por que haviam buscado a liberdade”30 (KENRICK, 2010, p. 55, tradução nossa). Mesmo depois da derrota do sul na Guerra da Secessão31, os Minstrel shows continuaram sendo populares, e por conta da grande migração de negros para os estados do norte, os shows passaram a retratar os “negros nortistas” como pessoas facilmente enganadas. Esses novos estereótipos serviam para “tranquilizar a audiência branca que negros libertos não representavam uma séria ameaça social e economicamente32” (KENRICK, 2010, p. 57, tradução nossa). Kenrick (2010) explica que atores negros começaram a atuar nos Minstrel shows desde que estes tivessem a pele clara o bastante para se passar por brancos fora dos palcos. Grupos compostos somente por atores negros já existiam em 1855 e ficaram ainda mais populares depois da Guerra da Secessão, e, por causa da iluminação, era comum que os atores tivessem que pintar suas peles com carvão para parecem “mais negros” durante as apresentações, um hábito que perdurou até o século seguinte. Infelizmente, mesmo que existissem grupos exclusivos de atores negros, o conteúdo dos Minstrel shows não foram alterados continuando a apresentar conteúdo racista, e, o que era pior ainda e apenas serviu para reforçar e legitimar os estereótipos. Conforme Kenrick (2010), embora o racismo ainda perdurasse nos Estados Unidos, nos anos 1900, a opinião pública começou a tomar consciência do absurdo representado pelos Minstrel shows, que tiveram seu fim em 1910. No entanto, o espírito desses shows racistas sobreviveu nas músicas americanas e no uso de blackface tanto em filmes de Hollywood quanto em musicais da Broadway. Um exemplo desse tipo de blackface é a adaptação para cinema do musical (Amor, Sublime Amor), onde Natalie Wood e George Chakiris tiveram seus rostos pintados para parecerem porto-riquenhos. Nesse filme, até mesmo Rita Moreno33,

30 Em inglês: “offered reassuring images of negroes either gratefully enjoying life with “massah,” or stuck in some northern city ruefully wondering why they had ever sought freedom.” 31 A Guerra da Secessão (1861 - 1865) foi um conflito que ocorreu entre os estados do sul e do norte dos Estados Unidos devido às divergências entre os estados. Os sulistas defendiam um governo descentralizado com maior autonomia dos estados e os nortistas defendiam um governo centralizado. Além disso, os estados divergiam sobre a escravidão que era defendida pelo Sul e combatida pelo Norte. Vale ressaltar, que essas divergências políticas já estavam presentes desde da época do governo do Washington nas discussões entre Alexander, que representava os interesses do Norte e Thomas Jefferson, que representava os interesses do Sul. Fonte: 32 Em inglês: “These new stereotypes reassured white audiences that liberated blacks posed no serious social or economic threat.” 33 Segundo o site do jornal Huffpost, Rita Moreno, em uma entrevista ao podcast In The Thick, contou que na época do filme, ela confrontou o maquiador: “‘Meu Deus’ Por que todos nós temos a mesma cor? Porto- riquenhos são franceses e espanhóis […]. A atriz ainda relata que o maquiador respondeu: “Como assim? Você é racista?”. Disponível em: . Acesso em maio. 2018. 55

uma atriz porto-riquenha teve, absurdamente, sua pele escurecida para parecer “mais porto- riquenha”.

3.1.6 The Seven Sisters

Segundo Kenrick (2010), Laura Keene, uma atriz e agente, foi reconhecida como uma das primeiras estrelas dos espetáculos teatrais e a primeira mulher americana a ser agente de seu próprio grupo de teatro. Ela estabeleceu vários recordes, sua peça The Elves (1857) foi a primeira peça a durar mais tempo na Broadway chegando a 50 apresentações. Em seguida, com The Seven Sisters (1860), Keane quebrou o recorde novamente, chegando a 253 performances. A obra continha músicas em voga na época e contava a história de demônios que saíam do inferno para passear em Nova York. Um dos demônios, interpretado por Keane, acaba se apaixonando por um mortal e é expulsa para Coney Island. A narrativa apresenta componentes da literatura fantástica, além de cenas cômicas e bufonarias que ligam a peça com a cultura cômica popular. Além da presença desses elementos cômicos, o espetáculo era um show de patriotismo, contando com a presença do Tio Sam e um gran finale, em que George Washington levanta-se de seu túmulo. Após a derrota do norte na Batalha de Bull Run, o espetáculo foi encerrado por Keen que achou de mau tom ter um show que pregasse a união norte-americana. As coisas seriam diferentes depois da Guerra da Secessão, e os musicais teriam mais impacto, como veremos a seguir.

3.1.7 Os musicais da Guerra da Secessão

Durante a Guerra da Secessão, os musicais foram mais frequentes nos estados do norte. Mesmo assim, era permitido que os atores trafegassem as linhas inimigas para realizar apresentações. Após uma breve crise econômica, os nova-iorquinos passaram então a frequentar mais o teatro para escapar dos horrores da guerra. Os espetáculos eram variados e iam desde de obras mais fantasiosas, como Cinderella, até produções burlescas, como Exiled Prince. Vale ressaltar que a arte burlesca apresenta vários traços carnavalescos, obras sérias e consagradas eram rebaixadas para gerar efeito cômico, letras populares eram reescritas e mulheres interpretavam papéis masculinos e vice-versa. Além disso, cenas de exagero, como acontecia durante as extravaganzas, eram frequentes. Em 1866, após o fim da guerra, ocorreram dois grandes acontecimentos que iriam deixar sua marca na história do teatro musical. O primeiro foi a estreia do show The Black 56

Domino/Between You, Me and the Post, o primeiro espetáculo a se autodefinir como “comédia musical”. O segundo foi a estreia da peça The Black Crook, o primeiro grande sucesso da Broadway. O que fez essa peça entrar para a história dos musicais? O sucesso mundial. Conforme Kenrick (2010), The Black Crook foi a primeira peça musical do mundo a permanecer em cartaz por mais de um ano. Com a expansão e aperfeiçoamento do sistema ferroviário, foi possível que os atores saíssem em uma turnê mundial. Os lucros obtidos foram gigantes e, pela primeira vez, os musicais foram levados a sério. The Black Crook continuou gerando lucros pelas próximas três décadas chegando a ter 474 apresentações. Nos anos seguintes, vários outros espetáculos com temática fantástica e cenas exageradas, conhecidos como extravaganzas, foram apresentados tanto nos palcos dos teatros da Broadway quanto em outros teatros. Nesses espetáculos, as músicas não eram essenciais para desenvolver a história; o mais importante era o elemento fantástico, um traço da cultura popular e do carnaval. Além das extravaganzas, The Black Crook abriu caminho para outras formas musicais, como as pantomimas que também tem origem cômica. O legado deixado por tais peças foi a transformação do que era chamado de “show business”, em um “big business” muito rentável. Tendo discutido as origens do teatro musical branco, iremos tratar, em seguida, sobre os primeiros musicais de atores afro-americanos em Nova York.

3.1.8 O início do teatro musical afro-americano em Nova York

Como vimos anteriormente, atores negros conseguiam trabalhar apenas nos Minstrel shows, espetáculos que menosprezavam e ridicularizavam afrodescendentes. Segundo Kenrick (2010), os primeiros black musicals (musicais negros) seguiram o exemplo dos Minstrel shows, tanto nas melodias cantadas quanto nos conceitos racistas. O estudioso cita, como exemplo, The Creole Show (1890) que, apesar de manter o conteúdo preconceituoso dos Minstrel shows, trouxe uma inovação: a presença de mulheres no elenco, inclusive, a posição mais prestigiada, a de interlocutor, era exercida por uma mulher. Vale ressaltar a importância desse acontecimento, pois as mulheres eram excluídas da maioria dos palcos desde o teatro clássico. A presença de atrizes, especialmente, em papéis de destaque, pode ser, nesta época considerada uma subversão carnavalesca. Não se sabe muito sobre esse espetáculo e ele foi esquecido na história por ter acontecido fora dos palcos da Broadway. 57

Outra produção musical afro-americana foi A Trip to Coontown (1898) escrita por Bob Cole e inspirada em A Trip to Chinatown, um sucesso da época. A Trip to Coontown foi a primeira comédia musical que teve diretor, escritor e elenco composto apenas por afro- americanos. A história gira em torno de Jimmy Flimflammer, um vigarista que tentar roubar a pensão de um homem. Moon, Krasner e Riis (2011) destacam a música The wedding of the Chinee and the coon dentro da obra. Os autores afirmam que essa canção apresenta uma importante mensagem política, que subverte o status quo, ao retratar um casamento interracial como algo comum em uma época em que um afro-americano poderia ser morto pelo “crime” de olhar para uma mulher branca. Ressaltamos que essa subversão e a proposta de uma nova realidade “utópica” pode ser considerada com um aspecto da carnavalização. A peça conseguiu sucesso modesto saindo em turnê, tendo duas apresentações no Third Avenue Theater em Manhattan. No total, foram oito apresentações. Na verdade, a primeira peça musical negra a chegar nos palcos da Broadway foi Clorindy, the Origin of the Cakewalk (1898) escrita por Will Marion Cook. Infelizmente, como as apresentações foram feitas no terraço do Casino Theater, não foi possível ouvir as falas ao ar livre e o espetáculo teve que ser reduzido a algumas músicas e humor físico, um elemento do carnaval. Alguns anos depois, George Walker e Bert Williams, artistas negros de vaudeville chamaram Cook para escrever as canções de suas comédias musicais. Kenrick (2010) menciona em particular, a peça In Dahomey (1903, 53 apresentações) com melodias de Will Cook, letras de Paul Dunbar e libreto de Jesse Shipp. O espetáculo foi um grande marco nas peças afro- americanas e contava a história de um grupo de afro-americanos que descobrem um pote cheio de ouro e usam esse dinheiro para viajar para a África. Após oito semanas na Broadway, a produção se mudou para Londres onde teve 251 apresentações, sendo o primeiro espetáculo afro-americano ser produzido em outro país. A peça chegou à ser assistida pela realeza britânica e pela alta sociedade. Walker e Williams colaboraram em várias outras peças, até que Walker teve que se aposentar em 1908 por motivos de doença. Após a aposentadoria de Walker, Williams seguiu carreira solo desenvolvendo projetos mais comerciais, e sem sua presença o teatro negro entrou em declínio. Seria necessário esperar mais uma década para que os musicais negros voltassem para a Broadway graças a popularidade do jazz. Sem o desenvolvimento de peças afro-americanas, os palcos da Broadway voltaram a ser completamente governados por peças autuadas por pessoas brancas para pessoas brancas. 58

Falaremos, em seguida, de forma resumida, sobre as próximas décadas dos musicais na Broadway.

3.1.9 Uma história dos musicais da Broadway nos anos 1900

3.1.9.1 Anos 1900-1910

No começo dos anos 1900, peças estrangeiras exerceram grande influência nos musicais norte-americanos. Podemos citar, como exemplo, a obra britânica Florodora, que, de acordo com a Kenrick (2010), teve 553 apresentações na Broadway. Apesar dessa forte influência estrangeira, compositores norte-americanos como Victor Herbert e George Cohan deixaram sua marca no teatro musical. Herbert compôs músicas para Mlle. Modiste (1905, 202 apresentações), The Red Mill (1906, 274 apresentações) e vários outros musicais, mas foi em Naughty Marietta (1910, 136 apresentações) que ele estabeleceu uma “fórmula” para as operettas que seria seguida por duas décadas. As características eram:

1) O enredo precisa se passar em um cenário histórico/ou exótico; 2) A música é o mais importante; 3) Tanto a música quanto as letras devem ser cheias de energia e poéticas; 4) O romance é o principal ingrediente, não o sexo; 5) A heroína precisa ser indecisa, o herói, robusto e viril; 6) É preferível que exista uma diferença de classe (real ou imaginária) entre os protagonistas; 7) As produções devem ser bonitas e luxuosas; 8) A comédia é um tempero que deve ser usado com moderação e 8) Sagacidade? Nunca ouvi falar disso. Seja o que for, não é necessário.34 (KENRICK, 2010, p. 117, tradução nossa).

Cohan compôs as músicas para musicais de grande sucesso, como Little Johnny Jones (1904, 52 apresentações), que, depois de uma estreia sem grande impacto, saiu em turnê durante três anos e voltou aos palcos da Broadway duas vezes, totalizando 205 apresentações na cidade de Nova York. Esse musical contava com uma cena em que uma mulher se disfarça de homem, um episódio comum no carnaval. No entanto, o maior legado deixado pelo compositor foi o modo como ele moldou a comédia musical. Para Kenrick (2010), os espetáculos de Cohan eram inovadores, pois estes

34 Em inglês: “The plot requires a historic and/or exotic setting; The music rules; Both the music and lyrics should be flowery and poetic; Romance is the main ingredient, not sex; The heroine must be indecisive; the hero, stalwart and macho; A class difference (real or imagined) between the leads is preferred; Productions should be handsome and lavish; Comedy is a spice that must be used sparingly e Wit? Never heard of it. Whatever it is, it need not apply.” 59

“tinham uma coerência de estilo e conteúdo que era muito incomum [...], e suas letras tinham uma facilidade de conversação que caía confortavelmente no ouvido, contrastando com a linguagem poética encontrada na maioria das músicas da época”35 (KENRICK, 2010, p. 121, tradução nossa). A inovação apresentada por Cohan que fazia com que letras de músicas soassem como uma conversa natural foi usada por vários outros musicais, inclusive em Hamilton. Posteriormente, Cohan se tornou um dos mais poderosos e influentes produtores do “show business” norte-americano. Outro grande produtor teatral destacado por Kenrick (2010) é Florenz Ziegfeld (1867-1932), mundialmente reconhecido por suas revues36 (teatro de revista), chamadas de The Ziegfeld Follies. As follies de Ziegfeld tiveram 24 edições diferentes, sendo a primeira foi lançada em 1907 a qual teve 70 apresentações; e a última foi lançada em 1931 com 165 apresentações. Esses espetáculos deixaram como legado grandes talentos cômicos que alcançaram fama com as follies, como Bert Williams, Will Rogers e Fanny Brice. É importante notar que Williams foi o primeiro ator afro-americano a dividir um palco com um elenco branco em um grande espetáculo da Broadway. Vale ressaltar também que as follies tinham traços carnavalescos, por serem exemplos de revue, gênero que satiriza e parodia obras populares e personagens da época. Ao mesmo tempo em que Ziegfeld apresentava suas follies, o nova-iorquino Jerome Kern entrava para a história do teatro musical. Kern compôs as melodias de vários espetáculos musicais, mas foi com a música They Didn’t Believe Me, da peça musical The Girl from Utah (1914, 120 apresentações), que o talento de Kern brilhou. De acordo com Kenrick (2010), They Didn’t Believe Me transformou o modo como as músicas dos espetáculos musicais eram escritas. Nas palavras do autor, “[e]ssa música foi muito mais do que apenas um sucesso; Era uma nova maneira de expressar emoção humana na música. O teatro musical e a arte da composição popular haviam sido colocados em um novo rumo37.” (KENRICK, 2010, p. 137, tradução nossa).

35 Em inglês: “[...] had a coherence of style and content that was very unusual [...] and his lyrics had a conversational ease that fell comfortably on the ear, standing in stark contrast to the poetic language found in most songs of the era.” 36 “Teatro de Revista, review ou revue é um espetáculo que combina música, dança e pequenos textos ou esquetes e foi muito popular entre 1916 e 1932. No palco eram satirizados personagens da época, notícias recentes, obras literárias populares ou até mesmo outros espetáculos. [...] O termo em inglês foi utilizado até 1907 quando Florenz Ziegfeld popularizou o revue, em francês. Foi ele quem elevou o teatro de revista clássico a um novo patamar. Suas Follies são até hoje empregadas como sinônimo para revue” Fonte: . Acesso em ago. 2019. 37 Em inglês: “this song was far more than just a breakout hit; it was a new way of expressing human emotion in song. Musical theatre and the art of popular songwriting had been set on a new course.” 60

Após o sucesso de They Didn’t Believe Me, Kern trabalhou ativamente chegando a compor 16 trilhas sonoras de musicais entre os anos 1916 e 1920. Os melhores desses espetáculos foram realizados no The Princess Theater. Kenrick (2010), a este respeito, afirma que esses espetáculos foram ideia de Elizabeth Marbury, uma agente norte-americana, que propôs ao produtor Ray Comstock musicais mais intimistas com um orçamento menor, diferente dos espetáculos luxuosos da Broadway, uma tendência que seria adotada por musicais como Hamilton. Comstock e Marbury deram a Kern e Bolton a chance de criar um musical original, o que resultou na criação de Very Good Eddie (1915, 341 apresentações), um grande sucesso que estabeleceu o modo como as futuras comédias musicais seriam feitas. Em 1917, com a colaboração do letrista britânico P.G Wodehouse, os musicais do The Princess Theater ficaram ainda mais populares. Os dois maiores sucessos foram Oh, Lady! Lady! (1918, 219 apresentações) e Oh Boy! (1917, 463 apresentações). De acordo com Kenrick (2010), alguns dos motivos de tamanho sucesso foram: 1) o estilo intimista das peças; 2) o cenário familiar em que as peças aconteciam no caso, Nova York; 3) a relação orgânica entre os elementos da peça; 4) a integração das músicas com a narrativa, onde as canções têm a função narrativa de desenvolver personagens e enredo e 5) as letras brilhantes de Jerome Kern. Hamilton, nosso corpus apresenta características semelhantes: a peça é intimista, o cenário da ação também é Nova York e as músicas são integradas dentro da narrativa. Os espetáculos do The Princess Theater deixaram um grande legado no teatro musical, servindo de inspiração para todo uma geração de compositores em 1920, o que discutiremos a seguir.

3.1.9.2 Anos 1920

Os anos 1920 são conhecidos como a época de ouro da Broadway, com mais de 50 musicais sendo apresentados em uma única temporada. Segundo Kenrick (2010), quatro musicais de grande sucesso debutaram em sequência, estes foram: No, No, Nanette (16 de setembro, 321 apresentações), a maior comédia musical da década; The Vagabond King (18 de setembro, 511 apresentações), uma operetta romântica; Sunny (21 de setembro, 517 apresentações), uma comédia musical e Dearest Enemy (22 de setembro, 286 apresentações), a primeira peça de comédia musical escrita por Rodgers e Hart. Além dessas grandes estreias, outro motivo que fez com que os anos 1920 fossem tão prósperos para os musicais, foi o talento de compositores como Cole Porter, Richard Rodgers e Lorenz Hart. 61

Mas o maior musical dos anos 1920 não foi escrito por nenhum dos compositores que debutaram nessa época, e, sim, por alguém que já conhecemos antes, Florenz Ziegfeld e Jerome Kern em parceria com Hammerstein. Show Boat (1927, 572 apresentações) conta a história de moradores de um teatro em um barco do Mississipi e sua luta pela sobrevivência. A obra tratava de tópicos que eram vistos como tabu pela Broadway, como racismo, romance interracial e alcoolismo, carnavalizando o que era esperado de uma peça musical. Podemos traçar uma ligação de Show Boat com Hamilton pela mistura de vários gêneros musicais e teatrais, incluindo canções típicas da comunidade afro-americana. Kenrick (2010) aponta cinco gêneros diferentes presentes na obra: 1) A canção popular negra presente na música Can’t Help Lovin’ That Man; 2) O Spiritual38 representado pela canção Ol’ Man River; 3) Operetta nas músicas Make Believe e You Are Love; 4) A comédia musical presente em Life on the Wicked Stage e 5) O Tin Pan Alley39 representado pelas canções Goodbye My Lady Love e After the Ball. Outro grande acontecimento dos anos 1920 foi a volta dos black musicals, os musicais negros, que veremos a seguir.

3.1.9.2.1 Black musicals: o retorno

Como afirmamos anteriormente, foi necessário mais de uma década para que um novo musical negro ressurgisse. Finalmente, em 1921, surgiu Shuffle Along (504 apresentações) com melodias de Eubie Blake, letras de Noble Sissle e libreto de F.E. Miller e Aubrey Lyles. Lamentavelmente, Shuffle Along não rompeu completamente com as tradições dos Minstrel Shows, apresentando ainda variações do personagem vigarista Zip Coon e, o pior de tudo, os atores negros foram forçados a escurecer seus rostos pintando o blackface. David Krasner (2002) explica que apesar da apresentação racista, o show foi aceito pela audiência afro-americana que percebeu que era necessário fazer certas concessões para que o espetáculo pudesse ter sucesso. O que de fato aconteceu, Kenrick (2010) afirma que Shuffle Along foi tão assistido que a polícia teve que transformar a rua do teatro, a 63rd Street Theatre, em uma via de mão única para diminuir o trânsito. Krasner (2002) defende que Shuffle Along inovou por “ser um dos primeiros shows a fornecer a mistura certa de primitivismo e sátira,

38 O spiritual é um gênero musical originado nos Estados Unidos, criado por escravos negros, em que os cantores proporcionam acompanhamento musical através de movimentos ritmados e palmas. Disponível em: . Acesso em jun. 2019. 39 Tin pan alley é nome dado a editoras musicais e músicos que tocavam músicas populares. Disponível em: . Acesso em jun. 2019. 62

sedução e respeitabilidade, humor negro blackface e romance, para satisfazer seus clientes40” (KRASNER, 2002, p. 264, tradução nossa). No entanto, tanta popularidade apesar de também trouxe consequências ruins:

[...] como Shuffle Along tornou-se o modelo para todos os musicais negros da década de 1920, também estabeleceu certos limites. Qualquer programa que seguisse as características de Shuffle Along normalmente poderia ter a certeza de críticas favoráveis ou uma resposta modesta do público. Se um show se desviava do que se tornara a fórmula padrão para o musical negro, críticas desastrosas se tornavam quase inevitáveis [...]. O resultado desse estrangulamento crítico no musical negro foi que imitações de Shuffle Along rapidamente se tornaram comuns nos anos 1920, ao mesmo tempo em que autores negros e compositores tinham que preparar shows dentro de extremas restrições.41 (WOOL, 1989, p. 78, tradução nossa).

Em 1926, os musicais negros tiveram mais uma grande conquista, uma série de revues intituladas Blackbirds. Infelizmente, esses espetáculos ainda apresentavam blackface e as peças eram apresentadas por um elenco de atores afro-americanos, porém produzidas e escritas por brancos, o que acabaria por virar um padrão para os futuros musicais negros até o século XXI. Kenrick (2010) afirma que com o final dos anos 20, os musicais negros iriam novamente deixar de existir com frequência até 50 anos se passassem. Mas não foram apenas os espetáculos negros que diminuíram, os anos dourados da Broadway chegaram a um brusco fim, com a quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929.

3.1.9.3 Os anos 1930

Conforme a crise econômica piorava, as pessoas não tinham dinheiro para se alimentar e muito menos para pagar o “alto” preço de um ingresso da Broadway, que era de três dólares na época. Conforme Kenrick (2010), em 1932, mais de 12 milhões de pessoas estavam desempregadas e mesmo quem tinha emprego possuía em média uma renda anual de 1.600 dólares. Lee Shubert aproveitou a crise e comprou seus teatros de volta por uma bagatela, os bens avaliados em 25 milhões foram vendidos por 400 mil dólares e ele tornou-se o único

40 Em inglês: “Shuffle Along was one of the first shows to provide the right mixture of primitivism and satire, enticement and respectability, blackface humor and romance, to satisfy its customers.” 41 Em inglês: “[...] as Shuffle Along became the model for all black musicals of the 1920s, it also set certain boundaries. Any show that followed the characteristics of Shuffle Along could usually be assured of favorable reviews or a least a modest audience response. Yet, if a show strayed from what had become the standard formula for the black musical, disastrous reviews became almost inevitable [...]. The result of this critical stranglehold on the black musical was that Shuffle Along imitators swiftly became commonplace in the 1920s, as black authors and composers prepared shows within extremely narrow constraints.” 63

dono do império. Foi graças a Lee, que produziu e investiu em produções teatrais, que a Broadway conseguiu sobreviver durante a Grande Depressão. É interessante notar que apesar da grande crise econômica, os anos 1930 trouxeram o melhor da Broadway. As peças diminuíram, mas em compensação a qualidade do material aumentou e a bilheteria foi suficiente para alimentar os musicais. Green (1971) explica a mudança ocorrida no teatro musical:

O teatro musical - a forma mais opulenta, escapista, extravagante e descaradamente comercial do teatro - não conseguiu se esconder do que estava acontecendo. Claro, ele ainda poderia fornecer alívio da realidade. Ainda poderia oferecer noites de alegria e música e glamour. Mas ele mostrava uma consciência crescente de sua capacidade única de fazer comentários contundentes sobre questões atuais como a loucura da guerra, a corrupção municipal, as campanhas políticas, o funcionamento do governo federal, o crescente movimento trabalhista, os perigos tanto da extrema direita quanto da extrema esquerda, e a luta entre democracia e totalitarismo. Descobriu-se que uma letra de música, uma melodia, uma piada, um pouco de história em quadrinhos, uma rotina de dança poderia dizer coisas com ainda mais eficácia do que muitos dramas sérios simplesmente porque o apelo se estendia a um espectro muito mais amplo do público teatral.42 (GREEN, 1971, p. 12, tradução nossa).

É graças a essa mudança que espetáculos como Hamilton podem fazer comentários sociais em suas narrativas e não serem mais restritos a apenas apresentar uma história romântica. Um dos espetáculos a elevar o nível de peças da Broadway foi Of Thee I Sing (1931, 441 apresentações), uma sátira política sobre um candidato à presidência que promete que se for eleito se casará com a ganhadora de um concurso de beleza. As músicas foram escritas pelo compositor, George Gershwin, e as letras, que misturavam jazz com as canções mais clássicas da Broadway, foram escritas por Ira Gershwin. Kenrick (2010) explica que Of Thee I Sing estabeleceu vários precedentes na Broadway, sendo o “primeiro musical da Broadway que teve seu livro e letras publicados, o primeiro musical de 1930 a ter mais que quatrocentas apresentações, e o primeiro musical americano a vencer o prêmio Pulitzer de Drama43” (KENRICK, 2010, p. 233, tradução nossa).

42 Em inglês: “The musical theatre – the most opulent, escapist, extravagant, and unabashedly commercial form of the theatre – could not hide from what was going on. Of course, it could still provide relief from reality. It could still offer evenings of mirth and song and glamour. But it showed a growing awareness of its own unique ability to make telling comments on such issues of the day as the folly of war, municipal corruption, political campaigns, the workings of the federal government, the rising labor movement, the dangers of both the far right and the far left, and the struggle between democracy and totalitarianism. It discovered that a song lyric, a tune, a wisecrack, a bit of comic business, a dance routine could say things with even more effectiveness than many a serious minded drama simply because the appeal was to a far wider spectrum of the theatergoing public”. 43 Em inglês: “the first Broadway musical to have its book and lyrics published the first musical of the 1930s to top four hundred performances, and the first American musical to win the Pulitzer Prize for Drama”. 64

Assim como Of Thee I Sing, Hamilton também publicou o livro e as letras das canções e conquistou o Pulitzer. Nos anos seguintes, os irmãos Gershwin lançaram mais dois musicais que foram fracassos de bilheteria até que, em 1953, eles escreveram as letras de Porgy and Bess. Porgy and Bess (1935, 124 apresentações) foi uma adaptação do livro Porgy escrito por DuBose Heyward e conta a história de afro-americanos pobres que moravam em cortiços nas docas de Charleston. Os críticos dos jornais da época não sabiam como classificar a obra criada pelos irmãos Gershwins. Com a falta de consenso sobre o gênero, críticos de ópera e de teatro foram enviados para assistir o musical e nenhum deles saiu inteiramente satisfeito. Kenrick (2010) afirma que os críticos da ópera não aprovaram que compositores do estilo popular do Tin Pan Alley tivessem ousado mexer com a ópera e os críticos especialistas em teatro musical reclamaram da seriedade presente nas canções. Já alguns jornalistas afro- americanos se ofenderam com o fato de um show escrito por homens brancos retratasse pessoas negras em papéis de criminosos, prostitutas e viciados em drogas. Com as críticas negativas o espetáculo não teve sucesso, mas com o passar do tempo Porgy and Bess foi redescoberto tornando-se tão popular que teve três revivals44 na Broadway. Outros sucessos da época incluem On Your Toes (1936, 315 apresentações) e Anything Goes (1934, 420 apresentações). On Your Toes tinha as músicas escritas por Rodgers e Hart e foi o primeiro musical da Broadway a fazer uso dramático da dança clássica. Anything Goes teve Cole Porter como compositor e foi a maior comédia musical dos anos 1930 dando origem a vários revivals, sendo três deles na Broadway. Nessa época, o gênero comédia musical foi predominante na Broadway e continuou sendo até o começo dos anos 1940, quando Rodgers e Hart e Weill e Gershwin propuseram espetáculos mais realistas. Iremos examinar essas mudanças no próximo tópico.

3.1.9.4 Os anos 1940

Os anos 1940 trouxeram várias inovações, Louisiana Purchase (1940, 444 apresentações) de Irving Berlin apresentou uma nova estética. No lugar dos grandes números

44 “Ao pé da letra, o termo significa "Renascimento". Na prática, serve para definir uma remontagem de um musical previamente montado, geralmente sob nova direção, novos cenários, figurinos e, claro, um novo elenco. As orquestrações também são quase sempre revistas e dependendo do Revival novas canções são acrescentadas. Uma maneira de medir a popularidade de um musical é contar o número de Revivals que ele sofreu ao longo dos anos”. Fonte: . Acesso em jun. 2019. 65

de abertura padrões da Broadway, que tinham um coro gigante, a cena começava com uma mulher sozinha no palco e o número de abertura era um solo cantado por um homem sem acompanhamento do coro. Ao mesmo tempo em que a comédia musical prosperava, alguns compositores desejavam trazer inovação para os palcos da Broadway para que os musicais fossem mais do que apenas espetáculos divertidos. Essa estética mais realista, é preciso dizer, foi seguida por Hamilton. Mas a maior inovação no teatro musical foi a estreia de Oklahoma! (1943). Oklahoma! (1943, 2.212 apresentações) estreou no St. James Theatre e “[...]tornou- se o musical a durar mais tempo na Broadway, trazendo aos patrocinadores 2.500% de retorno sobre seu investimento45” (KENRICK, 2010, p. 247, tradução nossa). Além da peça apresentar ótimas músicas, como The Surrey with a Fringe on Top e People Will Say We’re in Love, Oklahoma! elevou o nível dos musicais apresentando uma narrativa completamente integrada:

[d]urante todo o show, cada palavra, número e passo de dança era uma parte orgânica do processo da narrativa. Em vez de interromper o diálogo, cada música e dança continuavam-o. Pela primeira vez, tudo fluía em uma linha narrativa ininterrupta da cena abertura até o fechamento da cortina. Como Rodgers mais tarde disse: “Os instrumentos soavam do mesmo modo como as roupas pareciam.” Oklahoma! certamente não foi o primeiro musical integrado, mas foi a primeira peça musical orgânica, na qual cada elemento serve como uma parte crucial e significativa do todo.46 (KENRICK, 2010, p. 248, tradução nossa).

Oklahoma! deixou um importante legado, o espetáculo solidificou os musicais integrados; apresentou personagens bem desenvolvidos e tridimensionais, diferente dos personagens modelo que dominaram os palcos desde 1800 e foi responsável pelo primeiro álbum do elenco original47, que continha as músicas exatamente com elas são tocadas no palco com a presença de toda a orquestra. O álbum do elenco original de Oklahoma! foi um imenso sucesso e as músicas entraram na lista das mais tocadas na época, mesmo quem não podia pagar os ingressos do teatro poderia agora ter acesso às músicas. Observando a popularidade de tais gravações, vários

45 Em inglês: “[...] became the longest running Broadway musical up to that time, bringing backers a 2,500% return on their investment”. 46 Em inglês: “Throughout the show, every word, number, and dance step was an organic part of the storytelling process. Instead of interrupting the dialogue, each song and dance continued it. For the first time, everything flowed in an unbroken narrative line from overture to curtain call. As Rodgers later said, “The orchestrations sounded the way the costumes look.” Oklahoma! was most certainly not the first integrated musical, but it was the first organic musical play, in which every element serves as a crucial, meaningful piece of the whole.” 47 Kenrick (2010) explica que o original cast album de Oklahoma! foi lançado em seis discos de 78 rotações. Em 1943, tais discos eram vendidos em pacotes que pareciam um álbum de família, o termo virou moda e continuou sendo usado para se referir a discos, mesmo que estes não fossem mais vendidos nos pacotes antigos. 66

outros musicais lançaram seus próprios álbuns, garantindo a sobrevivência de vários compositores, tradição que se manteve até os dias de hoje, Hamilton, por exemplo, ganhou o Grammy pelo seu álbum. A década de 40 foi encerrada em grande estilo com outro grande sucesso de Rodgers e Hammerstein, South Pacific (1949, 1.925 apresentações), baseado na obra Tales of South Pacific de James Michener. South Pacific divergia dos enredos superficiais da Broadway, apresentando uma narrativa complexa e séria, na qual os conflitos não aconteciam devido a interferência de um vilão ou de um problema de comunicação, mas sim dos preconceitos enraizados na sociedade. É interessante mencionar que a canção You Have To Be Carefully Taught foi referenciada na letra da música My Shot de Hamilton, no trecho: “I’m with you, but the situation is fraught/ You’ve got to be carefully taught/ If you talk, you’re gonna get shot48” (MIRANDA, 2015). O público e a crítica aprovaram a obra, fazendo com que South Pacific conquistasse dez Prêmios Tony, incluindo o de Melhor Musical e Melhor Libreto, e o Pulitzer de Drama, sendo o segundo musical a ganhar o prêmio. Rodgers e Hammerstein continuariam inovando na próxima década com que os críticos passaram a chamar de “O Fator RH”, como veremos a seguir.

3.1.9.5 Os anos 1950

A década de 1950, em geral, foi excelente momento para os musicais da Broadway, que atingiram um zênite:

[o]s últimos sucessos da Broadway eram notícia quente no mundo todo. A música popular seguia as tendências da Broadway. As peças musicais enviavam músicas para o topo das paradas tão regularmente que quando as pessoas escutavam uma nova música, elas não perguntavam quem havia escrito; elas perguntavam de que espetáculo [a música] pertencia49 (KENRICK, 2010, p. 265-266, tradução nossa).

Parte do motivo desse ápice criativo era devido a Rodgers e Hammerstein, que compuseram nada menos que cinco peças musicais, dentre estes enormes sucessos como The

48 Em português: “Estou com vocês, mas a situação é preocupante/ Vocês têm que ser cuidadosamente ensinados/ Se vocês falarem, vão tomar um tiro”. 49 Em inglês:”The latest Broadway hits were hot news worldwide. Popular music took its cues from Broadway. Stage musicals sent songs to the top of the charts so regularly that when people heard a great new tune, they didn’t ask who wrote it; they asked what show it came from.” 67

King and I (1951, 1.246 apresentações) e The Sound of Music (1959, 1.443 apresentações), que ganhou o Tony de Melhor Musical. Demorou um bom tempo para que o sucesso de Oklahoma! e o de Rodgers e Hammerstein fosse superado, o que só aconteceu em 1956. Os responsáveis por essa conquista são Alan Jay Lerner, letrista e dramaturgo e Frederick Loewe, compositor; e a obra é My Fair Lady (1956, 2.271 apresentações). O musical é uma adaptação do livro Pigmalião de George Bernard Shaw e conta a história de Henry Higgins, um professor de fonética, que aposta com um colega, Coronel Pickering, que consegue fazer qualquer mulher se passar por uma dama. Pickering escolhe a vendedora de flores, Eliza Doolittle para a aposta, o que representa um desafio porque Doolittle fala no desprestigiado cockney50. Devido à presença do cockney, podemos dizer que My Fair Lady apresenta um dos elementos do carnaval bakhtiniano, o vocabulário da praça pública. A harmonia da integração das músicas com a narrativa, com a mistura dos diálogos de Pigmalião com cenas criadas especialmente para o musical e a trilha musical excelente, com músicas, como I Could Have Danced All Night, criaram uma excelente obra. Essa peça musical foi considerada por vários críticos, incluindo o próprio Kenrick (2014), como “[..] o melhor trabalho que o teatro musical já produziu, com uma notável mistura de eloquência, melodia, inteligência e coração, que nunca foi superada51” (KENRICK, 2014, tradução nossa). Outro musical da década de 1950 citado por Kenrick (2014) foi West Side Story (1957, 732 apresentações). O espetáculo era inspirado em Romeu e Julieta de Shakespeare e conta a história do trágico romance entre Tony, um americano-polonês e Maria, uma porto- riquenha, que tem como plano de fundo o confronto entre as gangues dos Jets, liderados pelo melhor amigo de Tony, e os Sharks, liderados pelo irmão de Maria. As melodias foram escritas por Leonard Bernstein e as letras por Stephen Sondheim, a coreografia e a direção foi feita por Jerome Robbins e o libreto foi escrito por Arthur Laurents. West Side Story inovou por apresentar vários estilos musicais, as canções Maria e Somewhere eram feitas no estilo da ópera, já Dance at the Gym era um jazz explosivo, America apresentava um estilo latino e Gee Officer Krupke, era derivada do vaudeville. Essa mistura de gêneros se fez presente em outros musicais da Broadway, inclusive no nosso corpus. Segundo Miranda e McCarter (2016), a música Stay Alive de Hamilton apresenta algumas referências de

50 O termo cockney refere-se a um dialeto usado na região leste de Londres. Fonte: . Acesso em mai. 2019. 51 Em inglês: “[...] this is the finest work the musical theatre has ever produced, with a remarkable blend of eloquence, melody, intelligence and heart that has never been surpassed.” Disponível em: . Acesso em mai. 2019. 68

músicas de West Side Story. Como exemplo, podemos citar o enunciado “chick-a-plao!”, dito quando Alexander tenta imitar o som do confronto entre o exército americano com as tropas inglesas. Essa mistura de sons é inspirada em West Side Story que apresenta enunciados semelhantes, como “riga diga dum” e “crack, jacko”, que simbolizam o confronto entre a gangue dos Jets com os Sharks. Em geral, a recepção da crítica foi positiva Brook Atkinson do New York Times, escreveu:

[...] Tudo contribui para a impressão total de selvageria, êxtase e angústia. A partitura adstringente tem momentos de tranquilidade e arrebatamento e, ocasionalmente, um toque de humor sarcástico. E os balés transmitem as coisas que o Sr. Laurents é impedido de dizer porque os personagens são tão inarticulados. A hostilidade e suspeita entre as gangues, a glória das núpcias, o terror do estrondo, o clímax devastador - Robbins encontrou os padrões de movimento que expressam essas partes da história.52 (ATKINSON, 1957, p. 41, tradução nossa).

A crítica de Atkinson mostra uma das características dos anos 1950, apontada por Kenrick (2003), a quebra das barreiras que separavam os elementos que formam um musical, responsável por uma maior fluidez entre a dança, a música e a atuação. Como consequência, os diretores começaram a exercer um maior controle criativo nas peças musicais, dando origem aos diretores-coreógrafos. Dentre estes diretores, iremos destacar Bob Fosse e Jerome Robbins, o coreógrafo e diretor de West Side Story. Jerome Robbins tinha um background em balé clássico e usava seus balés para propósitos dramáticos, fazendo com que a coreografia fosse um elemento tão importante quanto o libreto e a música nas peças musicais. Ele dirigiu e coreografou vários espetáculos, como West Side Story (1957), Gypsy (1959) e The King and I (1951). Bob Fosse continou o legado dos coreógrafos Jerome Robbins (West Side Story) e Agnes DeMille (Oklahoma!) acrescentando seu próprio estilo repleto de sensualidade. Fosse trabalhou em diversas produções, como The Pajama Game (1954), Damn Yankees (1955) e Redhead (1959). Kenrick (2003) afirma que Fosse acreditava que em uma peça musical existem três tipos de canções que são: I Am songs (Músicas - Eu Sou), que tem a função de explicar os personagens ou um acontecimento, como exemplo podemos citar a música de abertura do nosso

52 Em inglês: “Everything contributes to the total impression of wildness, ecstasy and anguish. The astringent score has moments of tranquility and rapture, and occasionally a touch of sardonic humor. And the ballets convey the things that Mr. Laurents is inhibited from saying because the characters are so inarticulate. The hostility and suspicion between the gangs, the glory of the nuptials, the terror of the rumble, the devastating climax -- Mr. Robbins has found the patterns of movement that express these parts of the story.” Disponível em: . Acesso em jun. 2019. 69

corpus, Alexander Hamilton; I Want songs (Músicas - Eu Quero), cujo propósito é demonstrar o que o personagem ambiciona, representada em Hamilton pela música My Shot; e a última categoria, são as New songs (Músicas Novas), que engloba toda canção que não pode ser classificada segundo as outras duas categorias, pois servem para propósitos dramáticos específicos, podemos citar Farmer Refuted de Hamilton. Em seguida, veremos os anos de 1960 em que os musicais integrados continuaram a ser aperfeiçoados.

3.1.9.6 Os anos 1960

A fórmula dos musicais integrados continuou sendo aprimorada na década de 1960, resultando em seis grandes sucessos que foram: Hello Dolly (1964, 2.844 apresentações); Funny Girl (1964, 1.348 apresentações); Fiddler on the Roof (1964, 3.242 performances); Man of La Mancha (1965); Mame (1966, 1.508 performances) e Cabaret (1966, 1.165 apresentações), que estrearam entre os anos 1964 e 1966, cada um desses teve mais de cem apresentações e alcançou fama internacional. Destes iremos comentar Man of La Mancha devido aos seus traços carnavalescos. Man of La Mancha (1965, 2.328 performances) conta a história de Miguel de Cervantes que é preso pela Inquisição e em sua defesa apresenta a peça Dom Quixote. O espetáculo teve o libreto escrito por Dale Wasserman, as melodias escritas por Mitch Leigh e letras por Joe Darion. A produção teve a canção de sucesso, Impossible Dream e conquistou dois Tony, incluindo o de Melhor Musical. É importante ressaltar que Man of La Mancha traz, em sua narrativa, uma adaptação de Dom Quixote, apresentando, dessa forma, os elementos carnavalescos presentes na obra de Cervantes, obra sobre a qual Bakhtin (2010a) afirma ser canrvalesca “[o] grande ventre de Sancho Pança, seu apetite e sua sede são ainda fundamentalmente e profundamente carnavalescos” (BAKHTIN, 2010a, p. 19). Como dissemos anteriormente, a segunda metade da década de 1960 foi uma época difícil para os musicais, o motivo dessa dificuldade foi o surgimento de um movimento de contracultura: o rock’n’roll. Kenrick (2010) explica que os espetáculos da época sofreram com uma bilheteria fraca, podemos citar, como exemplo, Darling of the Day (1968, 31 performances). Devido a essa crise nas peças musicais, teatros Off-Broadway criaram dois espetáculos com rock: Your Own Thing (1986, 933 apresentações) e Hair (1968, 1.750 apresentações) 70

Your Own Thing, carnavaliza a história da peça Twelfth Night (1602) de Shakespeare para uma banda de rock chamada Apocalipse. Depois de dois anos e meio em cartaz, a peça saiu em tour e foi esquecida. Diferentemente de Your Own Thing, Hair: The American Tribal-Love Rock Musical foi um grande sucesso. As melodias foram escritas por Galt MacDermot e as letras e o libreto foram obra de Gerome Ragni e James Rado, que criaram um enredo bem ralo centrado em um jovem rebelde que adora rock e é forçado a se alistar no exército. Kenrick (2010) afirma que depois de oito semanas, o espetáculo foi revisado para estrear na Broadway. Apesar de o musical ter uma narrativa superficial, Hair foi revolucionário por carnavalizar o gênero do teatro musical através do uso de canções de “rock pesado” e, principalmente, pelos temas abordados, como a pobreza, os relacionamentos interraciais, as drogas e a Guerra do Vietnam. Com as músicas Aquarius, Good Morning, Starshine e Let the Sunshine In, a Broadway voltou a tocar nas rádios. Mas talvez a maior façanha de Hair foi ter sido o porta voz de sua geração, como afirma Clive Barnes, crítico do The New York Times que escreveu que Hair foi “o primeiro musical da Broadway em um bom tempo a ter a voz autêntica do hoje ao invés da de anteontem53” (BARNES, 1986, tradução nossa). No entanto, o sucesso de Hair não agradou a elite da Broadway e nem a comissão do Tony e dos outros prêmios que ignoraram o musical. Além de musicais de rock, outros espetáculos também fizeram sucesso nessa época, como Promises, Promises (1698, 1.281 apresentações) e 1776 (1969, 1.217 apresentações). Dentre estes, iremos destacar 1776 devido a proximidade de seu tema com nosso corpus. 1776 tem como herói John Adams, que luta para convencer os membros do Congresso a votarem a favor da independência. As músicas foram criadas por Sherman Edward, um ex-professor de história e o libreto por Peter Stone. O musical tem relação temática com o nosso corpus por apresentar as figuras histórias de Thomas Jefferson, Benjamin Franklin e John Adams como homens falíveis, lutando para impor suas ideias. Apesar de o espetáculo não apresentar muitas canções que impactaram a década, ele fez sucesso e foi indicado a cinco Prêmios Tony, conquistando três, incluindo o de Melhor Musical. Conforme Miranda e MacCarter (2016), Hamilton apresenta uma referência a 1776. Na música The Adams Administration, Alexander, após ser demitido por Adams e chamado de “bastardo criolo” pelo então presidente, publica um manifesto criticando a administração atual e diz: “Sit Down, John

53 Em inglês: “the first Broadway musical in some time to have the authentic voice of today rather than the day before yesterday”. Fonte: . 71

you fat mother […]”54 (MIRANDA, 2015), uma clara referência à música Sit Down, John de 1776. A próxima década seria marcada pela luta entre três tipos de musicais: os musicais de rock, os musicais integrados e um novo gênero, os musicais conceitos, conforme discutiremos no tópico seguinte.

3.1.9.7 Os anos 1970

Como dissemos anteriormente, a comunidade da Broadway não ficou muito feliz com o sucesso de Hair. Mas Kenrick (2010) aponta que isso mudou quando Barnes, o crítico do New York Times, que havia elogiado Hair, embarcou em uma missão de encorajar outras produções musicais com rock, uma dessas foi Jesus Christ Superstar. Jesus Christ Superstar (1971, 720 apresentações) é narrado por Judas e conta os últimos dias de Cristo. O espetáculo inovou por ser a primeira rock opera e por ser completamente sung-through55, uma característica que Hamilton também apresenta. Tim Rice escreveu as letras e o libreto e as melodias foram feitas por Andrew Lloyd Webber. O musical outras similaridades com Hamilton; ambos são narrados pelos “vilões” responsáveis pela morte do personagem principal; os dois espetáculos nasceram como álbuns conceitos que, posteriormente, foram desenvolvidos para musicais. Além disso, as duas obras trouxeram estilos musicais que eram desprivilegiados para a Broadway, bem como as duas peças familiarizaram personagens históricos. Assim, Jesus é mostrado como um homem e não um ser divino. Essa familiarização da figura de Jesus e das outras figuras bíblicas, o uso do rock, um gênero musical inusitado e por vezes considerado demoníaco pelos cristãos, para contar uma história considerada sagrada e o fato da obra ser narrada por Judas, que entregou o Messias para morrer na cruz, fazem com que esse musical carnavalize e subverta a história da Bíblia. Outros musicais de sucesso que também usaram o gênero musical rock foram Two Gentlemen of Verona e The Wiz. Two Gentlemen of Verona (1971, 627 apresentações), inovou por apresentar um elenco formado por várias etnias e por misturar a linguagem de Shakespeare com músicas pop, uma mistura similar está presente em nosso corpus que junta a linguagem da América

54 Em português: “Sente-se, John, seu gordo filho da…”. 55 “Um musical onde todo o diálogo é cantado. Ex.: Les Miserables.” Fonte: . 72

Revolucionária com o linguajar típico do hip-hop e do rap. O espetáculo conquistou o Tony de Melhor Musical, mas, segundo Kenrick (2010), foi esquecido pela história. Os musicais negros voltaram em 1970 por um curto período de tempo, com trilhas de pop/rock. Estes foram Purlie (1970), Raisin (1973) e The Wiz (1975). Tanto Purlie quarto Raisin não tiveram apresentações suficientes para que fossem rentáveis, mas The Wiz (1975, 1,672 apresentações), foi um grande sucesso. A narrativa é uma adaptação que carnavaliza a típica história de The Wizard of Oz ao apresentá-la com um elenco de atores afro-americanos e com gêneros musicais que divergem da clássica trilha sonora, contando com músicas tanto de rock quanto de soul, um gênero com origem afro-americana. As características subversivas e carnavalescas também fazem com que The Wiz seja similar ao nosso corpus, por apresentar personagens brancos sendo interpretados por um elenco de afrodescendentes e pela presença subversiva de gêneros musicais historicamente negros nos palcos da Broadway. A equipe responsável por essa produção era formada por William F. Brown, que escreveu o libreto, Zachary Walzer, Charlie Small e Luther Vandross, que fizeram as letras e Harold Wheeler, Luther Vandross, Charlie Smalls, Timothy Graphenreed e George Faison que escreveram as melodias. O espetáculo foi indicado a oito categorias do Tony, conquistando sete, incluindo a de Melhor Musical. Na metade da década de 1970, Kenrick (2010) explica que vários musicais de rock foram fracassos de bilheteria devido um amadorismo nas produções teatrais ou a uma má escolha em relação aos temas. Com a queda dos musicais de rock, um novo gênero se estabeleceu, os musicais conceitos. Os musicais conceitos foram desenvolvidos por Sondheim e Prince e eram desenvolvidos em torno de um tema central que definia toda a narrativa, podemos citar, como exemplo, a produção de Hamilton que gira em torno da vida de Alexander Hamilton. Kenrick (2010) ao discutir tais musicais afirma que

[o]s “musicais conceitos” foram além da narrativa tradicional, quebrando as limitações de tempo, lugar e ação para examinar simultaneamente vários indivíduos e relacionamentos. Cada personagem tem uma história para contar e todos eles podem comentar e/ou ilustrar diferentes aspectos do conceito56 (KENRICK, 2010, p. 325, tradução nossa).

56 Em inglês: ““concept musicals” went beyond traditional narrative, breaking the limitations of time, place, and action to simultaneously examine numerous individuals and relationships. Every character has a story to tell, and all of them can comment on and/or illustrate different aspects of the concept.” 73

Com uma parceria tão proveitosa como a de Hammerstein e Rodgers, Sondheim e Prince desenvolveram vários espetáculos: (1970, 760 apresentações), Follies (1971, 522 apresentações), A Little Night Music (1973, 600 apresentações) e Pacific Overtures (1976, 193 apresentações). Dentre estes, o musical Pacific Overtures se destaca. Apesar de não ter tido sucesso na bilheteria, o espetáculo foi importante por apresentar uma narrativa complexa e política que cobria 100 anos de história japonesa. O libreto de John Weidman denuncia as práticas agressivas do Estados Unidos que forçou o Japão a realizar uma abertura econômica e mostra os efeitos da mesma. A produção foi indicada a dez categorias do Tony, conquistando dois prêmios de categoria técnica. Pacific Overtures não se limitou a trazer uma narrativa japonesa com uma abordagem ocidental. O elenco era em sua maior parte formado por atores asiáticos e o espetáculo também adotou convenções do teatro japonês kabuki, tendo os papéis femininos interpretados por atores em drag, uma característica do carnaval, onde há inversão de papéis em que homens se vestem como mulheres, e vice-versa. Mas o musical conceito mais bem-sucedido não foi escrito por Sondheim e Prince, como poderíamos imaginar, e sim, por Michael Bennett em conjunto com Nicholas e James Kirkwood, responsáveis pelo libreto, Marvin Hamlisch, que escreveu as melodias e Edward Kleban, que escreveu as letras. O resultado dessa colaboração foi A Chorus Line (1975, 6.137 apresentações), que conta a história de dançarinos em uma audição para o coro de uma peça da Broadway. O espetáculo quebrou o recorde de duração em cartaz e conquistou vários prêmios, como o Pulitzer de Drama e nove Prêmios Tony, incluindo o de Melhor Musical. Além dos musicais de rock e os musicais conceitos, outras duas tendências da década de 70 foram os revivals e o retorno dos musicais integrados. Kenrick (2010) explica que a década de 70 trouxe uma onda de nostalgia em todas as áreas da cultura que se refletiu na Broadway fazendo com que produções antigas fossem remontadas. Essa moda começou com o revival de No, No Nanette (1971, 861 apresentações), porém, o revival mais bem sucedido foi o de The King and I (1977, 807 apresentações). Dentre os musicais integrados de 1970, os mais bem-sucedidos foram Annie (1976) e Ain’t Misbehavin’ (1978), que destacaremos por ser um musical afro-americano. Ain’t Misbehavin’ (1978, 1.604 apresentações) foi criado por Richard Maltby e ajudou a reviver o gênero revue. O espetáculo, assim como Hamilton, homenageia músicos negros e teve um elenco exclusivamente composto por atores afro-americanos e uma trilha de 74

jazz apresentada por Fats Waller. Ain’t Misbehavin’ foi indicado a cinco Prêmios Tony, ganhando em três categorias incluindo a de Melhor Musical.

3.1.9.8 Os anos 1980

Nos anos 1980, vários musicais obtiveram sucesso sem apresentar inovações. Os maiores exemplos de megamusicais, superproduções musicais, da década de 80 foram Cats (1982), Les Misérables (1987), Phantom of the Opera (1988). Cats (1982, 7.485 apresentações) teve músicas de Lloyd Webber e direção de Trevor Nunn, o espetáculo era baseado na coleção de poemas Old Possum’s Book of Practical Cats de T.S. Eliot. O enredo era simples: um grupo de gatos em um beco fala sobre suas aventuras. Um diferencial do musical era que ele era um dos poucos na época que podia ser assistido por crianças. As músicas de Lloyd Webber misturavam pop com vaudeville e ópera e mantinham em sua maior parte o texto de Eliot. Para Kenrick (2010), a única coisa em que Cats inovou foi no marketing. Os musicais costumam disponibilizar alguns souvenirs, como camisetas e livros com as músicas. Cats, no entanto, usou sua marca para vender todo tipo de produtos que incluíam decorações de natal, guarda-chuvas e caixas de fósforo. Esse exemplo foi seguido por outros musicais, como Hamilton, que vende desde pôsteres até cadernos. A produção quebrou o recorde de apresentações na Broadway ficando em cartaz até o ano 2000 e foi apresentada em várias partes do mundo. O espetáculo foi indicado a 11 categorias do Tony, conquistando sete, incluindo a de Melhor Musical. O próximo megamusical foi Les Misérables (1987, 6.680 apresentações), popularmente conhecido como Les Miz, baseado no musical francês, que por sua vez, era uma adaptação do livro Les Misérables de Victor Hugo. A produção inglesa teve as letras de Herbert Kretzmer e o libreto escrito por Trevor Nunn e John Caird. Dentre os megamusicais, Les Miz se destaca por apresentar um enredo bem desenvolvido e “uma experiência de teatro tocante57” (KENRICK, 2010, p.353, tradução nossa). Um ponto importante a se discutir é que a história de Les Miz apresenta uma semelhança com o nosso corpus. Ambas as obras acompanham um grupo de rebeldes durante uma revolução; em Hamilton, temos a Revolução Americana, e, em Les Miz, temos a Revolução Francesa. A Revolução Francesa é, inclusive, citada em Hamilton através do personagem do

57 Em inglês: “a touching theatrical experience.” 75

Marquês de Lafayette, um aristocrata francês e melhor amigo de Alexander, que participa dos dois movimentos e, por Jefferson, inimigo político de Alexander, que é um grande admirador da França. Phantom of the Opera (1988, ainda em cartaz) tem melodias e libreto de Lloyd Webber e letras de Charles Hart e Richard Stilgoe, que também escreveu o libreto. O espetáculo é baseado no livro The Phantom of the Opera de Gaston Leroux e conta a história de um “fantasma” que assombra uma casa de ópera parisiense e se torna mentor de Christine Daae, uma jovem soprano. Com cenários imponentes e vários efeitos especiais, o musical deslumbrou o público, sendo a única peça musical da Broadway a ter mais de 10.000 apresentações. Além dessa grande conquista, Phantom of the Opera foi indicado a dez Prêmios Tony, vencendo em sete categorias, incluindo a de Melhor Musical e continua em cartaz até hoje. Na mesma temporada de Phantom of the Opera, Sondheim lançou Into the Woods (1987, 769 apresentações). O espetáculo é baseado em vários contos de fadas e, por isso, apresenta vários elementos fantásticos ligados ao carnaval. O libreto foi feito por James Lapine e as músicas por Sondheim. O musical foi indicado a dez categorias do Tony, vencendo em três, incluindo a de Melhor Libreto e Melhor Trilha Sonora Original. Apesar do clamor da crítica, Into the Woods durou apenas dois anos em cartaz. Com o sucesso de musicais escritos por estrangeiros, demorou para que um espetáculo americano surgisse, o que aconteceu em 1989 com a estreia de Grand Hotel. Grand Hotel (1979, 1.077 apresentações) tem libreto de Luther Davis e letras e melodias de George Forrest, Robert Wright e Maury Yeston. O musical é baseado na peça Menschen im Hotel de Vicki Baum e no filme Grand Hotel de Edmund Goulding. A narrativa conta a história de vários personagens excêntricos que se hospedam em um hotel em Berlim. O espetáculo foi indicado a 12 Prêmios Tony, conquistando cinco categorias. Grand Hotel foi um dos únicos musicais americanos da época a ter mais de 1.000 apresentações e quando ele saiu de cartaz, os megamusicais estrangeiros que mencionamos continuaram sendo apresentados. Todavia, os anos 1990 iriam trazer uma mudança, com os primeiros megamusicais americanos de sucesso, sobre os quais discorremos a seguir.

3.1.9.9 Os anos 1990

Os anos 1900 foram tempos difíceis para a Broadway. De acordo com Kenrick (2010), neste período, além da falta de musicais inovadores, o público de musicais diminuiu drasticamente, especialmente pelo alto custo dos ingressos. Essa realidade mudou com a estreia 76

de duas produções da Walt Disney Theatrical Productions: Beauty and the Beast (1994) e The Lion King (1997). Beauty and the Beast (1994, 5.465 apresentações), com libreto de Linda Woolverton, letras de Howard Ashman e Tim Rice e melodias de Alan Menken, foi o primeiro musical teatral da Disney, baseado na animação homônima de 1991. Assim como Cats, Beauty and the Beast era uma peça musical que podia ser assistida por crianças de todas as idades, e, apesar do alto preço dos ingressos, o musical era mais barato do que uma visita aos parques da Disney. Como aconteceu com os megamusicais, os críticos, em geral, consideraram Beauty and the Beast um bom espetáculo e péssima forma de arte. David Richards do New York Times escreveu que: “[c]omo musical da Broadway, “Beauty and the Beast” pertence ao lado do Empire State Building, da F. A. O. Schwarz e dos passeios de barco da Circle Line. Não é um triunfo da arte, mas provavelmente será uma atração turística58” (RICHARDS, 1994, tradução nossa). E também da mesma forma como os megamusicais, o público ignorou as críticas e continuou indo aos teatros, fazendo com que o espetáculo ficasse em cartaz por 13 anos. O próprio Miranda também se declara fã da obra e citou um trecho da canção The Mob Song na letra da música Take a Break através da personagem Angelica que diz: “Screw your courage to the sticking place”59. A referência, na verdade, é dupla, pois também é uma fala de Lady Macbeth na peça Macbeth. Kenrick (2010) explica que o motivo do sucesso se deve, principalmente, ao público infantil, que se deleitou em ver os personagens da animação ganhando vida no palco. Tendo aprendido uma lição de marketing com Cats e The Phantom of the Opera, além do dinheiro arrecadado com a venda dos ingressos, a produção de Beauty and the Beast teve uma grande fonte de renda com os souvenirs vendidos. Com Beauty and the Beast, a Disney inventou um novo gênero: os musicais corporativos, produções criadas, desenvolvidas, produzidas e controladas por grandes corporações do setor de entretenimento para reprodução em massa. Kenrick (2010) aponta as características dos musicais corporativos:

[e]les parecem impressionantes, fluem com facilidade e fornecem um suprimento constante de baladas pop. Podem até fazer o público sorrir, o que é mais do que a

58 Em inglês: “[a]s Broadway musicals go, "Beauty and the Beast" belongs right up there with the Empire State Building, F. A. O. Schwarz and the Circle Line boat tours. It is hardly a triumph of art, but it'll probably be a whale of a tourist attraction.” Fonte: . Acesso em ago. 2019. 59 Em português: “Aparafuse sua coragem ao ponto máximo”. 77

maioria dos megamusicais britânicos já fez. Uma vez em funcionamento, os musicais corporativos podem ser reproduzidos eficientemente para produções estrangeiras ou de turnê com cenários idênticos e elenco anônimo - sem a necessidade de estrelas de alto cachê. O que falta é a alegria, a vitalidade, a humanidade espontânea que uma consciência corporativa não pode proporcionar.60 (KENRICK, 2010, p. 362, tradução nossa).

A fórmula criada pela Disney com Beauty and the Beast foi solidificada com a estreia de The Lion King (1997, ainda em cartaz), uma adaptação da animação homônima de 1994 através de fantoches e atores com máscaras. O musical teve o libreto de Roger Allers e Irene Mecchi, letras de Tim Rice, melodias do astro Elton John e direção de June Taymor. Letras e melodias adicionais foram feitas por Lebo M, Mark Mancina, Jay Rifkin, Julie Taymor e Hans Zimmer. Para a estreia do espetáculo na Broadway, a Disney comprou e renovou o New Amsterdam Theatre, que havia um dia abrigado as famosas Follies de Ziegfeld. A produção teve mais cuidado com que os críticos tinham reclamado em Beauty and the Beast, fazendo com que a recepção da crítica especializada fosse favorável. Além disso, The Lion King teve ainda mais sucesso comercial do que Beauty and the Beast, e, de acordo com a Forbes61, a peça musical, somando as produções domésticas e as produções internacionais, lucrou mais de 8 bilhões de dólares, sendo a obra de entretenimento mais lucrativa do mundo. Com tanto sucesso, a comissão do Tony não pode ignorar o espetáculo e ele foi indicado a 11 Prêmios Tony, conquistando seis, incluindo o de Melhor Musical. Nos últimos anos da década de 90, Kenrick (2010) explica que todos os espetáculos da Broadway eram financiados ou por grandes corporações ou por grupos de investidores independentes, o que se devia aos altos custos de produção que chegavam a 8 milhões de dólares. Em meio a esse cenário, produções inovadoras eram praticamente inexistentes até a estreia de Rent (1996). Rent (1996, 5.123 apresentações) é uma rock opera, tem libreto, músicas e letras de Jonathan Larson e é inspirado na ópera La Bohème de Giacomo Puccini. A obra conta a história de um grupo de artistas que lutam para sobreviver em Nova York. Apesar do espetáculo ter o financiamento externo de uma companhia nova-iorquina, a obra carnavalizou o musical da Broadway, por colocar em foco personagens que, geralmente, não eram vistos nos palcos: homens e mulheres gays, pessoas com HIV e AIDS, drag queens e usuários de drogas.

60 Em inglês: “[t]hey look impressive, flow with ease, and provide a steady supply of pop ballads. They can even make audiences smile, which is more than most British mega-musicals ever did. Once they are up and running, corporate musicals can be efficiently reproduced for foreign or touring productions with matching sets and anonymous casts—no need for high-priced stars. What’s missing is the joy, the vitality, the spontaneous humanity that a corporate consciousness cannot provide.” 61 Fonte: . Acesso em jun. 2019. 78

Em uma reportagem para o jornal The Philadelphia Gay News, Adams (1998) explica que Rent vendia ingressos mais baratos duas horas antes do espetáculo começar possibilitando que várias pessoas que não podiam pagar os altos preços da Broadway pudessem assistir à peça. O jornalista explica que os ingressos mais baratos estavam sendo comprados por pessoas que já haviam visto o musical várias vezes, para solucionar esse problema e dar oportunidade para mais pessoas verem o show, a produção nova-iorquina implementou um sistema de loteria. Nesse sistema, as pessoas que ficam na fila duas horas antes do show tem a oportunidade de concorrer aos ingressos de 20 dólares, participando de um sorteio aleatório. Esse mesmo sistema de loteria foi usado em Hamilton, no qual foi acrescentada ainda uma nova inovação; enquanto as pessoas esperam na fila, os atores saem do teatro e performam algumas músicas. Esse sistema é chamado por “Ham 4 Ham”62. Devido a facilidade de acesso, Rent se tornou um fenômeno cultural e ajudou a consagrar o rock na Broadway (Miranda; McCarter, 2016). Devido ao seu sucesso, o musical ganhou o Pulitzer de Drama e foi indicado a dez Prêmios Tony, conquistando quatro categorias, incluindo a de Melhor Musical e Melhor Libreto. É importante dizer que Miranda e McCarter (2016) apontam Rent como uma das principais influências para Hamilton. De acordo com os autores, Miranda desejava estabelecer o hip-hop como um gênero na Broadway, da mesma forma que Rent havia feito com o rock. Nos anos 1990 houve o retorno dos musicais negros com Bring in 'Da Noise, Bring in 'Da Funk (1996, 1.135 apresentações). O musical teve melodias de Ann Duquesnay, Zane Mark, Daryl Waters, libreto de Reg E. Gaines e letras de Ann Duquesnay, Reg E. Gaines e George C. Wolfe. A coreografia foi feita por Savion Glover e a direção foi feita por George C. Wolfe. A obra conta, através do sapateado, a história do povo afro-americano nos Estados Unidos, desde a época da escravidão até 1996. Com uma ideia inovadora e excelentes números de dança, o espetáculo foi aclamado pela crítica. Devido a sua inovação, Bring in 'Da Noise, Bring in 'Da Funk foi indicado a nove Prêmios Tony, conquistando quatro categorias, incluindo a de Melhor Coreografia e Melhor Direção. Kenrick (2010) aponta que as poucas peças musicais originais que estrearam em 1989-99 ou não traziam inovação ou eram mal trabalhadas. Nesse cenário, a Broadway passava por tempos incertos quando musicais, que eram mais comerciais prosperavam. Ao mesmo

62 Os vídeos das performances estão disponíveis no link: . Acesso em jun. 2019. 79

tempo, espetáculos que fizeram o teatro progredir como forma de arte e obtinham lucro, eram as comédias musicais, um gênero que havia sido considerado morto, mas seria ressuscitado nos anos 2000, como veremos nos anos a seguir.

3.1.10 Os anos 2000-2011

O começo dos anos 2000 foi marcado pela estreia de The Full Monty (2000, 768 apresentações), um revival de 42nd Street (2001, 1.525 apresentações) e a estreia de The Producers (2001, 2.502 apresentações), o qual destacaremos pelos seus elementos carnavalescos. Com o sucesso dessas obras, a comédia musical voltou a ser um dos principais gêneros da Broadway. The Producers (2001, 2.502 apresentações), com libreto de Thomas Meehan e letras e melodias de Mel Brooks, é uma adaptação do filme Primavera para Hitler de 1967. O musical conta a história de dois produtores que tentam ganhar dinheiro escrevendo um fracasso da Broadway sobre Hitler. Essa comédia fez tanto sucesso que foi indicada a 14 Prêmios Tony, conquistando 12 categorias, incluindo a de Melhor Musical e Melhor Libreto. A obra apresenta um musical carnavalizado intitulado Springtime for Hitler: A Gay Romp With Adolf and Eva at Berchtesgaden, que destrona Hitler de seu poder intimidador transformando-o em uma figura cômica. The Producers estabeleceu o recorde de maior número de indicações ao Tony, recorde este que só foi quebrado em 2015 por Hamilton: An American Musical63. No mesmo ano, Urinetown (2001, 965 apresentações) estreou. A obra é uma comédia musical satírica com libreto de Greg Kotis, letras de Kotis e Mark Hollmann e melodias de Hollmann. O espetáculo critica o sistema capitalista, as corporações, a burocracia, dentre outros sistemas de forma cômica. Essa crítica é feita através de uma história sobre um grupo de pessoas que, durante uma grave seca, se revoltam contra uma empresa, que lida com os resíduos da cidade, pelo direito de urinar de graça. É necessário sublinhar que o tema da urina e sua ligação com o baixo material e corporal é uma marca da literatura de Rabelais, como Bakhtin (2010a) afirma: “[e]m Rabelais, a irrigação com urina e a inundação na urina desempenham um papel de primeiro plano” (BAKHTIN, 2010a, p. 127). O teórico cita várias cenas que envolvem urina, por exemplo, no capítulo XVII do Primeiro Livro de Gargântua, em que Rabelais descreve como Gargântua afogou os parisienses com sua urina.

63 Fonte: . 80

Em 2003, a comédia musical foi renovada com a estreia de Avenue Q (2003, 2.534 apresentações). O espetáculo tem libreto de Jeff Whitty e letras e melodias de Robert Lopez e Jeff Marx, contando a história de Princeton, um recém-formado que não sabe o que fazer depois da universidade. A obra é inovou pelo seu humor irreverente e pela forma como abordou temas, como racismo, sexualidade e pornografia. A peça apresenta um humor carnavalizado e a linguagem da praça pública. A recepção da crítica foi favorável. Brantley do The New York Times definiu o musical como “astuto, atrevido e eminentemente simpático64” (BRANTLEY, 2003, tradução nossa). Além de ter sido bem recebido pelos críticos, Avenue Q conquistou três Prêmios Tony, incluindo Melhor Musical e Melhor Libreto. Os próximos anos na Broadway foram difíceis. Algumas peças obtiveram sucesso, mas, em sua maioria, esses espetáculos foram feitos para atrair turistas. Uma das exceções foi a estreia de Spring Awakening (2006, 859 apresentações). A obra é baseada na peça homônima de Franz Wedekind, com libreto e letras de Steven Sater e melodias de Duncan Shiek e conta a trágica história do casal Melchior e Wendla que são punidos por manterem relações sexuais na Alemanha do século XIX. Spring Awakening foi inovador por seu formato, que carnavaliza a fórmula do musical integrado. Nesta peça, as músicas eram performadas pelos atores, que paravam de interpretar os personagens para cantar ao microfone, como se estes estivessem em um show de rock. Além disso, as letras das músicas também carnavalizam o típico musical da Broadway, abordando temas polêmicos como estupro, suicídio e aborto, se distanciando, assim, do que era de praxe na Broadway. A quebra dos padrões do teatro musical, fez com que a peça fosse abraçada pelo público e pela crítica. Charles Isherwood do The New York Times afirmou que “[...] a Broadway, com sua sofisticação muitas vezes pueril e seu romantismo estéril, pode nunca mais ser a mesma65” (ISHERWOOD, 2006, tradução nossa). A comédia musical direcionada a adultos, que havia feito sucesso em Avenue Q, voltou ao spotlight, com a estreia de um musical que seria uma das obras mais ousadas da Broadway. The Book of Mormon (2011, ainda em cartaz) tem libreto de Robert Lopez, Trey Parker e Matt Stone, melodias de Robert Lopez e Matt Stone e letras de Robert Lopez, Trey Parker e Matt Stone. O musical é bastante carnavalizado, sendo uma paródia, na acepção bakhtiniana, das práticas religiosas dos mórmons que partem para tentar converter pessoas na

64 Em inglês: “savvy, sassy and eminently likable”. Fonte: . Acesso em ago. 2019. 65 Em inglês: “and Broadway, with its often puerile sophistication and its sterile romanticism, may never be the same.” Disponível em: . Acesso em ago. 2019. 81

África. É necessário notar que, por ser uma paródia carnavalizada, ela é tanto destruidora quanto regeneradora, o que pode ser visto pela crítica de Ben Brantley do The New York Times:

[...] ao definir esses elementos sombrios em melodias ensolaradas, “The Book of Mormon” alcança algo como um milagre. Ele zomba e abraça ardentemente a forma de arte americana do musical integrado inspirador. Nenhum show da Broadway conseguiu fazer ambas as coisas desde que Mel Brooks adaptou seu filme “The Producers” para o palco uma década atrás.66 (BRANTLEY, 2011, tradução nossa).

Além disso, o espetáculo apresenta outros traços carnavalescos, como a presença do linguajar do baixo corporal, com termos e expressões da praça pública, marcados por obscenidades e profanações. Podemos citar, como exemplo, a letra da música Hasa Diga Eeboway, em que os africanos, revoltados com uma endemia de Aids e com o abandono da população, ensinam os mórmons a amaldiçoar o nome de Deus e a dizer “hasa diga eeboway” para o céu, o que significa: “vai se foder, Deus”. Os últimos versos da música são: “Hasa Diga! Vai ser foder, Deus! Na buceta!”67. Apesar da linguagem ofensiva, o musical foi reconhecido pela comissão do Tony que indicou o espetáculo a 13 categorias, conquistando nove prêmios, incluindo a de Melhor Musical e Melhor Libreto. Após termos realizado um histórico dos musicais, apresentaremos, a seguir, uma breve biografia do criador de Hamilton, Lin Manuel-Miranda, com o propósito de tentar compreender a cosmovisão carnavalesca presente em suas obras. Em seguida, apresentaremos o espetáculo que compõe nosso corpus e um percurso histórico do hip-hop e do rap, com o objetivo de entendermos como esses gêneros musicais contribuem para a carnavalização de Hamilton.

66 Em inglês: “[...] in setting these dark elements to sunny melodies, “The Book of Mormon” achieves something like a miracle. It both makes fun of and ardently embraces the all-American art form of the inspirational book musical. No Broadway show has so successfully had it both ways since Mel Brooks adapted his film “The Producers” for the stage a decade ago.” Fonte: . Acesso em jun. 2019. 67 Em inglês: “Hasa Diga! Fuck you God! In the cunt.” Disponível em: . Acesso em ago. 2019. 82

4 I’M NOT THROWING AWAY MY SHOT68: O SUJEITO POR TRÁS DE HAMILTON: AN AMERICAN MUSICAL

“Eu tenho um sonho que um dia essa nação se erguerá e viverá o verdadeiro significado de seu credo: ‘Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas: que todos os homens são criados iguais’” Dr. Martin Luther King Jr.

Nessa seção, apresentaremos uma breve biografia da vida Lin-Manuel Miranda, criador do musical Hamilton, bem como comentaremos os seus principais musicais para que possamos entender, a partir daí, a cosmovisão carnavalesca que permeia toda a sua obra. Além disso, discorreremos sobre os estudos musicais do hip-hop e o rap, procurando compreender como esses gêneros presentes em nosso corpus carnavalizam o musical que pretendemos analisar.

4.1 A VIDA DE LIN-MANUEL MIRANDA

Lin-Manuel Miranda é um ator, letrista, rapper, compositor e dramaturgo. Segundo Murray (2019), Miranda nasceu em 16 de janeiro de 1980 na cidade de Nova York e cresceu em um bairro hispânico ao norte de Manhattan. A família de Miranda tem origem porto- riquenha, seu pai é consultor político e sua mãe é psicóloga. Miranda conviveu, desde cedo, com vários tipos de música, Murray (2019), por exemplo, menciona que o cantor ouvia álbuns de salsa, musicais, hip-hop e R&B69, pluralidade musical que se reflete em seu trabalho que é atravessado por várias vozes e gêneros musicais. Aos sete anos, o jovem Miranda assistiu a seu primeiro espetáculo da Broadway, Les Misérables, que o impactou para sempre. Prova disso, é que no ensino médio o ator fez uma audição para interpretar o personagem principal do musical The Pirates of Penzance, conquistando o papel e se tornando parte permanente do programa de teatro. Enquanto atuava nas peças de sua escola, outro grande acontecimento marcou a vida do ator quando ele conheceu

68 Em português: “Não vou desperdiçar a minha chance”. 69 “Ritmo e blues, muitas vezes abreviados para R e B ou RnB, é um gênero de música afro-americana popular que se originou na década de 1940.” Disponível em: . Acesso em ago. 2019. 83

Stephen Sondheim, que, posteriormente, se tornou mentor de Miranda junto com John Kander70. De acordo com Murray (2019), após terminar o ensino médio, Miranda então foi estudar teatro na Wesleyan University. Durante seus anos nesta universidade, ele atuou em musicais e escreveu músicas e shows. É importante comentar aqui que foi, na Wesleyan University, que Miranda escreveu a primeira versão de In The Heights, um musical ambientado no bairro latino Washington Heights. Em 2002, Miranda se formou e iniciou sua carreira de ator profissional, chegando a aparecer em filmes e seriados. Além disso, ele também performou músicas como rapper em conjunto com o grupo de hip-hop Freestyle Love Supreme e até participou de festivais, como o Edinburgh Festival Fringe. Outra parceria estabelecida por Miranda foi com Thomas Kail, um amigo da universidade, que também o ajudaria em Hamilton, junto do qual continuou a desenvolver In The Heights, o primeiro musical criado por Miranda o qual compartilha vários traços em comum com o nosso corpus, como veremos a seguir.

4.2 PRINCIPAIS OBRAS DE LIN-MANUEL MIRANDA

Nessa subseção, iremos comentar os dois musicais originais de Miranda com objetivo de mostrar a concepção carnavalesca que orienta a sua arte. Começaremos por In The Heights e, depois, mostraremos Hamilton: An American Musical.

4.2.1 In The Heights

Segundo o site do IBDB71, In The Heights (2008, 1.184 apresentações) tem libreto de Quiara Alegría Hudes, letras e música de Lin-Manuel Miranda, direção de Thomas Kail, direção musical de Alex Lacomoire, design de figurino Paul Tazewell e coreografia de Andy Blankenbuehler. Na Figura 2, podemos ver o pôster do musical.

70 John Kander é um compositor americano que compôs músicas, em parceria com Ebb, para mais de 15 shows da Broadway. Disponível em: . Acesso em set. 2019. 71 Disponível em: . Acesso em set. 2019. 84

Figura 2 - Pôster de In The Heights

Fonte: Butler (2018)72.

Como mencionamos, In The Heights e Hamilton têm várias características em comum entre si. Ambos espetáculos apresentam uma grande variedade de gêneros musicais atuais, como o hip-hop e pop; além disso possuem atores latinos no elenco e destacam na narrativa a importância dos imigrantes. O protagonista de In The Heights, Usnavi, interpretado por Miranda, também é um imigrante que luta para conseguir atingir seus objetivos em um país estranho e, por vezes, hostil. O espetáculo inovou por representar um grupo étnico que havia sido, em geral, ignorado nos palcos da Broadway: a comunidade latina. Por essa e outras inovações, a peça foi aclamada pelos críticos, David Rooney da Variety elogiou a trilha sonora que misturava músicas atuais e homenagens os showtunes tradicionais da Broadway, como podemos ver abaixo na crítica de Rooney (2008):

[o] que torna “In the Heights” tão único, no entanto, é que apesar do ritmo pulsante de seus ritmos latino-americanos, misturando hip-hop, rap, jazz, pop, salsa e merengue, este musical também acena reverentemente às tradições dos showtunes. Desde seu número de abertura cativante, que traz referências a Cole Porter e Billy Strayhorn ao mesmo tempo em que introduz rapidamente uma grande galeria de personagens-chave e os coloca em uma comunidade vividamente desenhada, o complicado casamento do musical entre o frescor juvenil e as formas de arte adoravelmente nostálgicas é difícil de resistir73 (ROONEY, 2008, tradução nossa, grifos nossos).

72 Disponível em: . Acesso em out. 2019. 73 Em inglês: “What makes “In the Heights” so unique, however, is that despite the driving pulse of its Latin- American rhythms, blending hip-hop, rap, jazz, pop, salsa and merengue, this buoyant musical also nods reverently to the traditions of the show tune. From its catchy opening number, which tosses in references to Cole Porter and Billy Strayhorn while swiftly introducing a large gallery of key characters and placing them within a vividly drawn community, the musical’s plucky marriage of youthful freshness and lovingly old- fashioned craft is hard to resist.” Fonte: . Acesso em ago. 2019. 85

Já o crítico Charles Isherwood, do The New York Times, além da trilha sonora, ressaltou a coreografia e a atuação do elenco, conforme podemos observar no que o crítico ressalta abaixo: [v]isto pela primeira vez Off-Broadway no ano passado, “In the Heights” se muda para a área nobre com seus consideráveis trunfos confiantemente bem distribuídos: uma trilha sonora estimulada pelos ritmos dançantes de salsa e pop latino, sons que são uma novidade na Broadway; coreografias picantes de Andy Blankenbuehler que parece colocar asas invisíveis nos tênis de neon dos jovens elenco; e um palco amplamente abastecido com atores atraentes que temperam suas performances com doses generosas de açúcar e especiarias74 (ISHERWOOD, 2008, tradução nossa).

Além das críticas positivas, o espetáculo também foi aprovado pela comissão do Tony, sendo indicado a 13 categorias e conquistando quatro, incluindo a de Melhor Musical e de Melhor Trilha Sonora e foi indicado ao Pulitzer de Drama. O musical também contou com uma versão brasileira chamada Nas Alturas: Um Musical da Broadway75. Em 2018, o estúdio Warner Bros confirmou a data de estreia da adaptação fílmica do musical, para 26 de junho de 202076. Mesmo com todo o sucesso de In The Heights, o musical mais bem-sucedido de Miranda foi Hamilton: An American Musical, como examinaremos a seguir.

4.2.2 Hamilton: An American Musical - o que é e o que a crítica especializada tem a dizer

De acordo com o site do IBDB77, Hamilton (2015, ainda em cartaz) tem libreto, músicas e letras de Lin-Manuel Miranda, direção de Thomas Kail, direção musical de Alex Lacomoire, design de figurino de Paul Tazewell e coreografia de Andy Blankenbuehler. O pôster do musical pode ser visto na Figura 3.

74 Em inglês: “First seen Off Broadway last year, “In the Heights” moves uptown with its considerable assets confidently in place: a tuneful score enlivened by the dancing rhythms of salsa and Latin pop, sounds that are an ear-tickling novelty on Broadway; zesty choreography by Andy Blankenbuehler that seems to put invisible wings on the young cast’s neon-colored sneakers; and a stage amply stocked with appealing actors who season their performances with generous doses of sugar and spice.” Disponível em: . Acesso em ago. 2019. 75 Disponível em: . Acesso em set. 2019. 76 Disponível em: . Acesso em set. 2019. 77 Disponível em: . Acesso em set. 2019. 86

Figura 3 - Poster de Hamilton

Fonte: Sivakumar (2016)78.

Hamilton é inspirado na biografia Alexander Hamilton de Ron Chernow. Trata-se de um musical inovador por contar a história de Hamilton, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, Secretário do Tesouro e herói da Revolução Americana, de um modo nunca feito antes: através do estilo musical do hip-hop e do rap. O livro Hamilton: The Revolution, escrito por Miranda e McCarter, explica o processo de desenvolvimento do espetáculo. Nessa obra, os autores explicam que o musical Hamilton desejava estabelecer o hip-hop como um gênero na Broadway:

Lin achou, quando escreveu Hamilton, que poderia legitimar o hip-hop no teatro musical. Ele não queria fazer uma versão rap de Hair, o show que introduziu o rock na Broadway. Ele pretendia ter um impacto como Rent, que, em suas palavras, “terminou a conversa sobre se o rock pertencia à Broadway. Se você olhar para metade das trilhas na Broadway hoje, elas usam rock - é parte do DNA agora. E essa foi minha injeção de hip-hop no DNA79” (MIRANDA; MCCARTER, 2016, p. 190, tradução nossa, grifos nossos).

78 Disponível em: . Acesso em out. 2019. 79 Em inglês: “Lin felt, when he wrote Hamilton, that it could legitimize hip-hop in musical theater. He didn’t want do a rap version of Hair, the show that introduced rock to Broadway. He aimed at having an impact like Rent,which, in his words, “ended the conversation of whether rock music belonged on Broadway. If you look at half the scores on Broadway today, they use rock—it’s just in the DNA now. And this was my injection of hip- hop into the DNA.” 87

Outra inovação - ou mesmo subversão - trazida por Hamilton foi a escolha de elenco que, com exceção do Rei George, é composto de people of color80, principalmente, atores afro- americanos e latinos. Por essas inovações, Hamilton conquistou aclamação mundial. Brantley, do The New York Times, por exemplo, em sua crítica sobre o espetáculo aconselhou seus leitores que hipotecassem suas casas e colocassem suas crianças para alugar para comprar os ingressos para o espetáculo. Segundo o crítico, a peça mudou a história da Broadway:

“Hamilton” está fazendo sua própria história ressonante, alterando a linguagem dos musicais. E faz isso insistindo que as formas de música mais ouvidas nas estações de rádios pop nos últimos anos - baladas de rap, hip-hop e R&B - têm a força narrativa e a interioridade emocional para impulsionar um musical denso sobre homens brancos mortos há muito tempo, cujos rostos solenes nos encaram das notas verdes em nossas carteiras81 (BRANTLEY, 2015, tradução nossa, grifos nossos).

Já o crítico Aucoin (2015), do Boston Globe, ressaltou a mensagem política do musical. Em suas palavras:

Por estar se desenrolando no cenário da campanha presidencial de 2016, "Hamilton" representa uma rara convergência de um musical popular da Broadway e de um momento político-cultural. O musical biográfico cantado por Miranda mostra um retrato das rivalidades políticas do século XVIII, inflamadas até o ponto de ebulição pela ambição, ego, partidarismo, oportunismo e uma sede de poder que parece contemporânea demais. Até, às vezes, Trumpiana. [...] [A]o escalar artistas de diferentes etnias e contar a história de origem da nação em um idioma contemporâneo, "Hamilton" visa dar a essa história uma urgência atual, ao mesmo tempo em que cria um quadro mais amplo do experimento democrático do qual essa nação é a personificação, como se Miranda estivesse dizendo que 1) ela pertence a todos nós e 2) continua sendo uma obra em andamento82 (AUCOIN, 2015, tradução nossa).

No entanto, recentemente, alguns críticos e teóricos começaram a apontar alguns problemas com a narrativa. Uma dessas pessoas foi Kylie Umehira em seu artigo intitulado All

80 Segundo o jornal Insider o termo people of color, no século 21, engloba pessoas que sofrem com racismo e o privilégio branco. Disponível em: . Acesso em set. 2019. 81 Em inglês: ““Hamilton” is making its own resonant history by changing the language of musicals. And it does so by insisting that the forms of song most frequently heard on pop radio stations in recent years — rap, hip- hop, R&B ballads — have both the narrative force and the emotional interiority to propel a hefty musical about long-dead white men whose solemn faces glower from the green bills in our wallets. Disponível em: . Acesso em set. 2019. 82 Em inglês: “Because it is unfolding against the backdrop of the 2016 presidential campaign, “Hamilton’’ registers as a rare convergence of a popular Broadway musical and a political-cultural moment. Miranda’s sung-through biographical musical delivers a portrait of 18th-century political rivalries inflamed to the boiling point by ambition, ego, partisanship, opportunism, and a thirst for power that feels all too contemporary. Even, at times, Trumpian. [...] [B]y casting performers of color and telling the nation’s origin story in a contemporary idiom, “Hamilton’’ aims to give that story a present-day urgency while putting a broader frame around the democratic experiment of which that nation is the embodiment, as if Miranda is saying that 1) it belongs to all of us, and 2) it remains a work in progress.” Disponível em: . Acesso em set. 2019. 88

Hammed Up: How Hamilton: An American Musical Addresses Post-Racial Belief. Umehira (2017) defende que Hamilton apesar do elenco diverso ainda se concentra em contar uma história em que todos os personagens são brancos, sem personagens afro-americanos. Além disso, a autora destaca que o espetáculo falha em sua abordagem da escravidão, que é mencionada apenas poucas vezes durante a narrativa. Para Umehira (2017), essas características fazem com que a obra contribua para um mito de América pós-racial, em que o preconceito racial não é mais algo relevante. Apesar dessas críticas negativas recentes, Hamilton continua a obter sucesso comercial, tendo vendido mais de 500 milhões em ingressos83. A comissão do Tony também aprovou a peça, e Hamilton foi indicado a 16 – um recorde na história do maior prêmio do teatro norte americano – vencendo em 11 categorias, entre elas a de Melhor Musical. Em 2016, Hamilton também conquistou o Prêmio Grammy de Melhor Álbum de Teatro Musical e o Prêmio Pulitzer de Drama. Em 2018, a produção de Hamilton baseada em Londres quebrou o recorde de indicações ao Olivier Awards – o maior prêmio de teatro do Reino Unido – com 13 indicações em todas as categorias em que o musical era elegível. Tendo apresentado o musical, comentaremos, na próxima subseção, os principais gêneros musicais presentes em nosso corpus para compreender como eles se relacionam com as teorias bakhtinianas.

4.2.3 Gêneros musicais em Hamilton: uma profusão de ritmos

Como mencionamos anteriormente, em Hamilton, aparecem diversos gêneros musicais. Para que possamos entender melhor como esses gêneros carnavalizam o que é esperado de um musical da Broadway que trata de narrativas históricas em geral, comentaremos brevemente a história dos principais gêneros presentes na peça: hip-hop e rap.

4.2.3.1 Hip-hop e Rap

O termo hip-hop, geralmente, é utilizado como sinônimo de rap. No entanto, Tate e Light (2019) afirmam que hip-hop tem um escopo mais amplo e consiste em um movimento

83 Disponível em: . Acesso em set. 2019. 89

cultural que engloba quatro elementos: deejaying, rap, grafite e b-boying84. Os autores ressaltam que alguns artistas e estudiosos, por vezes, citam um quinto elemento, conhecimento de si/autoconsciência. Dos quatro elementos que compõe o hip-hop, Tate e Light (2019) apontam que o rap, definido pelos autores como “discurso rítmico ou rimado85” (TATE; LIGHT, 2019, tradução nossa) foi o aspecto que se sobressaiu mais dentro do movimento. Segundo Hebdige (2004), o rap surgiu nos anos 1970, no sul do Bronx, um distrito de Nova York que passava por uma depressão econômica que tornou a área um dos lugares mais violentos da cidade. Na época, o Bronx era habitado, principalmente, por afro-americanos, latinos, como Miranda, e caribenhos, como Alexander Hamilton. O rapper comenta o começo do rap:

No começo dos anos setenta talvez não houvessem muitos clubes na área nobre onde você podia ir dançar, mas alguém sempre estava dando uma festa em um velho salão de baile, centro comunitário ou ginásio. Os promoters que davam as festas contratavam DJs que traziam suas próprias turntables e caixas de som e giravam discos nos corredores. Para atrair seus próprios seguidores, alguns desses DJs performavam pequenos raps para deixar a galera saber quem estava girando os discos. Conforme o tempo passou, esses raps se tornaram mais elaborados, com o DJ, às vezes, incluindo uma “conversa” de chamada-e-resposta com os clientes regulares da casa.86 (BLOW, 1985, tradução nossa, grifos nossos).

De acordo com Tate e Light (2019), o primeiro grande DJ de hip-hop foi Kool Herc (Clive Campbell), Kool era um imigrante da Jamaica de 18 anos que começou a usar os enormes sistemas de som jamaicano em festas. Ele inovou como DJ ao fundir trechos de discos antigos com músicas populares dançantes usando duas turntables. Em conjunto com outros DJs, Kool prolongava a extensão da batida do break, momento em que o único som é da bateria. Durante a batida, o público dançava, o que ficou conhecido como breakdancing87. Além disso, Kool também é apontado como a inspiração para o rap moderno, pois tinha o costume de falar durante as músicas. No entanto, os autores afirmam que esse costume já estava presente nos griots, um

84 B-boying incluí “dança, estilo e atitude de hip-hop, juntamente com o tipo de linguagem corporal viril que o filósofo Cornel West descreveu como “semântica postural”. (TATE; LIGHT, 2017, tradução nossa). Disponível em: . Acesso em set. 2019. 85 Em inglês: “rhythmic and/or rhyming speech”. Disponível em: . Acesso em set.2019. 86 Em inglês: “In the early seventies there may not have many clubs uptown where you could go to dance, but someone was always giving a party in a old ballroom, community center or gym. The promoters who gave the parties hired mobile DJs who bought their own turntables and speakers and spun records at the halls. To attract their own followings, some of these DJs would give little raps to let the crowd know who was spinning the records. As time went by, these raps became more elaborate, with the DJ sometimes including a call-and- response “conversation with the regulars in the house”. 87 Modalidade de dança que envolve movimentos acrobáticos e aéreos. 90

grupo de pessoas responsável por transmitir as tradições orais e narrativas da África antiga; nos cantores que falavam durante músicas de blues; e no toasting88. Em relação à conexão do rap com as tradições jamaicanas, Hebdige (2004) ressalta as similaridades entre o reggae e o rap. Para o autor, o processo de produção dos dois tipos de música é praticamente o mesmo: o MC fala ou canta, ao ritmo da música. Além disso, Hebdige (2004) afirma que os tipos de rap e de reggae também são similares existindo vários tipos diferentes “[...] raps de enaltação, insultos, raps de notícias, raps de “mensagens”, raps sem sentido, raps de festas e raps maternais ou paternais, conselhos de irmãs ou irmãos, assim como existem no reggae de DJ”89 (HEBDIGE, 2004, p. 223, tradução nossa, grifos nossos). Outro ponto mencionado por Hebdige (2004) é a importância cultural dos dois ritmos que ajudaram os jamaicanos e os afro-americanos a serem percebidos pela sociedade e a terem uma identidade e um senso de orgulho pela sua comunidade. Posteriormente, tanto o reggae quanto o rap passaram a ter um público internacional. Os primeiros rappers foram Grandmaster Flash and the Furious Five, Kurtis Blow e Cold Crush Brothers. Em 1979, foram gravados os dois primeiros discos de hip-hop em vinil: King Tim 111 (Personality Jock) de Fatback, uma batida de funk feita no estilo do Brooklyn e Rapper’s Delight de Sugarhill Gang, que continha uma batida do Bronx. Rapper’s Delight trouxe o rap para o spotlight, primeiro, entrando na lista das 40 músicas mais tocadas e depois sendo um hit internacional. O sucesso dessa música foi responsável por uma onda de discos de rap. Dentre esses, iremos destacar The Message de Grandmaster Flash and the Furious Five. Este foi o primeiro rap político que conta a história de um jovem do gueto que se envolve com o crime, acaba preso por assalto a mão armada, e é estuprado na prisão e comete suicídio em sua cela. A música tem o objetivo de prevenir jovens de se envolverem com gangues e compartilharem o mesmo destino. A partir de The Message, surgiram outros raps com mensagens políticas, fazendo com que Wheeler (1991) considerasse que o rap “pode também ser o veículo mais político do país”90 (WHEELER, 1991, p. 194, tradução nossa). Além de críticas sociais nas letras, outra forma de ativismo político presente em discos de hip-hop era adicionar samples, ou seja, acrescentar trechos de discursos, músicas,

88 Toast é uma espécie de “poema narrativo que é recitado, geralmente, em uma maneira teatral. [...] O assunto tratado é a liberdade do corpo através de feitos superhumanos e do espírito através de atos que são livres das restrições morais (ou estão em direta violação delas), especialmente, a respeito do crime e da violência. Os heróis da maioria dessas histórias são homens duros, e homens (ou animais) muito espertos que possuem a amoralidade do trapaceiro”. Fonte: . Acesso em set. 2019. 89 Em inglês: “[…] boast raps,insult raps,news raps,“message”raps,nonsense raps,party raps and motherly or fatherly,sisterly or brotherly advice raps,just as there are in DJ reggae”. 90 Em inglês: “It may also be the most political medium in the country.” 91

entrevistas, filmes, dentre outros recursos musicais, em músicas de rap como forma de crítica. Hebdige (2004) cita, como exemplo de tal uso, o artista Air Force 1, que fez um sample de uma “piada” feita pelo presidente Ronald Reagan, em que ele afirmou que havia encontrado a solução para os problemas dos Estados Unidos com a Rússia: um bombardeio. Em See the Light, Feel the Heat, Air Force 1 coloca sobre o plano de fundo da “piada” sons rítmicos de funk explosivos e a cada momento que a voz de Reagan aparece novamente ela se torna mais distorcida até perder toda a “graça”. Vale a pena mencionar que os samples, além de serem usados para criticar também podem servir como uma forma de homenagem, como é o caso de No Sell Out de Keith LeBlanc. Nessa música, LeBlanc usa trechos de discursos de Malcolm X para descrever a vida dos afro-americanos nos Estados Unidos. Artistas como Malcolm McLaren e Bambaataa usavam samples diversos. McLaren lançou Duck Rock, um disco que misturava ritmos do rap, do Zulu africano, da música latina, e do Burundi com trechos de sons gravados no rádio e música caipira dos Apalaches. Já Bambaataa chegou a juntar o tema musical de A Pantera Cor de Rosa com trechos de músicas produzidas pelos Beatles, Monkees e os Rolling Stones com o objetivo de produzir uma batida que soasse como um legítimo funk negro. O propósito dos dois era acabar com os preconceitos das pessoas com os estilos musicais. Bambaataa, em uma entrevista para o historiador David Toop, explicou como gostava de surpreender as pessoas. Nas palavras do próprio Bambaataa:

“Eu gostava de surpreender pessoas que dizem ‘Eu não gosto de rock. Eu não gosto de música latina’. Eu pegava e colocava Mick Jagger - e você via negros e latinos arrasando, dançando como doidos. Eu dizia, ‘Pensei que você tinha dito que não gostava de rock’. Eles diziam: ‘Cai fora’. Eu dizia, ‘Bem, você acabou de dançar ao som dos Rolling Stones’. ‘Você deve estar de brincadeira!’[...] Eu gostava de surpreender pessoas que categorizam discos.91 (BAMBAATAA, 1984, tradução nossa).

Tate e Light (2019) mencionam outros artistas que merecem destaque, como Run- D.M.C, um grupo composto de três afro-americanos que juntavam rap e rock pesado. Esse grupo também influenciou o estilo de roupas que os rappers vestiam, além de ter sido responsável por trazer o rap para o mainstream através de aparições na MTV e de uma gravação com Steven Tyler, vocalista do Aerosmith, na gravadora Profile (GILLET, 2010) em uma época em que o hip-hop era desprezado pelas rádios. Outra gravadora importante, de acordo com Tate e Light (2019), foi Def Jam, que trabalhou com rappers importantes como LL Cool J, um dos

91 Em inglês: “I used to like to catch people who’d say ‘I don’t like rock. I don’t like Latin’. I’d throw on Mick Jagger - you’d see the blacks and the Spanish just throwing down, dancing crazy. I’d say, ‘I thought you said you didn’t like rock’. They’d say ‘Get out of here.’ I’d say, ‘Well, you just danced to The Rolling Stones’. ‘You’re kidding!’ [...] I’d like to catch people who categorize records.” 92

primeiros rappers a ter uma longeva carreira (COOPER, 2019); os Beastie Boys, um grupo de cantores brancos responsável por diversificar o público de rap e por popularizar samples digitais em músicas de rap; e Public Enemy, um grupo famoso por suas músicas com mensagens políticas sobre os afro-americanos influenciado por The Message. Vale ressaltar também o trabalho de rappers mulheres, como Queen Latifah e Salt n-Pepa, que trouxeram uma perspectiva feminina para um mercado, por vezes, marcado por letras machistas. Na época, a maioria dos artistas de rap eram nova-iorquinos, mas isso começou a mudar em 1989 com o trabalho de músicos de Los Angeles, em especial, o grupo N.W.A (Nigaz With Attitude) que lançou o álbum Straight Outta Compton. Posteriormente, alguns membros do grupo seguiram carreira solo, como Ice Cube, Eazy E e Dr. Dre, e popularizaram o rap da Costa Oeste que se fortaleceu nos anos 1990. As músicas desses artistas e de outros rappers do estado de Los Angeles, como Ice-T, Snoop Dogg, e músicos da Costa Leste, como Schooly D, e da Costa Oeste, a exemplo de Tupac Shakur, era caracterizada por letras que retratavam a vida violenta dentro da cidade, o que deu origem a um novo tipo de rap, o gangsta rap. Esse gênero fez com que o rap ficasse ainda mais conhecido, mas gerou controvérsia, defendido pelos rappers que o praticam como uma forma de soar “verdadeiro” e “real”, o gangsta rap é criticado por outros por apresentar repletas de violência e machismo. Segundo Sexton (1995), instituições fonográficas, como The Parents Music Resource Center, exigiram que letras de rap fossem censuradas. A esse respeito, Dyson (1996) faz uma importante ressalva quando afirma que as questões retratadas nas letras não são o problema, mas, sim, os problemas sociais que estão retratados nessas músicas. Nas palavras do autor “[e]nquanto o gangsta rap sofre duras críticas por uma série de doenças sociais, da violência urbana à má conduta sexual, as raízes de nossa miséria racial permanecem enterradas sob um discurso moralizante que é confuso e às vezes desonesto” (DYSON, 1996, p. 178). Com o sucesso do gangsta rap, segundo Tate e Light (2019), a gravadora de Los Angeles, Death Row Records, construiu sua reputação em torno de artistas como, Dr. Dre, Snoop Dogg e Tupac e, logo, entrou em confronto com a gravadora de Nova York, Bad Boy Records. Esse confronto se expandiu e englobou músicos da Costa Leste e Oeste até que atingiu proporções assustadoras culminando nos assassinatos ainda não resolvidos de Tupac, em 1996, e de Notorious B.I.G.92, em 1997. No final dos anos 1990, a Costa Leste voltou a ser proeminente com o grupo Wu-Tang Clan; que misturava rap com misticismo islâmico e artes marciais, e Fugees; que juntavam músicas populares e mensagens políticas e o rapper e dono

92 A canção Ten Crack Commandments de B.I.G. e seu assassinato servem de plano de fundo para a música Ten Duel Commandments em Hamilton. 93

da gravadora Bad Boy Records, Puff Daddy, que fez uma série de clipes musicais inovadores. Nessa época, o rap passou a ser parte do mainstream tendo alcance mundial e os rappers passaram a aparecer em vários comerciais e revistas. No século XXI, a indústria entrou em crise devido aos amplos downloads ilegais de música que também afetou o hip-hop. Apesar dessa crise, o rap passou a ser, cada vez mais, presente com os jovens, como exemplo do sucesso de boy bands, tais quais os Backstreet Boys e NSYNC, que usavam frequentemente os sons do hip-hop, R&B e da música gospel. Em 2000, houve outra mudança criativa, e o centro do hip-hop passou a ser o sul dos Estados Unidos, como representantes podemos listar OutKast, Juvenile e 8Ball. Outros rappers destacados por Tate e Light (2019) são Dr. Dre, que manteve sua influência e seus dois discípulos, 50 Cent que ganhou um disco de platina com Get Rich or Die Tryin' e Eminem, que ganhou o Oscar pela música Lose Yourself na trilha de 8 Mile (2002), um filme autobiográfico do artista. Com o passar do tempo, o hip-hop foi se tornando, cada vez mais, comercial até que, segundo Tate e Light (2019), ele se tornou apenas um fenômeno pop, perdendo sua força política e subversiva que passou a habitar o underground (Mos Def, Doom). A indústria sofria tanto que o rapper Nas lançou um álbum intitulado Hip Hop Is Dead. Provando que a afirmação de Nas era falsa, vários novos talentos começaram a emergir no sul americano, como Lil Wayne e T.I. A influência do hip-hop era tão grande que os rappers se tornaram estrelas da televisão ou do cinema, como Ice Cube, Queen Latifah e Ice-T. Fora das telas, talvez o maior exemplo de sucesso comercial tenha sido Jay-Z que se tornou presidente de uma gravadora, dono de uma linha de roupas, de um clube, além de ainda ter quebrado o recorde de Elvis na revista Billboard de maior número de álbuns por uma artista solo. Uma espécie de reapropriação, já que Elvis ficou famoso com passos de dança inventados, primeiramente, por afro-americanos. O rapper foi citado por Obama durante a sua campanha para presidente e, em The Blueprint 3, afirmou que se considera um dos motivos pelos quais o presidente foi eleito. Em 2004, um dos produtores de Jay-Z, Kanye West, se tornou uma das figuras centrais e controversas da cena do hip-hop com o álbum The College Dropout. Apesar do sucesso desses rappers, Tate e Light (2019) consideram que o hip-hop deste século é personificado na figura de M.I.A, nascida em Londres e criada no Sri Lanka, o que pode ter dado a rapper uma perspectiva mais global, ela referencia diversas fontes em suas letras altamente políticas. A artista alcançou grandes feitos. Seu álbum Kala, por exemplo, foi considerado o melhor álbum de 2007 pela Rolling Stone, e a revista Time a elegeu uma das 94

pessoas mais influentes do mundo. Tais feitos comprovam o quão longe o movimento do hip- hop veio.

4.2.3.2 Rap, Dialogismo e Carnavalização

Nesse subtópico, iremos discutir como o rap pode ser dialogicamente carnavalizado. Para isso é importante, primeiramente, relembrar a definição de rap como “discurso rítmico ou rimado93” (TATE; LIGHT, 2019, tradução nossa). Como podemos ver, a própria definição do gênero musical significa “discurso”, sinônimo de “conversa” e “diálogo”, o que já estabelece uma conexão forte com o conceito de dialogismo bakhtiniano. De fato, Stam (1992) considera que o rap “pode ser considerado uma esperta versão “de rua” das teorias bakhtinianas sobre o dialogismo” (STAM, 1992, p. 75). O teórico afirma ainda que esse dialogismo é inerente ao gênero porque ele é baseado em uma “chamada e resposta”, demandando sempre uma contrapalavra do outro. Stam (1992) também considera que o rap pode ser percebido como um integrante dos gêneros do cotidiano propostos por Bakhtin, já que, como já discutimos anteriormente, dentro do rap, existem outras subdivisões, como “raps de ostentação, insultos, raps de notícias, raps de mensagens [...]” (HEBDIGE, 2004, p. 223, tradução nossa, grifos nossos). Outro ponto levantado pelo autor é o do uso de samples, ou seja, trecho de algum produto em uma música de rap, o que se relaciona com o conceito de dialogismo. Os rappers usam esses trechos para concordar com o que está sendo dito, como no caso de LeBlanc, que usou discursos de Malcolm X, ou para se contrapor ou polemizar a mensagem “original”, como no caso de Air Force 1 que trouxe uma “piada” de Ronald Reagan. Em ambos os casos, o uso desses trechos tenha ligação com o primeiro e o terceiro conceito de dialogismo que exploramos na subseção sobre o dialogismo, pois o rapper relaciona o seu enunciado com um enunciado proferido anteriormente, respondendo-o e trazer explicitamente a voz do outro. Além das questões dialógicas no uso de samples, consideramos que também há uma ligação com o conceito de heterodiscurso, pois o rapper traz diretamente outros discursos e outros horizontes socioideológicos. Defendemos, além disso, que o uso de samples possui também uma ligação com o conceito de carnavalização, visto que ele burla a questão do direito autoral, mistura estilos, vozes e gêneros, em um jogo de opostos (mésalliances) que não “deveriam” combinar, mas, de alguma forma, combinam e se harmonizam musicalmente.

93 Em inglês: “rhythmic and/or rhyming speech”. Fonte: . Acesso em set. 2019. 95

Wheeler (1991) aponta mais uma característica do corpo grotesco no rap, o modo como o corpo é descrito nas músicas, em que o rapper não tem medo de mostrar imperfeições e assimetrias, apresentando uma versão menos idealizada: “[c]oloca-se ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior [...] através de orifícios, protuberâncias, [...] tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz” (BAKHTIN, 2010b, p. 23). Como exemplo, a autora menciona The Humpty Dance de Digital Underground, em que o rapper se apresenta como a figura cômica de Humpty Dumpty, um personagem de rima infantil94 popularmente representado como um grande ovo. Nela, o rapper apresenta um corpo grotesco: “Oh, sim, garotas/ Eu estou sendo sincero/ Porque em um 69 meu nariz Humpty/ Vai fazer cócegas no seu traseiro/ Meu nariz é grande, uh-uh/ Eu não tenho vergonha/ Grande como um picles/ Eu ainda estou fazendo dinheiro95 [...]”. No entanto, a autora ressalta que o rap apresenta também imagens grotescas com sentido negativo, como na música Shut Up, Be Happy de Ice-T, em que o rapper apresenta uma cena extremamente gráfica de um personagem chamado Evil E que usa uma lanterna durante o sexo com uma mulher. Wheeler (1991) teoriza que esse aspecto se tornou mais forte conforme o rap foi se tornando uma commodity consumida de forma contraditória: ao mesmo tempo em que se condena as letras de músicas machistas, elas são cada vez mais consumidas. Uma resposta à altura foi dada por rappers mulheres, como Queen Latifah em Ladies First: “Uma mulher pode dar luz a você, quebrá-lo, levá-lo/ Agora é hora de rimar, você sabe como é/ Uma irmã suficiente para fazer você gritar e gritar96”. O fato de as letras, geralmente, descreverem apenas o corpo grotesco do homem pode se dever ao fato de que o corpo masculino corre ainda mais perigo de ser morto violentamente. Desse modo, para a autora, o rap estabelece uma polêmica velada contra os perigos da vida urbana, numa espécie de ode de superação carnavalizada do medo. Sobre esta forma carnavalesca de resistir ao medo, Bakhtin descreve que: “[a] sensação aguda da vitória conseguida sobre o medo é um elemento primordial do riso da Idade Média” (BAKHTIN, 2010a, p. 79). Ao enfrentar ou ter enfrentado a morte nos olhos, os rappers discutem o corpo jovem porque, talvez, em breve ele já não esteja respirando. Segundo Wheeler (1991), é comum

94 “Humpty Dumpty num muro se aboletou, Humpty Dumpty lá de cima despencou. Todos os cavalos e os homens do Rei a arfar. Não conseguiram de novo lá para cima o içar”. Fonte: . Acesso em set. 2019. 95 Em inglês: “Oh yes, ladies, I'm really bein' sincere 'Cause in a 69 my humpty nose will tickle ya rear. My nose is big, uh-uh I'm not ashamed Big like a pickle, I'm still gettin' paid”. 96 Em inglês: “A woman can bare you, break you, take you/ Now it's time to rhyme/ Can you relate to/ A sister dope enough to make you holler and scream?” 96

que um rapper mais velho olhe para seu álbum de fotografias e comente os amigos que perdeu para as drogas, a violência ou o crime. De certo modo, o rap age como um “porto seguro” para que os jovens não entrem no crime ou mesmo para acalmar os nervos em uma festa. Como exemplo, a autora menciona um comentário de Grandmaster Flash que afirmou que as integrantes do Cookie Crew usavam seus poderes vocais para manter a paz durante um show. E esse espaço é o espaço negro, como o rapper Kurtis Blow afirma:

[c]omo todas as artes do hip-hop, o rap não é apenas uma moda, é algo mais importante. É um modo para as pessoas do gueto se fazem ouvidas. [Foram] eles que inventaram e manterão acontecendo. Todo mundo pode se apropriar das nossas rimas, nossa moda, nossos passos, nosso estilo, mas eles ainda têm que vir para a área residencial para descobrir o que realmente está acontecendo.97 (BLOW, 1985, tradução nossa).

Mostrar a vida no gueto é algo típico do rap e caracteriza o que Wheeler (1991) chama de “má atitude”, um dos pontos centrais da ideologia do gueto. De acordo com Wheeler (1991), “má atitude” significa se recusar “[...] a jogar pelas regras da cultura branca, do decoro da classe média, e da lei98” (WHEELER, 1991, p. 198). Refletindo sobre as palavras da estudiosa, podemos considerar o rap como uma forma de carnaval em que os ideais da cultura oficial são subvertidos e rebaixados enquanto os ideais da cultura não-oficial são coroados. É importante ressaltar que o conceito de “má atitude” proposto pela autora não é o de uma glorificação da violência, mas a de um posicionamento crítico em relação ao lugar imposto pela sociedade para os afro-americanos. Essa representatividade do rap põe em foco um grupo que havia sido marginalizado e esquecido. O rapper Carlton Douglas Ridenhour, membro do grupo Public Enemy, discute como o rap atua como um veículo de comunicação: “Eu sei que tipo de carro ele dirige, sei que a polícia pega pesado com ele, sei que têm árvores na área, você entende o que eu estou dizendo? É como a CNN [Cable News Network] que os jovens negros nunca tiveram99” (RIDENHOUR, 1990, tradução nossa). A estudiosa, ao comentar esse ponto, afirma que ouvir rap significa ter consciência da existência de “[...] duas Américas: uma enriquecendo, a outra sendo despejada. Esmagadoramente, os rostos nos abrigos são negros e pardos. Não é à toa que

97 Em inglês: “[l]ike all hip hop arts, rap is not just a fad; it's something more important. It's a way for the people of the guetto to make themselves heard. They invented and they will keep going. Everyone else can bite our rhymes, our dress, our steps, our style, but they still have to come uptown to find out what's really happening”. 98 Em inglês: “[...]to play by the rules of white culture, middle-class decorum, and the law”. 99 Em inglês: “I know what kind of car he drives, I know the police give him a hard time, I know there’s trees in the area, you know what I’m sayin’? It’s like the CNN [Cable News Network] that black kids never had”. 97

o rap emite um ruído raivoso quando encara as perdas das décadas100” (WHEELER, 1991, p. 195). Podemos perceber, então, que os jovens negros não se reconhecem nas notícias da TV, exceto talvez quando o assunto é violência e gangues, o que a mídia sempre relaciona com os afro-americanos, como Public Enemy canta em Fear of a Black Planet: “[t]ratam-me como se eu tivesse uma arma/ Tudo o que tenho são genes e cromossomos [...]101”. Desta forma, a realidade de uma pessoa afro-americana não está presente na TV mainstream da CNN, de modo que o rap atua como esse veículo de comunicação. Por esse motivo, é possível considerar o rap como um exemplo da categoria de excentricidade, que traz ao spotlight o que havia sido excluído do centro. Outro ponto relevante apontado por Wheeler (1991) é a similaridade do DJ com os escritores analisados em PPD, afirmando que, em ambos os casos, os artistas juntam ideias e pontos de vista que estavam separados uns dos outros. O que também podemos considerar como exemplo da categoria de messáliance da cosmovisão carnavalesca. Para a autora, o rap poderia ser considerado por Bakhtin como um dos melhores tipos de arte porque é dialógico e apresenta várias vozes sociais, visto que um DJ tece um diálogo literalmente misturando seu enunciado com o enunciado dos demais. É interessante ressaltar que Wheeler (1991) considera que o dialogismo não está presente apenas no rap de forma composicional, ou seja, a presença explícita de outras vozes, mas também se faz presente no relacionamento entre o rap e a mídia mainstream. Para reforçar esse argumento, a teórica afirma que “[e]mbora os poderes constituídos finjam falar em um monólogo ininterrupto, vozes oficiais e não-oficiais se interpelam continuamente102” (WHEELER, 1991, p. 196, tradução nossa). Podemos relacionar os poderes constituídos mencionados por Wheeler (1991) com o conceito bakhtiniano de força centrípeta, que fecha o espaço para outras vozes, enquanto o rap, assim como a carnavalização, abre espaço para outros discursos atuando como uma força centrífuga que procura descentralizar as vozes hegemônicas. A teórica também defende que o rap, assim como o Signifying Monkey103, possui uma “estrutura ternária” que depende de um interlocutor e de dois ouvintes. Apesar de o interlocutor, por vezes, falar diretamente com um falante chamado por “você”, ele/ela, também

100 Em inglês: “[...] two Americas: one getting rich, the other getting evicted. Overwhelmingly, the faces in the homeless shelters are black and brown. No wonder rap makes an angry noise when facing the decade’s losses.” 101 Em inglês: “Treat me like I have a gun/ All I got is genes and chromosomes”. Fonte: . Acesso em set. 2019. 102 Em inglês: “[a]lthough the powers that be pretend to speak in a uninterrupted monologue, unofficial and official voices call back and forth to each other continuously”. 103 Signifying Monkey é um tipo de toast sobre um macaco que, através de um inteligente jogo de palavras, engana seu arqui-inimigo, o leão. Fonte: Acesso em set. 2019. 98

estão se referindo, em uma polêmica velada, a um outro falante imaginário, um terceiro. Podemos relacionar esse terceiro com o conceito de supradestinatário de Bakhtin (2003), no qual o enunciador “propõe, com maior ou menor consciência, um supradestinatário superior (o terceiro), cuja compreensão responsiva absolutamente justa ele pressupõe quer na distância metafísica, quer no distante tempo histórico” (BAKHTIN, 2003, p. 333). Wheeler (1991) afirma ainda que, em várias músicas de rap, estão presentes tanto a polêmica velada quanto as outras quatro formas do discurso bivocal apontadas por Bakhtin (2010b), que são “polêmica interna velada”, “autobiografia e confissão polemicamente refletidas”, “qualquer discurso que visa ao discurso do outro”; “réplica do diálogo” e “diálogo velado” (BAKHTIN, 2010b, p. 229). Além da relação do rap com o dialogismo e o discurso bivocal, Wheeler (1991) traça também o paralelo entre esse gênero e a carnavalização ao defender que o rap, assim como o carnaval bakhtiniano, “descreve uma resistência criativa das pessoas oprimidas, uma cultura não-oficial” (WHEELER, 1991, p. 197, tradução nossa). Como exemplo, a autora cita um trecho da letra Fight the Power de Public Enemy. Nessa música, Public Enemy discute os heróis “oficiais”, como Elvis Presley e John Wayne, antes de afirmar que: “[a] maioria dos meus heróis não aparecem em nenhuma estampa104”. O dialogismo também é apontado por Wheeler (1991) na formação das crews de rap e nas batalhas de rap. As crews são grupos de amigos que fazem rap juntos e, por isso, a criação de letras é um esforço colaborativo e dialógico, como nos grupos Public Enemy, Run- D.M.C e Wu-Tang Clan. Já nas batalhas de rap, os rappers olham-se diretamente nos olhos enquanto tentam compor letras melhores do que a de seus adversários. Nesse caso, a autora afirma que:

o rapper parece criar através da fala o(a) seu(sua) parceiro(a). Ninguém pode alcançar nenhuma resposta sozinho(a) [...]. Se recusando a reconhecer uma narrativa indiferente, o falante está sempre tentando persuadir, inspirar, seduzir ou insultar. Não importa se o rapper acredita em sua própria enaltação; a questão é: será que o ouvinte acredita?105 (WHEELER, 1991, p. 197, tradução nossa).

Em síntese, nessa seção, comentamos uma breve biografia de Miranda, seus dois musicais, os gêneros musicais que mais se destacam em Hamilton e a relação desses gêneros com a carnavalização e o dialogismo. Em seguida, trataremos de nossa abordagem metodológica para, em seguida, apresentarmos nossa análise.

104 Em inglês: “[m]ost o my heroes don’t appear on no stamps”. 105 Em inglês “the rapper seems to speak his or her partner into being. Neither can reach any answers by themselves [...] Refusing to acknowledge indifferent narrative, the speaker is always trying to persuade, inspire, seduce,”. 99

5 THE WORLD UPSIDE DOWN106: UMA ANÁLISE DA COSMOVISÃO CARNAVALESCA EM HAMILTON: AN AMERICAN MUSICAL

“Um ouvido sensível sempre adivinha as repercussões, mesmo as mais distantes, da cosmovisão carnavalesca”. (BAKHTIN, 2010b, p.122).

Essa macroseção tem um duplo propósito: descrever os procedimentos metodológicos adotados em nossa pesquisa, para depois, analisar as performances teatrais e musicais de Hamilton que compõe o nosso corpus a partir da teoria bakhtiniana de carnavalização. Para tal, dividiremos essa macroseção em duas seções mais extensas, formadas pelos seus seguintes subtópicos: os aspectos metodológicos de pesquisa e, a partir disso, a análise do corpus que escolhemos para examinar. Começaremos, primeiro, com a seção metodológica e, em seguida, teremos a de análise em que apontaremos a presença das categorias da cosmovisão carnavalesca presentes no musical que estabelecem determinados efeitos de sentido ao espetáculo.

5.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA

5.1.2 Tipo de pesquisa

O presente estudo tem natureza aplicada, a qual, segundo Cavalcanti (1990), parte de um problema identificado na prática e que contribui, direta ou indiretamente, para os campos teóricos contemplados. Em relação à forma pela qual o problema é abordado, essa pesquisa pode ser classificada como qualitativa, visto que os dados foram analisados sem o uso de técnicas estatísticas. Quanto aos seus objetivos, essa pesquisa pode ser considerada exploratória, já que, de acordo com Gil (2002), as pesquisas exploratórias aumentam a proximidade em relação ao problema abordado para que este se torne mais definido ou para facilitar a construção de hipóteses sobre o problema. Na subseção seguinte, comentaremos o processo de criação da obra, fazendo uma breve sinopse dos dois atos da peça e mostrando qual será nosso recorte nessa pesquisa.

106 Em português: “O Mundo de Cabeça Pra Baixo”. 100

5.1.3 Constituição do corpus da pesquisa

De acordo com Miranda e McCarter (2016), em 12 de maio de 2009, Lin-Manuel Miranda foi convidado para apresentar uma música de In The Heights, seu primeiro musical, durante a Evening of Poetry, Music and the Spoken Word da Casa Branca. No lugar de apresentar In The Heights, Miranda tomou o microfone e explicou que estava trabalhando em um concept album (The Hamilton Mixtape) sobre a vida de alguém que, de acordo com ele, era a representação do hip-hop, o Secretário do Tesouro, Alexander Hamilton. Miranda então cantou uma primeira versão de Alexander Hamilton107. Na plateia, estavam o então presidente Barack Obama e a primeira-dama Michelle Obama; os dois riram durante a performance, assim como a maioria das pessoas que estavam lá. Parecia inacreditável que a história de uma figura política séria, como Alexander, pai do sistema financeiro americano, poderia ser cantada através de hip-hop e do rap. Ao final da música, Obama foi o primeiro a se levantar para ovacionar Miranda. Segundo os autores, quatro anos depois, em 2013, Miranda realizou um workshop, ainda sob o título de The Hamilton Mixtape no Vassar Reading Festival, com o objetivo de desenvolver o álbum em uma peça musical. O workshop teve a direção de Thomas Kail, e a direção musical de Alex Lacamoire. Na época, The Hamilton Mixtape contava com o primeiro ato do musical e três músicas do segundo ato. Em agosto de 2015, houve uma mudança no título, e o musical estreou no Public Theater, um teatro off-Broadway, com o nome Hamilton: An American Musical. A obra teve direção de Kail, direção musical de Lacamoire, letras e melodias de Miranda, coreografia de Andy Blankenbuehler e figurino de Paul Tazewell. Depois de uma curta temporada off- Broadway, Hamilton foi um sucesso nas bilheterias e passou para os palcos da Broadway em 20 de janeiro de 2015. No mesmo ano, o musical conquistou 11 Prêmios Tony, o maior prêmio do teatro. A partir de setembro de 2015, foi lançado um álbum com todas as 46 músicas da peça na National Public Radio. Em seguida, as canções foram disponibilizadas em versão digital através do Spotify e em versão física, conquistando o Grammy de Melhor Álbum Musical. Vale ressaltar que, como o musical é sung through (uma peça musical completamente

107 Disponível em: . Acesso em set. 2019. 101

cantada108), a disponibilização das músicas digitalmente possibilitou que pessoas que não teriam acesso ao musical pudessem acompanhá-lo. Após o sucesso da obra, foram lançados os álbuns The Hamilton Mixtape v. 1 e v. 2, que trouxeram remixes e covers das músicas performadas por vários artistas, como Kelly Clarkson, Dessa, The Roots, Snow That Product e Usher; além de releituras de músicas, como uma versão de Say No To This intitulada Say Yes To This e canções cortadas do musical. Fora disso, também foi lançado The Hamilton Instrumentals, um álbum formado por versões instrumentais das músicas. Após termos explicado o processo que constituiu o musical, comentaremos, rapidamente, informações técnicas relativas à produção de nosso corpus, bem como explicaremos os acontecimentos do primeiro e do segundo ato da peça para dar maior clareza do material que compõe o nosso corpus de análise. O musical tem mais de duas horas de duração e conta com um interlúdio entre o primeiro e o segundo ato, composto por 23 músicas cada, o que totaliza 46 músicas. Agora, apresentaremos uma breve sinopse dos dois atos que compõem o espetáculo. No primeiro ato, Alexander chega em Nova York, conhece seu primeiro amigo e, posterior, arqui-inimigo, Aaron Burr e os jovens Laffayette, Mulligan e Laurens. Além disso, nesse período, há a eclosão da Guerra da Independência Americana, que faz com que Alexander se aliste no exército, onde se torna o braço direito do general Washington, que lidera as tropas norte-americanas. Durante a guerra, em um baile, Alexander conhece as irmãs Schuyler, Angelica, Peggy e Eliza, sendo esta última com quem ele se casa. Em Yorktown, o exército americano consegue cercar as tropas britânicas e Washington oferece a Alexander a liderança de um destacamento militar. Os Estados Unidos vencem a guerra, Alexander se forma em direito e ajuda a moldar a nação. No segundo ato, Thomas Jefferson retorna da França e é indicado a Secretário do Estado pelo presidente Washington. Rapidamente, Jefferson e Alexander se tornam inimigos políticos. Preocupado com a falta de apoio no congresso, Alexander permanece em Nova York, enquanto Eliza passa as férias na casa de seu pai. Sozinho em casa, ele conhece Maria Reynolds e começa a ter um caso com ela. James Reynolds, marido de Maria, descobre o caso e começa a extorquir Alexander. Depois de servir dois mandatos, Washington renuncia. John Adams é eleito e ele despede Alexander. Jefferson, Burr e Madison descobrem que Alexander pagou

108 A única exceção acontece quando Eliza Hamilton lê uma carta sobre a morte de John Laurens. Nenhum dos atores canta durante a leitura, o que serve para mostrar o impacto emocional da morte do melhor amigo de Alexander. 102

James Reynolds e o acusam de desviar dinheiro. Alexander se defende e conta a verdade. Sem confiar que seus inimigos não vão usar o caso contra ele, Alexander publica um panfleto detalhando o que aconteceu. O filho de Alexander e Eliza, Philip, entra em um duelo para proteger a honra do pai e é assassinado. Sua morte reaproxima Eliza e Alexander. Durante a eleição de 1800, Alexander apoia Jefferson; Burr, furioso, desafia Alexander para um duelo. Alexander decide atirar para o alto e acaba sendo baleado por Burr, morrendo logo depois. Eliza mantém o legado do marido e funda um orfanato. Tendo comentado sobre Hamilton, a seguir, explicaremos o recorte do corpus de nossa pesquisa e delimitaremos as categorias de utilizadas para a análise deste corpus discursivo.

5.1.4 Delimitação do corpus e categorias de análise

Como explicamos no tópico anterior, o musical Hamilton é composto de dois atos formados por 23 músicas cada um, o que resulta em um espetáculo com quase três horas de duração. Infelizmente, por questões de tempo, não teríamos, nesta pesquisa, como analisar os dois atos da peça e, por isso, decidimos nos concentrar no primeiro ato. Esse recorte foi feito com a suposição de que a temática da revolução, presente apenas no primeiro ato, possa fazer com que as músicas apresentem uma maior carnavalização. Neste ato, há uma maior presença do gênero musical hip-hop, que em Hamilton é, geralmente, performado em grupos, retratando a camaradagem dos personagens que lutam e falam como uma unidade durante a Revolução Americana, podendo apresentar então mais familiarização. Ademais, também consideramos que o primeiro ato por mais distante da história oficial, pode levar a uma subversão à ordem e, assim, apresentar mais elementos do discurso carnavalizado. Dentro do primeiro ato, fizemos um segundo recorte e escolhemos trabalhar com a performance da canção Alexander Hamilton, primeira música do primeiro ato. Esse recorte, foi feito por dois motivos. O primeiro motivo se deve à importância dessa canção presente no primeiro ato. Nele, Alexander Hamilton exerce o papel de apresentar a narrativa, contando, de forma resumida, a vida de Alexander até sua morte. Além disso, a canção introduz o principal gênero musical usado em todo o musical, o hip-hop e apresenta os principais personagens, justamente com seus papéis na vida de Alexander. O segundo motivo se dá em razão da disponibilidade do material que, tendo estreado em 2015, é um musical relativamente novo, e, por isso, não existem gravações oficiais da peça completa disponíveis em DVD e nem ainda uma versão fílmica. Os direitos de reprodução do musical também não estão disponíveis para 103

montagens amadoras. Na verdade, a canção que escolhemos foi apresentada durante o Grammy, no Richard Rodgers Theater, com o mesmo o elenco, figurino, letras e coreografia das apresentações na Broadway. Apesar desse recorte, faremos comentários de outras partes do musical para que possamos ter uma imagem da obra como um todo. Escolhemos, então, nos concentrar na performance dos atores do musical em geral, e não apenas nas letras das canções. Dessa forma, iremos considerar, além do texto explícito nas canções, o discurso em aspectos não-verbais (elenco, gênero musical, coreografia), ao mesmo tempo considerando as histórias e significações culturais de tais gêneros. Faremos isso por acreditarmos que cada um desses elementos é parte da linguagem e, portanto, influencia o discurso no estabelecimento dos sentidos. Para uma melhor visualização da canção que escolhemos, Alexander Hamilton, transcrevemos abaixo a letra completa.

Quadro 1 – Letra de Alexander Hamilton (continua) How does a bastard, orphan, son of a whore Como um bastardo, órfão, filho de uma and a prostituta e um Scotsman, dropped in the middle of a Escocês, largado no meio de um Forgotten spot in the Caribbean by Ponto esquecido no Caribe pelo providence destino Impoverished, in squalor Empobrecido, na miséria Grow up to be a hero and a scholar? Se tornou um herói e um estudioso?

The ten-dollar founding father without a O Pai Fundador na nota de dez dólares sem father um pai Got a lot farther by working a lot harder Chegou mais longe por se empenhar mais By being a lot smarter Por ser muito mais inteligente By being a self-starter Por ser autodidata By fourteen, they placed him in charge of a Aos quatorze anos, o botaram no comando Trading charter de uma Firma comercial And every day while slaves were being slaughtered and carted E, todos os dias, enquanto escravos estavam Away across the waves, he struggled and sendo massacrados e transportados kept his guard up Para longe através do mar, ele lutou e Inside, he was longing for something to be a manteve sua guarda part of Por dentro, ele desejava ser parte de algo The brother was ready to beg, steal, borrow, O cara estava pronto para mendigar, roubar, or barter pedir ou negociar Then a hurricane came, and devastation Então veio um furacão, e devastação reinou reigned Ele viu seu futuro escorrer, escorrer ralo Our man saw his future drip, dripping down abaixo

104

Quadro 1 – Letra de Alexander Hamilton (continua) the drain Pôs um lápis atrás da orelha, que se Put a pencil to his temple, connected it to conectou ao seu cérebro And he wrote his first refrain, a testament to E escreveu seu primeiro refrão, uma prova his pain da sua dor

Well, the word got around, they said: “This Bem, a notícia se espalhou, e disseram: kid is insane, man” “este garoto é maluco, cara” Took up a collection just to send him to the Fizeram uma vaquinha para mandá-lo para o mainland continente Get your education, don’t forget from Eduque-se, não se esqueça de onde você whence you came, and veio e The world is gonna know your name. O mundo saberá o seu nome. Qual é o seu What’s your name, man? nome, cara?

Alexander Hamilton Alexander Hamilton My name is Alexander Hamilton Meu nome é Alexander Hamilton And there’s a million things I haven’t done E há um milhão de coisas que eu ainda não But just you wait, just you wait fiz Mas apenas espere, apenas espere When he was ten his father split, full of it, debt-ridden Quando ele tinha dez anos, seu pai foi Two years later, see Alex and his mother embora, de saco cheio, cheio de dívidas bed-ridden Dois anos depois, Alex e sua mãe ficaram Half-dead, sittin' in their own sick, the scent de cama thick Quase mortos, muito adoecidos, o cheiro forte And Alex got better, but his mother went quick E Alex melhorou, mas sua mãe se foi rapidamente Moved in with a cousin, the cousin committed suicide Se mudou para a casa de um primo, o primo Left him with nothin’ but ruined pride, cometeu suicídio something new inside Não deixando-o nada exceto orgulho ferido, A voice saying algo novo dentro dele Uma voz dizendo “You gotta fend for yourself” (“Alex, you gotta fend for yourself”) “Você tem que se virar” (“Alex, você tem que se virar”) He started retreatin’ and readin’ every treatise on the shelf Ele começou a se isolar e a ler todos os tratados na prateleira There would have been nothin’ left to do For someone less astute Não teria sobrado nada para fazer He woulda been dead or destitute Para alguém menos astuto Without a cent of restitution Ele teria acabado morto ou desamparado Started workin’, clerkin’ for his late 105

Quadro 1 – Letra de Alexander Hamilton (continua) mother’s landlord Sem um centavo de reembolso Tradin’ sugar cane and rum and all the Começou a trabalhar, sendo escrivão do things he can’t afford senhorio de sua falecida mãe Scammin’ Vendendo açúcar, cana, rum e todas as (Scammin’) coisas pelas quais ele não pode pagar

For every book he can get his hands on Barganhando Plannin’ (Barganhando) (Plannin’) por cada livro em que consegue por as mãos for the future see him now as he stands on Planejando The bow of a ship headed for a new land (Planejando) In New York you can be a new man O futuro, veja-o agora enquanto ele se põe In New York you can de pé Be a new man Na proa de um navio dirigido à nova terra Em Nova York, você pode ser um novo (Just you wait) homem In New York you can Be a new man Em Nova York, você pode Ser um novo homem (Just you wait) In New York you can be a new man (Apenas espere) In New York Em Nova York, você pode New York Ser um novo homem Just you wait! (Apenas espere) Alexander Hamilton Em Nova York, você pode ser um novo (Alexander Hamilton) homem We are waiting in the wings for you Em Nova York (Waiting in the wings for you) Nova York You could never back down Apenas espere! You never learned to take your time! Alexander Hamilton Oh, Alexander Hamilton (Alexander Hamilton) (Alexander Hamilton) Estamos esperando nos bastidores por você When America sings for you (Esperando nos bastidores por você) Will they know what you overcame? Você nunca conseguiu deixar nada de lado Você nunca aprendeu a esperar! Will they know you rewrote the game? The world will never be the same, oh Oh, Alexander Hamilton (Alexander Hamilton) The ship is in the harbor now Quando a América cantar para você See if you can spot him Eles saberão pelo que você passou? (Just you wait) Eles saberão que você virou o jogo? O mundo jamais será o mesmo, oh

106

Quadro 1 – Letra de Alexander Hamilton (conclusão) Alexander Hamilton O navio está no porto agora (Alexander Hamilton) Veja se consegue achá-lo We are waiting in the wings for you (Apenas espere!) (Waiting in the wings for you) You could never back down Alexander Hamilton You never learned to take your time! (Alexander Hamilton) Estamos esperando você nos bastidores Oh, Alexander Hamilton (Esperando nos bastidores por você) (Alexander Hamilton) Você nunca conseguiu deixar nada de lado When America sings for you Você nunca aprendeu a esperar! Will they know what you overcame? Oh, Alexander Hamilton Will they know you rewrote the game? (Alexander Hamilton) The world will never be the same, oh Quando a América cantar para você Eles saberão pelo que você passou? The ship is in the harbor now See if you can spot him Eles saberão que você virou o jogo? O mundo jamais será o mesmo, oh (Just you wait) Another immigrant O navio está no porto agora Comin’ up from the bottom Veja se consegue achá-lo

(Just you wait) (Apenas espere) His enemies destroyed his rep Outro imigrante America forgot him! Vindo de baixo

We fought with him (Apenas espere) Me? I died for him Seus inimigos destruíram sua reputação Me? I trusted him A América se esqueceu dele Me? I loved him And me? I’m the damn fool that shot him Nós lutamos com ele Eu? Eu morri por ele There’s a million things I haven’t done Eu? Eu confiei nele Eu? Eu o amava But just you wait! E eu? Eu sou o imbecil que atirou nele

What’s your name, man? Há um milhão de coisas que eu ainda não fiz Alexander Hamilton! Mas apenas espere!

Qual é o seu nome, cara?

Alexander Hamilton! Fonte: Elaborado pela autora

107

Após termos exposto o recorte no material de análise da presente pesquisa, demarcaremos, em seguida, as categorias que utilizaremos no tratamento do corpus. Esse estudo se guiará pelas categorias da cosmovisão carnavalesca que analisaremos no elenco, na letra e na coreografia de Hamilton. As categorias foram apontadas por Bakhtin (2010b) e são a familiarização, a excentricidade, as mésalliances carnavalescas e a profanação, que já comentamos na segunda seção da dissertação. A seguir, elencaremos os procedimentos de análise usados em nossa pesquisa.

5.1.5 Procedimentos de análise do corpus da pesquisa

Primeiro, copilamos a letras em inglês de Alexander Hamilton e a das outras músicas que mencionamos. Essas letras foram retiradas do site Terra e estão disponíveis em: . Em seguida, traduzimos a letra do inglês para o português. Para nossa análise dos aspectos não-verbais, tiramos prints da coreografia de vídeos disponíveis na internet. Além disso, utilizamos trechos de Bakhtin (2010a; 2010b) para embasar nossa análise juntamente com para-textos retirados do livro Hamilton: The Revolution, escrito por Miranda e McCarter; entrevistas com os atores, dançarinos e com o compositor/escritor das músicas e o com coreógrafo. Feitas essas considerações em relação aos procedimentos metodológicos, trataremos, na próxima macrosseção, da análise do nosso corpus efetivamente.

108

5.2 ANÁLISE DOS ELEMENTOS DA COSMOVISÃO CARNAVALESCA DE HAMILTON: AN AMERICAN MUSICAL

Nessa seção, iremos analisar, por meio das categorias da cosmovisão carnavalesca, a saber: a familiarização, a excentricidade, as mésalliances carnavalescas e a profanação, a performance da música Alexander Hamilton. Durante nossa análise, nos concentraremos nos personagens que formam o elenco do musical, na letra das canções, nos ritmos musicais e também na coreografia. Iniciaremos nossa análise com a familiarização de acordo com a ordem em que Bakhtin (2010b) apresentou as categorias da cosmovisão carnavalesca.

5.2.1 A familiarização em Hamilton

Como discutimos em nossa subseção sobre a carnavalização, o termo familiarização ou contato familiar entre os homens nomeia o processo de maior aproximação entre os homens. Nesse fenômeno, as pessoas se relacionam de maneira franca e em pé de igualdade durante o carnaval, cujo objetivo é quebrar as distâncias hierárquicas próprias do mundo oficial marcado pela diferença entre as classes sociais. Através dessa categoria, iremos responder à nossa primeira pergunta específica “Como são construídas as zonas de contato familiar em Hamilton: An American Musical?”. Começaremos, então, analisando a familiarização presente no elenco de personagens que compõem o musical sobre a história norte-americana.

5.2.1.1 A familiarização no elenco

Acreditamos que o elenco de afro-americanos e latinos em Hamilton cria uma realidade às avessas que se distancia da época antiga e, assim, se aproxima da nossa. Essa aproximação foi ressaltada por Miranda em uma entrevista ao The Atlantic, em que ele definiu Hamilton como “[...] uma história da América de antes, contada pela América atual109” (MIRANDA, 2015). Ao aproximar as distantes figuras históricas, Hamilton estabelece uma zona de contato familiar que quebra as barreiras históricas e hierárquicas, propondo uma nova ordem mundial, mesmo que essa seja utópica e idealizada. Nas palavras de Miranda e McCarter (2016),

109 Em inglês: “[...] a story about America then, told by America now” Disponível em: . Acesso em set. 2019. 109

o musical representa uma cidade de Nova York que não pertence nem a 1776 e nem a 2015, mas trata-se de “[...] uma versão idealizada dela mesma, independente de tempo, onde pessoas de muitas raças e backgrounds dançam juntas110 (MIRANDA; MCCARTER, 2016, p. 40, tradução nossa). Desse modo, Hamilton atua como uma espécie de carnaval, criando uma segunda vida para o público, “o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade [...]” (BAKHTIN, 2010a, p. 8). Reino que subverte a ordem histórica da América Revolucionária, em que apenas pessoas brancas teriam direitos e participação política, propondo, assim, uma realidade em que todos experienciam a liberdade. Em seguida, veremos como a familiarização também está presente nas canções do musical que analisaremos através do nosso recorte da música Alexander Hamilton. Além disso, também comentaremos algumas outras canções para mostrar que esses pontos se aplicam ao musical como um todo.

5.2.1.2 A familiarização na canção

Antes de iniciarmos nossa análise da performance dos atores com a canção Alexander Hamilton, é importante apresentarmos um breve resumo sobre o que se passa nessa cena. A canção Alexander Hamilton é narrada por Aaron Burr, primeiro amigo e, posterior, arqui-inimigo de Alexander e de outros personagens que fizeram parte da vida de Alexander, tais quais, Washington, Eliza, Angelica e Laurens. Nessa música, ficamos sabendo dos eventos trágicos que marcaram a vida do protagonista, como o abandono do pai, a morte da mãe, o suicídio do primo e a autoria de quem o matou. Após essa breve contextualização da cena, vamos agora analisar alguns trechos da letra da canção mostrando como a familiarização constrói determinados efeitos de sentido na construção da lógica carnavalesca no musical.

110 Em inglês: “[...] some idealized version of itself, independent of time, where people of many races and backgrounds dance together”. 110

Quadro 2 - Trecho 1 de Alexander Hamilton

[Burr] How does a bastard, orphan, son of a [Burr] Como um bastardo, órfão, filho de whore and a uma prostituta e um Scotsman, dropped in the middle of a Escocês, largado no meio de um Forgotten spot in the Caribbean by Ponto esquecido no Caribe pelo providence destino Impoverished, in squalor Empobrecido, na miséria Grow up to be a hero and a scholar? Se tornou um herói e um estudioso?

Fonte: Elaborado pela autora

Podemos ver que, logo nos versos iniciais de Alexander Hamilton expostos acima, Burr utiliza uma linguagem familiar com Alexander. Ele o chama de “bastardo” e “filho de uma prostituta”, insultos que podem até não soar tão graves para a nossa época, mas que eram xingamentos sérios para Alexander. Conforme relatado por Chernow (2004), Alexander “[...] tornou a sua infância em um tópico tabu, aludido enigmaticamente apenas em algumas cartas111” (CHERNOW, 2004, p. 8, tradução nossa). Bakhtin (2010a), a respeito do uso deste tipo de linguagem e discurso carnavalizado, explica que o impacto de insultos e grosserias dependem do contexto da época, pois “[c]ada época tem as suas regras de linguagem oficial, de decência, de correção. Em cada época, existem certas palavras e expressões que servem de sinal: assim que alguém as emprega, há permissão para exprimir-se em completa liberdade” (BAKHTIN, 2010a, p. 163). E, por isso, “bastardo” seria uma grosseria bastante ofensiva para o contexto de Alexander, caracterizando, assim, a linguagem de praça pública que é atravessada por expressões excluídas da cultura oficial, constituindo, por tanto, “uma violação flagrante das regras normais da linguagem, como uma deliberada recusa de curvar-se às convenções verbais: etiqueta, cortesia, piedade, consideração, respeito de hierarquia, etc”. (BAKHTIN, 2010a, p. 162). É interessante notar que, ao mesmo tempo em que Burr insulta Alexander, ele, paradoxalmente, também o elogia, dizendo que, apesar de todas as dificuldades, Alexander se tornou um “herói” e um “estudioso”. Esse comportamento simultaneamente, elogioso/injurioso, de acordo com Wheeler (1991), também é típico do rap, em que o interlocutor tenta persuadir o ouvinte a acreditar na sua realidade. Como sabemos ao fim da música, Burr é quem matou Alexander, por isso, durante a narrativa, ele tenta manipular a opinião do ouvinte para justificar seu ato, mostrando os

111 Em inglês: “[...] turned his early family history into a taboo topic, alluded to in only a couple of cryptic letters”. 111

motivos que o levaram a duelar com ele. O principal motivo deriva de Burr e Alexander não conseguirem compreender um ao outro. Essa falta de compreensão pode ser vista em várias músicas que começam com uma pergunta elogiosa/injuriosa. Por exemplo, em Alexander Hamilton, temos: “Como um bastardo, órfão, filho de uma prostituta e um escocês, [...] Se tornou um herói e um estudioso112?” Em What'd I Miss?: “Como um bastardo, órfão, veterano de guerra condecorado uniu as colônias através de mais dívidas [...]”113. Em The Adams Administration: “Como é que Hamilton o proteico criador da guarda costeira de pavio- curto/Fundador do New York Post/ Ardentemente abusa de sua posição no gabinete/ Destruiu sua reputação? [...]114”. Esses são apenas alguns exemplos para ilustrar este discurso elogioso/injurioso. Tais perguntas aparecem, na verdade, em inúmeras outras canções, em momentos de transição ou de crise da vida Alexander. Conforme podemos observar, elas são elogios disfarçados de injúrias e, paradoxalmente, injúrias disfarçadas de elogios sem um limite claro, de modo que não se pode separar onde um começa e o outro termina. Destaca-se que essa característica é típica da linguagem de praça pública, em que, “[e]mbora, no elogio comum, louvores e injúrias estejam separados, no vocabulário da praça pública, eles parecem se referir a uma espécie de corpo único, mas bicorporal, que se injuria elogiando e que se louva, injuriando” (BAKHTIN, 2010a, p. 142). Outro ponto interessante a se destacar é que essas não são as únicas perguntas presentes no espetáculo. Além de Burr, Eliza, em That Would Be Enough e Non-Stop, se pergunta constantemente quando Alexander vai estar feliz com o que tem: “Isso seria o suficiente?115”. A música tema de Jefferson, What'd I Miss? é, literalmente, a pergunta: “O que eu perdi?116”. Em Non-Stop, todos perguntam a Alexander: “Por que você escreve como se o tempo estivesse acabando?117”. Já, em What Comes Next?, o Rei George pergunta aos Estados Unidos “E agora?118” quando eles conquistam a independência. Na verdade, Hamilton é repleto de perguntas que nunca são respondidas, mostrando, assim, a dimensão de incompletude e do inacabamento dos enunciados e dos sentidos que estes podem gerar.

112 Em inglês: “How does a bastard, orphan, son of a whore [...]/Grow up to be a hero and a scholar?” 113 Em inglês: “How does a bastard, orphan,/Immigrant decorated war vet/Unite the colonies through more debt?” 114 Em inglês: “How does Hamilton the short-tempered,/protean creator of the coast guard/Founder of The New York Post/Ardently abuse his cab’net post/Destroy his reputation?” 115 Em inglês: “Would that be enough?” 116 Em inglês: “What did I miss” 117 Em inglês: “Why do you write like you are running out of time?” 118 Em inglês: “What comes next?” 112

Esse inacabamento também está presente no clímax da história, mostrado o duelo entre Burr e Alexander que acontece em The World Was Wide Enough. Mesmo com a perspectiva de Burr e Alexander, as motivações que levaram os dois a terem uma inversão de papéis em que Alexander espera e Burr age permanecem até certo ponto vagas. Nas palavras de Miranda e McCarter (2016):

Assim como Lin decidiu deixar parte da motivação de Hamilton em aberto, Leslie não tomou nenhuma decisão final sobre Burr. Na verdade, Leslie não tem certeza, de noite para noite, qual versão do assassino de Hamilton vai aparecer. “E se eu não estou chocado com a forma como o show acaba, não estou feliz”, ele diz. “Quero que a coisa pareça fora dos trilhos. E viva.” Após seis anos escrevendo e reescrevendo, montando e remontando - um processo que terminou poucos dias antes do prazo - o duelo de Hamilton e Burr continua sendo um mistério até mesmo para os atores que o interpretam.119 (MIRANDA; MCCARTER, 2016, p. 271).

Esta reflexão poderia levar à pergunta: o musical teve que ter, obviamente, um fim, certo? Então, de certa forma teve que ser acabado. A resposta pode surpreender, em um estilo digno de Clarice Lispector, a última música do musical, Who Lives, Who Dies, Who Tells Your Story?, termina em aberto com a pergunta “Quem conta a sua história?120” que cabe a cada espectador responder. Essa falta de acabamento e conclusibilidade é uma característica própria da cosmovisão carnavalesca, uma vez que “[c]abe observar que a cosmovisão carnavalesca também desconhece o ponto conclusivo, é hostil a qualquer desfecho definitivo [...]”. (BAKHTIN, 2010b, p. 191). Voltando à questão mais específica da familiarização presente no espetáculo, podemos dizer que, além dos elogios e das injúrias, Hamilton também aproxima Alexander das camadas mais pobres ao ressaltar que o Secretário do Tesouro era um imigrante que veio do nada, como podemos ver no seguinte excerto.

Quadro 3 -Trecho 2 de Alexander Hamilton (continua) [Burr] The ship is in the harbor now [Burr] O navio está no porto agora See if you can spot him Veja se consegue achá-lo

119 Em inglês: “Just as Lin decided to leave some of Hamilton’s motivation unexplained, Leslie made no ultimate decision about Burr. In fact, Leslie isn’t sure, from night to night, which version of Hamilton’s killer is going to show up. “If I’m not shocked by the way the show ends, I’m not happy,” he says. “I want the thing to feel off the rails. And alive.” After six years of writing and rewriting, and staging and restaging—a process that ended mere days before time ran out—Hamilton and Burr’s duel remains mysterious even to the actors performing it.” 120 Em inglês: “Who tells your story?” 113

Quadro 3 -Trecho 2 de Alexander Hamilton (conclusão) (Just you wait) (Apenas espere) Another immigrant Outro imigrante Comin’ up from the bottom Vindo de baixo (Just you wait)

His enemies destroyed his rep (Apenas espere) America forgot him! Seus inimigos destruíram sua reputação A América se esqueceu dele Fonte: Elaborado pela autora

O Quadro 3 mostra um trecho da música em que Burr descreve Alexander com um imigrante, afirmando que este seria apenas “Outro imigrante vindo de baixo”. Essa comparação é mantida durante o resto do espetáculo, ressaltando o fato de que os Estados Unidos foram uma nação construída por imigrantes. No momento da política americana atual, essa mensagem é particularmente importante durante a administração de Trump que pratica uma política de ódio contra imigrantes. O atual presidente norte-americano chegou mesmo a iniciar a construção de um muro para “proteger” o país de pessoas que atravessam as fronteiras e a instalar campos de detenção que são comparados aos campos de concentração121 para manter imigrantes ilegais foram dos Estados Unidos. Ora, em um país em que “imigrante” se tornou uma palavra com conotação negativa, a descrição de Alexander com qualquer outro imigrante faz com que outros imigrantes consigam se identificar com a narrativa. A prova de que essa identificação é possível aconteceu quando um grupo de alunos de Nova York foram assistir à peça de graça, o que faz parte de uma parceria entre o Public Theater e Theater Development Fund (TDF), que já trouxe mais de 62.000 jovens estudantes para assistir a peças de teatro. A experiência foi relatada por Miranda e McCarter (2016) que trazem, em seu relato, entrevistas com os professores que preparam os alunos para a visita. Um desses professores foi Joe White que leu os primeiros versos de Alexander Hamilton para seus alunos e perguntou quem eles achavam que estava sendo retratado. Imediatamente, as crianças responderam que a pessoa soava como alguém da República Dominicana ou das Índias Orientais e que ele havia imigrado para Nova York em

121 Fonte: . Acesso em out. 2019. 114

busca de uma vida melhor. Ao ouvir que se tratava do rosto na nota de dez dólares, que pode ser vista na Figura 4, as crianças não acreditaram.

Figura 4 - Alexander Hamilton na nota de 10 dólares

Fonte: Tasch (2015)122

Outro relato apresentado por Miranda e McCarter (2016) é o de Ginger Bartoski do TDF, que afirma que a experiência foi transformadora para as crianças porque era “[...] o teatro contando para elas uma história sobre elas mesmas, uma história que elas não sabiam” (MIRANDA; MCCARTER, 2016, p. 157), o que também mostra que as crianças se identificaram com uma história que antes era alheia para elas. Mas quais seriam os efeitos de sentido dessa aproximação? Ao usar a linguagem da praça pública, as figuras distantes e abstratas dos pais-fundadores, calcificada nos livros de história, em estátuas e estampada na cédula do dinheiro americano, é trazida para o plano terreno e o livre convívio entre os homens. Essa aproximação e atualização do passado para o nosso tempo e convívio é um movimento tipicamente carnavalesco, constituindo uma das particularidades do gênero sério-cômico, em que “[...] os heróis míticos e as personalidades históricas do passado são deliberada e acentuadamente atualizados, falam e atuam na zona de um contato familiar com a atualidade inacabada” (BAKHTIN, 2010b, p. 123). Essa atualização, porém, não está restrita somente ao aspecto verbal da linguagem, mas, sim, a todos os elementos que atravessam todo o musical, como mostraremos posteriormente em nossa análise, por ora, entretanto, passaremos a analisar a familiarização na coreografia.

122 Disponível em: . Acesso em out. 2019. 115

5.2.1.3 A familiarização na coreografia

Já discutimos como a linguagem familiar das ruas do hip-hop ajuda a familiarizar e aproximar as figuras históricas retratadas na peça. Agora, iremos mostrar que a cultura do hip- hop não está presente apenas nas letras das canções e na linguagem verbal utilizada no musical, assim como nos movimentos cênicos que também ajudam a familiarizar e aproximar o público da narrativa. Trataremos a cena a seguir:

Figura 5 - Print 1 da coreografia Figura 6 - Print 2 da coreografia

Fonte: Elaborado pela autora Fonte: Elaborado pela autora

As Figuras 5 e 6 mostram um passo de dança em que os dançarinos ajustam a posição de suas cabeças com a mão, simulando o movimento mecânico de um robô, algo típico do hip-hop. De fato, o hip-hop é um dos principais estilos de dança da coreografia de Hamilton aproximando o público da narrativa histórica através do uso de movimentos modernos, que quebram a distância com o passado. Além disso, os movimentos de hip-hop presentes no musical adicionam várias camadas de significação para a narrativa. A primeira delas é a camada de revolução, pois a cultura do hip-hop é associada, muitas vezes, com a insatisfação política e social, sendo atrelada consequentemente ao protesto, à renovação e à rebeldia, o que é relevante para mostrar a energia de uma Nova York pré-revolução, e posteriormente, o espírito da rebelião norte-americana e a conquista da independência em Yorktown. A segunda camada tem relação ao caráter dialógico de parceria presente na música, com as raps crews, ou na dança, com os grupos de break. Em Yorktown, por exemplo, os dançarinos se movem ao mesmo tempo dando-nos a impressão de um só corpo, que não pertence a indivíduos e, sim, ao povo americano que luta pela liberdade em uma batalha de vida ou de morte. Outro elemento do hip-hop adicionado à coreografia por Andy Blankenbuehler foi o freestyle, ou seja, o improviso. Blankenbuehler explica que esse improviso foi importante porque este recurso musical é mais um elemento que conecta a revolução norte-americana 116

representada nos palcos com a cultura do hip-hop. Assim, para o coreógrafo, essa cultura é constituída por:

[...] pessoas quebrando regras [...] Pessoas desrespeitando o normal e dizendo ‘Quer saber, eu estou infeliz e há um modo melhor de fazer isso’. E quando você olha para a música de hip-hop de hoje, é isso que ela está fazendo. Isso nos permite contar essa velha história de 275 anos de um modo que diz que nada mudou. Essa é a sua história, porque a audiência olha para a inquietação social no palco e a reconhece no outro lado da rua.123 (BLANKENBUEHLER, 2018, tradução nossa).

Dessa forma, o espetáculo representa o espírito crítico do carnaval, como destaca a perspectiva bakhtiniana, representando a insatisfação do povo com o regime autoritário. Além disso, o improviso permite que Hamilton seja um espetáculo novo a cada apresentação, aplicando os ideais de inacabamento e de renovação carnavalescos com muita força. A familiarização também está presente na coreografia de Hamilton ao quebrar o que é esperado de um musical cujas cenas se passam em 1776 e, assim, aproximar a narrativa de nosso tempo. Nela, não encontramos os estilos de dança de ballroom que seriam os mais esperados de pessoas da classe social dos pais-fundadores, como o minueto, a allemande e o hornipipe124. Ao contrário disso, encontramos no musical de Miranda, em sua grande maioria, uma espécie de profanação e familiarização da “narrativa oficial” presente em coreografia repleta de estilos de dança modernos. De fato, quando realmente temos uma cena de ballroom em Helpless e Satisfied, os casais, em vez de dançarem classica e elegantemente separados pela distância puritana, dançam, na verdade, como um casal dançaria em nossa época atual, sem distância alguma, como podemos ver na Figura 7.

123 Em inglês: “It was people breaking the rules,” he says. “People disregarding the standard and saying, ‘You know what, I’m unhappy and there’s a better way to do it.’ And when you look at hip-hop music today, that’s what it’s doing. That allows us to tell this 275-year-old story in a way that says nothing has changed. It’s your story, because the audience looks at the social unrest onstage and recognizes it from down the street.” Disponível em: Acesso em out. 2019. 124 Fonte: . Acessado em out. 2019. 117

Figura 7 - Print 3 da coreografia

Fonte: Elaborada pela autora

A Figura 7 revela um momento da coreografia de Helpless em que os dançarinos dançam extremamente próximos uns dos outros, o que seria considerado escandaloso para a América Revolucionária. A este respeito, em uma entrevista para o site TheaterMania, Blankenbuehler explica o processo por trás dessa dança:

Queria que parecesse uma gavotte tradicional, mas assim que aprendi essas danças tradicionais fiquei completamente desinteressado por elas. Mas o que eu eliminei disso foi a formalidade da conversa, a distância entre seus corpos. Eles apenas se tocam com as mãos e conversam enquanto dançam. Portanto, se você notar em “Helpless/Satisfied”, a primeira coisa que eles fazem é tocar as palmas das mãos e, cerca de 20 segundos depois, eles estão se esfregando porque não querem apenas tocar as mãos, querem se esfregar, mas também porque é essa situação que acontece em 2016.125 (BLANKENBUEHLER, 2016, tradução nossa).

Em nossa concepção, isso acontece porque, como mostramos ao longo de nossa análise, o ponto de partida da obra é o tempo presente sendo o objetivo aproximar as figuras históricas da nossa realidade e do nosso contato familiar. Podemos traçar, assim, um paralelo entre a coreografia de Hamilton e a festa carnavalesca descrita por Bakhtin (2010a) em virtude de as duas se contraporem com a oficialidade, que prega uma verdade pré-fabricada e acabada a qual se volta para o passado para consagrar o presente. De acordo com Bakhtin (2010a, p. 8),

125 Em inglês: “I wanted it to feel like a traditional gavotte, but as soon as I was learning those traditional dances I was completely uninterested in them. But what I took away from it was the formality of conversation, the distance between their bodies. They're only touching with their hands, and they're conversing while they're dancing. So if you notice in "Helpess/Satisfied," the first thing they do is just touch palms and then about 20 seconds later, they're grinding because they don't want to just touch hands, they want to grind, but also because it's that situation meeting 2016.” Disponível em: https://www.theatermania.com/broadway/news/behind- hamiltons-choreography-andy-blankenbuehler_77376.html>. Acesso em set. 2019. 118

a festa carnavalesca, ao contrário da festa oficial, “é uma espécie de liberdade temporária da verdade dominante e do regime vigente” que é voltada para o futuro. Nesse subtópico, tivemos como objetivo responder à primeira pergunta específica “Como são construídas as zonas de contato familiar em Hamilton: An American Musical?”. Concluímos, dessa forma, que a familiarização está presente na escolha de elenco, através da seleção de atores que representem os rostos da América atual, e não da América Revolucionária. Em seguida, vimos que a letra aproxima a figura de Alexander pelo uso da linguagem familiar elogiosa/injuriosa e a comparação com um imigrante. Por fim, percebemos que a coreografia se utiliza de danças modernas, como passos de hip-hop, para familiarizar as figuras históricas para o nosso tempo. Em geral, Hamilton tenta quebrar as barreiras que separam o nosso tempo e 1776, o período da época da revolução. Tendo respondido à primeira pergunta, iremos analisar, a seguir, a excentricidade carnavalesca presente no musical.

5.2.2 A excentricidade em Hamilton

Antes de começarmos nossa análise da excentricidade no musical Hamilton, é necessário relembrar o que essa categoria significa. Segundo Bakhtin (2010b), a excentricidade, tem o objetivo de pôr o mundo ao revés e engloba comportamentos que podem ser considerados estranhos ou que fogem ao modo usual das coisas no mundo extracarnavalesco. Após essa breve explicação, analisaremos, primeiramente, como o elenco contribui para a excentricidade no musical.

5.2.2.1 A excentricidade no elenco

Defendemos que o elenco de Hamilton pode ser considerado um exemplo de excentricidade como categoria da cosmovisão carnavalesca, definida por Bakhtin (2010b) como “[...] violação do que é comum e geralmente aceito; é a vida deslocada do seu curso habitual” (BAKHTIN, 2010b, p. 144). Nosso argumento reside no fato de que ainda é raro que atores não-caucasianos sejam escalados para peças e muito menos que existam peças compostas, em sua maioria, por atores de etnias diversas. Baseamos essa informação nos estudos126 feitos pela Asian American Performer Action Coalition (AAPAC), que contabiliza, desde do ano de 2006,

126 O estudo que usamos está disponível em: . Acesso em out. 2019. 119

as etnias dos atores de peça musicais e não-musicais da Broadway e off-Broadway. É interessante notar que AAPAC passou a realizar essa pesquisa porque a própria Broadway em seus relatórios não contabiliza a etnia de seus atores apenas a etnia de sua audiência. Para termos uma amostra, selecionamos um intervalo de dez anos que vai da temporada de 2006/2007 até a temporada em que o musical de nossa pesquisa estreou, 2015/2016. Antes de apresentarmos os gráficos que resumem essas informações, é necessário dar alguns esclarecimentos metodológicos. O estudo da AAPAC escrito por Bandhu et al. (2018) levou em consideração todos os atores do elenco, incluindo atores substitutos e as mudanças de elenco feitas até à estreia do espetáculo. De acordo com Bandhu et al. (2018), a classificação das etnias dos atores foi dividida em cinco categorias principais: 1) Caucasianos, pessoas brancas e não-hispânicas; 2) Afro-americanos/negros que não são hispânicos, o que inclui americanos-caribenhos; 3) Latinx127 e Hispânicos-americanos; 4) Asiáticos-americanos, que inclui pessoas com descendência do Leste e Sul da Ásia, as Penínsulas do Sudeste Asiático e as Ilhas do Pacífico asiáticas; 5) MENA/IA/PCD, MENA inclui pessoas do Oriente Médio/Norte da África; IA corresponde aos índios americanos e PCD contabiliza atores com deficiência128. Depois de termos explicado o sistema de classificação, vamos apresentar o gráfico que traz as médias das etnias dos atores de peças musicais e não-musicais da Broadway em um período de dez anos, que pode ser visto a seguir.

127 “Latinx é usado geralmente como um termo de gênero-neutro para latinoamericanos, mas tem sido especialmente usado por membros das comunidades LGBTQ Latinas como uma palavra para quem tem descendência latina, mas que possui uma identidade de gênero fora da relação binária homem/mulher.” Fonte: . Acesso em set. 2019. 128 Segundo Bandhu et al. (2018), o termo PCD engloba pessoas com algum membro amputado; pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo; pessoas com cegueira ou baixa visão, surdos ou pessoas com algum tipo de deficiência auditiva; pessoas com Síndrome de Down; Incapacidade intelectual; Doenças Mentais; Diabetes; Dislexia, Nanismo, Deficiência de Mobilidade e Usuários de Cadeira de Rodas. Fonte: . Acesso em set. 2019. 120

Gráfico 1 - Média geral das etnias dos atores da Broadway de 2006 até 2016

Fonte: Adaptado de Bandhu et al. (2018).

O Gráfico 1 mostra a média das etnias dos atores que participaram de peças na Broadway tanto em musicais quanto em não-musicais desde a temporada de 2006/2017 até a temporada de 2015/2016. Em primeiro lugar, pelo gráfico, temos os atores caucasianos que interpretaram 76% dos papéis. Em segundo lugar, e com maior número entre os atores de etnias diversas, temos os atores afro-americanos que foram escalados para 15% das peças na Broadway. Em terceiro lugar, temos um empate entre os latinx e os asiáticos-americanos que correspondem ambos a 4% dos papéis. E, em último lugar, temos o grupo MENA/IA/PCD, com apenas 1% de representação apesar de englobar mais categorias de classificação do que os outros grupos. Como podemos contrastar, os atores caucasianos são o grupo que está mais representado nos palcos da Broadway. Para que possamos compreender o que esses números significam comparados com a população norte-americana que reside em Nova York, iremos comparar esses resultados com o censo de 2010 que também está presente no relatório da AAPAC. Os resultados podem ser vistos a seguir.

121

Quadro 4 - Censo demográfico de Nova York de 2010

Caucasianos 44%

Hispânicos/Latinos 28.6%

Índios Americanos e Nativos do Alasca 0.7%

Nativos do Havaí/Ilhas do Pacífico 0.1% Fonte: Bandhu et al. (2018)

O Quadro 4 mostra que, em 2010, em Nova York, os caucasianos constituíam a maior parte da população com 44%. O segundo maior grupo são os latinos, com 28,6%. Em seguida, como terceiro maior grupo, temos os afro-americanos com 25.5%. Em quarto, temos os asiáticos e, por último, os índios americanos e nativos do Alasca com 0.7% e os nativos do Havaí/Ilhas do Pacífico com 0.1%. Comparando os dados do censo de 2010 com os atores dessa temporada na Broadway, vemos que apenas a população caucasiana é super-representada neste relatório, constituindo 44% da população e atuando em 81% dos papéis na Broadway, uma diferença de representação de 37% entre os dados do censo e da representatividade dos atores. Os números dos demais grupos são inferiores à quantidade de pessoas no estado. Os latinos representam 28.6%, mas somente 3% aturam em peças, uma diferença negativa de 25.6%. Já os afro- americanos, o terceiro maior grupo populacional, representa 25.5% da população, porém apenas 14% atores estiveram presentes em peças da Broadway o que constitui uma diferença de 11.5%. Os asiáticos representam 12.7%, mas só tiveram 4% de representação. Como a categoria MENA/IA/PCD não está completamente contabilizada no censo não podemos comparar os resultados. Através da análise da etnia dos atores de peças musicais e não-musicais na Broadway, podemos perceber que atores de etnias diversas sendo escalados para peças da Broadway é algo que foge ao que é esperado, ou seja, do que é habitual e normal. Dessa forma, o fato de escalar, especificamente, pessoas não-brancas em um musical da Broadway, especialmente em uma obra que não trata de uma história afro-americana por excelência, mas que traz uma narrativa histórica em que os personagens interpretados são brancos, pode ser considerado um exemplo de excentricidade. Esse aspecto pode até levar alguém a se perguntar se faz sentido escalar esses atores nesses papeis e se isso não seria um anacronismo para a época. Defendemos que esses detalhes não importam porque o ponto de partida da narrativa não é o passado mítico, definido, acabado e intocável, mas, sim, do presente, atual, inacabado 122

e palpável, de onde partem os valores e ideais presentes no musical. E, é, por isso, que o espetáculo consegue se relacionar com as questões políticas atuais da administração de Trump, como a perseguição aos afro-americanos e latinos. Essa característica, para Bakhtin (2010b), é uma peculiaridade dos gêneros sério- cômicos, que apresentam “uma imagem quase liberta da lenda, uma imagem baseada na experiência e na fantasia livre. Trata-se de uma verdadeira reviravolta na história da imagem literária” (BAKHTIN, 2010b, p. 121). Em Hamilton, a fantasia permite que os pais-fundadores sejam re-imaginados como atores afro-americanos e latinos. No próximo subtópico, veremos como a excentricidade se apresenta nas canções.

5.2.2.2 A excentricidade na canção

Já mostramos que o elenco de Hamilton é excêntrico, visto que, apesar do progresso na escalação de atores não-brancos, ainda é raro que atores de outras etnias atuem em peças da Broadway. Nesse subtópico, vamos mostrar como a letra de Alexander Hamilton é excêntrica e contribui para a carnavalização da obra. Faremos isso através de um trecho da canção, que pode ser visto a seguir.

Quadro 5 - Trecho 3 de Alexander Hamilton

[Burr] There would have been nothin’ [Burr] Não teria sobrado nada para fazer left to do Para alguém menos astuto For someone less astute Ele teria acabado morto ou desamparado He woulda been dead or destitute Sem um centavo de reembolso Without a cent of restitution Começou a trabalhar, sendo escrivão do Started workin’, clerkin’ for his late senhorio de sua falecida mãe mother’s landlord Vendendo açúcar, cana, rum e todas as Tradin’ sugar cane and rum and all the coisas pelas quais ele não pode pagar things he can’t afford

Fonte: Elaborado pela autora

O Quadro 5 mostra um excerto da música em que algumas palavras estão reduzidas no inglês. Esse fenômeno linguístico é conhecido como g-dropping (apagamento do g) e ocorre quando se “apaga” a letra “g” no final de palavras que terminam com “-ing”. Ele é marcado na escrita através do uso do apóstrofo no lugar do g. De acordo com Yuan e Liberman (2011), essa redução foi estudada por sociolinguistas, como Fischer (1958) e Hazen (2008), desde os anos 1950 sob o nome de “variável ING”. Os estudiosos concluíram com isso que o apagamento do 123

g é produzido, geralmente, por falantes de baixo status econômico e em situações informais de fala. O g-dropping também é bastante comum em letras de rap, talvez por causa da proposta dos rappers de “keeping it real”, ou seja, de mostrar a realidade das ruas. Mas ele não é comum em narrativas históricas, podendo ser considerado excêntrico. Para comparação, podemos olhar para 1776 que, como falamos em nossa seção sobre musicais, conta a história da assinatura da Declaração da Independência sob a perspectiva de John Adams. Em 1776, temos uma versão mais clássica dos pais-fundadores em que os políticos falam de forma mais conservadora e condizente com tempo histórico retratado. Um exemplo disso ocorre quando os congressistas estão revoltados com John Adams, mas, mesmo assim, ainda dizem: “Sente-se, John” (Sit Down, John). Já em Hamilton a frase se transforma em “Sente-se, John, seu gordo filho da […]” (Sit down, John, you fat mother...). O uso excêntrico da linguagem familiar e do rap, um gênero musical desenvolvido por afro-americanos e latinos de baixo status socioeconômico, é excêntrico no mundo extracarnavalesco, mas faz completo sentido dentro do mundo “às avessas” do carnaval em que “[o] comportamento, o gesto e a palavra do homem libertam-se do poder de qualquer posição hierárquica (de classe, título, idade, fortuna) que os determinava totalmente na vida extracarnavalesca, razão pela qual se tornam excêntricos e inoportunos [...].” (BAKHTIN, 2010b, p. 140). A presença da linguagem familiar foi discutida por Oskar Eutis, diretor do Public Theater, em seu relato presente no livro Hamilton: The Revolution. De acordo com Miranda e McCarter (201), Eutis afirma que

ele [Miranda] pega a linguagem das pessoas, e a eleva ao transformá-la em verso. Tanto enobrece a linguagem quanto as pessoas que a falam. Isso é precisamente o que Shakespeare fez em todas as suas obras, particularmente em suas peças históricas. Ele conta os mitos fundadores de seu país. Ao fazer isso, ele faz com que país seja posse de todos.129 (MIRANDA; MCCARTER, 2016, p. 103).

Tal empreitada também foi feita pelo próprio Rabelais, que, segundo Bakhtin (2010a), também apresentava a linguagem da rua em suas obras, incorporando o dialeto e o vocabulário da praça pública. Um exemplo dessa linguagem acontece na cena com o mercador Dindenault em que o negociante ostenta que seus carneiros fertilizam os campos com sua urina

129 Em inglês: “He takes the language of the people, and heightens it by making it verse. It both ennobles the language and the people saying the language. That’s precisely what Shakespeare did in all of his work, particularly in his history plays. He tells the foundational myths of his country. By doing that, he makes the country the possession of everybody.” 124

“como se Deus tivesse mijado neles”. (BAKHTIN, 2010a, p. 128). O próprio Rabelais explica que a expressão “como se Deus tivesse mijado neles” faz parte do vocabulário francês popular significando uma grande benção. Em seguida, iremos ver como a coreografia de Hamilton também estabelece a excentricidade.

5.2.2.3 A excentricidade na coreografia

Para ilustrar como a coreografia de Hamilton tem elementos que a caracterizam como, no sentido carnavalesco do termo, excêntrica, trazemos alguns prints que mostram o estilo criado por Bankenbuehler para o musical, que podem ser vistos a seguir.

Figura 8 - Print 4 da coreografia Figura 9 - Print 5 da coreografia

Fonte: Elaborado pela autora Fonte: Elaborado pela autora

Figura 10 - Print 6 da coreografia Figura 11 - Print 7 da coreografia

Fonte: Elaborado pela autora Fonte: Elaborado pela autora

125

As figuras acima exemplificam a dança excêntrica criada por Blankenbuehler, chamada de “gesto intensificado estilizado”, que está além de qualquer tradição coreográfica. Essa linguagem aumenta a intensidade dos movimentos do cotidiano de forma poética, transformando gestos banais em coreografia renovando-os com um novo sentido e propósito. Isso pode acontecer porque Andy, em uma entrevista para The Washington Post, confessou que não se importa com passos ou com técnica: “Não estou interessado no vocabulário da dança. Estou interessado no vocabulário das pessoas, e intensificar isso em dança”130 (BLANKENBUEHLER, 2018, tradução nossa). Como vimos em nossa seção sobre a história dos musicais, as canções e a coreografia eram elementos meramente ilustrativos nos musicais, não sendo, portanto, tão importantes para a narrativa dos espetáculos da Broadway. Isso começou a mudar em 1943 com a estreia de Oklahoma!, que solidificou a fórmula do musical integrado, em que todos os elementos, inclusive a dança, atuavam em conjunto para contar a história. Outras grandes contribuições foram a dos diretores-coreógrafos, como Jerome Robbins e Bob Fosse, que usavam a dança com propósitos dramáticos. Blankenbuehler se apoiou nesses mestres da Broadway para desenvolver a sua coreografia, mas ele levou a ideia ao limite. Em Hamilton, o grupo dos dançarinos não representa apenas o papel de dançarinos, mas também o de atores que impactam indiretamente e diretamente na narrativa. A dançarina, Ariana DeBose, discutiu essa questão, ao salientar que

o que fazemos é tão específico do nosso show, porque não é sempre que você vê dançarinos sendo parte integrante do enredo. [...] É muito gratificante ser um contador de histórias e não apenas fazer [...] piruetas etc. Significa muito mais, você sabe. Permite que os dançarinos se tornem atores.131 (DEBOSE, 2016, tradução nossa).

Podemos ver esse aspecto nas imagens da dançarina carregando o livro das mãos de Alexander. Searcy (2018) também destaca vários momentos, entre eles a cena do duelo, em que Ariana DeBose representa a trajetória da arma de Burr pelo ar até o corpo de Alexander. Nesse momento, os outros dançarinos tentam pará-la performando gestos que marcaram a vida de Alexander, como os movimentos de pugilismo de My Shot, a marcha dos soldados em Right-

130 Em inglês: “I’m not interested in dance vocabulary. I’m interested in people vocabulary, and heightening it into dance [...]". Disponível em: . Acesso em set. 2019. 131 Em inglês: “What we do is so specific to our show because it's not often that you see an ensemble with that integral to the plot. [...] It's so rewarding to be a storyteller and not just do [...] pirouettes etc, etc. It means a lot more, you know. It allows dancers do become actors”. Disponível: . Acesso em out. 2019. 126

Hand Man, a suspensão do corpo da mãe de Alexander que representa a sua morte em Hurricane. Dessa forma, Hamilton rompe com a tradição em que os dançarinos são apenas decorativos, fazendo com que estes possam interferir diretamente na narrativa. Searcy (2018) aponta também a relação excêntrica entre a coreografia de Hamilton a dos grande musicais. Conforme a autora, nos grandes musicais, os movimentos feitos no palco são, geralmente, realistas e diegéticos, ou seja, a coreografia é reconhecida como tal pelos personagens da trama. No entanto, em Hamilton, a dança, normalmente, é performada em movimentos semirrealistas. Para ilustrar seu argumento, Searcy (2018) cita uma cena de Alexander Hamilton em que Alexander chega a Nova York, e os dançarinos atracam o navio como exemplo de uma coreografia semirrealista. Nessa cena, o gesto de atracar o navio é da esfera do cotidiano, mas é realizado de forma intensificada. Algo similar acontece nas cenas retratadas nas Figuras 8, 9, 10 e 11 em que uma dançarina traz um livro para Alexander. A estudiosa também aponta outro movimento, dessa vez, em My Shot, que pode ser visto na Figura 12.

Figura 12 - Print 8 da coreografia

Fonte: Elaborado pela autora

A Figura 12 mostra os dançarinos fazendo o pop e lock, um passo de dança típico do break em My Shot. Esse movimento é feito quando Alexander entra em um monólogo em que ele começa a falar sobre a morte. De acordo com Searcy (2018), no pop e lock “[...] o artista se move em explosões bruscas de velocidade, gerando um efeito de um pedaço de filme que está sendo acelerado, desacelerado e revertido.” 132 (SEARCY, 2018, p. 452, tradução nossa). Esse efeito faz com que se crie a impressão de que Alexander está no limiar da ação, ou seja, ele não está experienciando o mesmo tempo que os outros personagens, mas está em outro lugar intermediário fora do tempo biográfico.

132 Em inglês: “[...] the performer moves in jerky bursts of speed; the overall effect makes it look like a piece of film that is being sped up, slowed down, and reversed.” 127

Um momento similar ocorre em The World Was Wide Enough, quando Alexander volta ao limiar. As duas cenas em questão, ocorrem quando Alexander se encontra perto da morte e na beira de uma decisão importante, em My Shot, ele sai do limiar para afirmar que o mais importante é revolução e em The World Was Wide Enough, Alexander resolve atirar para o alto fazendo com ele seja morto por Burr. Podemos traçar um paralelo entre estes momentos em Hamilton e o que Bakhtin (2010b) chama de “tempo no limiar” em que “é impossível viver uma vida biográfica, podendo-se somente sofrer crises, tomar as últimas decisões, morrer ou renascer.” (BAKHTIN, 2010b, p. 196). A coreografia de Hamilton, ao retratar esses momentos excêntricos no limiar, estabelece um tempo carnavalesco que foge ao tempo biográfico tradicional, sendo marcado pelas crises e últimas decisões, bem como pelas imagens contrastantes de morte/renascimento. Outro elemento excêntrico é a presença de dançarinas mulheres tanto nas conversas de gabinete quanto na guerra pela independência, como podemos ver na imagem abaixo que aparece no vídeo Hip-Hop and history blend for Broadway hit 'Hamilton'133 da PBS NewsHour disponível no site YouTube.

Figura 13 - Print 9 da coreografia

Fonte: Elaborado pela autora

A figura acima mostra a batalha de Yorktown em que o exército norte-americano conquista a independência da Grã-Bretanha. Conforme podemos notar, ao contrário da época revolucionária de 1776, as mulheres são integrantes das forças armadas. Dessa forma, defendemos a ideia de que a coreografia de Hamilton contribui para a construção do mundo carnavalesco utópico no qual não existe discriminação baseada em gênero e as mulheres da era

133 Disponível em: . Acesso em: out. 2019. 128

colonial podem participar, diretamente, das decisões políticas, sejam estas reuniões de gabinete ou batalhas para a conquista da independência. Esse subtópico teve como objetivo responder à segunda pergunta de pesquisa específica “Como a excentricidade coopera para a construção do discurso carnavalizado em Hamilton: An American Musical?”. Dessa forma, vimos que a excentricidade está presente na escolha de um elenco diverso, algo que, infelizmente, foge do comum na Broadway, em que a maioria das peças são interpretadas por caucasianos. Em seguida, vimos que a letra de Hamilton contribui para excentricidade, pois se utiliza da linguagem informal do hip-hop e do rap para contar uma narrativa histórica. Posteriormente, vimos que a coreografia do musical também contribui para o aspecto excêntrico por transformar gestos do cotidiano que são intensificados até que viram uma dança poética, por apresentar danças realistas e semirrealistas e por fazer com que os dançarinos impactem na narrativa agindo como atores e por apresentar personagens mulheres atuando na política da américa antiga. No próximo subtópico, comentaremos as mésalliances encontradas no musical e os seus efeitos de sentido para a constituição da lógica carnavalesca em Hamilton.

5.2.3 As mésalliances em Hamilton

As mésalliances constituem-se, segundo Bakhtin (2010b), em imagens contrastantes que se mantém completamente separadas, mas são reunidas durante o carnaval. Após essa definição, iremos ver as mésalliances presentes na escolha de elenco do musical.

5.2.3.1 As mésalliances no elenco

As mésalliances são jogos de opostos que podem ser vistos, com muita frequência, no elenco de Hamilton através da relação figura política branca com ator de etnia diversa. Uma combinação que é, aliás, excêntrica, profana, familiar e paradoxal. Para Bakhtin (2010b), a junção de coisas opostas é uma característica da vida carnavalesca em que se unem “todos os elementos antes fechados, separados e distanciados uns dos outros pela cosmovisão hierárquica extracarnavalesca”. (BAKHTIN, 2010b, p. 141). Para mostrar isso, iremos comparar o retrato da figura histórica de Thomas Jefferson, que mostra a versão “oficial” da história e a foto do ator que interpreta esse político em Hamilton. Essa comparação pode ser vista a seguir.

129

Figura 14 – Pintura de Jefferson Figura 15 - Foto de Daveed Diggs

Fonte: Site All Posters.134 Fonte: Miranda; McCarter (2016).

Como podemos perceber pela comparação entre as duas imagens, o poderoso terceiro presidente norte-americano branco, Thomas Jefferson, é interpretado por Daveed Diggs, um ator afro-americano. Escolhemos especificamente Jefferson dentre os outros políticos representados em Hamilton por ele ser um dos mais ricos fazendeiros da Virgínia que mantinha em regime de escravidão vários afro-americanos. Isso é o que faz com que a mésalliance não esteja presente apenas na relação personagem branco/ator negro e, sim, na própria relação entre mestre/escravo e opressor/oprimido. Hamilton, como o carnaval medieval, junta esses opostos que, de outra forma, estariam separados por barreiras intransponíveis como um modo de subverter e criticar essas figuras históricas, o que também constitui uma forma de profanação, como veremos em breve. A seguir, analisaremos a presença das mésalliances na letra das canções que selecionamos e como esta particularidade do discurso carnavalizado produz determinados sentidos no musical.

5.2.3.2 As mésalliances na canção

As mésalliances estão presentes nas imagens contrárias presentes no musical, como podemos ver no Quadro 6.

134 Disponível em: . Acesso em out. 2019. 130

Quadro 6 - Trecho 4 de Alexander Hamilton

[James Madison] Then a hurricane came, and [James Madison] Então um furacão veio, e a devastation reigned, devastação reinou,

Our man saw his future drip, dripping down Ele viu seu futuro escorrer, escorrer ralo the drain abaixo [...] [...] And he wrote his first refrain, a testament to E escreveu seu primeiro refrão, uma prova da his pain. sua dor. [...] [...] [Eliza Hamilton] Two years later, see Alex [Eliza Hamilton] Dois anos depois, Alex e and his mother bed-ridden, sua mãe ficaram de cama, Half-dead, sittin' in their own sick, Quase mortos, muito adoecidos, The scent thick, O cheiro forte

[Full company, except Hamilton, [Companhia inteira, exceto Hamilton, whispering] And Alex got better, but his sussurrando] E Alex melhorou, mas sua mãe mother went quick se foi rapidamente

[George Washington] Moved in with a [George Washington] Se mudou para a casa cousin, the cousin committed suicide de um primo, o primo cometeu suicídio Left him with nothin’ but ruined Não deixando-o nada exceto orgulho ferido, pride, something new inside algo novo dentro dele a voice saying uma voz dizendo

“You gotta fend for yourself” “Você tem que se virar” (“Alex, you gotta fend for yourself”) (“Alex, você tem que se virar”)

He started retreatin’ Ele começou a se isolar and readin’ every e ler todos os treatise on the shelf. tratados na estante. Fonte: Elaborado pela autora.

No Quadro 6, temos a narração de momentos que marcaram a jornada de Alexander, começando cronologicamente pela doença que Alexander e a mãe contraem, o que acaba sendo fatal para ela. Depois da morte da mãe, Alexander passa a viver na casa de um primo, no entanto, esse mesmo primo comete suicídio deixando o jovem sozinho. Mesmo assim, Alexander supera todas as adversidades e começa a ler tratados e a se dedicar aos estudos. Em seguida, um furacão devasta a sua cidade, destruindo a vida de muitos caribenhos, mas Alexander escreve um poema sobre a tragédia e consegue uma espécie de bolsa de estudos que o permite ir para Nova York, onde ele se tornará, eventualmente, um herói e estudioso. Nesses trechos, podemos perceber que a vida de Alexander está ligada a momentos de crise que são marcados por imagens contrastantes e ambivalentes de destruição/renovação, 131

morte/vida, desespero/esperança. Essas são imagens que, aparentemente, são completamente opostas, na verdade, são dois lados da mesma moeda, pois, para que exista o novo, é necessário que o velho morra, por isso elas são ambivalentes e não apenas negativas. O carnaval é, assim, o momento em que essas ideias contrastantes são unidas em uma só cosmovisão que é atravessada pela renovação e o inacabamento, já que, de acordo com Bakhtin (2010b), “o carnaval é a festa do tempo que tudo destrói e tudo renova.” (BAKHTIN, 2010b, p. 142). Outro tipo de contraste está presente no excerto do Quadro 7, que mostra os personagens explicando sua relação com Alexander. O trecho pode ser visto abaixo.

Quadro 7 - Trecho 5 de Alexander Hamilton

[Mulligan/Madison [Mulligan/Madison Lafayette/Jefferson] Lafayette/Jefferson] We fought with him! Nós lutamos com ele! Fonte: Elaborado pela autora

Nesse excerto, podemos ver que estão retratados os personagens Mulligan e Lafayette, que são dois amigos de Alexander, que se alistaram junto com ele nas tropas norte- americanas durante o primeiro ato, por isso, eles dizem “Nós lutamos com ele”. No entanto, os mesmos atores que interpretam esses personagens. Okieriete Onaodowan e Daveed Diggs, respectivamente, também atuaram nos papéis de Madison, o quarto presidente dos EUA, e Jefferson, o terceiro presidente norte-americano, durante o segundo ato. E, paradoxalmente, Madison e Jefferson eram inimigos políticos de Alexander, dando ao enunciado “Nós lutamos com ele” um significado completamente novo, dessa vez, de oposição e não de apoio. Dessa forma, esse enunciado é proferido ao mesmo tempo pelos melhores amigos e pelos inimigos de Alexander que são interpretados em Hamilton pelos mesmos atores. Esse enunciado, portanto, é bivocal e reflete dois horizontes socioideológicos distintos e contraditórios, constituindo uma mésalliance. Essas contradições não estão presentes apenas no fato de Oak e Diggs serem amigos e inimigos de Alexander. A personalidade, gestualidade, voz e estilo de rap de Lafayette é complementamente diferente do de Jefferson e o mesmo acontece com Mulligan e Madison. No primeiro ato, Diggs tem o cabelo preso e um sotaque francês forte. Seu estilo de rap começa lento, porque ele não tem domínio completo do inglês, como pode ser visto em My Shot “Eu sonho com uma vida sem a monarquia/A inquietação na França vai levar a ‘onarquia?/ 132

‘Onarquia? Como se diz, como se diz, ‘anarquia?135’”. Conforme Lafayette aprende inglês e se sente confortável com o idioma, ele muda seu estilo de rap e consegue cantar a música mais rápida de Hamilton e uma das mais rápidas da história dos musicais136 com 6,3 palavras sendo cantadas por segundo, em Guns and Ships: “Estou pegando esse cavalo pelas rédeas/ Deixando as casacas vermelhas ainda mais vermelhas com manchas de sangue/ E eu nunca irei parar até fazê-los/ Cair e os destruir e espalhar seus restos mortais [...]137”. No segundo ato, Diggs solta o cabelo e fala com um ar charmoso e distraído. Seu estilo de rap é uma mistura de gêneros afro-americanos como ragtime, boogie-woogie e outros estilos de jazz originados no sul. Essas escolhas, provavelmente, servem para marcar a lealdade de Jefferson para com o sul em detrimento da união governamental defendida por Alexander. Além disso, os sons de Jefferson também apresentam traços dos gêneros proto-hip-hop, como o funk. Miranda discute a razão por trás dessas combinações, ao declarar que

Ele [Jefferson] é uma geração inteira mais velho que Hamilton, e esteve ausente durante grande parte das lutas da Revolução Americana, embora certamente fosse um dos arquitetos de alguns dos documentos fundadores. Então eu o escrevi no estilo de jazz de Lambert/Hendricks/Ross/Gil Scott-Heron, proto-hip-hop, mas não o boom de Hamilton.138 (MIRANDA; MCCARTER, 2016, p. 152, tradução nossa).

Em uma entrevista para a revista Vulture, Diggs explica a diferença no estilo de rap dos dois personagens:

Lafayette tem esse grande arco em que ele começa a rimar palavras que realmente não rimam e ele não consegue entender. À medida que ele se sente à vontade - e em geral - ele pode fazer coisas realmente complicadas, técnicas e rápidas. [...] Os raps de Jefferson são saltitantes e espalhados por toda parte, [...], não necessariamente focados na história. Jefferson não precisa se preocupar com isso porque é um aristocrata e pode fazer o que quiser. Ele pode brincar um pouco mais.139 (DIGGS, 2016, tradução nossa).

135 Em inglês: “I dream of life without a monarchy/The unrest in France will lead to ‘onarchy?/‘Onarchy?/How you say, how you say, ‘anarchy?’”. 136 Fonte: . Acesso em out. 2019. 137 Em inglês: “I'm takin' this horse by the reins/ Makin' Redcoats redder with bloodstains/And I'm never gonna stop until I make 'em/ Drop and burn 'em up and scatter their remains”. 138 Em inglês: “He’s a full generation older than Hamilton, and he was absent for much of the fighting of the Revolutionary War, though certainly an architect of some of the founding documents. So I wrote him in sort of a Lambert/Hendricks/Ross/Gil Scott-Heronmode—jazzy, proto-hip-hop, but not the boombap of Hamilton”. 139 Em inglês: "Lafayette has this great arc where he starts out rhyming words that don’t really rhyme and he can’t really figure it out. As he becomes comfortable — and a general — he can do this really complicated, technical, fast stuff. It’s like him mastering this language. Jefferson’s raps are so bouncy and all over the place, It’s very bouncy, not necessarily story-focused. Jefferson doesn’t really have to worry about that because he’s an aristocrat, and he can do whatever he wants. He gets to play a little more." Disponível em: . Acesso out. 209. 133

Como podemos ver, as relações opostas estão presentes na interpretação em geral de Mulligan/Madison e Lafayette/Jefferson. Interpretação que os papéis sociais exercidos por esses personagens em relação a Alexander, sua personalidade e, principalmente, o estilo de rap dos dois. Além das imagens contrastantes e das figuras Mulligan/Madison e Lafayette/Jefferson, uma mésalliance bem importante de se mostrar se dá através a mistura inusitada de estilos musicais e de vozes presentes em Hamilton desde de gêneros mais estabelecidos na Broadway como showtunes, jazz, soul, R&B até gêneros marginais como hip- hop e rap. Essa de riqueza musical pode, à primeira vista, parecer como uma colcha de retalhos, mas todos esses gêneros se encaixam perfeitamente na obra. Oskar Eutis, a este respeito, comenta essa mistura de estilos “Lin está liberando a energia de cruzar fronteiras. Ele está dizendo: ‘Eu posso contar a história americana usando músicas populares, eu posso misturar Broadway e hip-hop. Eu posso voar alto e voar baixo140’” (MIRANDA; MCCARTER, 2016, p. 222, tradução nossa). De acordo com Miranda e McCarter (2016), o motivo pelo qual Miranda adicionou tantos gêneros em Hamilton foi graças a um conselho de Sondheim, um dos compositores mais famosos da Broadway, que o avisou para ter cuidado com a monotonia musical. Esse conselho foi levado a sério por Miranda, que continuou a enviar outras demos até que Sondheim considerasse que havia bastante variedade nas canções. Uma das músicas favoritas de Sondheim, Say No To This mostra perfeitamente as várias vozes presentes no espetáculo. Essa música retrata o caso entre Alexander e Maria Reynolds. Nela, Alexander canta em rap sua versão dos acontecimentos, enquanto Maria responde em R&B e, por vezes, o marido de Maria, James Reynolds intervém em rap para chantagear Alexander. Ao fim, Alexander cede a chantagem dizendo “Ninguém precisa saber141” que é uma clara referência a música, Nobody Needs To Know do musical The Last Five Years, cantada no momento em que o protagonista trai a sua esposa. Outros gêneros literários também estão presentes em Hamilton, que traz a linguagem das ruas do hip-hop ao lado da linguagem formal de excertos de documentos históricos, como a carta de renúncia de Washington em One Last Time; panfletos políticos, como o de Samuel Seabury em Farmer Refuted; trechos da Declaração da Independência;

140 Em inglês: “Lin is unleashing the energy of crossing boundaries. He is saying, ‘I can tell American history using popular song, I can mix Broadway and hip-hop. I can fly high and fly low.’ It feels like it’s unlimited. And that liberatory feeling spills out into the audience.” 141 Em inglês: “Nobody needs to know”. 134

discursos; dentre outros. Até mesmo uma peça de teatro da Broadway, rapidamente, aparece em uma das músicas. Ao mesmo tempo, o musical também recria enunciados e os apresenta como que pertencentes a documentos oficiais, misturando livremente o real com a fantasia. Esse aspecto presente no musical constitui a última particularidade dos gêneros sério-cômico que trata da pluralidade de estilos e vozes. Esses gêneros, segundo Bakhtin (2010b),

Caracterizam-se pela politonidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico, empregam amplamente os gêneros intercalados: cartas, manuscritos encontrados, diálogos relatados, paródias dos gêneros elevados, citações recriadas em paródias, etc. Em alguns deles observa-se a fusão do discurso em prosa e do verso, inserem-se dialetos e jargões vivos [...]. (BAKHTIN, 2010b, p. 123).

Acima de tudo, Hamilton é uma história sobre vozes: vozes diversas, que conversam, se opõem e/ou se ajudam. Qualquer uma dessas vozes pode acabar sendo a que conta a sua história e decide seu legado, como diz um verso do personagem George Washington: “você não tem controle algum sobre quem vive, quem morre, quem conta sua história142”. Através dessa multiplicidade de vozes sociais, o musical atua como uma força centrífuga que abre espaço para diversas vozes, estilos e gêneros e que tece um mundo rico, diverso e, extremamente, dialógico que representa a heterogeneidade de vozes que ajudaram a construir a nação. Acreditamos que essa característica da obra a torna, se não universal, pelo menos importante, onde quer que haja uma discrepância entre o alcance de vozes com base em preconceito sistemático, ou onde haja necessidade de subversão contra os sistemas políticos hegemônicos opressores. Tendo comentado sobre as mésalliances nas letras de Hamilton, a seguir, mostraremos como a coreografia também apresenta combinações inusitadas de estilos de dança.

5.2.3.3 As mésalliances na coreografia

Discutimos a presença de hip-hop na coreografia, agora, comentaremos as imagens contrastantes presentes na dança. Assim como existem vários gêneros musicais no espetáculo também existem vários estilos de dança que vão desde do hip-hop até o jazz. E do jazz até o swing. A dançarina Emmy Raver-Lampman, durante uma entrevista, discutiu como foi a sua experiência única de aprender a coreografia de Hamilton. De acordo com a dançarina: “aprender a coreografia pela primeira vez foi diferente de tudo que eu já tinha feito antes, porque não é

142 Em inglês: “You have no control, who lives, who dies, who tells your story”. 135

[...] Tem dança de teatro musical e tem hip-hop, e dança lírica e dança moderna. Acho que é uma bela combinação de tudo isso [...]”143 (RAVER-LAPMAN, 2016, tradução nossa). Essa mistura de estilos reflete as influências opostas citadas por Andy em entrevistas que englobam desde do moderno Justin Timberlake até clássicos da Broadway, como Jerome Robbins, Bob Fosse e Fred Astaire. Uma homenagem a Broadway pode ser vista em Alexander Hamilton.

Figura 16 - Print 10 da coreografia

Fonte: Elaborado pela autora

Em uma entrevista para The Washington Post, Blankenbuehler afirmou que esse momento foi inspirado no show Jerome Robbins’ Broadway, uma coletânea do trabalho do diretor-coreógrafo, que ele viu quando ainda era recém-chegado a Nova York. Depois de cada apresentação, o elenco juntava os pés e abaixava a cabeça. De acordo com Blankenbuehler, em Hamilton, o elenco “[...] está se curvando à ideia de Alexander Hamilton e à nossa conquista como país. Mas essa também é a minha maneira de dizer que eu entendo, verdadeiramente, como pode ser, por causa da minha idolatria de Jerome Robbins144” (BLANKENBUEHLER, 2018, tradução nossa).

143 Em inglês: “First learning the choreography was unlike anything I've ever done before, because it's not... You know there's musical theater dance and there's hip-hop and there's you know lyrical dance and modern dance. And I think it's kind this beautiful combination of all those [...]”. Disponível em: . Acesso em out. 2019. 144 Em inglês: "[...] bowing to the whole idea of Alexander Hamilton and our accomplishment as a country. But that’s also my way of saying I understand, truly, how it can feel, because of my idolization of Jerome Robbins." Disponível em: . Acesso em set. 2019. 136

Para ilustrar essa mistura de estilos, retiramos alguns prints da coreografia de várias músicas de Hamilton que aparecem no vídeo Hip-Hop and history blend for Broadway hit 'Hamilton'145 da PBS NewsHour disponível no site YouTube.

Figura 17 - Print 11 da coreografia Figura 18 - Print 12 da coreografia

Fonte: Elaborado pela autora Fonte: Elaborado pela autora

A Figura 17 mostra a coreografia de What'd I Miss?, marcada por passos de jazz, ragtime e boogie-woogie, que, como explicamos anteriormente, caracteriza como Jefferson ainda está apegado às suas raízes sulistas. Iremos analisar essa cena mais profundamente no próximo subtópico. Já a Figura 18 retrata o sapateado e os movimentos presentes em The Room Where It Happens, que são uma citação do musical Bojangles de Fred Astaire, em que o dançarino se apresenta em blackface146. Ao incorporar o sapateado dos Minstrel shows, os espetáculos racistas que vimos em nossa terceira seção sobre os musicais, e os movimentos de Bojangles, Hamilton mostra como Burr sente que Alexander está humilhando-o147. Outro ponto relevante é apontado por Searcy (2018) que comenta que a analogia com Bojangles e os minstrel shows problematiza a forma como os afro-americanos foram mantidos fora do spotlight, tanto da política americana quanto dos palcos da Broadway, ao reforçar a ideia que Bojangles é um musical com blackface e deve ser julgado de acordo. Ao misturar esses vários estilos de dança na coreografia, Blankenbuehler se opõe ao corpo imaginário do cânone da antiguidade e do Renascimento, descrito por Bakhtin (2010a) como um corpo “[...] rigorosamente acabado e perfeito. Além disso, é isolado, solitário, separado dos demais corpos, fechados. Por isso, elimina-se tudo o que leve a pensar que ele não

145 Disponível em: . Acesso em out. 2019. 146 Em inglês: . Acesso em nov. 2019. 147 Fonte: . Acesso em nov. 2019. 137

está acabado, tudo que se relaciona com seu crescimento e sua multiplicação” (BAKHTIN, 2010a, p. 26). Dessa forma, um artista dentro desse cânone não iria misturar diferentes estilos, gêneros ou vozes porque isso trairia a unidade e a separação de cada um. Em contrapartida, Blankenbuehler percebe um mundo com uma cosmovisão carnavalesca, em que essa junção de elementos diferentes é algo que se deve almejar. Dessa forma, contrário ao corpo clássico, a coreografia de Hamilton se aproxima ao corpo grotesco do carnaval, definido como “[...] eternamente incompleto, eternamente criado e criador, um elo na cadeia da evolução da espécie ou, mais exatamente, dois elos observados no ponto onde se unem, onde entram um no outro.” (BAKHTIN, 2010a, p. 23). Outro ponto importante de ser comentado se refere à mésalliance na relação temporal passado/presente na coreografia de Hamilton. Esse aspecto pode ser percebido em como os atores representam figuras históricas do século XVIII, que, paradoxalmente, dançam como pessoas do século XXI. Ao longo desse subtópico, tivemos como objetivo responder a nossa terceira questão específica “De que maneira as mésalliances carnavalescas contribuem para a construção do discurso carnavalizado em Hamilton: An American Musical?”. Chegamos à conclusão de que as mésalliances estão presentes na relação oposta entre a etnia dos personagens históricos e os atores que os representam, o que, no caso analisado de Jefferson, também engloba uma subversão entre o relacionamento escravo/mestre. Vimos também que Hamilton age como uma força centrífuga, abrindo caminho para várias vozes e estilos musicais divergentes. Ao fim, percebemos que essa representatividade diversa se faz presente da mesma forma na coreografia, que também funciona com uma mistura de vários estilos de dança. No próximo subtópico, procuraremos mostrar como a profanação se faz presente no musical constituindo certos efeitos de sentido subversivo ao espetáculo.

5.2.4 A profanação em Hamilton

Antes de analisarmos a profanação no musical, iremos relembrar, brevemente, o que ela significa como categoria da cosmovisão carnavalesca. De acordo com Bakhtin (2010b), essa categoria diz respeito às descidas e subidas carnavalescas, as paródias e a subversão do alto e do sublime. Conceituado o termo, começaremos o estudo sobre essa categoria comentando como as ações de profanação se mostram no elenco.

138

5.2.4.1 A profanação no elenco

Além de ser algo familiar, excêntrico e contrastante, o elenco de Hamilton também pode ser considerado como uma paródia da “história oficial”. Para reforçar nosso argumento, compararemos uma imagem do nosso corpus com a imagem de um musical que, similarmente, aborda uma revolução, Les Misérables (1987, 6.680 apresentações). Faremos isso porque acreditamos que não se pode notar o que é parodiado e carnavalizado sem mostrar o que seria padrão e oficial, visto que, nas palavras do próprio Bakhtin (2018), “não se pode compreender uma paródia sem a sua correlação com o material parodiado, ou seja, sem a extrapolação dos limites de um determinado contexto” (BAKHTIN, 2018, p. 209). A seguir, podemos ver uma foto do elenco de Les Misérables.

Figura 19 - Elenco de Les Misérables

Fonte: Brickey (2019)148

A Figura 19 mostra os atores da peça Les Miz que, conforme já discutimos em nossa seção sobre musicais, conta a história da Revolução Francesa. Como podemos notar, os atores na imagem são brancos o que se manteve na maioria das produções desse espetáculo. Martin (2017) problematiza essa questão em um artigo para a Exeunt Magazine149. De acordo com o autor, houve apenas algumas raras exceções. Em 1993, Lea Salonga foi a primeira asiática a interpretar Eponine e, em 2007, a atriz foi a primeira asiática a ter o papel de Fantine. Além dessas produções, em 2008, Cornell John, um ator negro, interpretou Javert. Apesar dessas

148 Disponível em: . Acesso em out. 2019. 149 Fonte: . Acesso em out. 2019. 139

grandes conquistas, foi somente, em 2015, que um ator não branco interpretou o papel principal de Jean Valjean, o afro-americano, Kyle Jean-Baptiste150. Martin (2017) afirma que, ao não se escolherem pessoas de etnias diversas (ou fazerem whitewashing), quando se escalam atores brancos para interpretar personagens que não são brancos (um exemplo é Scarlet Johansson em Ghost In The Shell), se perpetua, na verdade, o mito do Salvador Branco151, em que um personagem branco resgata outros personagens que não são brancos. Como exemplo, podemos citar o episódio final da terceira temporada de Games of Thrones, em que Daenerys Targaryen resgata os escravos da cidade de Meereen, como podemos ver na Figura 20.

Figura 20 - Game of Thrones

Fonte: Dankievitch (2013)152.

A imagem acima mostra Dany, uma personagem branca com cabelos platinados, em meio a uma multidão formada por pessoas de outras etnias que ela libertou da escravidão. A multidão tenta tocar Dany e se refere a ela como “Mãe”. Essa falta de representatividade de Les Miz é, especialmente, problemática devido ao teor revolucionário da narrativa que, como Martin (2017) aponta, tende a atrair uma audiência liberal ou revolucionária, mas não ousa subverter o status quo ou se posicionar contra injustiças. No entanto, como a linguagem é uma arena de lutas ideológicas, haverá alguns jornalistas que reclamarão de que ter um elenco de atores negros seria fugir da realidade ou dos

150 Fonte: . Acesso em out. 2019. 151 Mais informações disponíveis no link: . Acesso em out. 2019. 152 Disponível em: . Acesso em: out. 2019. 140

propósitos do autor, como argumenta Delingpole (2019), sobre uma versão de Les Misérables da BBC, em um artigo para The Spectator, cujo trecho pode ser lido abaixo:

Alguém pode me indicar alguma evidência de que havia inspetores de polícia negros na França do início do século XIX; ou que um cavalheiro da África Ocidental era o que Victor Hugo tinha em mente quando criou este filho de um escravo de cozinha de navio? Caso contrário, devo assumir que este é outro exemplo deprimente das metas de cotas da BBC - 15% de representação de atores negros e de etnias minoritárias na tela até 2020 - tendo prioridade sobre a verossimilhança, a integridade artística e a satisfação do espectador153. (DELINGPOLE, 2017, tradução nossa)

Para responder a críticas como essa, Martin (2017) defende que a questão da verossimilhança não importaria, pois é comum existirem peças com aspectos mais excêntricas, como Cats, em que os atores se vestem de gatos, ou Beauty and the Beast, em que os móveis ganham vida. Já em relação à intenção de Victor Hugo, Martin (2017) lembra que Hugo em Les Misérables lutava contra injustiças sociais, o que pode ser visto no prólogo do livro, em que ele escreve:

Enquanto existirem, em virtude da lei e dos costumes, decretos de condenação pronunciados pela sociedade, criando artificialmente infernos em meio à civilização da terra, [...] enquanto a asfixia social for possível em qualquer parte do mundo; - em outras palavras, e com um significado ainda mais amplo, enquanto houver ignorância e pobreza na Terra, livros da natureza de Les Misérables não podem deixar de ser úteis154. (HUGO, 1987, p. 4, tradução nossa).

O preconceito seria uma das injustiças citadas por Hugo, de modo que não “fugiria” das intenções do autor tratar desse tema. Como Martin (2017) explica ver narrativas em que líderes políticos são representados apenas como pessoas brancas faz com que seja dito a “incontáveis bilhões de pessoas o que deveriam procurar nos líderes: [pessoas] brancas, que pertencerem a uma determinada classe, são cisgêneros e homens e heterossexuais155”

153 Em inglês: “Can anyone point me to any evidence that there were black police inspectors in early 19th- century France; or that a gentleman of West African extraction was what Victor Hugo had in mind when he created this son of a galley slave? Otherwise, I’ll have to assume that this is another depressing example of the BBC’s woke quota targets — 15 per cent representation of black and minority ethnic actors on screen by 2020 — being given precedence over verisimilitude, artistic integrity and viewer satisfaction. Very few of us licence- fee payers, I am sure, would consider ourselves to be racist. But the BBC would appear to be on a mission to make us feel as though we are by forcing us to notice stuff we shouldn’t have to notice.” Disponível em: . Acesso em out. 2019. 154 Em inglês: “So long as there shall exist, by virtue of law and custom, decrees of damnation pronounced by society, artificially creating hells amid the civilization of earth, [...] so long as social asphyxia is possible in any part of the world;—in other words, and with a still wider significance, so long as ignorance and poverty exist on earth, books of the nature of Les Misérables cannot fail to be of use.” 155 Em inglês: “countless billions of people what they should look for in leaders: to be white, to be of a certain class, to be cisgender and male and heterosexual.” 141

(MARTIN, 2017, tradução nossa), o que pode ter um efeito desencorajador, fazendo com que pessoas que não se encaixam nesse padrão não se candidatem a posições de poder perpetuando esse quadro. Outro ponto levantado por Martin (2017) é que um elenco composto somente por atores brancos faz com que esqueçamos como nossa sociedade é injusta e que nos conformamos em apenas aproveitar o espetáculo. No entanto, tal atitude não questiona ou problematiza os “infernos na terra” causados pelos poderes estabelecidos, o que era, justamente, a intenção de Victor Hugo. O autor termina o artigo ressaltando que produções de Les Miz que retratam apenas homens brancos ricos lutando na Revolução Francesa diluem essa mensagem de revolução e de luta contra injustiças que está no cerne da obra. Desse modo, Les Miz não terá tanta relevância como Victor Hugo desejava. Tendo discutido o exemplo do elenco de Le Miz e como ele reforça a história oficial e o status quo sem problematizar ou renovar a narrativa histórica, passaremos agora aos atores de Hamilton, que podem ser vistos na imagem a seguir.

Figura 21 - Elenco de Hamilton

Fonte: Miranda; McCarter (2016).

Em Hamilton, podemos ver que o elenco foge do que é esperado de uma narrativa da América Revolucionária, considerando que em 1776, pessoas que não fossem brancas não tinham sequer oportunidade de assumir cargos políticos. A escolha de um elenco diverso, composto, principalmente, por afro-americanos e latinos, não foi por mero acidente. Em uma entrevista para o The Guardian, Thomas Kail, diretor da peça, afirmou “Nós nunca imaginamos a escolha de elenco do show de nenhuma outra forma - nunca, nem por um segundo [...]. Somos muito conscientes do que estamos 142

fazendo aqui. Isso não se trata de não enxergar cor. Isso foi algo que pareceu essencial”.156 (KAIL, 2017, tradução nossa). Vale ressaltar que essa decisão continua sendo mantida na produção de Hamilton no Reino Unido. Ao contrário de Les Miz, Hamilton inverte o mito do salvador branco ao escalar atores de diversas etnias para interpretar figuras políticas brancas que lutaram e conquistaram a independência norte-americana. Desse modo, quem “salva o dia” são pessoas não-brancas, em especial, negros e latinos. Argumentamos que tal gesto de subversão do mito do salvador branco é realizada através da paródia da história oficial norte-americana. É importante ressaltar que não estamos nos referindo ao termo paródia em sua concepção negativa e puramente irônica, satírica, que apenas escarnece e destrói, mas, sim, da paródia medieval carnavalizada. Como já discutimos na subseção sobre paródia, Bakhtin (2010a, 2010b) afirma que a paródia carnavalesca possui caráter ambivalente, destruindo para propor algo novo. Para o autor “[o] parodiar é a criação do duplo destronante, do mesmo “mundo às avessas” (BAKHTIN, 2010b, p. 145). Assim, acreditamos que Hamilton conta uma narrativa histórica se relacionando dialogicamente com outras narrativas sobre a Revolução Americana e a política norte-americana, como 1776 e a própria biografia Alexander Hamilton lida por Miranda. O musical, inclusive, traz trechos reais de cartas, tratados e panfletos da época, que contribuem para estabelecer um universo crível e palpável, mas essa relação de repetição não é uma mera reprodução, mas, sim, uma “repetição com diferença” (HUTCHEON, 1985, p. 48) característica da paródia. Essa “diferença” em Hamilton acontece, principalmente, através da presença de atores não-brancos e elementos da cultura afro-americana e hispânica. Acreditamos que esses elementos fazem com que o musical se pareça com o carnaval, na medida em que este era visto como “[...] o triunfo de uma espécie de libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus.” (BAKHTIN, 2010a, p. 8). A “verdade dominante” e o “regime vigente” que são subvertidos são a verdade oficial histórica, em que a maioria dos pais-fundadores eram grandes fazendeiros escravocratas brancos, como Washington, Jefferson e Madison. Já a abolição das “relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus” está presente no fato de que esses pais-fundadores foram interpretados pelas pessoas que eles mesmos mantinham em um regime de escravidão. Dessa forma, Hamilton coloca

156 Em inglês: “We never imagined casting the show in any other way – never for one second [...] We are very conscious of what we are doing here. This is not colour-blind casting. It felt essential.” Disponível em: . Acesso em out. 2019. 143

escravos e “donos” de escravos em um patamar de igualdade, em uma época em que pessoas afro-americanas eram consideradas inferiores aos brancos. Além disso, defendemos que escalar propositalmente atores não-brancos para interpretar figuras políticas brancas é uma forma de destruir o passado do sistema escravocrata das Treze Colônias da América do Norte, marcado pela escravidão e pelo racismo sistemático. E ao mesmo tempo em que o musical destrói o antigo, ele renova a história, apresentando uma nova realidade, um “mundo de cabeça pra baixo”, em que pessoas não-brancas eram livres para poder participar ativamente da política. Assim não se trata de “apagar” as lutas e o preconceito sofrido por uma comunidade em uma espécie de revisão histórica, mas de mostrar que a história pode ser reivindicada de volta das mãos dos opressores a fim de que jovens que não se vêem representados nos livros de história ou em peças da Broadway possam saber que há espaço para eles na política, na história e nas artes. Tal efeito é comentado por Daveed Diggs, ator de Lafayette e Jefferson, que afirma que ter visto um ator afro-americano interpretando alguém como Jefferson ou Washington quando ele era criança poderia ter mudado a sua vida, para ele: “Muitas coisas que eu pensei que não eram para mim iriam ter parecido possíveis [...] Eu sempre me senti em desacordo com este país. Você só pode ser parado pela polícia sem motivo tantas vezes antes de dizer: ‘Foda-se isso157’” (MIRANDA; MCCARTER, 2016, p. 145). Após as explicações sobre a profanação no elenco, iremos analisar como a canção também contribui para que a história oficial seja subvertida e carnavalizada.

5.2.4.2 A profanação na canção

Anteriormente, vimos como o elenco de Hamilton contribui para a profanação da narrativa histórica. Nesse subtópico, todavia iremos mostrar como a letra e o uso do hip-hop são outros elementos que também profanam, através da paródia a história oficial dos Estados Unidos. Para isso, iremos analisar o excerto presente no Quadro 8. Esse trecho discute como a infância de Alexander foi marcada pela escravidão tanto na ilha de Nevis quanto na ilha de St Croix. De acordo com Chernow (2004), “[e]nquanto outros pais fundadores foram criados em arrumadas vilas da Nova Inglaterra ou em privilegiadas propriedades baronais da Virgínia,

157 Em inglês: “A whole lot of things I just never thought were for me would have seemed possible [...] I always felt at odds with this country. You can only get pulled over by the police for no reason so many times before you say, ‘Fuck this.””. 144

Hamilton cresceu em um buraco tropical de brancos dissipados e escravos turbulentos [...].158” (CHERNOW, 2004, p. 8, tradução nossa).

Quadro 8 - Trecho 6 de Alexander Hamilton

[Thomas Jefferson] And every day while [Thomas Jefferson] E, todos os dias, slaves were being slaughtered and carted enquanto escravos estavam sendo Away across the waves, he struggled and massacrados e transportados kept his guard up Para longe através do mar, ele lutou e Inside, he was longing for something to be a manteve sua guarda part of Por dentro, ele desejava ser parte de algo The brother was ready to beg, steal, O cara estava pronto para mendigar, borrow, or barter roubar, pedir ou negociar Fonte: Elaborado pela autora

A palavra “brother”, segundo Charters, Taylor e Jayakody (1994), é típica da linguagem familiar afro-americana. Os autores explicam que a comunidade afro-americana tem uma tendência histórica a estender as relações familiares até a estranhos, fenômeno chamado de relações de parentesco fictícias. Para embasar esse argumento os estudiosos citam a pesquisa de Guttman (1976), que conclui que essas relações, ao contrário do que muitos poderiam acreditar, já existiam antes da escravidão em várias culturas da África Ocidental. Essas culturas consideravam que estender as relações de parentesco era algo normal da vida social. Posteriormente, essas relações foram reforçadas durante a escravidão. Nos navios negreiros, os pais ensinavam seus filhos a chamar outros adultos que não pertenciam a sua família de “tia” ou “tio”. Essa extensão familiar servia para socializar as crianças na comunidade de escravos e a unir escravos uns aos outros. Em seu dicionário, Dunklin (1990) afirma que, atualmente, o vocativo “brother” é usado por afro-americanos para criar um senso de união racial e comunidade, geralmente, indicando que a pessoa chamada de “brother” tem uma ligação com o interlocutor, quer esta decorra de uma identificação social, profissional ou racial. Como vimos, o vocativo “brother” é tipicamente usado entre pessoas da comunidade afro-americana e, nesse trecho, é dito por Thomas Jefferson em rap, um gênero fortemente associado com a comunidade afro-americana. Jefferson era um rico fazendeiro, “dono” de muitos escravos, e, segundo Chernow (2004), “[...] considerava negros como naturalmente inferiores.159” (CHERNOW, 2004, p. 210, tradução nossa). Ao colocar Jefferson

158 Em inglês: “While other founding fathers were reared in tidy New England villages or cosseted on baronial Virginia estates, Hamilton grew up in a tropical hellhole of dissipated whites and fractious slaves [...].” 159 Em inglês: “[...] who regarded blacks as innately inferior”. 145

para falar como um afro-americano, Miranda profana a figura do Secretário do Estado ao colocá-lo em pé de igualdade com as pessoas que ele mantinha em regime de escravidão e considerava “naturalmente inferiores”. Esta cena pode ser considerada um exemplo da ação carnavalesca mais importante, a coroação do bufa e o destronamento do rei, em que “[c]oroa- se o antípoda do verdadeiro rei - o escravo ou o bobo, como se inaugurando e se consagrando o mundo carnavalesco às avessas.” (BAKHTIN, 2010b, p. 142). Essa coroação do inverso do rei ou, no nosso caso, do aristocrata da Virgínia, reflete os ideais da cosmovisão carnavalesca de transformação, instabilidade e renovação, que, segundo Bakhtin (2010b), mostram “a alegre relatividade de qualquer regime ou ordem social, de qualquer poder e qualquer posição (hierárquica)” (BAKHTIN, 2010b, p. 142). Desse modo, a linguagem carnavalizada de Hamilton reflete a esperança de que as palavras escritas pelo próprio Jefferson na Declaração da Independência160 realmente sejam verdade para todos os homens, não existindo distinções baseadas em cor da pele. Outro elemento de profanação mostrado através da paródia no musical é a visão familiar dos pais-fundadores. Jefferson afirma que Alexander estava pronto “para mendigar, roubar, pedir ou negociar”, palavras negativas, especialmente, quando se trata de alguém tão orgulhoso como Alexander. Esse aspecto da familiarização também parece estar presente nas críticas aos pais-fundadores feitas na obra. Apesar de Hamilton mostrar como Alexander superou as adversidades e se tornou uma figura influente, o espetáculo também o retrata como alguém arrogante, orgulhoso, ambicioso, obcecado com o poder e impulsivo. Essas características já estão presentes na primeira música de forma sutil, como podemos ver no Quadro 9.

Quadro 9 - Trecho 7 de Alexander Hamilton

[Company] Alexander Hamilton [Companhia] Alexander Hamilton (Alexander Hamilton) (Alexander Hamilton) We are waiting in the wings for you Estamos esperando nos bastidores por você (waiting in the wings for you) (Esperando nos bastidores por você) You could never back down Você nunca conseguiu deixar algo de lado You never learned to take your time! Você nunca aprendeu a esperar! Fonte: Elaborado pela autora

160 “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca pela felicidade”. Fonte: . Acesso em out. 2019. 146

Os dois últimos enunciados presentes no Quadro 8 estabelecem motifs, ideias recorrentes em uma obra, que serão retomados durante todo o musical. Estes referem-se ao fato de que Alexander sempre sente a necessidade de demonstrar arrogantemente o que pensa, o que pode ser visto em várias músicas. Em Non-Stop, esse traço de Alexander está presente durante toda a música. No entanto, destacamos o momento em que Alexander discursa durante seis horas sem pausas na Convenção Constitucional, propondo sua própria forma de governo e o momento em que em que ele arrogantemente afirma: “Agora, teremos uma forte democracia central/ Se não, então serei Sócrates/ Jogando pedras verbais/ Nessas mediocridades.161” Em One Last Time, quando Washington explica que Jefferson se demitiu do cargo de Secretário do Estado a Alexander, imediatamente, responde com “Usarei a impressa. Vou escrever sobre um pseudônimo, você vai ver o que vou fazer com ele”162. Essa falta de autocontrole, eventualmente, faz com que ele publique os Reynolds Pamphlets descrevendo como traiu a sua esposa para se livrar de uma acusação de desvio de dinheiro. Por fim, essa atitude também causa a morte de Alexander em duelo contra Burr. Tudo começa quando o vice- presidente afirma que Alexander o chamou de amoral, deixando implícito que se ele não se desculpasse seria necessário dizer isso cara a cara em um duelo. Alexander responde a carta piorando a situação: “Eu não vou disfarçar minhas opiniões/ Eu sempre as expus claramente/ [...] O senhor precisaria citar uma queixa mais específica/ Aqui está uma lista detalhada de trinta anos de desentendimentos163”. Em um país nacionalista como Estados Unidos em que a imagem dos pais-fundadores é tão idealizada, mostrar os defeitos dessas figuras ainda é algo raro, motivo pelo qual o historiador Ron Chernow, chamou o show de “história americana para adultos”164 (MIRANDA; MCCARTER, 2016, p. 125, tradução nossa). Após termos discutido a letra e o hip-hop, vamos, doravante, investigar a profanação na coreografia de Hamilton.

161 Em inglês: “Now for a strong central democracy/ If not, then I’ll be Socrates/ Throwing verbal rocks/ At these mediocrities?”. 162 Em inglês: "I'll use the press/ I'll write under a pseudonym/ You'll see what I can do to him". 163 Em inglês: "I will not equivocate on my opinion/ I have always worn it on my sleeve/ [...] You would need to cite a more specific grievance/ Here’s an itemized list of thirty years of disagreements". 164 Em inglês: “American history for grown-ups.” 147

5.2.4.3 A profanação na coreografia

Um elemento forte para a profanação em Hamilton é a narrativa do musical fazer com que os pais-fundadores, em sua maioria, ricos aristocratas escravocratas, dancem, aos ritmos associados à comunidade afro-americana, como o jazz, ragtime e boogie-woogie e hip- hop, o que faz parte do ritual de destronamento e coroação que vimos na letra. Além disso, esse ritual também está presente quando a coreografia é usada para criticar diretamente um dos políticos retratados, como é o caso de Jefferson em What'd I Miss?, que iremos analisar através de prints retirados do vídeo Hamilton Musical Clips165.

Figura 22 - Print 13 da coreografia

Fonte: Elaborado pela autora

A Figura 22 retrata Jefferson retornando da França para sua propriedade, Monticello, no estado da Virgínia. Como podemos perceber, há um grupo de dançarinos vestidos com roupa branca, luvas brancas e uma faixa preta na garganta, que visivelmente se assemelha às correntes de ferro usadas por escravos, logo, esses dançarinos representariam os escravos de Jefferson e estariam estão enfileirados para saudar o retorno do seu “mestre”, sempre incumbidos de carregarem seus pertences. Podemos perceber que a coreografia ajuda a profanar a imagem do político sulista, visto que Jefferson até hoje é conhecido como um libertário e defensor ardente da Revolução Francesa, que pregava o direito à liberdade, à vida e à busca pela felicidade. Sendo assim, percebemos, através dessa imagem, um destaque à hipocrisia de Jefferson ser um rico fazendeiro escravocrata. Sobre este aspecto, Miranda comenta que esse “[...] é o paradoxo de Jefferson feito realidade: o escritor que articulou a liberdade tão claramente era um participante ativo no sistema brutal de escravidão166”

165 Disponível em: . Acesso em out. 2019. 166 Em inglês: “It’s the paradox of Jefferson made flesh: The writer who articulated liberty so clearly was an active participant in the brutal system of slavery”. 148

(MIRANDA; MCCARTER, 2016, p. 152, tradução nossa). Daveed Diggs, ator que interpreta Thomas Jefferson, discutiu sobre a intrínseca ambivalência do caráter do político de Monticello em Hamilton’s America um documentário da PBS. O ator defende que

[v]ocê não tem que separar essas coisas com Jefferson. Ele pode ter escrito esse documento incrível e vários documentos incríveis com coisas em que todos nós acreditamos e ser uma péssima pessoa. As duas coisas são verdade e têm que ser verdade. (DIGGS, 2016, tradução nossa).

Searcy (2018) também aponta que os dançarinos, além do papel de escravos, também atuam como uma linha de coro, um elemento típico da Broadway, que remete à era de ouro dos musicais. Ao mesmo tempo, a presença do coro ajuda a criticar Jefferson ao estabelecer uma clara hierarquia entre o dançarino principal e os dançarinos do coro, que apenas servem para amplificar os movimentos do dançarino principal. Dessa forma, a coreografia desumaniza os dançarinos individuais para destacar Jefferson, refletindo como ele é desumano com seus escravos. É interessante notar que a crítica a Jefferson nessa cena específica é feita quase exclusivamente através da coreografia, o que contrasta com a melodia da canção em si, que é alegre e leve. A canção conta a história de um Jefferson sem preocupações enquanto a coreografia o caracteriza como escravocrata. Searcy (2018) aponta ainda outro contraste em relação à posição dos dançarinos na escada e seus efeitos de sentido. Para a autora:

[o] jogo entre as implicações nostálgicas e alegres do número da escada que relembra a idade de ouro [dos musicais] e seus elementos hierárquicos chama a atenção para a hipocrisia de Jefferson como proprietário de escravos que se proclama como lutador da liberdade [...]. Ao mesmo tempo, o uso dessa trope coreográfica que destaca o relacionamento de Jefferson com seus escravos pode refletir desconcertantemente também sobre o próprio número da escada, talvez lembrando o público da política de palco da Broadway167. (SEARCY, 2018, p. 459, tradução nossa).

Além disso, é importante mencionar que a coreografia retrata uma visão carnavalizada do Secretário do Estado que, normalmente, é mostrado como uma pessoa séria que não ri. Em contraste, Hamilton apresenta uma versão paródica de Jefferson, que se comporta como um bobo e age de forma espalhafatosa, infantil e cômica, conforme podemos ver nessas outras imagens.

167 Em inglês: “The play between the light-hearted, nostalgic implications of the golden age staircase number and its hierarchical elements draw attention to Jefferson’s hypocrisy as a slaveowner who proclaims himself a freedom fighter [...] At the same time, the use of the choreographic trope to highlight Jefferson’s relationship to his slaves can reflect back disconcertingly on the staircase number itself, perhaps reminding the audience of the politics of the Broadway stage”. 149

Figura 23 - Print 14 da coreografia Figura 24 - Print 15 da coreografia

Fonte: Elaborado pela autora Fonte: Elaborado pela autora

Como é possível observar pelas imagens, Jefferson coloca a língua para fora e age comicamente. A coreografia o retrata, assim, como alguém cômico, trazendo-o para o plano familiar e destruindo a distância épica do passado absoluto. Isto, de acordo com Bakhtin (2002), é uma particularidade do riso carnavalesco que “[...] destrói o temor e a veneração para com o objeto e com o mundo, coloca-o em contato familiar, e, com isto, prepara-o para uma investigação absolutamente livre”. (BAKHTIN, 2002, p. 413-415). Acreditamos que, através desses aspectos, Hamilton ajuda a desmascarar a figura de Jefferson revelando toda a hipocrisia desse pai-fundador e trazendo-o para o plano familiar, no qual essas falhas podem ser expostas. Essa característica de crítica é, aliás, um elemento essencial do carnaval e dos gêneros sério- cômicos que apresentam, segundo Bakhtin (2010b), “um tratamento da lenda profundamente crítico, sendo, às vezes, crítico-desmascarador”. (BAKHTIN, 2010b, p. 123). Nesse subtópico, tivemos o objetivo de responde a nossa última pergunta de pesquisa “De que forma a profanação adentra em Hamilton: An American Musical para construir sua dimensão carnavalesca?”. Chegamos à conclusão de que a profanação ocorre na escolha de elenco em que os escravos e “donos” de escravos são colocados em um patamar de igualdade, e nas letras e coreografia através da visão familiar dos pais-fundadores que são trazidos para a zona de contato familiar, lugar a partir do qual podem ser vistos de forma crítica e desmascaradora. Com isso, encerramos nossa análise do corpus de pesquisa, tendo investigado, com base na teoria bakhtiniana da carnavalização, os elementos da cosmovisão carnavalesca presentes no elenco, nas letras, nos ritmos e na coreografia do musical. Na próxima seção, iremos, para finalizar o trabalho, apresentar nossas considerações finais.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Quem vive, quem morre, quem conta a sua história?” Lin-Manuel Miranda, 2015.

Foi o propósito principal desta pesquisa analisar o musical Hamilton: An American Musical através das categorias da cosmovisão carnavalesca: familiarização, excentricidade, mésalliances e profanação. Ao fim de cada subtópico, procuramos responder resumidamente às perguntas de pesquisa, por isso, iremos nos concentrar agora em retomar de que forma os objetivos deste trabalho foram alcançados e, ao final, mostrar a contribuição desta pesquisa e, ao mesmo tempo, apontar perspectivas de estudos que esta dissertação deixa em aberto para futuros trabalhos acadêmicos. Nosso objetivo geral foi, ao longo da pesquisa, o de investigar a cosmovisão carnavalesca na construção do discurso carnavalizado em Hamilton: An American Musical. Pela análise, percebemos que a carnavalização atravessa profundamente a narrativa da peça musical, estando presente em todos os elementos analisados: nos atores que interpretam os personagens, nas canções do musical e na coreografia, especialmente, em relação à aproximação das figuras históricas e a quebra das barreiras hierárquicas. Nossos objetivos específicos, por outro lado, buscaram apontar os elementos da cosmovisão carnavalesca presentes na obra. Em relação ao primeiro objetivo específico, que foi o de investigar como são construídas as zonas de contato familiar em Hamilton, percebemos que a obra cria zonas de contato familiar ao escalar atores que representam os Estados Unidos atual, e que falam usando a linguagem familiar elogiosa/injuriosa e dançam de forma moderna. O nosso segundo objetivo específico foi o de analisar as cenas de excentricidade como recurso discursivo para a construção da carnavalização de Hamilton. Através da análise, notamos que essa categoria se faz presente na escolha de atores de várias etnias, na linguagem informal proferida por personagens históricos, bem como na dança que transforma gestos cotidianos em coreografia e na transformação dos dançarinos em atores que atuam diretamente na narrativa. Nosso terceiro objetivo específico foi o de investigar de que forma as mésalliances carnavalescas contribuem para a construção do discurso carnavalizado em Hamilton. Durante nossa investigação, percebemos que as mésalliances carnavalizam o musical através da escalação de atores afro-americanos para interpretar políticos brancos, de atores representarem 151

tantos os amigos quanto os inimigos de Alexander e da junção de vários estilos de música e de dança. Por fim, nosso último objetivo específico foi o de analisar de que maneira a profanação adentra em Hamilton. Quanto a isso, observamos que, ao mostrar que o espetáculo põe em cena escravos e os “mestres” em pé de igualdade, a peça musical, através da paródia da história americana oficial, acaba por nos dar uma visão familiar e crítica das figuras políticas. Ao final desta dissertação, acreditamos que nossa pesquisa pôde contribuir para expandir o número de trabalhos feitos sobre musicais a partir de uma análise pautada na teoria bakhtiniana da carnavalização, visto que, ao longo do processo de construção desse estudo, pudemos constatar que poucos são ainda os trabalhos acadêmicos encontrados em português sobre a temática. Por outro lado, temos a consciência de que esse trabalho não poderia preencher todas as lacunas relativas à análise de musicais carnavalizados, por isso ficam abertos para futuras pesquisas estudar outros aspectos da teoria em outras músicas de Hamilton que não foram contempladas neste estudo, bem como analisar outros musicais americanos carnavalizados, como The Book of Mormon e Rent, ou mesmo analisar musicais brasileiros, a exemplo do teatro musical Dr. Getúlio, de Dias Gomes, que, como o musical Hamilton, examinado nesta pesquisa, também conta, de forma subversiva e carnavalizada, a história política de um povo e de uma nação.

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