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82 z março DE 2017 O renascimento do barroco paulista

Resgate de obras, artistas e documentos amplia o conhecimento sobre as expressões desse estilo no estado | Carlos Fioravanti fotos Léo Ramos Chaves

Igreja do Carmo, em : pintura de Jesuíno do Monte Carmelo na nave (outra página) e o Cristo crucificado, ambos do século XVIII

trabalho integrado de pesqui- medida que igrejas são restauradas e marcou os primeiros três séculos da sadores acadêmicos, restaura- pinturas mais recentes removidas, re- colonização do Brasil pelos europeus. dores profissionais e especia- velando obras de maior valor artístico Como consequência de um trabalho O listas de órgãos públicos e de e histórico. Os achados estão redimen- iniciado pelo Instituto do Patrimônio His- empresas tem resultado na descoberta sionando o valor das expressões pau- tórico e Artístico Nacional (Iphan), rea- de obras, autores e documentos do bar- listas desse estilo de arte, mais visível pareceram em 2011 as pinturas de 1796 e roco paulista que permaneceram en- e pujante nos estados de , 1797 do padre santista Jesuíno do Monte cobertos, desconhecidos ou guardados Bahia, Pernambuco e . Carmelo (1764-1819) nos forros da cape- por mais de um século. Os desenhos, as Caracterizado por formas rebuscadas la-mor e da nave da Igreja da Venerável formas e as cores originais emergem à e uma intensa religiosidade, o barroco Ordem Terceira de Nossa Senhora do

pESQUISA FAPESP 253 z 83 Carmo, no centro da cidade de São Pau- autores. Com base nos documentos, ela taurada, de autoria desconhecida, que lo. O escritor paulista Mário de Andra- confirmou que a obra de Jesuíno não ele considera “uma das esculturas mais de (1893-1945), pouco antes de morrer, foi a original, mas a terceira – os for- belas do barroco paulista”. A quase 30 alertou sobre a provável existência da ros com as duas anteriores teriam sido quilômetros (km) do centro da capital, pintura na área central da nave, que es- removidos –, e encontrou o motivo da na capela de São Miguel Arcanjo, uma tava encoberta. Agora exposta, a imagem troca das pinturas, que intrigava Mário das mais antigas do estado, erguida em original mostra Nossa Senhora cercada de Andrade. “Os carmelitas mudavam 1622, foi encontrada uma rara pintura por anjos, nuvens e, nas bordas do teto, a ornamentação de toda a igreja para em perspectiva do altar que permaneceu carmelitas de 2,20 metros (m) de altura. seguir os gostos da época e não ficarem escondido durante décadas por outro Mário de Andrade nunca soube por que atrás das igrejas de outras ordens religio- altar de madeira, construído cerca de a pintura original havia sido encoberta. sas, não importando os custos”, apurou 150 anos depois. A historiadora de arte Danielle Pe- Danielle. “A ideia de que o barroco pau- reira, pesquisadora do grupo Barroco lista era pobre e ingênuo é descabida.” bras de arte inesperadas apa- Memória Viva do Instituto de Artes da Autor de 20 livros sobre arte brasi- receram também na matriz Universidade Estadual Paulista (Unesp) leira, o artista plástico e historiador de de Nossa Senhora da Cande- em São Paulo, pensa ter descoberto o arte Percival Tirapeli, coordenador do O lária de Itu, a 101 km da capi- que o escritor paulista não sabia. Nos grupo de pesquisa sobre o barroco da tal, a maior igreja barroca do estado de últimos sete anos, ela peregrinou por Unesp, observa o teto da igreja do Carmo São Paulo, construída em 1780, em res- arquivos de igrejas e de órgãos públi- e conta: “Foram quatro anos removen- tauração desde 2001. Por indicação do cos, examinou cerca de 22 mil páginas do com bisturi as camadas recentes de músico Luís Roberto de Francisco, pes- de 600 livros antigos e encontrou docu- tinta”. Atrás do altar está a obra Senhor quisador do Museu de Música da cidade, mentos inéditos sobre as pinturas e seus morto, de 1746, de madeira, também res- as equipes de restauração resgataram seis pranchas de madeira retratando uma das cenas do calvário de Cristo. En- cobertas por uma camada de cal, eram O barroco em São Paulo provavelmente originais do forro do co- ro da igreja e tinham sido usadas como Equipe da Unesp encontrou obras em proteção de um relógio da torre. Foram 79 igrejas de 47 cidades, principalmente feitas por Jesuíno do Monte Carmelo – e no litoral e Vale do Paraíba não se tinha conhecimento delas. Em 2015, as equipes de restauração igrejas barrocas da capital encontraram pinturas em azul nas pa- Região central Mosteiro da Luz redes da capela-mor da matriz de Itu, Ordem Primeira e Ordem Terceira de São Francisco antes cobertas por tinta de dezenas de Santo Antônio anos. Havia uma data, 1788, e uma assi- Carmo natura que revelou, dessa vez, um autor Boa Morte São Gonçalo desconhecido, Mathias Teixeira da Silva, Capela dos Enforcados sobre o qual pouco se sabe. As pesqui- Zona leste sas sobre esse artista, conduzidas pelo Capela de São Miguel Queluz SP historiador do Iphan Carlos Gutierrez Areias Cerqueira, levaram à identificação do Lorena Bananal escultor Bartolomeu Teixeira Guima- Guaratinguetá rães (1738-?) como autor do monumental Tremembé altar-mor, com 12 m de altura por 6 m Jarinu Taubaté Piracaia Cunha de largura. Emergiram também indica- Bom Jesus dos Perdões Caçapava Nazaré Paulista Itu São Luís do Paraitinga ções da colaboração entre Guimarães e Porto Jundiaí Santa Isabel Feliz Pirapora do Jacareí José Patrício da Silva Manso (1753-1801), Bom Jesus Santana de Araçariguama Parnaíba Santa Paraibuna autor da pintura do forro e mestre de Branca São Roque Carapicuíba Mogi das Cruzes Jesuíno, indicando as conexões entre São Paulo artistas e suas obras. Jesuíno também São Itapecerica Sebastião fez pinturas em outras três igrejas de da Serra Itu, a do Carmo, a da Nossa Senhora do São Vicente Santos Patrocínio e a do Bom Jesus. s

Itanhaém Oceano IDEIAS REnovADAS o a mp la c

Atlântico “Estamos desfazendo o preconceito de u que o barroco paulista era pobre e inex- a

Iguape pressivo”, diz o restaurador Júlio Mo- p ana Fonte Grupo Barroco Memória Viva/ Unesp

raes, proprietário de uma empresa de mapa

84 z março DE 2017 Na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em São Paulo, o altar de 1792 voltou a reluzir após o restauro restauração. Ele começou a trabalhar altar reluzente, concluído em 1792, com Cruzes, como detalhado em um artigo com o barroco paulista em 1990, quando um douramento “sem equivalente em publicado em 2016 na revista Caiana, do restaurou a capela de 1681 de um sítio em nenhum outro lugar do Brasil”, diz. As Centro Argentino de Investigadores de São Roque, próximo à capital paulista, paredes da capela-mor exibem 10 pin- Arte. Danielle identificou também uma doado por Mário de Andrade ao Iphan. turas religiosas refinadas da primeira rara pintora, Miquelina Constância das “Existem de fato muito mais obras e ar- metade do século XVIII, com 2,2 m de Chagas, que fez a douração dos seis alta- tistas do que se pensava”, acrescenta, altura, até alguns anos atrás cobertas res da igreja da Ordem Terceira de São confirmando os alertas de seus profes- por resíduos que as enegreciam. Segun- Francisco, em São Paulo, no século XIX. sores do curso de artes plásticas na Uni- do ele, essas pinturas foram produzidas Se as obras e as trajetórias profissionais versidade de São Paulo (USP) em meados em ateliês portugueses e “atestam a in- dos artistas barrocos estão mais claras, da década de 1970. Em 2001, com sua fluência italiana no barroco brasileiro”, os detalhes pessoais, como as datas de equipe, Moraes restaurou a pintura do além de indicarem o poder de compra nascimento e morte, ainda são incertos. teto da capela-mor da Candelária de Itu, dos religiosos. Em outro estudo do grupo da Unesp, para onde voltou em 2014 para cuidar o arquiteto Rafael Schunk resgatou dois de outras obras. anielle identificou 56 pintores artistas pouco conhecidos, o frade portu- “Esta entrada estava toda pintada de que trabalharam em igrejas de guês Agostinho da Piedade (1580-1661) cinza”, diz Tirapeli ao ingressar na igre- São Paulo, Itu e Mogi das Cru- e seu aluno Agostinho de Jesus (1600- ja da Ordem Terceira de São Francis- D zes entre 1750 e 1827. Como 1661), que viveram e trabalharam no Vale co, no Largo do São Francisco, capital, resultado, o grupo dos artistas paulistas do Paraíba. Schunk considera Agostinho construída entre 1676 e 1787. “Tudo es- mais conhecidos – Jesuíno do Monte de Jesus “o primeiro artista brasileiro”. tava caindo.” Fechada por muitos anos, Carmelo e José Patrício da Silva Man- Depois dele é que vieram os outros mais a igreja foi em boa parte restaurada com so – ganha o reforço de outros, como conhecidos do barroco brasileiro, An- recursos de empresas (Lei Rouanet) e do Lourenço da Costa de Macedo, Antonio tônio Francisco Lisboa (1738-1814) – o Conselho de Defesa do Patrimônio His- dos Santos e Manuel do Sacramento, Aleijadinho – e Manuel da Costa Ataíde tórico, Arqueológico, Artístico e Turís- que pintaram os forros do vestíbulo, da (1762-1830), em Minas Gerais, e Valen- tico (Condephaat). Quem a visitar pode capela-mor e da nave da igreja da Or- tim da Fonseca e Silva (1745-1813), no agora ver as portas de cores vivas e um dem Terceira do Carmo em Mogi das Rio de Janeiro.

pESQUISA FAPESP 253 z 85 pintada por Costa Ataíde no Colégio do Caraça, em Minas, em 1828. Durante 50 anos, estima-se que o artis- ta italiano tenha produzido 300 altares, como os da matriz de Pindamonhangaba e de uma capela em São Luiz do Paraitin- ga, ambas em São Paulo, e em uma igreja de Maria da Fé, em Minas, além de cer- ca de mil esculturas de portes variados. “Mesmo com uma produção em escala industrial, ele se considerava artista e ze- lava pela qualidade do que produzia com sua equipe”, diz Cristiana. “Seu gosto pessoal e a influência dos mestres italia- nos prevaleceram em sua obra.”

s trabalhos e descobertas mais recentes indicam que São Paulo produziu menos obras O do que estados como Minas, Rio ou Bahia. As paredes das igrejas da capital e do interior paulista eram pre- dominantemente de taipa de pilão, com A restauradora Ana Cristina Jacinto recupera o São João Evangelista da igreja da Candelária em Itu uma decoração despojada, enquanto nos outros estados eram de pedras e rica- mente adornadas. “As paredes brancas A historiadora de arte Maria José Pas- contrastam com um altar colorido”, diz sos, professora da Universidade Cruzeiro Moraes. “Não era possível cobrir tudo do Sul, identificou mais obras barrocas de ouro, mas às vezes usavam prata, que do que esperava ao percorrer 79 igrejas vinha da Bolívia, como em Itu.” de 47 cidades do estado de São Paulo co- Como as cidades paulistas – princi- mo parte de seu doutorado, concluído em palmente a capital – cresceram em ritmo 2015 na Unesp (ver mapa). Uma dezena mais acelerado a partir do século XIX, a de esculturas religiosas com pelo menos arte barroca destoa da paisagem urbana, 200 anos de idade estava guardada sem no olhar do artista plástico Emanoel Araú- identificação em armários, sacristias ou depósitos. Outras se perderam. “A maior parte dos bens móveis não está devida- mente catalogada”, ela observou. Maria José ficava intrigada toda vez que via esculturas que destoavam do conjunto, com olhos de vidro, princi- palmente no Vale do Paraíba, embora ainda fossem barrocas. A pesquisadora da Unesp e restauradora Cristiana Ca- vaterra tinha a resposta: muitas dessas obras tinham sido feitas pelo artista ita- liano Marino Del Favero (1864-1943). Fa- vero se mudou para o Brasil aos 28 anos e abriu um ateliê de esculturas sacras e altares no centro da cidade de São Paulo. Ele anunciava seu trabalho em jornais, vendia por catálogo e recebia encomen- das de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, empurrando uma parte do barroco para o começo do século XX. Os histo- riadores de arte afirmam que o barroco Na capela-mor da Candelária, altar, teto e paredes foram restaurados (acima), mas o trabalho termina formalmente com A última ceia, continua no arco da entrada (página ao lado)

86 z março DE 2017 jo, diretor do Museu Afro Brasil, em São Santo Antônio, na cidade de São Paulo; mento. Nas paredes de um corredor da Paulo: “São Paulo tem um lado espartano”. a da Candelária, em Itu; a basílica anti- igreja da Ordem Terceira do Carmo estão Como diretor da Pinacoteca do Estado de ga de Nossa Senhora da Aparecida, em 19 quadros de Jesuíno do Monte Carmelo São Paulo entre 1992 e 2002, ele promoveu Aparecida; e a matriz de Jacareí. quase totalmente cobertos por resíduos exposições que ampliaram a visibilidade “Já se perdeu muito, enquanto o bar- pretos. A restauração de cada um cus- do barroco brasileiro. Em 1998, a mostra O roco paulista era menos valorizado”, taria cerca de R$ 50 mil e, como não há universo mágico do barroco brasileiro, com diz o historiador da arte Mozart Cos- dinheiro, não há data para começar. n a curadoria de Araújo, expôs 364 peças de ta, professor de restauração artística da 1640 a 1820 no Centro Cultural Fiesp. Pontifícia Universidade Católica (PUC- Segundo Tirapeli, as exposições e a -SP) e da Universidade Cidade de São Projeto Autoria das pinturas ilusionistas do estado de São publicação de livros sobre o barroco (ver Paulo. Cerqueira, do Iphan, leu relatos o o Paulo: São Paulo, Itu e Mogi das Cruzes (n 13/04082-1); Pesquisa FAPESP n 90) nos últimos anos sobre 45 capelas rurais paulistas do sé- Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsá- renovaram o interesse dos especilialistas culo XVII, procurou-as, mas encontrou vel Percival Tirapeli (Unesp); Bolsista Danielle Manoel dos e dos órgãos públicos sobre a necessida- apenas duas. “Chegou o momento de in- Santos Pereira; Investimento R$ 168.710,49. de de restauração artísitca das obras de vestirmos intensamente na restauração Artigo científico PEREIRA, D. M. S. Pintura setecentista na igreja da Ordem arte da época do Brasil Colônia. Em con- de obras artísticas do mesmo modo que Terceira de Nossa Senhora do Carmo em Mogi das Cruzes sequência dessa mobilização, 10 igrejas o Iphan tem investido na restauração da (SP-Brasil). Caiana – Revista Virtual de Historia del Arte do estado resgataram as cores e o brilho arquitetura das igrejas há 80 anos”, diz y Cultura Visual. v. 8, n. 1, p. 105-20, 2016. originais, como a matriz de Itu, as igre- ele. “Há muito ainda por fazer.” Livro jas da Ordem Terceira do Carmo e da Embora o interesse pelo barroco pau- TIRAPELI, P. Arquitetura e urbanismo no Vale do Paraíba. de São Francisco, a da Boa Morte e a de lista tenha sido revivido, falta investi- São Paulo: Editora Unesp/Sesc, 2014. 250 p.

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