NO CINQÜENTENÁRIO DA CONSTITUIÇÃO DE 1946, A DEFESA DA CARTA NA POSSE DE CAFÉ FILHO

Osny Duarte Pereira

RESUMO

Neste artigo-depoimento procura-se recapitular alguns fatos históricos referentes ao contexto de elaboração de nosso trabalho sobre a Carta Constitucional e sobre a Constituinte de 1946 intitulado Que é a Constituição?. Busca-se também relembrar um episódio pouco conhecido na história do Direito Constitucional brasileiro: a defesa da Constituição de 1946 na posse de Café Filho.

PALAVRAS-CHAVE: Constituição de 1946; Cadernos do Povo Brasileiro; governo Café Filho; governo João Goulart; golpe de 1964.

“Os homens políticos podem às vezes gozar da impunidade, porque morrem; mas as nações nunca podem, porque vivem sempre o bastante para sofrerem as conseqüências dos seus atos”.

Funck Brentano

INTRODUÇÃO tuar seu aparecimento no contexto político da época, que é marcado, dentre outras coisas, por Sociólogos, cientistas políticos e historia­ uma intensificação do movimento nacionalista, dores estão comemorando os avanços sociais, cujo sintoma anterior havia sido a criação do políticos e econômicos ocorridos no País, pas­ ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) sados 50 anos do término da Assembléia Cons­ em julho de 1955. A fim de melhor explicar aos tituinte e da elaboração da Constituição de 1946, leitores contemporâneos este contexto, repro­ que refletiram a derrota do nazismo na Segunda duzo abaixo trechos de meu depoimento Minha Guerra Mundial. A Revista de Sociologia e Polí­ passagem pelo ISEB, publicado no ano passado tica da Universidade Federal do Paraná, por em comemoração aos 40 anos de formação da­ exemplo, lança um número especial dedicado quela instituição (PEREIRA, 1995). ao exame do assunto. “No ISEB, pregava-se a unidade dos pro­ Solicitados a contribuir, optamos por forne­ gressistas, independentemente de coloridos cer um pequeno depoimento sobre o contexto ideológicos e convicções partidárias. Fui inclusi­ político em que publicamos nosso livro Que é a ve Professor-Chefe do Departamento de Ciência Constituição?, na coleção Cadernos do Povo Política do ISEB, entre os anos de 1962 e 1964. Brasileiro, editada pelo saudoso Ênio Silveira, Entretanto, mais importante que mencionar meu e recordar um episódio pouco abordado na his­ desempenho nesta entidade, é recordar o ambi­ tória do Direito Constitucional brasileiro: a de­ ente social e político em que o ISEB era convo­ fesa da Carta de 1946, na posse de Café Filho, cado a participar dos grandes debates travados em decorrência do suicídio do Presidente Getú- no período imediatamente anterior ao golpe de lio Vargas. Estado de 1964. No tocante ao meu livro Que é a Constitui­ ção? — cujo subtítulo é Crítica à Carta de 1946 1. AS CONTRADIÇÕES NO GOVERNO com vistas a Reformas de Base — devemos si­ JANGO E O ISEB DEFESA DA CONSTITUIÇÃO DE 1946 NA POSSE DE CAFÉ FILHO

O Governo de João Goulart se caracterizou Nelson Werneck Sodré escreveu: Quem é o povo por posições contraditórias, assim como o no Brasil?; Álvaro Vieira Pinto: Porque os ricos governo anterior de Getúlio Vargas (1951- não fazem greve?; Wanderley Guilherme dos 1954). Por um lado, estimulava alianças com os Santos: Quem dará o golpe no Brasil?; sindicatos e, por outro, através de seu Plano Trie­ Theotônio Júnior: Quais são os inimigos do nal, elaborado pelo ministro do Planejamento povo?; Bolívar Costa: Quem pode fazer a , tentava uma política de esta­ revolução no Brasil?; Nestor de Holanda: Como bilização baseada em contenção salarial e em seria o Brasil socialista?; Franklin de Oliveira: satisfazer imposições do Fundo Monetário Inter­ Que é a Revolução Brasileira?; Paulo R. nacional, com o objetivo de obter empréstimos. Schilling: O que é a Reforma Agrária?/ Maria Em 1963, Goulart preconizava implantar as Augusta Tibiriçá Miranda: Vamos nacionalizar Reformas de Base, estruturadas nas discussões a indústria farmacêutica?; Sylvio Monteiro: que se desenvolviam no ISEB. Essas reformas Como atua o imperialismo ianque?; Jorge consistiam numa revisão do sistema cambial e Miglioli: Como são feitas as greves no Brasil; de política de comércio exterior, buscando o Helga Hoffmann: Como planejar nosso equilíbrio da balança de pagamentos; regula­ desenvolvimento?; Pe. Aloísio Guerra: A Igreja mentação ao capital monopolista estrangeiro; re­ está com o povo?; Aguinaldo N. Marques: De forma tributária e de política financeira; reforma que morre o nosso povo?; Édouard Balby: O agrária, incluindo medidas parciais em benefício que é o Imperialismo?; Sérgio Guerra Duarte: dos camponeses e política de desenvolvimento, Por que existem analfabetos no Brasil?; João tudo amplamente divulgado pelos jornais de Pinheiro Neto: Salário é causa de inflação?; abril de 1963. Plínio de Abreu Ramos: Como agem os grupos de pressão?; Pimentel Gomes: Por que não O ISEB foi convidado pelo Chefe do Ga­ somos uma grande nação?; Vamireh Chacon: binete Civil de Jango a elaborar, com outros Qual a política externa conveniente ao Brasil? ; intelectuais, um projeto de Reforma Agrária e : Desde quando somos fui designado pela Congregação para esse mis­ nacionalistas?. Coube a mim redigir dois ter, lá incumbido de redigir a Emenda Consti­ cadernos: Quem faz as leis no Brasil? e, o tucional que possibilitaria levar adiante a mate­ último, de n° 23, Que é a Constituição?. rialização desse gravíssimo problema que, até hoje, permanece insolúvel, fator de miséria e Lamentavelmente, não apenas foram des­ atraso geral, pelos cinturões de vergonha que truídos os exemplares em depósitos e livrarias, expande em torno das grandes cidades. mas os próprios possuidores os queimaram, te­ mendo a repressão policial do regime, instalado Além das aulas e dos cursos compactos de em Io de abril de 1964. Há, assim, pouquíssimos uma semana, que eram promovidos a pedido de exemplares dos Cadernos do Povo Brasileiro, autoridades municipais, de universidades e de coleção que, na íntegra, permanecerá como do­ sindicatos em cidades como Natal, João Pessoa, cumento dessa época de riquíssima atividade Campina Grande, Recife, Porto Alegre e outras, política. o Diretor do ISEB, Álvaro Vieira Pinto e Ênio Silveira, o incansável, corajoso e criativo diretor O mesmo destino sofreram os Cadernos da da Editora Civilização Brasileira, assistido pelo História Nova, em que Nelson Werneck Sodré eficientíssimo e festejado poeta Moacyr Félix, e seus assistentes escreveram um novo texto, imaginaram transmitir conheci-mentos gerais, diferente do modelo oficial em vigor, mostrando através de respostas a perguntas correntes, em os verdadeiros heróis e a correta versão dos forma de Cadernos do Povo Brasileiro. acontecimentos políticos do Brasil. A coleção, que abrange 23 volumes, prin­ Jango assumira a Presidência da República, cipiou com o livro de Francisco Julião, que, as­ manietado a um regime parlamentarista votado sessorado pelo ex-deputado pernambucano Clo- pelo Congresso, em poucas horas, regime que domir de Moraes, escreveu um trabalho subsistiria, se fosse mantido através de um intitulado Que são as Ligas Camponesas?; plebiscito. Outra vez coube ao ISEB explicar porque o regime parlamentarista era uma volvimento material da União Soviética, até recen­ excrescência indefensável e fui incumbido de temente um país subdesenvolvido, foi logrado parci­ redigir o folheto de 31 páginas Por que votar almente graças ao emprego de métodos desumanos’. contra o parlamentarismo no plebiscito?, dis­ Celso Furtado prosseguiu no seu ziguezague tribuído em centenas de milhares pelo Brasil progressista e anti-soviético, que sempre o afora e que teria ajudado a esclarecer o povo e atormentou e que facilitou o desfecho de Io de assegurar o restabelecimento de plenos poderes abril de 1964. ao Presidente João Goulart, cassados pela frus­ trada tentativa de golpe, intentado pelos mi­ Goulart também foi vítima dessas contra­ nistros militares do renunciante Jânio Quadros. dições. 1.1. CELSO FURTADO EXPLICANDO O GO­ 1.2. A DOUTRINA NACIONALISTA DA VERNO GOULART ÉPOCA Todos esses acontecimentos eram interpre­ A estratégia nacionalista colocava e coloca tados como tentativa de instalação do regime como prioridade a defesa da soberania nacional, comunista no Brasil. Contestando a falsidade, em que os monopólios imperialistas são os mais Celso Furtado, ministro do Planejamento de Jan- importantes adversários. Eles provocaram a mi­ go, escrevera um longo ensaio para a revista séria que assola o terceiro mundo e dois terços Foreign Affairs, no número de abril de 1963, da Humanidade. Contra eles deverão somar-se com o título: ‘Brazil: What Kind of Revolu­ todas as forças políticas nacionais, por cima de tion?’, traduzido e publicado no Correio da Ma­ suas contradições internas e igualmente vítimas: nhã, desta forma: ‘Brasil — a situação pré-re- os trabalhadores, todos que vivem de salários, volucionária’. os pequenos empresários necessitados de cré­ A certa altura, Celso Furtado se manifestou: dito, as vítimas dos juros escorchantes do siste­ ma financeiro associado ao capital imperialista, ‘Muitas pessoas, tanto no Brasil quanto no es­ os lavradores e fazendeiros que tiram da terra a trangeiro, perguntaram-me por que o marxismo im­ sua subsistência. Todas estas categorias sofrem, pregnou tão profundamente a juventude brasileira. no Terceiro Mundo, a espoliação impiedosa que, A razão é simples: o marxismo, em qualquer de suas variedades, fornece um diagnóstico da realidade soci­ no Brasil, resulta na miséria dos que vivem no al e um guia para a ação. Devemos chegar-nos a esse campo e nos cinturões de pobreza e desemprego, assunto com franqueza absoluta, se quisermos manter nas favelas. Ao estadista, preocupado em libertar um diálogo eficiente com a juventude idealista e ativa seu povo desses grilhões, compete somar, unir de nosso tempo. Em que consiste o marxismo? a todos contra essa injustiça do comércio inter­

Pode ser resumido, descrevendo-se algumas de nacional. suas atitudes. Eles sustentam: (1) que a atual ordem 1.3. A PRESSÃO NORTE-AMERICANA social baseia-se, grandemente, na exploração do ho­ mem pelo homem, que favorece o bem-estar de uma João Goulart passou por três gabinetes parla­ classe que abriga muitos parasitas e preguiçosos e mentaristas e um ministério presidencialista, no­ deixa a grande maioria na pobreza; (2) que a realidade meando o maior número de ministros da história social e histórica está em mudança permanente; por­ republicana, inclusive, na pasta da Fazenda. En­ tanto, a ordem atual deve ser suplantada por outra; e tre eles e durante meses, Francisco Clementino (3) que é possível identificar os fatores estratégicos Santiago Dantas, eficientíssimo advogado de que afetam o processo social; isto, por sua vez, abre grandes empresas norte-americanas, acolitado o caminho para uma política consistente de recons­ por Marcílio Marques Moreira. Este foi, poste­ trução social’. riormente, o consolidador, com Pedro Malan, Celso Furtado continuou nesse raciocínio, da ilegítima dívida externa, na presidência de para concluir: Fernando Collor. ‘Podemos compreender que o que preocupa a João Goulart, acossado pela imprensa gol­ juventude é o homem e sua degradação e a cons­ pista, pelo embaixador Lincoln Gordon, pelo ciência de que nós também somos responsáveis por General Vernon A. Walters, adido militar e ou- ela [...]. É agora evidente que o rápido desen­ tros, entrou em desespero. Em 13 de março de de oficiais de que dispunha, iniciarem a rebelião, 1964, assinou o Decreto n° 53.700 que declarava marchando de Belo Horizonte ao . de interesse social, para fins de reforma agrária, O brigadeiro Francisco Teixeira, herói con­ as terras que ladeavam os eixos rodoviários, os decorado da FEB e primeiro oficial a agitar o de ferrovias e em torno de açudes, sem exceções! monopólio estatal do petróleo no seio das Forças No Decreto 53.701, desapropriava as ações das Armadas, comandava a Força Aérea sediada no companhias permissionárias de refino de petró­ Rio de Janeiro e instou, junto a Goulart, a que leo e, no Decreto 53.702, tabelava os aluguéis. lhe permitisse soltar algumas bombas de efeito Goulart atacava, simultaneamente, o capital es­ moral na dianteira do batalhão do General Olym­ trangeiro e a burguesia nacional proprietária de pio de Mourão Filho. Sustentava conhecer o âni­ imóveis rurais e urbanos! Além disto, contra­ mo da tropa e sabia que ali não haveria ninguém riando ainda as conclusões de professores do disposto a arriscar a vida pelo poderoso banquei­ ISEB, estimulou as divergências entre um grupo ro Magalhães Pinto. de marinheiros e a oficialidade da Marinha e outro de sargentos radicais contra a oficialidade Goulart, informado da presença da esquadra do Exército e da Aeronáutica, comparecendo so­ norte-americana na costa do Espírito Santo, proi­ zinho a reuniões, altamente excitadas, e profe­ biu a resistência, capaz de provocar desem­ rindo discursos inflamados, fora dos textos paci­ barques e carnificinas. ficadores que lhe eram oferecidos pelos oficiais O General Olympio Mourão Filho atingiu, de seu Gabinete Militar, coronéis Paulo Pinto vitorioso, o Rio de Janeiro; pretendeu assumir a Guedes e Carlos Gomes Villela, heróis da FEB, Presidência da República ou, ao menos, o Minis­ portadores das mais altas condecorações. tério da Guerra. Sua incontinência verbal e de­ O comício de 13 de março de 1964, em frente sinformação acabaram por levá-lo a declarar- ao Ministério do Exército, deu a Goulart divi­ se, aos jornais, ignorante em política: ‘Eu sou dendos em áreas menos organizadas, porém, uma vaca fardada’. Costa e Silva invocou anti­ desgaste nos setores das classes dominantes, que güidade e assumiu logo o governo mas, por ser se apavoravam com as ameaças, bem exploradas também desinformado, Castelo Branco arreba­ pela imprensa golpista, procurando convencer tou o posto. Os golpistas, candidatos civis (La­ que estava em curso a instalação de um regime cerda, JK, Adhemar de Barros), foram também comunista e o confisco dos depósitos bancários. todos cassados, exceto Magalhães Pinto, mas Dezenas de bandeiras vermelhas, com emble­ este logo entraria em divergências com Castelo mas de foice e martelo, na maior parte empunha­ Branco e recolheu-se a um isolamento completo. da por provocadores, apareciam nas televisões, O resto é a História, detalhadamente descrita, a cada momento. por exemplo, em 1964: a conquista do Estado, 1.4. O GOLPE MILITAR: TRINTA ANOS DE de René Armand Dreifuss (1981). COMANDO POLÍTICO EXTERNO Em suma, este foi o contexto político no qual Carlos Lacerda, governador do Estado da escrevi, para a coleção Cadernos do Povo Bra­ Guanabara, Ademar de Barros, governador de sileiro da Editora Civilização Brasileira, o livro São Paulo, Juscelino Kubitschek, que pretendia Que é a Constituição? (Crítica à Carta de 1946 voltar a candidatar-se, e o governador de Minas com vistas a reformas de base), trabalho que Gerais, o banqueiro José Magalhães Pinto, todos traz a marca do contexto político em que foi es­ com apoio de generais de direita, percebiam que crito. Resta acrescentar que hoje, todos os que se acabavam suas possibilidades de êxito em vivem de salário ganham, em regra, menos da candidaturas à Presidência da República. Junta­ metade do poder aquisitivo da remuneração de ram-se para o golpe em que os nacionalistas 1964. As escolas primárias, secundárias e as uni­ seriam afastados e os militares restituiriam o versidades encontram-se desmanteladas; a Cai­ poder aos civis, como anteriormente. Coube a xa Econômica, impossibilitada de financiar as Magalhães Pinto, com sua polícia militar, e ao aquisições de casa própria, como fazia antiga­ General Olympio de Mourão Filho, com a parte mente; não há segurança física; enfim, a qua­ lidade de vida é inferior à existente há trinta ao governo norte-americano e ao Embaixador anos, como demonstram as estatísticas. Crescem Adolfo Berle, que viam, no retorno de Vargas, os bolsões de miséria e de fome e nenhum cien­ uma ameaça aos privilégios de suas empresas tista político poderá, agora, esclarecer para onde na América Latina, especialmente porque Var­ vai o Brasil. Entretanto, os gurus da economia gas trazia, como seu Vice-Presidente, um depu­ dos golpistas de 1964 continuam governando, tado populista nordestino — João Café Filho, ditatorialmente, através de medidas provisórias tido então como “inconfiável” por esses setores. e orientando seus sucessores, sempre nos mes­ A Constituição, votada em 18 de setembro mos rumos. de 1946,preservava as liberdades democráticas O ISEB sofreu furioso extermínio, descrito e estabelecia, nos parágrafos 1 ° e 2o do seu artigo nos vários livros que se ocupam da matéria. Os 135, os casos de perda ou suspensão de direitos professores foram demitidos e tiveram seus di­ políticos. reitos políticos suspensos. Muito mais caberia Sob o fundamento de que o Partido Co­ relatar. Entretanto, é preciso guardar espaço para munista não era uma agremiação democrática, os que melhor descreverão o ISEB, entidade que foi o mesmo cassado e extinto, com a pena apli­ tantos benefícios traria, se hoje existisse neste cada a seus representantes no Congresso Nacio­ País, que não resguarda, da concorrência preda­ nal. tória, as suas empresas; que se desfaz do controle sobre o subsolo e que partilha suas empresas Entretanto, para que não voltassem mais, o estratégicas entre grandes grupos, onde há o pre- senador Dario Cardoso (PSD/GO) apresentou domínio político de fora; País que desprovê de emenda ao artigo 32 do Código Eleitoral votado, recursos, até para desempenhar tarefas elemen­ pela qual não poderiam disputar cargos eletivos tares, suas Forças Armadas, na Amazônia e no os que professassem idéias de partidos mar territorial. Enfim, que está levando o País suprimidos por ato do Poder Legislativo. de volta ao colonialismo elementar” (PEREIRA, Não apenas os comunistas percebiam o cará­ 1995). ter perigoso dessa emenda. Amplos setores da II. A DEFESA DA CONSTITUIÇÃO DE 1946 opinião pública, inclusive no Poder Judiciário, NA POSSE DE CAFÉ FILHO percebiam que o atestado de ideologia passaria a ser uma perigosa arma contra oposicionistas e Nesta parte do artigo venho salientar apenas a falência do regime democrático instituído na a primeira manifestação coletiva de juristas em Carta de 1946. A Emenda Dario Cardoso recebia defesa da permanência da Constituição de 1946, amplamente cobertura das forças políticas que ameaçada pelo suicídio do Presidente Getúlio destituíram Getúlio Vargas em 1945 e repulsa Vargas. das demais. Como é corrente, a Constituição de 1946 foi A campanha pelo afastamento de Getúlio redigida por uma Assembléia da qual partici­ Vargas, com apoio de importantes setores das param diversos partidos políticos (PSD, UDN, Forças Armadas, o assassinato do Major Rubens PTB, PCB etc.), independentemente de ideo­ Vaz, da Aeronáutica, e outros acontecimentos logias, eleitos, além dos deputados e senadores demonstravam que a democracia estava em pe­ constituintes, o presidente da República — o rigo e foi decidido, entre juristas, promover, para general Dutra. Esta Constituição marcou o retor­ o dia 29 de agosto de 1954, a I Reunião Nacional no do Brasil à vida democrática, e regulamentou de Juristas pela Defesa das Liberdades Demo­ as eleições presidenciais de 3 de outubro de cráticas, na cidade do Rio de Janeiro. 1950. Esta eleição por sua vez recaiu na pessoa do deposto Getúlio Vargas, derrotando o candi­ Fui incumbido de preparar um estudo sobre dato da UDN, Brigadeiro Eduardo Gomes, sol­ Inelegibilidade por Convicção Política, que teirão e de boa aparência, que inclusive foi um seria o documento básico de discussão no en­ dos signatários do Manifesto que exigia o afas­ contro em defesa da Constituição de 1946. O tamento de seu contendor. tema se destinava a mostrar a incompatibilidade do atestado de ideologia com qualquer regime Esse desfecho contrariou os setores ligados pretensamente democrático. Teríamos uma oli­ ricano, da Faculdade Nacional de Direito, Eu- garquia, em seguida uma plutocracia e, por fim, zébio Rocha e a mim, além de outros magis­ a ditadura. trados e advogados, em outros cargos e nüm nu­ meroso Conselho Consultivo, onde havia nomes Cada dia se tornava mais necessária a realiza­ como José Aguiar Dias, Evandro Lins e Silva, ção de um ato de reflexão por parte dos intelectu­ Carlos Sussekind Mendonça, Gracho Aurélio Sá ais de vanguarda, descomprometidos com fac­ Pereira Vasconcelos, Geraldo Irenêo Joffily, ções políticas e, especialmente, na magistratura. Jayme Landin, Alfredo Tranjan, A. Saturnino Se em 1945 o poder fora entregue ao Presi­ Braga, Antônio Fernando de Bulhões Carvalho. dente do Supremo Tribunal, José Linhares, que Nessa Associação Brasileira de Juristas De­ ensejou a participação de todas as correntes de mocratas compreendeu-se que a saída de Getúlio opinião, em 1954, as paixões políticas não mais Vargas poderia, ante os compromissos oficiais autorizavam supor igual desfecho. de João Café Filho, derivar em golpe de Estado, Na própria magistratura, quando se tratava pelos generais que se empenhavam em destruir do atestado de ideologia, ocorriam divergências a legalidade democrática. graves, especialmente com os juizes do Superior II.2.0 COMPORTAMENTO DO MINISTRO Tribunal Eleitoral, que haviam homologado a SEABRA FAGUNDES destituição dos parlamentares comunistas. A exigência da renúncia foi satisfeita pelo Nosso estudo focalizava todos esses aspectos suicídio e o golpe de Estado se tornava mais que se discutiam, inclusive no Tribunal, de onde difícil, ante esta inicial posição do Vice-Presi­ eu era, então, apenas Juiz de Direito da 18a Vara dente Café Filho, escudado no seu ministro da Cível. Justiça, Seabra Fagundes, que comprovava, com II. 1. A POSSE DE CAFÉ FILHO COM atos, sua posição democrática. SEABRA FAGUNDES NO MINIS­ Como exemplo, oferecia a recusa de fornecer TÉRIO DA JUSTIÇA força policial para executar despejo de vinte mil O suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agos­ favelados do Morro do Borel, decretada por juiz to de 1954, transferia o poder político a João singular, em demanda cujos autores não junta­ Café Filho, que jurou defender a Constituição e ram prova idônea de propriedade e que transitara dava, como penhor, a nomeação do presidente em julgado, sem defesa. O advogado dos fave­ do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande lados, posteriormente constituído — Dr. Antoi- do Norte, Desembargador Miguel Seabra Fagun­ ne Magarinos Torres — solicitara meu teste­ des — nome nacionalmente conhecido, entre ju­ munho formal e, recebidos juntos, Seabra Fa­ ristas, como democrata exemplar de profundos gundes, informado ainda de que o pedido era sentimentos humanitários, além de erudito. repetição de idêntica providência, já recusada Nossa Associação Brasileira de Juristas De­ no gabinete de Getúlio Vargas, igualmente im­ mocratas era entidade, na época, presidida pelo pediu a consumação do erro judiciário. Os fave­ Desembargador Henrique Fialho, do Tribunal lados comemoraram em festa e, ao inaugurarem de Justiça do Distrito Federal, incluindo, como a escola que eles próprios construíram, convida­ presidentes-de-honra, o Senador Atílio Vivác- ram o Ministro Seabra Fagundes. Este compa­ qua, presidente do Conselho Federal da Ordem receu e discursou, assegurando que as leis, em dos Advogados do Brasil, e o professor F. S. sua gestão, seriam sempre cumpridas, dentro do Carpenter, da Faculdade Nacional de Direito, texto constitucional de 1946 e com observância autor de livros de repercussão internacional; dos fins sociais, como determina a Lei de Intro­ dução ao Código Civil. como vice-presidentes, o Ministro Arthur de Souza Marinho, do Tribunal Federal de Recur­ Atos como este representavam uma adver­ sos, desembargadores Sady Cardoso de Gus­ tência aos golpistas impacientes e davam rumos mão, Ivair Nogueira Itagiba, Elmano Cruz, José à agitação popular desencadeada. do Patrocínio Gallotti; o professor Alberto Ame­ II.3. A I REUNIÃO NACIONAL DE JU­ políticos são exclusivamente os do artigo 135, pará­ RISTAS PELA DEFESA DAS LIBER­ grafos Io e 2o, da Constituição Federal. Toda norma DADES DEMOCRÁTICAS que pretenda criar casos novos de perda ou supensão desses mesmos direitos viola a Carta Magna em seus Em meio ao tumulto nacional que se seguiu próprios fundamentos. ao suicídio de Vargas, realizamos o encontro 4 - Que, em conseqüência, condenam veemen­ nacional programado, na data marcada — 29 temente a emenda do senador Dario Cardoso ao pro­ de agosto de 1954. Concluí a exposição sobre jeto de lei n° 15, do Senado Federal, alterando dispo­ Inelegibilidade por Convicção Política, com sitivos do Código Eleitoral, estabelecendo no artigo estas palavras: 32, uma discriminação, por motivo de convicção po­ lítica, ao direito de ser votado, contrariando o artigo “Nossa vigilância é o preço da Liberdade que 141, parágrafo 8o da Constituição Federal e ferindo desfrutamos. Eis porque devemos concentrar nossos a própria substância do regime representativo bra­ estudos, a firmeza de nossos conhecimentos, a solidez sileiro. de nosso caráter, a bravura de nosso patriotismo no exame percuciente, na análise profunda de todos es­ 5 - Que também condenam, por inconstitucionais, ses projetos de leis, regulamentos e instruções com todos os atos ou iniciativas que representem a aplica­ que se procura solapar o edifício das Liberdades De­ ção de restrições, sob qualquer pretexto e especial­ mocráticas, cimentado com o sangue de nossos ir­ mente por motivo de convicção política, ao direito mãos derramado, heroicamente, nos campos da Itália. constitucional de votar e ser votado.

Eis porque nos encontramos hoje. Precisamos 6 - Que os juristas devem propugnar para que as alertar nossos colegas de toda a América Latina sobre eleições já fixadas se realizem livre e democratica­ os perigos que nos rondam, sobre as nuvens carrega­ mente, com a participação de todos os cidadãos, sem das que se erguem nos horizontes da Liberdade discriminações por motivo de convicção religiosa, Brasileira”. filosófica ou política. Com base neste trabalho a “1 Reunião Na­ Apelam finalmente para os juristas em particular cional de Juristas pela Defesa das Liberdades e o povo em geral a fim de que adiram à presente de­ Democráticas” aprovou unanimemente a se­ claração de princípios e lhe prestem apoio efetivo, guinte: pela preservação da legalidade constitucional, com­ batendo todos os movimentos tendentes a desvirtuá- RESOLUÇÃO GERAL la e assegurando a vigência plena dos princípios fun­ damentais contidos na Carta Magna”. “Os juristas brasileiros, reunidos no Rio de Janei­ ro, a 28 e 29 de agosto de 1954, nos termos da con­ Rio de Janeiro, 29 de agosto de 1954. vocatória, para o estudo e debate de ameaças e restri­ (Seguem-se as assinaturas dos desembargadores, ções ao exercício das liberdades fundamentais e aos juizes, membros do Ministério Público e advogados direitos declarados na Constituição Federal e inscritos dos diferentes Estados, presentes à reunião.) na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Carta da Organização das Nações Unidas, anali­ E a conclusão do texto realizei com as se­ sando e discutindo os diversos projetos de lei e nor­ guintes palavras: mas violadoras desses direitos e liberdades, com âni­ mo de contribuir no sentido de que a Carta Magna “O Brasil encontra-se próximo de uma encru­ seja efetivamente respeitada, resolvem proclamar: zilhada. Ou nós, pela profissão de juristas, advertimos a Nação e impedimos, com a veemência e a clareza 1 - É dever de todo cidadão, e, em particular, dos de nosso conselho desinteressado e patriótico, a que­ juristas, a defesa intransigente da Constituição, muito da da legalidade constitucional, ou silenciamos e cri­ especialmente dos preceitos atinentes à soberania na­ minosamente permitiremos que o Povo, às cegas, pe­ cional e à declaração dos direitos e garantias indivi­ netre no pantanal das ditaduras centro-americanas e duais. sofra todas as conseqüências do seu ato, chafurdado 2 - Todos são iguais perante a lei. Todo poder sem esperanças na Miséria, no Arbítrio, no Desâni­ emana do povo, que se constitui, sem discriminações mo, na Servidão que afoga os povos sem liberdade”. ideológicas, de todos os brasileiros. Todos os brasilei­ O texto da conferência e a Resolução Geral ros, portanto, nos limites fixados pela Constituição foram publicadas na Revista de Direito Contem­ Federal, podem eleger e ser eleitos. porâneo, da qual eram diretores os Desembar­ 3 - Os casos de perda ou suspensão de direitos gadores Henrique Fialho, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, e Moura Bittencourt, do Tri­ Aos trancos e barrancos, a Constituição pos­ bunal de Justiça de São Paulo, volume Io, pá­ sibilitou a eleição e posse de Juscelino Kubits- ginas 53 a 86, em novembro de 1955. Em se­ chek, de Jânio Quadros, de João Goulart, até o parata, foram amplamente difundidos, para que golpe militar de 1964 sepultá-la. o enfraquecimento das resistências democráticas Parece-me que este episódio merece registro de Café Filho não degenerasse na revogação da quando se recapitula a história da Constituição Carta Política de 1946. de 1946.

Osny Duarte Pereira é jurista, formado em Direito pela Universidade Federal do Paraná na turma de 1933. Foi Professor de Ciência Política do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e membro suplente do Conselho da República, eleito pela Câmara dos Deputados. É também Desembargador Aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e autor de inúmeros trabalhos jurídicos e sociológicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DREIFUSS, René Armand. (1981). 1964: a PEREIRA, Osny Duarte. (1962). Quem faz as conquista do Estado. Petrópolis, Vozes. leis no Brasil Rio de Janeiro, Civilização Bra­ sileira. Col. “Cadernos do Povo Brasileiro”, vol. FURTADO, Celso. (1963). “Brazil: What Kind 3. of Revolution?” Foreign Affairs , abril. (traduzido e publicado no Correio da Manhã, PEREIRA, Osny Duarte. (1964). Que é a Cons­ com o título: “Brasil — a situação pré-revo- tituição? (Crítica à Carta de 1946 com vistas a lucionária”). reformas de base). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. Col. “Cadernos do Povo Brasileiro”, PEREIRA, Osny Duarte. (1955). “Inelegibi­ vol. 23. lidade por convicção política”. Revista de Di­ reito Contemporâneo (órgão da Associação PEREIRA, Osny Duarte. (1995). M inha Brasileira de Juristas Democratas). São Paulo, passagem pelo ISEB; depoimento em seminários 7: 51-86, nov./dez. na Associação Brasileira de Imprensa e na Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, s. ed.