Pintura Odaymar. Gratitud

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PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS DOS MESTRES DE : ARQUIVOS DA CORPORALIDADE1

AUDIOVISUAL PRODUCTIONS OF MASTERS OF CAPOEIRA: ARCHIVES OF CORPORALITY

https://doi.org/10.5281/zenodo.5359917

Envio: 24/06/2019 ◆ Aceite: 01/08/2019

BRUNO SOARES FERREIRA

Jornalista e Radialista. Doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do (ECO- UFRJ). Professor Adjunto no Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Integrante do Núcleo de Pesquisa e Produção de Imagem (NUPPI). [email protected]

RESUMO: O presente artigo tem a proposta de discorrer sobre produções audiovisuais de mestres de capoeira, a partir do entendimento de que são formas de escritas de uma memória elaborada pela oralidade utilizando mídia sonora e imagens diversas (ilustrações, fotos e filmagens). Para tratar deste tema, localizamos o surgimento da capoeira como prática corporal e analisamos modos como seus saberes e técnicas foram registrados com uso dessas tecnologias. Tais exemplos são aqui denominados como “arquivos da corporalidade” e atuam como registro sonoro e imagético da capoeira a partir da ideia de que sua prática constitui uma tecnologia corporal elaborada pela experiência africana na diáspora.

PALAVRAS-CHAVE: Audiovisual; Capoeira; Descolonização; Escrita de si; Memória.

1 Este artigo é resultado parcial da pesquisa realizada durante o doutorado na Escola de Comunicação da UFRJ, sob orientação da professora Ivana Bentes, e que originou a tese “A 207 reinvenção dos arquivos da capoeira: uma arqueologia audiovisual e biopolítica” (2016).

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ABSTRACT: This article has the purpose of discussing audiovisual productions of masters of capoeira from the understanding that they are forms of writing of a memory elaborated by orality using sound media and diverse images (illustrations, photos and filming). To address this theme, we locate the emergence of capoeira as a body practice and analyze ways in which their knowledge and techniques were recorded using these technologies. Such examples are here referred to as "archives of corporality" and act as sound and imagery record of capoeira from the idea that its practice constitutes a body technology elaborated by the African experience in the diaspora.

KEYWORDS: Audiovisual; Capoeira; Decolonization; Self writting; Memory.

INTRODUÇÃO

A capoeira é uma prática cultural e técnica corporal de resistência e adaptação que foi desenvolvida por africanos de diversas etnias e seus descendentes a partir da diáspora no Brasil. Os mais antigos registros datam da segunda metade do século XVIII e mencionam um violento jogo praticado ao som de palmas e tambores, que aterrorizou as cidades coloniais e que foi perseguido pelas autoridades. A partir das primeiras décadas do século XX, a capoeira se dissemina por meio do surgimento das academias, conduzidas por mestres que elaboraram um formato de ensino guiado pela estética esportiva e cultural, que serviu para tirar a prática da marginalidade. De maneira geral a capoeira é um jogo e também uma tecnologia corporal baseada em uma mescla estratégica de dança e luta que alternam diversas intensidades de interação. É praticada ao som de cantos e instrumentos musicais da tradição africana, como atabaques, pandeiros, , agogô e reco-reco. Os cantos acontecem ao estilo de pergunta (solista) e resposta (coro) e uma parte considerável do seu cancioneiro tradicional foi elaborado a partir da memória oral e cancioneiro popular que refletiu sobre um passado de perseguições e que inspiram suas estéticas da existência. A proposta deste artigo é visualizar como esses conhecimentos foram elaborados por

meio de uma escrita audiovisual, entendendo o termo como a reunião em diferentes níveis de arquivos sonoros e imagens (ilustrações, fotografias e filmagens). Tais produções são aqui denominadas de arquivos da corporalidade. 208

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A TRADIÇÃO ORAL E A MEMÓRIA VIVA DOS MESTRES

Um aspecto fundamental de sua transmissão de conhecimentos é o contato presencial com mestres e mestras da prática, que por meio do compartilhamento de vivências e da oralidade conseguem perpetuar esses saberes corporais, que são formulados de maneira integrada ao ritmo e diálogo estratégico do jogo. Essas pessoas atuam a partir de uma forma de transmissão tradicional que se estabelece por meio da rememoração do passado e da formulação de narrativas que reflete uma filosofia de vida e um modo de ser fundamentado na sua prática coletiva. Assim, a confecção de instrumentos musicais, a constituição da roda como ritual que possui uma temporalidade própria, a organização hierárquica das pessoas que participam da capoeira e muitos outros aspectos elaborados por meio dessas vivências são fundamentados pela tradição oral, o que permite uma rica variação que é pertinente ao contexto da memória e que se esquiva de toda formulação totalizante e reducionista, adaptando-se às experiências variadas.

Esses homens e mulheres que utilizam a transmissão tradicional de saberes utilizando da oralidade são conhecidos como mestres ou mestras, e geralmente possuem um notório reconhecimento pelas comunidades onde atuam. Também passaram a ser reconhecidos no Brasil como griôs. O termo ganha destaque a partir de 2006 especialmente após sua utilização pela ONG Grãos de Luz2, instituição que contribuiu com a elaboração da Lei Griô3 no Brasil4, durante o primeiro mandato de Lula e com à frente do Ministério da Cultura. De acordo a Grão de Luz:

2 Fonte: https://capoeiraceaca.wordpress.com/mestres/ (Acesso em 23 de abril de 2019). 3 Resultado da Ação Griô Nacional que nasceu em 2006 como projeto criado e proposto pelo

Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô, da Bahia, ao programa Cultura Viva da Secretaria de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura. Fonte: https://capoeiraceaca.wordpress.com/leis/lei-grio/ (Acesso em 23 de abril de 2019). 4 O projeto da Lei Griô pode ser acessado na integra em 209 http://www.leigrionacional.org.br/files/2013/05/PL-Lei-Grio-Nacional-1786-2011.pdf (Acesso em 23 de abril de 2019). Página

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A palavra griô tem sua origem em bamanan (língua do noroeste da África, antigo império do Mali) e o seu significado é: “o sangue que circula”. Os griôs são como trovadores ou menestréis, considerados agentes que dão continuidade à cadeia da transmissão oral, fazendo circular os saberes tradicionais. (grifo original)

No contexto da diáspora africana nas Américas, a tradição griô foi responsável pela manutenção de diversos elementos das diferentes culturas africanas, ajudando a preservar conhecimentos e práticas entre as comunidades negras, como forma de resistência cultural. De acordo com o pesquisador Henrique Dutra

O griô, mestre griô ou mestra griô são homens e mulheres guardiões e guardiãs da memória, que possuem suas tradições transmitidas por gerações através da linguagem da fala e do corpo, sendo o indivíduo que valoriza o poder da palavra e da oralidade dentro de determinada comunidade. (DUTRA, 2005, p.21)

Na capoeira podemos visualizar a pedagogia griô de maneira evidente, tanto pela origem africana de grande parte de seus saberes como também pela inscrição do saber no corpo de seus praticantes. De acordo com a pesquisadora María Luz Rodríguez Cosme, em documento publicado no site da UNESCO (s/d p.04), a tradição atravessa um processo sociocultural que possui um momento de aprendizado e outro de uso. Segundo ela, o conhecimento da oralidade se conserva pela transmissão de uma memória histórica que é dinâmica e que transcende as gerações. Na capoeira, vemos este processo na relação que se estabelece em torno da figura do mestre e da mestra, que reúnem em torno de si pessoas empenhadas em apreender seus conhecimentos, o que acontece por meio desse movimento de duas fases descrito por Luz, onde um primeiro momento acontece o aprendizado para, em seguida, o conhecimento ser praticado e ensinado, como forma de manter um elo com as gerações anteriores que preservaram tais saberes.

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ARQUEOLOGIA DA PALAVRA “CAPOEIRA” E SEUS DIFERENTES SIGNIFICADOS

Como forma de traçar uma breve arqueologia de seu surgimento e entender o papel da oralidade em sua prática, apresentamos a seguir algumas evidências da capoeira no contexto de seu desenvolvimento especialmente em terras brasileiras.

A palavra capoeira é mencionada no primeiro século da invasão portuguesa na

América do Sul, conforme relatos da época, como é o caso dos escritos do padre Fernão

Cardim (1925), realizados por volta de 1598. Capoeira mencionada como termo oriundo da língua tupi, onde kaa refere-se à vegetação e puera é o pretérito nominal. É o local onde havia vegetação e que houve um desmatamento superficial, ou seja, as clareiras formadas pelas queimadas para o plantio de roça de toco, nas bordas das matas fechadas.

Capoeira passa a se referir especificamente a pessoas somente após as invasões holandesas no Brasil, durante o século XVII, ocorridas entre 1624 (Salvador – Bahia) e

1630 (Olinda e Recife – Pernambuco), sendo realizados pelos colonizadores em referência aos africanos e seus descendentes.

Com as invasões as colônias se desestabilizaram, o que favoreceu diretamente as fugas em massa dos escravos, que adentraram nas matas pelo caminho das , reunindo-se nos mocambos ou quilombos, como o de Palmares, que chegou a ter 20 mil pessoas em seu auge (1670). Tal processo serviu para que tais fugitivos fossem denominados “negros das capoeiras”, termo este que logo foi simplificado para

“capoeiras”. Trazemos esta perspectiva acerca da etimologia da palavra capoeira como forma de contextualizar o ambiente de seu surgimento, e ressaltando a resistência ao poder colonial pela população negra em suas diversas camadas de significados. Sob este

aspecto, concordamos com a pesquisadora Sonaly Silva que afirma que: 211

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quando nos propomos a discorrer sobre a gênese da capoeira, não buscamos um ponto original, mas investigar como essa experiência se engendrou, como se formou a teia que gerou a capoeiragem: os inumeráveis começos no processo de sua produção, as marcas singulares, as dispersões, as conexões de diferentes universos que se entrecruzaram e propiciaram o advento dessa prática no contexto brasileiro (2007, p.27).

Assim, um processo que permite visualizar sua formação enquanto prática se dá justamente na mudança da referência a um local (a mata queimada para roça) para a referência a um tipo de sujeito, que aqui é o negro fugitivo do sistema colonial escravista e que nas matas conseguiu reorganizar modos de vida calcados na experiência africana, por meio dos mocambos ou quilombos, que além de africanos, contou com indígenas, mestiços e até mesmo brancos fugitivos e/ou desertores. Por sua vez, o entendimento da capoeira como uma prática corporal especificamente acontece somente no final do século XVIII, no ambiente urbano das cidades portuárias do Brasil colonial, especialmente o Rio de Janeiro, Salvador e Recife. É neste contexto que surgem os primeiros relatos sobre um tipo de sujeito diretamente ligado à população negra escravizada que graças a técnicas peculiares de corpo consegue vencer diversos oponentes armados apenas com esquivas e uso de golpes utilizando os pés, cabeça e mãos. Após ser identificada como uma prática recorrente entre a população negra, a capoeira foi proibida, pois mesmo ocorrendo com utilização de cantoria e música, por outro lado fomentava acirrados enfrentamentos, que frequentemente resultavam em brigas e mortes, que ocorriam primeiramente entre os próprios praticantes, além dos inevitáveis confrontos com a polícia, conforme ressalta SOARES (1994, p.66):

“[...] a capoeira retinha dois significados – a festa, a brincadeira – e a violência. Violência esta que, ao contrário do que uma longa literatura da vida escrava cristalizou, não se dirigia somente contra os

representantes da ordem escravista, fossem senhores ou membros do aparelho repressivo do Estado, mas também contra seus iguais,

escravos, negros libertos, brancos pobres, participantes de outras 212 maltas.

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A violência também representava um possível foco de rebelião entre a população africana escravizada, que naquele momento constituía a maior parte da população colonial. Apesar da perseguição, muitos capoeiras assumiam um posicionamento político ousado, irreverente e questionador, o que resultava em confrontos frequentes com as autoridades. Sua prática foi ainda mais duramente perseguida depois da chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808, que resultou na criação da Guarda Real, naquele mesmo ano. Em relação ao aspecto irreverente de seus sujeitos, Soares informa que o capoeira era uma figura sui generis o universo da criminalidade urbana da Corte.

“Enquanto quase todos os personagens da marginalidade se preocupavam em permanecer ocultos na massa anônima, os capoeiras primavam pela notoriedade e pela fama” (SOARES, 1994, p.74).

O pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), que em 1821 fez parte da expedição ao Brasil do Barão de Langsdorff, cientista e diplomata russo, produziu a imagem intitulada Jogar capoëra - Danse de la guerre, com o objetivo de retratar sua prática nesse contexto. A imagem possui a seguinte descrição:

Os negros tem ainda um outro folguedo guerreiro muito mais violento, a capoeira: dois campeões se precipitam um sobre o outro procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita- se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas lançando-se um contra o outro, mais ou menos como bodes, acontece- lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça, o que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas entrem em jogo ensanguentando-a.

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Figura 01: Jogar capoëra - Danse de la guerre. Rugendas (1835) Fonte: Wikipedia

Percebemos que a descrição de Rugendas apresenta uma perspectiva similar àquela apresentada por Soares (1994, p.66) de que a violência não acontecia somente nos embates com a força policial, mas também entre os próprios praticantes. Assim, a prática da capoeira na colônia resultava em castigos físicos mortais. De acordo com a pesquisadora Myrian Sepúlveda dos Santos, as práticas punitivas no Brasil colonial incidiam diretamente sobre o corpo dos condenados e “incluíam esquartejamentos,

amputações, açoites, torturas físicas diversas e a marca de ferro quente. A imputação de penas não tinha a função de recuperar ou integrar o preso à sociedade e pouco se

recorria ao encarceramento” (2004, p.140). 214 Página

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Uma mudança na repressão à capoeiragem se dá em meados do século XIX, quando aumenta o número de brancos (na maior parte eram portugueses pobres, denominados de “engajados”) detidos por causa da capoeira. De acordo com o historiador Carlos Eugênio Soares (2004), a saída das autoridades foi estabelecer a prisão aos infratores, uma vez que os castigos físicos eram direcionados somente à população de origem africana. Com a chegada da república a capoeira passa oficialmente a crime, com o decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890.

Nesse contexto entre o final da monarquia e o início da república ganharam notoriedade as bandas ou maltas, que eram os grupos de capoeiras que dominavam determinadas zonas da cidade, como praças e fontes, e que rivalizavam entre si. Muitas dessas maltas eram contratadas pelos políticos em tempos de eleições, para intimidar adversários, causar tumultos e fraudar as urnas. Em troca, recebiam favores políticos.

Contudo, uma grande transformação inicia a partir das primeiras décadas do século XX, com a gradativa mudança da criminalização por meio de uma perspectiva esportiva e um retorno da visibilidade de uma pedagogia griô, até então escamoteada pelas perseguições, que fizeram com que a quase totalidade dos documentos e registros sobre a prática viesse somente das autoridades, e que produziu entre praticantes uma lógica do segredo em relação aos seus conhecimentos da capoeira. Aqui é importante frisar que antes dessas primeiras décadas do século XX em que se formula uma esportização, uma pessoa geralmente aprendia capoeira somente pela observação das rodas e/ou feitos de capoeiras em locais públicos. Quando tinha sorte conseguia receber dicas de praticantes mais experientes, geralmente parentes ou pessoas com alguma

relação de amizade, que por sua vez evitavam mostrar todo seu conhecimento, por

precaução e estratégia.

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OS MANUAIS

A mudança da marginalização para a esportização que estava ocorrendo no início do século XX teve como embasamento central um entendimento de que a capoeira era uma prática guerreira, mas que havia se degenerado por conta das maltas, e que deveria ser “resgatada” pelas qualidades como luta e jogo. Esta perspectiva pode ser percebida a partir da primeira obra prescritiva “Guia do capoeira ou gymnástica brazileira”, lançada em 1907, ainda sob a pressão da ilegalidade da prática. Esta obra manteve o anonimato do autor como medida de segurança, contando apenas com as iniciais “ODC”, que naquele contexto comumente eram usadas à guisa de uma dedicatória, significando “ofereço, dedico e consagro”.

Esta obra prescritiva é pioneira, apesar do caráter livresco. Em sua apresentação dá a entender que seu autor é um oficial do exército que seria praticante anônimo de capoeira, o que pode ser entendido a partir da atuação de capoeiras durante a Guerra do Paraguai, ocorrida entre 1864-1870, que inaugurou o mito do capoeira como o “herói brasileiro”, especialmente entre os militares. O autor deste livro apócrifo, afirma que contou com as informações de um praticante mais velho, que na ocasião estaria contando com cerca de 70 anos, ou seja, um mestre que possui a experiência e vivências da capoeira do tempo das perseguições e que talvez tenha inclusive participado da Guerra do Paraguai. O pioneirismo do “Guia do capoeira” também se deve ao fato de tentar traduzir técnicas corporais por meio de ilustrações e pequenas descrições. Infelizmente, não chegaram até a atualidade cópias do livro original. A cópia que havia na Biblioteca

Nacional (a única que se tinha notícia) foi roubada e o Guia do capoeira foi preservado parcialmente por meio de Aníbal Burlamaqui, que na época datilografou o conteúdo do

livro, mas não conseguiu reproduzir as imagens, conforme apontou Vieira (2004).

Posteriormente, Burlamaqui lançou seu próprio manual, intitulado “Gymnástica

nacional (capoeiragem) methodizada e regrada”, de 1928. 216 Página

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Contudo, é importante ressaltar que essa perspectiva livresca sobre a capoeira não pode ser considerada como vinda de uma matriz cultural africana e da pedagogia griô, que esteve oculta e mantendo seus conhecimentos a partir de uma lógica do segredo, por causa das perseguições, ainda que mencione a presença de um praticante mais velho como consultor da obra. Antes pode ser entendida como uma tentativa de apropriação da cultura branca de parte de seus elementos discursivos e corporais, bem como uma estratégia para retirar toda a essência africana da capoeira, com a intenção de conquistar um público entre a sociedade brasileira que está se formando com o final do Império e início da República.

A PEDAGOGIA GRIÔ E O SURGIMENTO DAS ACADEMIAS

A transformação na prática que pode ser entendida como parte de uma estratégia de pedagogia griô acontece somente com o surgimento das primeiras academias, na cidade de Salvador, e que foram realizadas pelo empenho e espírito visionário dos próprios mestres da época. Entre os pioneiros, destacamos Mestre Bimba (, 1899-1974), criador da capoeira regional (estilo mais focado no esporte e defesa pessoal) e Mestre Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha, 1889-1981), um dos maiores ícones da capoeira angola (estilo com maior ênfase na musicalidade e filosofia afrobrasileira), que com o prestígio e sagacidade conseguem a liberação das autoridades para a abertura de suas academias, em 1932 e 1941, respectivamente, a partir de uma proposta legitimada pelo esporte, mas que traz consigo os elementos culturais da cultura negra como parte estruturante da prática5. Com eles começa um período marcado pelo desenvolvimento de metodologias de ensino em forma de treinos físicos e musicais que são voltados para participar da roda, na qual se transmitem ensinos e a memória acerca do passado que foi preservada por meio do cancioneiro tradicional.

217 5 Ressaltamos que os mestres Bimba e Pastinha também são pioneiros na idealização e produção de produções audiovisuais, como veremos adiante. Página

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Com a esportização, o termo “capoeirista” se dissemina para se referir à pessoa que pratica capoeira, seguindo a perspectiva da palavra “esportista”. A esportização foi uma maneira que os mestres encontraram para transmitir seus conhecimentos calcados na oralidade, funcionando como uma negociação com o estado e a sociedade da época para que a prática se afastasse da marginalização que a acometeu por séculos e pudesse se aproximar da classe trabalhadora e da classe média. A prática no ambiente fechado e institucionalizado da academia também tinha por objetivo apagar a capoeira das praças e ruas, onde até então era seu ambiente principal. Contudo, a prática permaneceu nesses locais, mas se transmutou para uma forma mais espetacularizada, com o objetivo de atuar pela perspectiva do mercado do turismo da cidade de Salvador.

Esse processo de esportização da capoeira e sua popularização constitui-se em uma reconfiguração de um elemento oriundo da cultura negra desenvolvido como forma multilinear de resistência à colonização para serem acessadas por segmentos de uma classe social que emerge nas primeiras décadas do século XX graças à industrialização. De acordo com a pesquisadora Muleka Mwewa (2005, p.75), com o aumento do tempo livre surge uma preocupação do que fazer com ele. É nesse espaço que a capoeira ganha terreno, como prática voltada ao lazer de uma população assalariada. Contudo, ao invés de simplesmente ocorrer o enquadramento e formatação da capoeira pela lógica mercadológica, o que ocorre não é simplesmente uma adequação, mas uma inversão de posições, “pois parte das camadas subalternas torna- se referência pedagógica das camadas médias da sociedade em diferentes países”

(MWEWA, p.17).

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ARQUIVOS DA CORPORALIDADE: SABERES DA PRÁTICA

Nesse contexto do surgimento das primeiras academias de capoeira, Mestre Bimba teve um destaque considerável, uma vez que além do pioneirismo quanto à elaboração de um método sistematizado de treinos, também foi inovador em termos de produções sonoras, lançando o LP “Curso de capoeira regional”, no ano de 1962, que pode ser considerada uma obra calcada na experiência de transmissão griô construída em décadas de ensino, porém utilizando uma nova mídia que se popularizava naquele período, o que também era uma saída para a deficiência da capacidade de escrita tradicional, uma vez que Bimba era analfabeto funcional e sabia apenas assinar o próprio nome. Sua obra inaugura o surgimento dos “arquivos da corporalidade”, formulados não simplesmente para uma apreciação ou consumo musical, mas como estratégia para registro e ensino das técnicas da capoeira e também de sua filosofia.

219 Figura 02: capa do disco de Mestre Bimba (1962)

Fonte: acervo pessoal do autor Página

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Podemos pensar a elaboração dessa obra como mais uma camada nas negociações dos mestres e a sociedade da época para legitimar a prática dentro de um contexto esportivo e como forma de enfrentamento da marginalização institucionalizada contra a população negra. Esse disco também é uma forma de guardar uma memória sem deixar de lado a oralidade, pois enquanto o papel registra de maneira fria os elementos musicais, a interpretação e demais aspectos corporais, o disco preserva a performance, as nuances da voz, bem como os ritmos e sonoridades dos instrumentos musicais. Não podemos nos esquecer que naquele contexto lançar um disco era um fato destacado no cotidiano, restrito a artistas e passível de ser tocado no rádio.

Sob este aspecto, é um trabalho inovador e que transforma consideravelmente a prática e ensino da capoeira, até então acontecendo somente pelo contato direto com os mestres e praticantes mais experientes. A partir de então é possível conhecer e até mesmo aprender, ainda que de maneira básica, alguns elementos da sua musicalidade, inclusive nuances de sua oralidade que não poderiam ser expressas em sua amplitude por informações impressas em papel.

O disco apresentava, no lado A, os toques utilizados na capoeira regional; e, no lado B, trazia cânticos tradicionais da capoeira. Apesar de inovar com a criação de um novo estilo de capoeira, Mestre Bimba seguiu a tradição ao estabelecer um tipo de jogo para cada toque de , tal qual acontecia na capoeira tradicional, o que servia para o aprendizado de diversas possibilidades de expressão corporal e serve aqui como

uma evidência das nuances dos conhecimentos corporais que são elaborados pela

pedagogia griô e que podem assumir uma nova perspectiva sem molestar a essência dos 220 saberes.

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Os toques apresentados com o “Curso de capoeira regional”foram: São Bento Grande, Cavalaria, Benguela, Santa Maria, Iúna, Idalina e Amazonas. Por sua vez, no lado B do disco, Bimba apresentava duas formas específicas de versos utilizados nos seus treinos: Quadras (quatro versos seguidos de coro) e Corridos (dois versos seguidos de coro). De acordo com Muniz Sodré, que foi aluno de Mestre Bimba, ele estabeleceu as seguintes possibilidades de jogo para seus alunos, orientados por meio dos toques de berimbau:

São Bento: O mais veloz de todos, destina-se ao jogo duro, a que não estranha a possibilidade de violência. Cavalaria: não tão rápido como o São Bento, mas também caracterizado pela violência. Santa Maria: toque rápido, dá margem a movimentos mais soltos e a floreios de corpo e mãos. Benguela: jogo colado à maneira do que na angola se chamava “jogo de dentro”, com sugestões de defesa contra faca. Idalina: tipo de toque acentuadamente “mandingueiro”, que incentiva o jogo alto e a malícia. Amazonas: toque sutil, com ritmos e variações melódicas diversificadas. Iúna: toque que merece um destaque – destinado aos capoeiras mais experientes ou simplesmente a um jogo de formados em ocasiões de festa. Foi criado pelo Mestre em homenagem a uma ave do sertão conhecida como iúna. (SODRÉ, 2002, p.78 – grifo original)

Além disso, o disco vinha acompanhado de um livreto com explicações e ilustrações sobre suas sequências de treinos. Este formato de mídia sonora acompanhada de um livreto ilustrado permitiu que elementos da oralidade, como as nuances, ritmos e formas de execução musical pudessem ser aprendidas por pessoas que estivessem para além do alcance da academia de Mestre Bimba, levando essa

oralidade a outros locais para além da sua presença física e servindo como um registro desses conhecimentos.

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Figura 03: página do livreto que acompanha o disco Curso de capoeira regional Fonte: acervo pessoal do autor

Ressaltamos ainda que em seus cânticos é possível perceber toda a experiência

da capoeiragem ligada à resistência à escravidão e marginalização da população negra na sociedade brasileira. Com eles, Mestre Bimba traz ao ouvinte a essência da filosofia

que perpassa a capoeira, formulada como resistência à escravidão e as perseguições, 222

como podemos perceber nos versos a seguir: Página

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Aquele quem me ensinou Tá no Engenho da Conceição Só devo é o dinheiro Saúde e obrigação Sou discípulo que aprende Sou mestre que dá lição O segredo de São Cosme Só quem sabe é Damião, camará

Importante mencionar que sua obra abriu caminho para que mais mestres se motivassem em registrar seus conhecimentos utilizando da mídia sonora. Assim, outras experiências se sucederam em termos de registros sonoros, como os discos “Capoeira da Bahia”, lançado em 1963, que contou com a participação de Traíra, Gato e Cobrinha Verde; e ainda, o antológico disco “Capoeira angola: Mestre Pastinha e sua academia” (1969), que conta com depoimentos de Mestre Pastinha sobre a capoeira do passado, que irrompem em meio às músicas. A seguir, alguns depoimentos de Mestre Pastinha6 que estão presentes em seu disco e que mostram um pouco de suas memórias e evidenciam as perseguições pelas quais frequentemente passavam seus praticantes:

Eu me chamo Vicente Ferreira Pastinha. Eu nasci para a capoeira. Só deixo a capoeira quando eu morrer. Eu amo o jogo da capoeira e não há outra coisa melhor na minha vida, no resto da minha vida, que seja a capoeira. Hoje eu estou com 79. Óia, minha vida é uma vida muito atrapalhada pra eu contar, mas tem centenas de pessoa, milhares de pessoas que me conhece, que já me acompanharam de infância e que vem me acompanhando poderá dizer alguma coisa. Todos eles que quiser dizer alguma coisa sobre minha biografia, pode dizer quarquer coisa, eu aceito toda e quarquer. Agora tem uma coisa, num fui bobo! Na roda de capoeira, Eu num fui bobo! Na mandinga eu não fui bobo não, viu? Agora pra eu dizer, pra eu contar assim, eu não vou contar nada porque se eu contar fica uma coisa muito longa e parece que eu estou no céu. Muitas desordem que o capoeirista fazia não era propriamente por ele, era também provocada. Porque se estava numa vadiação com um

223 6 Preferimos apresentar as falas de Mestre Pastinha de um modo mais próximo de como estão no disco ao invés de “corrigi-las” de acordo com normas vigentes da língua portuguesa. Página

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berimbau na mão, eles passavam e entendiam de querer tomar pra quebrar, aí inflamava né? Muito capoeirista não queria perder seu instrumento, não é? O íntimo do capoeirista não queria perder seu instrumento. Então o que nós tinha que brigar.

Mestre Pastinha iniciou uma linhagem de discos na capoeira que traz as narrativas dos mestres em cunho mais autobiográfico e documental, alternando e sobrepondo musicalidades e depoimentos de sua experiência de vida com a capoeira. Esta forma utilizada por Pastinha virou um modelo e foi utilizado também por outros mestres para descrever suas vivências na capoeiragem. É o caso dos discos “Capoeira da Bahia”, do Mestre Paulo dos Anjos, que foi lançado em 1985; e, ainda, o disco “Capoeira: Mestre Canjiquinha & Mestre Waldemar”, de 1986, entre diversos outros mestres que também produziram seus materiais como forma de registro de seus saberes.

224 Figura 04: capa do disco de Mestre Pastinha (1969)

Fonte: http://svencapoeira.blogspot.com/2009/10/pastinha-lp-1969.html Página

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Podemos considerar tais produções como escritas audiovisuais, uma vez que registram os conhecimentos e oralidade dos mestres com grande parte de suas nuances, e os preservam no tempo e espaço. Esses materiais seguem uma perspectiva de uma “escrita de si”, tal qual propôs Michel Foucault (2010 p.145), para quem a escrita de si é um conceito que se refere à seleção de coisas que se fez ou se pensou e que é oferecido a um olhar possível. A escrita de si formula conhecimentos que visam alcançar outras pessoas, perpetuando-se no tempo e espaço, sendo realizada especialmente a partir da experiência subjetiva. Em certo aspecto uma “escrita de si audiovisual” seria uma forma encontrada para que alguns aspectos da oralidade fossem preservados, em detrimento da linguagem escrita. Tal transformação é ainda mais evidente pelo próprio local de enunciação desses conhecimentos, uma vez que no tempo da criminalidade e marginalização institucionalizada os praticantes de capoeira não puderam deixar registros desses conhecimentos e vivências, pelas perseguições que houveram e que calaram suas narrativas. Os únicos registros referentes à prática da capoeiragem entre os séculos XVIII e XIX foram elaborados por instituições de repressão, como a polícia, além da imprensa da época e os relatos de viajantes que passaram pelo Brasil colonial, o que demonstra o empenho do poder imperial em dizimar e silenciar a população negra que insurgisse contra o sistema escravocrata. Todos estes relatos estão impregnados pela perspectiva da marginalização, ainda que eventualmente exaltem as proezas, capacidades e conhecimentos corporais dos capoeiras em enfrentar diversos oponentes, inclusive armados. Este processo imposto à população negra e enfrentado nesse caso pelos capoeiras nos remete a outro conceito foucaultiano, de sujeito infame (FOUCAULT, 2003), uma vez que registram informações dos capoeiras apenas como um rastro do poder exercido sobre eles pelas instituições como a polícia. Foucault afirmou que esses discursos do poder “realmente atravessaram vidas; essas existências foram efetivamente riscadas e perdidas nessas palavras” (2003,

p.04). Eles se tornaram um fragmento obscuro daquilo que não é dito, como se não 225

devessem existir na sociedade. Podemos dizer que os sujeitos infames foram aqueles Página

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que aparecem apenas por meio da incidência da luz das autoridades que foram jogadas momentaneamente sobre eles. “O ponto mais intenso das vidas, aquele em que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas” (id., ib., p.05). Os conhecimentos da capoeira só puderam ser acessados pela sociedade a partir do momento em que a prática deixou de sofrer perseguições, propiciando aos mestres e mestras que seus saberes pudessem ser propagados, o que foi amplificado pelo alcance dessas produções audiovisuais, que obtiveram grande aceitação, especialmente no contexto das academias de capoeira e popularização da tecnologia sonora. Em muitos locais esse material era utilizado durante os treinos nas academias, ajudando as pessoas desconhecedoras da cultura negra do Brasil a se familiarizarem com o cancioneiro tradicional da capoeira e com as histórias contadas pelos mestres, o que ocorre inclusive em relação a pessoas estrangeiras que estão aprendendo a capoeira e a língua portuguesa na atualidade.

PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS E MEMÓRIA ORAL

A experiência da oralidade que perpassa esses arquivos sonoros ganhou uma nova camada com a popularização dos DVD’s, uma vez que acrescentou a imagem em movimento ao som, quando antes apenas ilustrações e fotografias eram utilizadas. Diversos mestres produziram suas próprias obras, sejam CD’s ou DVD’s, como forma de preservar suas perspectivas para a capoeira. A partir do início do século XX muitas obras que foram lançadas no formato LP foram reeditadas em formato CD. Um exemplo que acompanhamos durante a pesquisa de elaboração da tese, produzida na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO- UFRJ, 2016) foi o processo criativo realizado por Antônio José da Conceição Ramos (1953-2017), conhecido como Mestre Patinho, considerado uma das maiores

referências da capoeira do Maranhão na virada do século XX para o XXI. Ele produziu em 2008 o CD “Capoeira Laborarte” seguindo a mesma perspectiva iniciada por Bimba e

Pastinha, de trazer depoimentos, músicas e toques de berimbau, além de contar com a 226

participação de seus alunos e alunas. E então, no ano de 2013, produziu o DVD “O novo Página

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no velho sem molestar raízes”, no qual procurou sistematizar suas aulas semanais e o método de aprendizado desenvolvido por ele e denominado “Consciência pelo movimento”. Seu DVD contém, em essência, seu modo de ensinar e a sistematização básica das aulas que ministrava três vezes por semana no Centro Cultural Mestre Patinho7.

Figura 05: capa do DVD de Mestre Patinho (2013) Fonte: acervo pessoal do autor

7 Funcionando desde 2001 na Rua São Pantaleão nº 513, no Centro de São Luís – MA. É a casa 227 onde nasceu e onde viveu seus últimos anos de vida. Atualmente, segue com atividades de capoeira, tambor de crioula e caixa do Divino Espírito Santo. Página

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Em sua perspectiva, tal qual podemos visualizar pelo DVD, a capoeira possui três alturas, três distâncias e três andamentos. Sua proposta pedagógica seguiu um entendimento de que a capoeira deve ser jogada de acordo com o que o berimbau está tocando, seja lento (como o toque de Angola), moderado (São Bento Pequeno) ou rápido (São Bento Grande), e que também pode ser percebido nos diferentes toques que Mestre Bimba e outros mestres sempre enfatizaram, como forma de aprender os diferentes jogos de capoeira, seja o jogo floreado e esteticamente intrincado como o jogo veloz e combativo, entre outras possibilidades.

Tal perspectiva também foi ressaltada por antigos mestres como Washington

Bruno da Silva (1925-1994), conhecido como Mestre Canjiquinha e para quem Mestre

Bimba (o criador da regional) “era tão angoleiro quanto ele”, com a única diferença de que criou um método de ensino próprio8. Este depoimento, por exemplo, atualmente está disponível na plataforma de compartilhamento de vídeos YouTube, o que permite que pessoas localizadas em diversas partes do planeta possam ter acesso a conhecimentos que até meados do século XX eram transmitidos somente presencialmente nas academias e nos ambientes nos quais havia a presença de praticantes de capoeira.

Sob este aspecto, percebemos que Mestre Patinho mantém em seu discurso um elemento também aprendido pela oralidade, uma vez que entre os mestres com quem aprendeu, destacamos Anselmo Barnabé Rodrigues (1948-1982) conhecido como

Mestre Sapo, e que foi aluno de Mestre Canjiquinha. Sua busca foi sempre a de manter as tradições da capoeiragem sem desvincular-se de suas raízes.

Tal entendimento mostra como os conhecimentos da oralidade conseguem

permanecer firmes entre as pessoas que praticam a capoeira para além do tempo e 228

8 Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=KuFI3VcsuNo Página

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espaço, pois são justamente tais elementos que são aprendidos juntamente com as técnicas corporais. Assim, para além dos conteúdos presentes no seu cancioneiro, também o conhecimento acerca dos toques de berimbau e os modos de jogar revelam esses posicionamentos dos mestres mais antigos. Com o uso do meio audiovisual, esses depoimentos tornam-se potencialmente disponíveis para acesso por praticantes e pessoas interessadas na capoeira na atualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O acervo audiovisual dos mestres de capoeira pode ser considerado como um arquivo peculiar porque está imerso na experiência de praticantes experientes, os mestres de capoeira, e que acontece em consonância com a memória acerca de sua história, marcada pela resistência da população negra frente à escravidão e ao sistema colonial.

Este material funciona ainda como um contraponto aos documentos advindos do estado brasileiro e de seu aparato repressivo colonial e que se constitui por meio da memória oral dos mestres e mestras. Em certa medida, preservam a oralidade e ensinos transmitidos de geração em geração.

Tais conteúdos audiovisuais continuam a ser revisitados na atualidade, como forma de preservar a memória dos antigos mestres e as tradições que foram passadas por meio da oralidade e da pedagogia griô. Esses saberes estão nos cânticos, nas explicações dos movimentos de ataque, defesa e esquivas que acontecem nas

academias e ainda na própria conformação da roda como ritual, no qual o tempo mítico

é acessado por meio do som dos instrumentos musicais. Desse modo, o conhecimento

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dos mestres segue se renovando nas mãos dos seus discípulos e discípulas, que rememoram e ensinam às novas gerações.

Importante ressaltar o papel dessas produções na elaboração dos treinos práticos em muitos contextos, uma vez que contribuem para dar cadência aos exercícios que são orientados pelos mestres e mestras, bem como auxiliam no aprendizado dos toques de berimbau. Este tipo de uso se fundamenta sobre uma forma ativa de audição, uma vez que é realizada praticando os movimentos da capoeira.

A ideia do uso desse material audiovisual por praticantes não é substituir a roda de capoeira, mas se preparar para participar dela, bem como para aumentar o repertório de músicas, conhecer novas formas de versos e também conhecer as peculiaridades que existem entre a diversidade de grupos, o que ressalta nuances e estilos de cada mestre e mestra, bem como a forma como elaborou seus conhecimentos sobre uma base que é compartilhada coletivamente.

Finalmente, é importante ressaltar a precariedade da linguagem escrita para qualquer tentativa de traduzir esses conhecimentos musicais e corporais que são perpassados através dessas obras. Sob este aspecto, nosso objetivo com este texto foi mais o de indicar algumas possibilidades para acessar conhecimentos corporais por meio de obras audiovisuais, sejam elas discos ou filmes, do que descrever o imenso universo que existe neles.

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Capoeira da Bahia. Paulo dos Anjos. Brasil: 1989. 28 minutos.

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Pintura Odaymar: Comienzo.

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