unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP

IAGO DAVID MATEUS

ἸΑΤΡΌΣ Quem?: aspectos e elementos do universo clássico retomados em

ARARAQUARA – SP 2018

IAGO DAVID MATEUS

ἸΑΤΡΌΣ Quem?: aspectos e elementos do universo clássico retomados em Doctor Who

Trabalho de conclusão de curso, apresentado à disciplina ―Monografia de Conclusão de Curso II‖, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Letras, habilitação em Português- Grego, pela Faculdade de Ciências e Letras- UNESP/Araraquara.

Orientador: Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos Co-Orientador: Prof. Dr. Marco Aurélio Rodrigues

ARARAQUARA – SP 2018

Mateus, Iago David Ἰατρός quem?: aspectos e elementos do universo clássico retomados em Doctor Who/ Iago David Mateus — 2018 100 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) — Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos Co-orientador: Prof. Dr. Marco Aurélio Rodrigues

1. Doctor Who. 2. arquétipos. 3. obras “clássicas”. 4. Mecanismos narrativos.

Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

IAGO DAVID MATEUS

ἸἸΑΑΤΤΡΡΌΌΣΣ QQUUEEMM??:: ASPECTOS E ELEMENTOS DO UNIVERSO CLÁSSICO RETOMADOS EM DOCTOR WHO

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Conselho de Curso de Letras, da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Letras, habilitação em Português-Grego.

Orientador: Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos Co-Orientador: Prof. Dr. Marco Aurélio Rodrigues

Data da defesa/entrega: 30/11/2018

MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:

Presidente e Orientador: Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖

Membro Titular: Prof. Dr. Marco Aurélio Rodrigues Universidade Federal do Amapá

Membro Titular: Prof. Dr. Fábio Gerônimo de Mota Diniz Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖

Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara

AGRADECIMENTOS

Mencionar aqueles que contribuíram de algum modo em nossa trajetória, embora necessário, não é tarefa das mais fáceis, até porque a memória humana é falível. De qualquer modo, tento aqui demonstrar meus sinceros agradecimentos. Primeiramente, agradeço ao amor, cuidado e dedicação de minhas mães terrenas, Tatiana de Oliveira Mateus, Maria Helena Gonçalves e Liliana Oliani Rotondo, sem as quais nada em minha vida teria sido possível. Aos meus companheiros na fastidiosa e, por que não dizer heroica, trajetória acadêmica. Afinal, nem mesmo Odisseu teria retornado para casa se não fosse a influência de seus companheiros de viagem. Nesse sentido, tenho que demonstrar gratidão pelos conselhos, pelo ombro amigos e pelos puxões de orelha de Débora Barreto, Renata Miarelli e Paula Camargo Boschiero, pelo acolhimento e pelo companheirismo de Carlos Henrique Rodrigues e Paulo Ricardo Pacheco, pela escuta paciente das minhas queridas gêmeas Letícia e Larissa Bueno. A Ana Huang, André de Deus Berger e todos os demais colegas também alunos de grego (dentre eles o Murilo e a Neia – também conhecida como ―Comédia Nova‖). Claro que, neste ínterim, não poderia me esquecer do filósofo que se jogou num vulcão para provar que era um deus e que rendeu grandes risadas minhas e da Neia e fez com que o próprio professor não conseguisse lecionar a aula seguinte de tanto rir. Aliás, devo agradecer também a todos os meus professores, dos quais gostaria de destacar alguns nomes. Em especial, a Profa. Dra. Edvanda Bonavina da Rosa e ao Prof. Dr. Evandro Luis Salvador, por terem me apresentado ao fantástico mundo clássico. A meus orientadores, sobretudo às reuniões tragicamente cômicas em plena Brisa e pelas fenomenais aulas de comédia, ministradas pelo libriano mais didático que conheço, a quem tenho –além de orientador – como um grande amigo . E, por último, e, aliás, fico muito feliz de finalmente conseguir dizer isso, agadeço – sem nenhum tipo de orgulho desmedido – à pessoa que sempre esteve a meu lado, que continuou me movendo mesmo quando meu corpo e minha mente já não aguentavam, que permaneceu fiel aos próprios princípios a despeito de ter passado por um ano terrível e que cumpriu a promessa e os compromissos que fez a si mesmo: a moi, miself and I: muito obrigado, Iago.

―ἄλδξα κνη ἔλλεπε, κνῦζα, πνι ύηξνπνλ, ὃο κάι α πνι ι ὰ πι άγρζε , ἐπεὶ Τξνίεο ἱεξὸλ πηνι ίεζξνλ ἔπεξζελ : πνι ι ῶλ δ᾽ ἀλζξώπσλ ἴδελ ἄζηεα θαὶ λόνλ ἔγλσ, πνι ι ὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐλ πόληῳ πάζελ ἄι γεα ὃλ θαηὰ ζπκόλ, ἀξλύκελνο ἥλ ηε ς πρὴλ θαὶ λόζηνλ ἑηαίξσλ. ἀιι ᾽ νὐδ᾽ ὣο ἑηάξνπο ἐξξύζαην, ἱέκελόο πεξ: αὐηῶλ γὰξ ζθ εηέξῃζηλ ἀηαζζαι ίῃζηλ ὄι νλην, λήπηνη, νἳ θαηὰ βνῦο Ὑπεξίνλνο Ἠει ίνην ἤζζηνλ: αὐηὰξ ὁ ηνῖζηλ ἀθείι εην λόζηηκνλ ἦκαξ. ηῶλ ἁκόζελ γε, ζεά, ζύγαηεξ Δηόο, εἰπὲ θαὶ ἡκῖλ.‖ (Od. I. 1-10).

Demons run When a good man goes to war Night will fall and drown the sun When a good man goes to war

Friendship dies And true love lies Night will fall and dark will rise When a good man goes to war

Demons run But count the cost The battle‘s won But the child is lost

The fight goes on but what‘s it for When a good man goes to war Now rise the sun Now dawn the day

When good men run And women stay When battle‘s done When nothing‘s won

It‘s a woman‘s work to say Well then, soldier, how goes the day?

(MOFFAT, Doctor Who: a good man goes to war)

RESUMO

O objetivo desta monografia é apontar alguns dos moldes arquetípicos presentes na série britânica Doctor Who e como tais arquétipos (JUNG, 2000) fazem com a que a produção midiática em questão se relacione com personagens específicos de obras consideradas ―canônicas‖ ou ―clássicas‖, personagens estes que concretizam justamente essas mesmas abstrações modelares. Ao lado disso, também pretendemos inter-relacionar as formas de narrar e certos mecanismos que geram suspense, terror e/ ou piedade no seriado com aqueles presentes em tragédias gregas antigas. Para tanto, nos valemos de um referencial teórico um tanto quanto interdisciplinar, na medida em que nossas referências abrangem áreas do saber que vão desde a Arquetipologia Mitodológica de Diniz (2016) – derivada da proposta de Antropologia do Imaginário de Durand (2002)-; e do percurso narrativo de interpretação do sentido proposto pela Teoria Semiótica do Texto de viés greimasiano (apresentada por BARROS (2011) até os postulados de Campbell (1997) sobre as narrativas heroicas terem um ciclo estruturalmente modelar mais ou menos universal.

Palavras-chave: Doctor Who, arquétipos, obras ―clássicas‖, mecanismos narrativos.

RÉSUMÉ

L‘objectif de cette monographie est montrer quelques archétypes presents dans la série britannique Doctor Who et comment ces archétypes-là (JUNG, 2000) rapprochent cette production midiatique contemporaine avec de certains personnages d‘ œuvres considerées « canoniques » ou « classiques », des persoannges qui concrétisent justement ces mêmes abstractions modelaires. En plus, nous voulons aussi rapprocher les manières narratologiques de raconter et certains mécanismes qui créent un suspense, un terreur, ou pitié dans la série avec lesquels sont presents dans les tragédies grecques anciennes. Pour faire cela, nous utilisons d‘un référentiel théorique interdisciplinair car nos références s‘agit non seulement des domaines du savoir comme l‘Archétypologie Mitodologique de Diniz (2016) – dérivée de la proposition de l‘Anthropologie de l‘Imaginaire de Durand (2002)- et du programme narratif de l‘interpretation du sens proposé par la Théorie Sémiotique du Texte greimasienne (presentée par BARROS (2011)), mais aussi du cercle structurelle et universel de narratives héroïques. Mots-clés: Doctor Who, langues indigènes, dictionnaires, musique.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Acompanhantes do Doutor ao longo das temporadas 50 Figura 2 As regenerações do Doutor 51 Figura 3 Armadura robótica de um Dalek 54 Figura 4 Dalek fora da armadura 54 Figura 5 Anjo em posição de ataque 55 Figura 6 Rainha Elisabeth I vestida como ―Rainha de Copas‖ 57 Figura 7 Imagem de divulgação da 3ª temporada 73 Figura 8 Imagem de divulgação da 4ª temporada 73 Figura 9 Doutor e Clara dentro da Tardis 77 Figura 10 Os ecos da Clara 80 Figura 11 O Doutor frente-a-frente com o passado do qual não se recorda 82

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 10 2 POR QUE ESTUDAR PRODUÇÕES MIDIÁTICAS ATUAIS E TENTAR 12 DESVELAR RELAÇÕES DA CULTURA POP COM A ―CLÁSSICA‖ 3 APORTE TEÓRICO 26 4 METODOLOGIA DE TRABALHO 47 5 ANÁLISE DOS DADOS 48 5.1 Aspectos introdutórios sobre Doctor Who: conhecendo a série 48

5.2 O mundo heroico e helênico por trás dos acompanhantes 63 5.2.1 Rose Tyler: a trajetória da Chapeuzinho-Vermelho que vira Lobo- 69 Mau

5.2.2 A figura de Martha Jones: a narrativa de aprendizado de um 71 Telêmaco aprendiz de Medicina que internaliza o que significa ser Doutor por meio de uma Atena reformulada

5.2.3 Os resmungos e a importância de Donna Noble 75 5.2.4 No labirinto de ecos de Clara Oswald: a receita da garota suflê de 77 como passar de mera acompanhante a uma ―Senhora do tempo‖

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 89 REFERÊNCIAS 92 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 97

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1 INTRODUÇÃO

Este texto é um dos resultados das averiguações desenvolvidas em 2016 durante um trabalho de conclusão de umas das disciplinas de nossa primeira graduação que culminaram não só, numa apresentação na XVII Semana de Letras Linguística em trajetória: antiguidade, centenário e século XXI ocorrida na FCLAr, como também no nosso atual projeto de pesquisa, intitulado ―Elementos musicais, mitos e lendas em Doctor Who‖ (por nós realizado de março de 2017 até o presente momento), cujos objetivos principais abarcaram a tentativa de aproximação do universo literário tradicionalmente visto como ―clássico‖ com o mundo pop e as mídias digitais contemporâneas, a fim de possibilitar novos olhares para o ensino e a aprendizagem de literatura. Em termos mais específicos, intentamos aqui, desde nossas epígrafes, explicitar pontos de contato entre a série londrina aqui investigada e o que se sabe do mundo grego antigo, sobretudo pelas obras de natureza trágica e cômica. A escolha deste escopo deveu-se às constatações de lacunas e problemas na maneira tradicional de trabalhar Literatura - o que abarca o conteúdo enquanto disciplina do currículo dos ensinos fundamental e médio. Tal afirmação embasa-se no fato de que normalmente se parte, injustificadamente, de uma dicotomia ―Altas‖ X ―Baixas Literaturas‖, que é – na verdade – sectária e preconceituosa, na medida em que tal dicotomia acaba desqualificando obras lidas previamente pelos alunos como ―não literárias‖ ou como se tivessem ―menos relevância‖ do que autores canônicos. Além disso, a nosso ver infelizmente, costuma-se também apenas fazer com que os alunos simplesmente decorem uma periodização de ―Escolas‖ e ―Movimentos‖ ou, no máximo, nomes de autores sem que haja nenhum relacionamento com os conhecimentos e leituras desses estudantes e nem mesmo com o panorama empírico no qual eles estão inseridos e/ ou que os cerca – o que acaba culminando geralmente num desinteresse do corpo discente por tal aprendizado que acaba sendo visto como ―chato‖, ―fastidioso‖ e até mesmo ―sem utilidade‖; e realmente não é o intuito do que é literário ser ―útil‖ no sentido de contribuir com um pragmatismo reinante que considera o adolescente como simples ferramenta futura para o mercado de trabalho, como se não fosse necessário contribuir para que ele desenvolvesse seu potencial de análise crítica. Ora, mesmo os projetos ideológicos de Literatura engajada, que buscavam mudar algo na sociedade, não se prestavam a profissionalizar os cidadãos para operar máquinas. Ou seja, é nosso intuito ir contra a tendência descrita anteriormente. Para tanto, estruturamos nossas asserções de acordo com o seguinte esquema: iniciamos trazendo 11

justificativas para nossa pesquisa, bem como apresentando a série Doctor Who. Num segundo momento, apresentamos o referencial teórico e a metodologia de trabalho para, a seguir, partirmos para as análises propriamente ditas, aproximando os acompanhantes da figura principal da série dos mensageiros e amas (e outros personagens específicos) das tragédias gregas e de figuras literárias de modo geral, desvelando também concepções filosóficas e certos mitos e lendas presentes na produção midiática atual.

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2 POR QUE ESTUDAR PRODUÇÕES MIDIÁTICAS ATUAIS E TENTAR DESVELAR RELAÇÕES DA CULTURA POP COM A “CLÁSSICA”

Nesta seção pretendemos explicitar as constatações que levaram à adoção deste escopo de pesquisa e também fatores que justificam pesquisas no mesmo sentido das, por nós, realizadas. Iniciamos dizendo que é evidente a influência considerável das mídias digitais no mundo contemporâneo. Mas, antes de qualquer coisa, para que os sentidos mobilizados quando usarmos aqui as expressões ―mídias‖ e ―mídias digitais‖ fiquem claros ao leitor, cremos ser necessário trazer uma definição. Para tanto, apresentamos dizeres retirados do dicionário Aurélio digital, que – para o verbete mídias – apresenta a equivalência de ―[...] conjunto dos meios de comunicação, e que inclui, indistintamente, diferentes veículos, recursos e técnicas, como, p. ex., jornal, rádio, televisão, cinema, outdoor, página impressa, propaganda, mala-direta, balão inflável, anúncio em site da Internet, etc.‖ E mídia digital, baseando-se ainda no mesmo dicionário: ―[...] a que é baseada em tecnologia digital, como, p. ex., a Internet e a TV digital‖. Mas aqui nós incluímos, além disso, uso de celulares, tablets e afins para comunicação intersubjetiva, jogos virtuais no computador, no celular e no videogame. Feitas tais definições, cabe agora dizer que tais mídias seriam, em termos althusserianos (apud GREGOLIN, 2016), aparelhos ideiológicos, na medida em que seriam responsáveis por produzir e veicular até mesmo ideologias (avaliações, representações mentais acerca das condições materiais de existência). Neste sentido, surge a dúvida se sua influência seria positiva ou não. Sobre tal assunto, Eco (1993) discorre sobre dois posicionamentos distintos frente à cultura de massa. De um lado, haveria autores apocalípticos que acreditavam que a ―verdadeira‖/ ―alta‖ cultura estaria prestes a desaparecer, à beira de um cataclisma, em virtude do papel – para eles- danoso dos mass media, divulgadores de uma ―cultura estereotipada‖, ―menor‖ e ―homogeneizada‖. Obviamente, estabelecer essa dicotomia de uma ―Alta cultura‖ que se oporia a outra ―cultura‖ de gosto ―menor‖ e ―duvidoso‖ beira um preconceito com o qual não concordamos. Quando se cria um cânone literário, por exemplo, ele por vezes e para alguns acaba virando uma prescrição que deve ser seguida. Tal fenômeno é análogo ao que se verifica em Gramáticas Normativo-prescritivas que, em vez de descreverem como as línguas humanas naturais realmente são (providas de variantes e mutáveis ao longo do tempo com usos 13

motivados por fatores linguísticos e extralinguísticos), abordam ―como elas deveriam ser‖, quais os padrões e regras deveriam ser seguidos para, segundo esses manuais, não se falar ―errado‖. Claro que essa noção de ―erro‖ não tem sustentação científica, uma vez que para a Linguística só se pode falar em ―erro‖, quando se trata de uma construção que – em termos gerativo-chomyskianos- seria agramatical, por não pertencer à gramatica internalizada de nenhuma variedade de nenhum falante desse mesmo idioma. De qualquer modo, ao eleger certos usos como ―corretos‖ e taxar injustificadamente outros (que são sim sistemáticos e servem à comunicação dos falantes que os utilizam) como ―errados‖, as prescrições normativas adotam atitudes muito semelhantes às de críticos que excluem certas produções literárias – notadamente as atuais – do que seria o conjunto de textos ―literários‖. Nessa ótica bem pouco científica, muitas produções acabam sendo avaliadas como ―erradas‖, ―não- literárias‖ ou corruptelas de um ideal que deveria ser seguido. É esse o pensamento de autores como Perrone-Moisés (1988), que estabelece o que seriam livros representantes do que ela chama de ―Boa‖ ou ―Alta‖ Literatura. Ora, essa postura é, como afirma Teixeira (2007), ―[...] sectária e restritiva por circular, apenas, entre membros de uma elite, além de constantemente ser usada como arma de dominação.‖ (TEIXEIRA, 2007, p. 90). É restritiva porque, como afirmava Heráclito (apud CHAUÍ, 2002), os contrários são inseparáveis (haja vista que um nasce do outro). Assim, um dado elemento Y só adquire existência em virtude do seu oposto, e de fato, não haveria a noção de justiça sem a de ofensa, nem fome sem saciedade e muito menos cansaço sem repouso. Em outros termos, o ―bom‖, como afirmava Heráclito (apud CHAUÍ, 2002), pressupõe imediatamente algo que seria ―ruim‖ e o ―alto‖ só faz sentido ao se opõe ao ―baixo‖. Obviamente esses conceitos negativos restariam aos livros que não comporiam esse cânone de autores ―exemplares‖, pois Perrone-Moisés (coma qual discordamos de maneira veemente) vê de forma negativa a ascensão da literatura de expressão feminina, gay, como se isso fosse um movimento em ―detrimento dos valores literários‖, como se essas tendências contemporâneas configurassem algo de expressão ―menor‖ frente ao que os manuais de ensino de literatura veem como ―canônico‖. E isso vai na contramão do que postula Candido (2004). O autor, em seu ―O direito à Literatura”, estabelece que temos a direito a fruir as mais diversas formas de Literatura, até porque, de acordo com ele, o conceito de Literatura mudaria de uma sociedade à outra e que tanto as formas sancionadas quanto as que negam o cânone são indispensáveis. 14

Ou seja, o texto de Candido (2004) apresenta considerações relevantes, principalmente no que tange à importância de assegurar aos indivíduos a possibilidade de transitar entre as diferentes formas de Literatura, numa proposta que se aproxima de uma proposta de abordagem ―variacionista‖ das produções literárias que trabalhe no leitor uma competência próxima à competência discursiva (conceito abordado por autores como (TRAVAGLIA, 2004; TRAVAGLIA, 2009; CHAVES MARINHO & COSTA VAL, 2006) do falante em transitar entre as variedades linguísticas de sua língua materna e adequar seus discursos dependendo de seu interlocutor/receptor e dos graus de informalidade ou formalidade das situações, circunstâncias comunicativas às quais ele estiver submetido. Claro que todas essas variedades não são avaliadas socialmente da mesma forma, mas considerar como ―boa‖ apenas aquela que de alguma forma exerce domínio (em questão de prestígio) sobre as demais, é fechar os olhos para uma multiplicidade de questões. Por falar nisso, cabe ressaltar que, para Jakobson (1983; 1995), o dominante é o valor primeiro, primordial e, portanto, mais importante de uma hierarquia de valores que, ao se juntarem, formam um sistema (que pode ser tanto a obra de um autor, quanto os valores comuns e o dominante do que se chama de ―escola literária‖ ou os valores – dentre eles o dominante- contidos na produção artística de toda uma época). O dominante dominaria esses demais valores na hierarquia e exerceria influência sobre cada um deles. É importante salientar que, para o referido autor, da mesma forma que:

―[...] o trabalho poético não se confina exclusivamente à função poética; contendo muitas outras funções além desta [...] as funções estéticas não se limitam ao trabalho poético; o discurso de um orador, a conversação corriqueira, os artigos de jornal, os anúncios, um livro científico - todos podem conter considerações estéticas, expressar uma função estética e frequentemente 1idam com as palavras valorizando-as em si, para além de sua função referencial‖. (JAKOBSON, 1983, p. 487).

Ou seja, é praticamente impossível haver um texto com um único valor, sendo que a quase totalidade das produções – sejam elas escritas ou orais- é, na verdade, um aglomerado do que ele chama de funções da linguagem. Ele chega a afirmar que ―A linguagem deve ser estudada em toda a variedade de suas funções‖ (JAKOBSON, 1995, p. 121). Em sua ótica, a função poética não é exclusiva, mas o dominante da poesia porque ela também pode estar presente em produções cujas preocupações principais sejam não-estéticas. Uma propaganda com rimas, repetições, muitas assonâncias e aliterações, por exemplo, embora tenha a função poética, não tem como intuito principal o deleite e nem é centrada na mensagem (como seria se tivesse como dominante a função poética), mas pretende, em vez disso, atingir o 15

destinatário da mensagem, interpelando-o a fim de que ele compre o produto que está sendo anunciado. Portanto, tal propaganda, teria como dominante uma função conativa (ou apelativa), embora também tivesse entre seus outros valores subordinados a função poética. Nas palavras do autor:

Qualquer tentativa de reduzir a esfera da função poética à poesia ou de confinar a poesia à função poética seria uma simplificação excessiva e enganadora. A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão- somente a função dominante, determinante, ao passo que, em todas as outras atividades verbais ela funciona como um constituinte acessório, subsidiário (JAKOBSON, 1995, p. 127).

Aliás, as considerações acerca do dominante encontram ecos nas afirmações de autores que defendem a relevância em se abordar e considerar os mais variados formatos e expressões temáticas de textos literários, não reduzindo a Literatura a um cânone de poucos autores, até porque, na ótica desses autores (com os quais concordamos) ―[...] em vez de um discurso homogêneo, a teoria da Literatura designa uma heterogeneidade, uma diversidade, uma variedade de discursos que competem por primazia‖. (CULLER, 1997 apud TEIXEIRA, 2007, p. 92). É por isso que falamos em uma abordagem ―variacionista‖, pois – seguindo as asserções de Candido (2004) - para nós a Literatura varia, se torna diversa a uma postura sectária que trabalhe apenas alguns textos hegemônicos eleitos, abordando as mais variadas concretizações estelares dessa ―diversidade e variedade de discursos‖ (idem, ibidem) a que se pode chamar de Literatura enquanto uma constelação maior que abrange textos orais, escritos, folclóricos, não folclóricos, lendas, produções ditas eruditas, produções de matriz queer, feminista, indigenista, de minorias étnicas. Tal postura assemelha-se, inclusive, à de Campos (2011) na ―questão da origem da Literatura Brasileira‖- discussão na qual no outro polo está Candido (1997) e na qual está presente o problema de base de quando nossa ―Literatura‖ teria começado. Seria com a Carta de Pero Vaz de Caminha ou somente com o Arcadismo? Em seu estudo ―Formação da Literatura Brasileira‖, Candido (1997) apresenta uma concepção diacrônica, histórica de literatura (uma espécie de linha evolutiva, um desenvolvimento contínuo de ruptura e tradição), vista como um sistema simbólico e dinâmico de representação que comunica a natureza do homem para outros homens e depende necessariamente de um ―conjunto formado por produtores (autores) conscientes de seu papel‖ (e responsáveis por problematizar o que está sendo produzido e introduzir – ou não - algo 16

novo); outro de ―receptores (um público leitor)‖ e de um ―mecanismo transmissor (linguagem traduzida em estilos)‖. Postula, portanto, um cânone literário, cujo início deu-se, para ele, apenas no século XVIII com os árcades. Antes disso, o que inclui o barroco e Gregório de Matos, haveria apenas ―manifestações literárias‖ (textos sem um papel formativo, de autores esparsos, não- unidos por um projeto de literatura nacional e desprovidos de articulação de estilos e de um público leitor que, para Candido, não compõem um conjunto formativo de um ponto de vista histórico). Já Haroldo de Campos (2011) questiona essa perspectiva histórica, afirmando que Candido (1997) teria ―sequestrado‖ Gregório de Matos, negando-lhe o lugar que lhe era devido no processo de ―Formação da Literatura Brasileira‖ e que a argumentação deste teria como fecho sua própria proposição, o que a tornaria refutável. Assim, Campos (2011) propõe um estudo sincrônico, um modelo que, em vez de uma tradição a partir de uma linha evolutiva com uma origem pontual, considerasse ―constelações‖ e o que há de poético entre autores de diferentes épocas. Explicando melhor, Gregório de Matos e o Padre Anchieta teriam lugar nessa concepção porque seriam precursores de elementos estéticos que, sendo estrelas depositadas nessa constelação chamada Literatura brasileira, poderiam ser acessados e reutilizados (e realmente foram) por outros autores. Acresce que o sistema constelar apresentado anteriormente pode ser visto como uma ressonância das propostas dos formalistas russos e dos representantes da Nova Crítica. Nesse sentido, é mister trazer à tona as considerações de autores como Eliot (1989). Em ―A tradição e o talento individual”, esse autor se mostra em oposição à tendência de valorizar a individualidade do poeta desprendida de aspectos semelhantes às obras dos artistas precedentes, já que, para ele, o presente ressignifica o passado, fazendo de toda literatura uma ―presença simultânea‖. Ou seja, seria a combinação do passado com o presente que dá ao texto uma dinâmica temporal (ou, por vezes, atemporal). Isso significa que um bom poeta é reconhecido pela relação com que ele estabelece com os poetas ―imortais‖ que o precederam. Já em ―A função da crítica‖, Eliot (1989) comenta algumas de suas concepções que já haviam sido transmitidas anteriormente em alguns de seus trabalhos, e com as quais ele ainda concordava. Entre elas estaria a ideia de que o aparecimento de uma nova obra altera e reajusta as relações e proporções da ordem ideal formada pelas obras anteriormente existentes. Assim, segundo ele, se, por um lado, o presente modifica o passado, é também, por outro, orientado por este último. Tal concepção conversa, ao menos de certa forma, com a proposta formalista de revisão da história e sucessão literária não como linha evolutiva 17

passiva, mas sim como uma relação dialógica entre obras, na qual uma forma justificaria a sua emergência pelo desgaste da forma que a antecedeu, numa verdadeira ―tradição da ruptura‖ pelo surgimento de novos procedimentos ou procedimentos renovados. Os formalistas russos propunham, assim, agrupar textos que apresentassem procedimentos de singularização comuns entre si (EIKHENBAUM, 1978), o que acabou contribuindo até mesmo para a valorização de autores que haviam sido esquecidos por estudos anteriores. Todas essas discussões são relevantes na medida em que tencionamos – para retomar conceitos de Eliot (1989) - demonstrar que Doctor Who dialoga com a tradição que remonta a tragediógrafos como Sófocles e também com demais produções artísticas vistas como canônicas ou clássicas, ao mesmo tempo em que apresentam mecanismos que os singularizam frente a esse passado. No capítulo inicial de Por que ler os clássicos, Calvino (1993) não só discute algumas definições acerca do que viria a ser um livro clássico como também desmistifica muitas das que circulam pelo senso comum e se opõe ao discurso reinante sobre a ―não-utilidade‖ da literatura. Uma delas seria a de que se usaria esse rótulo por obras que sempre são relidas, mas isso deixa de lado que, para ser relido, é necessária sempre uma primeira leitura que não necessariamente diz muito a todos os leitores, por muitos fatores (repertório de leitura, identificação, como foi o seu processo de formação de leitura). Outras versam sobre o fato de que muitos desses livros teoricamente teriam algo de universal como, inclusive a linguagem mística dos talismãs, e relevantes na formação da subjetividade de quem lê porque, como ele mesmo define, qualquer clássico veio antes de outros clássicos e um atual de certo modo retoma, dialoga com os anteriores e pode não só se tornar inesquecível (pelo estabelecimento de um cânone ou por leituras particulares), como também proporcionar o reconhecimento das mazelas humanas, inclusive, para alterá-las, aproximando-se das declarações de Eliot (1989) de as obras presentes ressignificam o passado, fazendo com que toda literatura seja uma ―presença simultânea‖, pois uma nova obra altera e reajusta as relações e proporções da ordem idealmente composta pelas obras existentes antes dela. Mas, voltando às asserções de Calvino (1993), pode-se dizer que o autor ressalta a importância da experiência particular de cada leitor com os livros, de modo que o academicismo é sim interessante, mas a obrigatoriedade de leitura como imposição, não contribui para acender a ―centelha‖ entre a obra e o leitor da qual ele fala. De acordo com suas concepções, um clássico, num sentido latu por ele defendido, é um livro que não pode ser 18

indiferente a quem lê, seja por estabelecer uma relação de afeto, identificação por semelhança ou de contraste, desagrado, implicância com o autor, seu estilo, seus personagens, suas mensagens. Acresce que essa mesma relação pode mudar ao longo do tempo e do acréscimo de outras leituras e do, consequente, relacionamento do autor deste clássico com o de outros. Até por essas questões, é ainda o mesmo pensador que postula – a nosso ver muito acertadamente- a necessidade de também usufruir de textos vistos (muitas vezes injustificadamente) como ―não literários‖ ou não clássicos (como best sellers) atuais, mesmo que para isso, fosse necessário – como exigem as unidades escolares – ―[..] captar a atualidade com o rumor do lado de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa [...] ou que o clássico permaneça como rumor mesmo a uma sincronia que lhe é incompatível‖ (CALVINO, 1993). Não estamos afirmando, entretanto, que a riqueza de uma obra considerada clássica está em dialogar com obras que ―deveriam‖ constar em todos os autores modernos – como se o material clássico fosse indiscutivelmente ―melhor‖, e, por isso mesmo, que devesse estar necessariamente presente ou ser obrigatoriamente (simplesmente por ter sido denominado ―clássico‖) revisitado por todo e qualquer trabalho poético atual, mas sim que as obras clássicas que chegaram até nós falaram algo para seu povo que tem de universal (humano) e esse universal ficou e chegou até nós, permitindo que os mitos e arquétipos trabalhados pelas produções canônicas sejam revisitados até por produções midiáticas atuais, como a série por nós investigada e esse é um dos fatores que justifica esta pesquisa. Ou melhor, seguindo os postulados de Rodrigues (2018) na esteira das declarações de Mee e Foley (2012), pode-se dizer que muitos textos antigos teriam para além dessa universalidade do que é humano, uma quantidade de questões que se fariam recorrentemente onipresentes. Nesse sentido, para o autor, seriam a onipresença do contexto bélico e da afronta da sempre existência de corpos que não recebem as últimas honras fúnebres, de um lado e, de outro, o arquétipo da mulher que migrou e se doou inteiramente por um masculino por ela moldado, mas que se sente desolada e indignadamente traída, levando-a a um desejo incontrolável de vingança desolada e determinada à vingança (que seria verificável em vários contextos) os responsáveis pelas recorrentes adaptações modernas de Antígona e de Medeia. Mas de qualquer maneira, como salienta o mesmo pesquisador mencionado anteriormente, a Literatura trata do que é humano e não se pode negar que o homem é um conjunto de complexidades em diálogo: desde semi-mutações dos códigos genéticos, a um 19

aglomerado de células que formam tecidos diferentes, órgãos diversos e distintos em inter- relação, pulsões psíquicas, relações e tensões sociais com os outros seres das comunidades nas quais habitam, sendo que esses outros seres também são genética, somática e psiquicamente atualizados por meio da tensão entre várias complexidades. Ou seja, o homem é complexo demais para ser limitado a oposições binaristas simplistas como ―certo‖ e ―errado‖, ―macho‖ e ―fêmea‖. E a Literatura, ao falar do homem, pensamos que segue o mesmo caminho. Desta sorte:

Não é tarefa fácil delimitar os movimentos que fazem com que a tragédia ou a comédia sejam revisitadas, mas é fato que tal experiência está ligada a inúmeros fatores históricos que estejam acontecendo nos países que as revisitam. Tanto a tragédia como a comédia nasceram da confluência de elementos históricos, políticos, sociais, ético, morais e religiosos, sendo assim, por mais que um mito, no caso da tragédia, ou uma situação cotidiana da Atenas do século V, para a comédia, dialoguem a princípio com uma população específica, os inúmeros elementos que constituem as peças falam, primordialmente, sobre o ser humano, as relações sociais, os sentimentos, entre outros aspectos que impedem os textos clássicos de permanecerem cristalizados em um período específico da história do Ocidente. (RODRIGUES, 2018, p. 14).

Aliás, é válido comentar que as tragédias gregas normalmente tentavam fazer com que o espectador/leitor sentisse terror e piedade pelo que vê/lê, alcançando a catarse. Elas refletiam um teor pedagógico, já que apresentavam um herói diante de um destino (muitas vezes decidido de antemão pelos deuses), perdendo a noção dos limites, cometendo um erro por orgulho desmedido (uma hybris), rompendo uma harmonia e passando de um estágio de fortuna para um de infortúnio. Ou seja, eram modelares quanto a comportamentos humanos e também quanto a quais comportamentos não deveriam ser seguidos, como matar o pai, casar- se e ter filhos com a própria mãe (como fizera Édipo, por exemplo). Portanto, as tragédias clássicas – como afirma Junqueira (2016)- como realizações do drama traziam apenas figuras nobres e elevadas, não comportando vilões e nem maus-caracteres. Nisso, elas difeririam, seguindo a mesma pesquisadora, do drama burguês que apresentava personagens de classes distintas dos monarcas e também vilões (que deveriam ser odiados pelos espectadores) e protagonistas (normalmente adorados pelo público). À parte dessa distinção e voltando ao onipresentemente caráter humano dos textos gregos antigos de que trata Rodrigues (2018), vale salientar que Taplin (1990) fala de como os espectadores ―sobrevivem‖ aos terrores mostrados por uma encenação trágica e voltam a suas vidas após o espetáculo, mas fazem esse retorno estando diferentes de como entraram, já 20

que a experiência teatral passaria a integrar cada um dos indivíduos do público, haja vista que muito do que é humano (nos seus aspectos tragicamente terríveis e, por isso, evitáveis) foi- lhes mostrado. Rosenfeld (1969) traz afirmações muito semelhantes, na medida em que salienta que os atores num teatro não-brechtiniano tentariam ao máximo dissociar-se de seu eu social (de seu nome ―empírico‖, de sua profissão, suas visões e concepções de mundo) para se encontrar no outro que é sua personagem. Mas, como tiraria tal personagem dentro de si mesmo, o ator celebraria e convidaria o público para o ritual de sair de si mesmo para se reencontrar no humano que é o outro e se tornar mais amplo ao voltar a si mesmo. Por meio dos comentários acima, esperamos ter ficado claro ao leitor que, retornando às asserções de Eco (1993), nos distanciamos do primeiro grupo de críticos por ele denominados de apocalípticos. Em tal grupo, aliás, estariam – na ótica de tal autor - alguns estudos da Teoria social americana, tais como os de Merton & Lazarsfeld (1990) – autores, para os quais, aliás, a mídia cumpriria três funções negativas na sociedade: a-) conferir e garantir status social a uma pessoa, tema, cidade, assunto que sofre um enfoque de cobertura sendo, consequentemente, apresentado ao maior número possível de espectadores; ou seja, num movimento circular, tal elemento torna-se conhecido porque foi difundido e porque, em decorrência disso, acabou ganhando relevância social; b-) reforçar normas sociais e o status quo, haja vista que a comunicação de massa estaria – na ótica deles- sob a égide de um princípio normalizador e normatizador, autoritário, na medida em que quanto mais determinada prática, determinado conteúdo é veiculado pela TV, pelo rádio, por exemplo, mais habitual, mais frequente, mais partilhado, mais ―normal‖ (no sentido de menos marcado, mais frequente) se torna; e consequentemente, acaba também virando uma regra de pensamento e de conduta; c-) servir de narcotizante e alucinógeno para o lazer, pois enquanto estaríamos nos entorpecendo, distraindo do mundo não digital cuja rotina é extremamente estressante com celulares, computadores, estaríamos, ao mesmo tempo, não voltando os olhos para as ordens sociais problemáticas e cerceadoras e sendo engolidos por elas. Contudo – e por outro lado – haveria outros autores, os integrados (em relação aos quais nos aproximamos mais). Tais críticos ―integrados‖ tentariam entender os papeis e a relevância social dos mass media por dentro, afirmando – entre outras questões – que a cultura de massa não homogeneizou, nem diminui uma ―arte‖ anterior que seria ―mais elevada‖, mas sim levou informação e outros aspectos culturais a um considerável número de pessoas, deselitizando tais informações antes restritas às camadas mais abastadas da sociedade; que o gosto por políticas de distração do tipo pão e circo infelizmente sempre existiu não tendo surgido com a tecnologia e nem com os atuais dispositivos midiáticos. 21

Embora não se possa considerar que o ciberespaço tenha apenas questões positivas, cremos poder realizar um uso consciente e responsável das novas tecnologias disponíveis. Neste trabalho, portanto, tentamos não ficar em nenhum dos dois polos, mas numa região de intermédio. Não fechamos os olhos para os perigos potenciais do uso das mídias, mas também não podemos ignorar que elas podem sim ser úteis. E se elas são utilizadas para fins danosos, também podem ser para positivos. Cabe mencionar também que, para Jenkins (2009), atualmente é notório que surgem aparelhos celulares, notebooks e televisores com cada vez mais funções e aplicações e que os espectadores de filmes e séries, em vez de esperar pelo próximo episódio ou pela sequência, criam suas próprias histórias, suas fan fictions baseadas nos seus personagens favoritos ou influenciam na narração oficial por meio de comentários nos sites. Ou seja, o poder dos produtores e dos consumidores midiáticos e as novas e as velhas mídias estariam se mesclando em aparelhos com múltiplas funções, estariam em rota de colisão, cruzando-se, em convergência (como sugere o título de seu livro) ou, como ele mesmo define, num:

[...] fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídias, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase total parte em busca de experiências de entretenimento que desejam. [...] A convergência não ocorre por meio de aparelhos por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros dos consumidores individuais e em suas interações sociais com os outros. Cada um de nós produz a própria mitologia pessoal, a partir de pedaços e fragmentos de informações extraídos do fluxo midiático e transformados em recursos através dos quais compreendemos nossa vida cotidiana. Por haver mais informações sobre determinado assunto do que podemos guardar na cabeça, há um incentivo extra para que conversemos entre nós sobre a mídia que consumimos. [...] O consumo tornou-se um processo coletivo [...] Nos últimos anos, vimos como os celulares se tornaram cada vez mais fundamentais nas estratégias de lançamento de filmes comerciais em todo o mundo; como filmes amadores e profissionais produzidos em celulares competiram por prêmios em festivais de cinema internacionais; como usuários puderam ouvir grandes conceitos e shows musicais, como romancistas japoneses serializam sua obra via mensagens de texto; e como gamers usaram aparelhos móveis para competir em jogos de realidade alternativa [...] (JENKINS, 2009, p. 29-31).Aliás, essas novas plataformas e aplicativos estariam, como atesta McLuhan (1990), entre as várias ―próteses‖ que o homem cria para potencializar seus próprios sentidos. Nesta esteira de pensamento, óculos seriam próteses da visão e a escrita, prótese para a memória. Acresce que o mesmo autor chega a afirma que a própria natureza físico-anatômica das novas tecnologias e invenções geraria consequências e reorganizações sociais. Em sua 22

ótica, isso teria inclusive implicações nos modelos de ensino-aprendizagem, uma vez que o livro impresso, por exemplo, teria feito com que das leituras orais coletivas acabassem surgindo estudantes solitários. Nas palavras do autor:

[...] Em primeiro lugar, a leitura silenciosa era desconhecida até o surgimento das superfícies macadamizadas e aerodinâmicas da página impressa, que permitiam a passagem veloz do olho apenas. Em segundo lugar, a dificuldade de acesso aos manuscritos obrigou os estudantes a memorizar tanto quanto possível tudo que liam. Isso levou ao enciclopedismo, como também a ter pronta para consumo em discurso oral a erudição total de cada um. A criança na escola durante a Idade Média tinha primeiro que fazer suas próprias cópias de textos, através do ditado. Em seguida, tinha de compilar sua própria gramática, dicionário e antologia. O aparecimento de uma grande quantidade de textos impressos baratos e uniformes modificou tudo isso. A mecanização da escrita através da composição de tipos móveis ampliou rapidamente o âmbito da leitura disponível e do mesmo modo reduziu velozmente o hábito do discurso oral como método de aprendizado. (MCLUHAN, 1990, p. 147-148).

Em outras palavras, não se possa ignorar, por exemplo, que – de acordo com postulados psicanalíticos – o homem é provido de pulsões parciais e que estas (como muito bem ilustra Prioste (2013)) são muitas vezes manipuladas e utilizadas pelas mídias atuais para convertê-las em estratégias que gerarão lucro. Como afirmamos em Mateus (2017):

Segundo Freud (apud KUPFER 2000, p. 40-44), quando crianças, nossa pulsão sexual seria formada de pulsões parciais: prazer em bater, em apanhar (sadomasoquismo), curiosidade em relação aos órgãos sexuais (voyeurismo), exibicionismos e prazer ligado à sucção e à defecação. Se nosso desenvolvimento ocorrer de forma bem-sucedida, uma parcela dessa pulsão vai ser reprimida, outra será um dos componentes da sexualidade genital e outra será desviada para a cultura. O teórico diz ainda que, para vivermos em sociedade, tivemos que abrir mão de parte de nossa pulsão agressiva e de parte de nossa pulsão sexual, criando vínculos não-sexuais como a amizade ou utilizando-nos do narcisismo das pequenas diferenças (ligando-nos a um grupo e dirigindo a violência a outro como ocorre entre torcidas de times rivais) (FREUD, 1930; FREUD, 1997) (MATEUS, 2017, p. 17-18).

Acresce que, infelizmente, muitas dessas pulsões são utilizadas não apenas em comerciais que se utilizam da sedução e do desejo de re-conjunção com o seio materno, materializando-o em produtos como cigarros ou alimentos, mas também em jogos, plataformas digitais e vídeos online (alguns de conteúdo pornográfico) que estimulam fantasias que acabam por desestimular que os seres construam laços de interação reais. Como atesta Prioste (2013) acerca do uso que adolescentes faziam dos dispositivos digitais: 23

[...] os jovens são atraídos pelo ciberespaço principalmente pela possibilidade de exercitar fantasias virtuais e se sentirem aceitos pelo grupo. Entre os meninos, prevaleciam as fantasias onipotentes e sádicas, com as seguintes temáticas: o terrorista/policial, o herói/ sobrenatural, o hacker/ expert. Entre as meninas, eram frequentes as fantasias românticas, cujos temas principais envolviam: a amada/ escolhida, a mãe/ bebê, a celebridade [...] as fantasias virtuais são produzidas pela indústria audiovisual, geralmente, a partir de componentes perverso-polimórficos reeditados [...] Ao se fixarem nas fantasias virtuais por meio de ―próteses digitais imagéticas‖, a capacidade dos jovens de apreensão das experiências de suas vidas sofrem alterações significativas. [...] Assim, conclui-se ser importante não somente a inclusão digital, no sentido de apropriação das TICs nos ambientes escolares, mas também uma efetiva formação crítica dos jovens em relação às mídias, fornecendo-lhes condições para que possam refletir sobre as ficções nas quais estão inseridos. (PRIOSTE, 2013, p. 8-9).

É ansiando chegar à formação crítica proposta por Prioste (2013) e ao uso positivo das mídias atuais que centramos o escopo deste trabalho na série londrina Doctor Who, na maneira como ela trata, remodela, atualiza temas clássicos, literários e até musicais a fim de que – ainda usando o pensamento de correlação entre os mais variados dispositivos oriundo da atual cultura da convergência de que trata Jenkins (2009)- seja possível, entre outras questões, confirmar que a dicotomia ―alta‖ e ―baixa‖ cultura não faz sentido e que mesmo produções midiáticas podem reaproximar jovens, adolescentes e a comunidade em geral de aspectos antes relegados a (e exclusivos de) classes hegemônicas. Ora, já dizia Max Weber (apud MOTA DINIZ 2016) que teria ocorrido um ―desencantamento do mundo‖, pois, para ele, no século XIX, o surgimento e fortalecimento do pensamento científico e capitalista, oriundo das Revoluções Industriais, teriam distanciado o homem do místico, do mágico e do religioso, para aproximá-lo do científico, até porque, como lembra Benjamin (apud MOTA DINIZ, 2016), o capitalismo acaba desumanizando as relações entre as pessoas, tendo em vista que, com o florescimento deste sistema de produção, o mundo passa a ser voltado para a técnica, levando a uma ruptura com a experiência, com conhecimentos tradicionais que passavam de uma geração a outra. Utilizando um exemplo de Mota Diniz (2016), um filho não precisa mais aprender com seu pai as artes relacionadas ao ofício da marcenaria para fabricar uma cadeira, mas precisa capacitar-se em escolas ou por meio da leitura de livros apropriados para operar a máquina que produzirá essa mesma peça de mobiliário. Neste panorama, até a educação passa a ter a função utilitária de produção e reprodução de conhecimento, passa a ser vista como uma preparação para que os indivíduos 24

desempenhem funções sobretudo no mercado de trabalho. E, já que nem mesmo os movimentos literários que se mostravam explicitamente engajados com o social pretendiam contribuir no campo profissionalizante empresarial-mecanicista no sentido de levar os operários a operarem ferramentas, aparelhos em cargos trabalhistas; disciplinas como a Literatura – da forma como costumam ser ministradas- acabam sendo recebidas, pragmaticamente ao contexto comentado, como ―inúteis‖. Tendo em mente que, para Zappone (2008), letramento diz respeito não só à apreensão do texto como unidade autônoma e sim no texto como unidade de enunciação, produção e que letramento literário abarca a relação do leitor com a produção escrita não só em livro, mas também na internet, que circula em blog, em outras linguagens; algumas das propostas e métodos de ensino atuais, talvez sejam ―pedagogizantes‖ e estruturais demais na abordagem dos conteúdos, de modo a apenas resvalar na relação do aluno com o texto, não valorizando muito, diferindo do que propõe Petit (2013), pois não dão ao corpo discente a possibilidade de reconhecer qual o seu repertório de leitura e correndo o risco de ―esvaziar‖ o que o texto diz ao aluno para a simples instrumentalização de transmitir o conteúdo de quais são os elementos formais de um conto e de um romance, de modo que possivelmente os alunos não consigam passar da superfície dos textos propostos e de seus aspectos formais, do nível de ―ledores” ao de ―leitores‖ - para usar os termos de Perrotti (1999) - que conseguem relacionar aquilo com sua realidade e com outros componentes de sua bagagem cultural. Apesar de tudo isso, para tentar fugir a essa postura pedagogizante e aproximar os textos da realidade dos alunos, acreditamos ser possível voltar a esse encantamento, caso se possa recuperar as fontes do inconsciente mitológico de temas e figuras literárias. Os alunos podem até não ter o hábito de ler obras consideradas como ―alta Literatura‖ (expressão esta que, aliás, é um preconceito ―elitista‖ que, como salienta Teixeira (2007), desqualifica injustificadamente obras que têm características literárias, mas que não compõem o cânone estabelecido por alguns críticos do que seriam ―bons livros‖ ou ―bons‖ clássicos), mas certamente têm uma bagagem riquíssima quanto a narrativas fílmicas, de séries de TV, animes e HQ. Visando um retorno ao ―encantamento‖ de que trata Weber, seria muito interessante se os alunos conseguissem relacionar as formas de narrar e as personagens de produções midiáticas atuais com produções literárias. E é exatamente esse intuito de aproximar elementos da série londrina Doctor Who com mitos e também figuras exploradas pelo campo literário (sem atribuir valor hierárquico entre o literário e o não-literário), que alicerça e justifica este trabalho. 25

Afinal, mesmo uma produção dos meios de comunicação em massa pode retomar e reformular mitos e figuras literárias. Até por isso, é bem possível motivar os alunos regulares de ensino básico, por exemplo, a adentrar ao universo da leitura ou, ao menos, diminuir a distância que muitas vezes existe entre os jovens e a literatura por meio de ferramentas e narrativas midiáticas. Expostas, assim, as justificativas deste trabalho, passamos a seguir a apresentar as referências que nos embasaram teoricamente nas análises e aproximações. 26

3 APORTE TEÓRICO

Para tentar alcançar nossos objetivos, foi necessária uma abordagem interdisciplinar que estabelecesse relações com algumas áreas do saber. Desta sorte, nosso respaldo teórico advém, sobretudo, de quatro pilares: da Arquetipologia Mitodológica (proposta por DINIZ (2016a;b)); das ferramentas e estruturas propostas pela Teoria Semiótica do Texto de viés greimasiano (trabalhada por BARROS (2011) e, por questões de economia, utilizadas para analisar o percurso narrativo de apenas uma das acompanhantes de viagem do personagem central do seriado), no que concerne ao discurso gerativo de sentido; das asserções de Campbell (1997) acerca das fases do que ele denomina como ―trajetória cíclica do herói‖, bem como as peças gregas e demais obras literárias com as quais estabelecemos paralelo e também das obras literárias e clássicas de modo geral (haja vista que elas serão ponto de partida para traçarmos paralelos quanto às formas de narrar e das conteúdos e características mobilizados nos personagens). Certamente o leitor percebeu que as sessões anteriores deste texto bebem e muito das águas que correm na fonte do nosso primeiro pilar teórico. Quanto a isso, aliás, vale dizer que, na esteira da mitocrítica e da mitanálise de Bittencourt (2011), Diniz (2016a;b) vai propor que se tente desvelar as semelhanças com as obras canônicas e literárias, bem como os mitos em latência por trás das produções socioculturais contemporâneas, levando-se em consideração tanto os contextos específicos de produção quanto questões universais humanas. E, nesse sentido, o autor retoma a ideia de arquétipo trabalhada por Jung (2000) que define representações arquetípicas como impressões primordiais que servem como pontos de partida referenciais, imagens modelares e formais universais que existiriam desde os tempos mais remotos, mas que em si são apenas como molduras (formas) lacunares, cujos espaços são preenchidos apenas quando se realizam por meio de figuras e representações sócio históricas específicas que remetem a essas formas que, de acordo com o psicanalista em questão, comporiam o inconsciente coletivo humano. Para tanto, o autor propõe que seria possível elaborar currículos escolares diversificados primeiramente procurando identificar, como referência, o que os discentes consomem e valorizam no que concerne a produções midiáticas (televisivas, webdigitais) e impressas para, num segundo momento, aproximar dos conteúdos tradicionais a serem trabalhados nas disciplinas de literatura, propondo também leituras em grupo das obras do programa e, por fim, atividades avaliativas nas quais os alunos deveriam repetir a segunda etapa, escolhendo por si mesmos produções não- canônicas e de seu universo pop das quais eles têm apreço, relacionando-as com alguma obra defendida pelo cânone. 27

Além disso, também utilizaremos a segunda das bases mencionadas no começa dessa seção sobretudo para analisar a trajetória por trás de uma das acompanhantes do personagem principal da série. Embora, Diniz (2016a) aponte que haja uma certa divergência entre a leitura semiótica e a abordagem da antropologia do imaginário de Durand (2002), tal farto não desabona a leitura convergente aqui realizada, uma vez que o Percurso Narrativo do Sentido auxilia satisfatoriamente nossa argumentação, como se poderá notar nas seções que seguem. Aliás, no que concerne especificamente a esta teoria semiótica, pode-se dizer que se postula haver, por trás da interpretação de qualquer texto, um percurso que se iniciaria no nível discursivo da materialidade textual que está sendo interpretada, nas entidades do mundo natural que nelas figuram concreta e sensorialmente como figuras e quais valores sócio-históricos abstratos elas tematizam, bem como quais são os seus elementos contextuais, verbais, temporais, nominais e acionais. Ou seja, um primeiro nível de interpretação seria o enunciado como está, como (quanto ao tempo, espaço e pessoa) ele foi proferido a partir de um ser tomando para si a enunciação e se foi construído embreado (num eu-aqui-agora tendo como assunto o sujeito que fala no tempo que fala e/ou falando do lugar em que esse sujeito está) ou debreado (num ele-lá- então quando alguém toma a palavra, se tornando um eu, mas não para falar de si mesmo e sim de outra pessoa, de um outro lugar e de um tempo não concomitante ao presente em que o enunciado é produzido). Dela, passaríamos para algo mais profundo, o chamado nível narrativo, analisando como os actantes fazem contratos entre si, se unem ou se afastam das questões, pessoas, elementos, temas que desejam ou, em termos mais técnicos (baseados nas palavras de BARROS (2011)), analisando se os sujeitos estão em relações de conjunção ou disjunção com seus objetos de desejo, quem doa a eles os impulsos de querer, saber e poder fazer o que eles fazem, quem é o sujeito destinador-manipulador que os manipula e os leva a agir dotando-os dos valores modais de desejo, sabedoria e potência para a ação. Ainda nesse mesmo nível também é possível analisar quais as sanções que esse destinador-manipulador dá ao sujeito agente, recompensando-o (caso o avalie positivamente) ou punindo-o (caso ele considere que o agente descumpriu ou não cumpri bem o contrato), além de como se dão seus programas narrativos (quais relações de transformação ocorrem, como enunciados do fazer levam a transformações nos enunciados de estado). Por fim, haveria – ainda de acordo com essa mesma teoria (exposta por BARROS (2011)) o nível fundamental no qual seria possível chegar às oposições que embasam a produção enunciativa que está sendo lida, ouvida, vista e/ ou analisada, interpretada. 28

Nesta monografia, embora haja nuances desse chamado nível fundamental na exposição dos arquétipos e mitos da série, utilizaremos da área semiótica, sobretudo, o percurso narrativo (em suma para analisar a trajetória por trás de uma personagem em específico, Clara Oswald – da qual trataremos na subseção 5.2.4 e também nas formas arquetípicas por trás de outros personagens, analisando a figuratização e tematização neles contida). Aliás, todo esse percurso que, de acordo com a Semiótica greimasiana, estaria em qualquer narrativa (na qual sempre haveria mudanças de estado), é um tanto quanto análogo ao que Campbell (1997) chama de “Trajetória do Heroi”. Para o referido autor, toda história com heróis (homens ou mulheres que conseguiram vencer suas limitações históricas e locais e alcançaram formas acima das válidas para os humanos) traria um trajeto de submissão à auto- conquista no qual tal herói seria chamado para a aventura e por muitas peripécias (até mesmo ser abduzido ou engolido por um ser como o Pinóquio que, segundo a fábula, é comido pela baleia) até passar por um limiar de seu mundo a um outro, no qual enfrenta várias provas, tem auxiliares e antagonistas, às vezes fazendo uniões sagradas, adquirindo novas religiões, sabedorias (o que CAMPBELL (1997) denomina de casamento sagrado), religando-se na ―sintonia com o pai‖ com alguém vivo ou com a lembrança de um morto com quem havia se desentendido (alguém que, aliás, normalmente retoma o arquétipo de pai como rival e/de castrador quanto ao primeiro objeto de desejo do protagonista), chegando a um momento apoteótico no qual entra em domínio total de suas habilidades, desenvolvendo-as ao máximo (conseguindo o que fora buscar, dominando o que tinha de ser aprendido de seus mestres), depois do qual, às vezes, rouba algum elixir, resgata algum sequestrado que lhe é querido. Contudo, antes de regressar a seu ponto de partida, esse mesmo protagonista frequentemente é perseguido por seus opositores, tem que lutar no limiar do retorno, podendo – inclusive ser morto -, mas na maioria dos casos, mesmo que tenha que ressuscitar (com o auxílio de um de seus mestres, mentores, ajudantes), acaba conseguindo retornar a seu mundo original (à sua casa) com o elixir, material, objeto, pessoa que foi buscar, mas sempre diferente de como começou a viagem, passando a ser o que Campbell (1997) denomina de ―Senhor de Dois mundos‖. Desse modo, vê-se que há uma ligação do que foi dito anteriormente com as estruturais universais de qualquer conto propostas por Propp, às quais Santos (1995) alude dizendo que:

Se examinarmos das fábulas populares, verificaremos que elas apresentam dois tipos de transformação social, sempre com final feliz: primeiro de cima para baixo e depois de novo para cima; ou então simplesmente de baixo para cima. No primeiro tipo, existe um príncipe que por alguma circunstância desastrosa se vê reduzido a guardador de porcos ou alguma outra condição miserável, para depois reconquistar sua condição real; no segundo tipo, existe um jovem que não possui nada desde o nascimento, pastor ou 29

camponês e talvez também pobre de espírito, que por virtude própria ou ajudado por seres mágicos consegue se casar com a princesa e tornar-se rei. Os mesmos esquemas valem para as fórmulas com protagonista feminina: no primeiro tipo, a donzela de condição real ou pelo menos privilegiada cai numa situação despojada pela rivalidade de uma madrasta (como a Branca de Neve) ou de meias-irmãs (como Cinderela) até que um príncipe se apaixona por ela e a conduz ao vértice da escala social; no segundo tipo se encontra uma verdadeira pastora ou camponesa pobre que supera todas as desvantagens de seu humilde nascimento e realiza núpcias principescas. [...] o autor da Odisseia deve manter Ulisses longe de casa por dez anos, desaparecido, inalcançável para os familiares e para os ex-companheiros de armas. Para fazer isso, deve fazê-lo sair do mundo conhecido, entrar em outra geografia, num mundo extra-humano, num além (não por acaso suas viagens culminam na visita aos Infernos). (SANTOS, 1995, p. 19-23).

Além de tais questões, um último ponto a ser ressaltado são as obras com as quais traçaremos paralelos (sendo que elas bem como a literatura crítica sobre as mesmas também entraram em nosso aporte teórico), a saber: Ájax, Filoctetes, Alceste, Os Persas, Prometeu acorrentado, Édipo Rei, Édipo em Colono (que narra a trajetória de Édipo já cego e conduzido pela filha Antígona que lhe serve de olhos até Colono, local de Atenas onde são recebidos por Teseu que, inclusive, os protege de serem capturados pelo Creonte que reinava como regente desmedido em Tebas), Os sete Contra Tebas, Agamêmnon, Coéforas e Eumênides (que compõem que muitos chamam de Oresteia), A Odisseia, Ilíada, Hipólito (de Eurípides), A Demanda do Santo Graal, Antígona, O retrato de Dorian Gray, o Médico e o Monstro, Alice no País das Maravilhas e Hamlet. Claro que não é o intuito desta seção apresentar uma análise pormenorizada e nem um resumo detalhado de cada uma dessas obras (até porque isso excederia e muito o escopo de nosso texto). De qualquer modo, passamos a seguir a falar brevemente sobre esses textos e, prezando pela concisão e levando-se em consideração que algumas dessas obras têm o cerne de sua narrativa presente nas análises expostas abaixo, aqui comentaremos somente sobre algumas delas enfatizando aspectos que serão retomados nas seções analíticas. Começaremos pela tragédia de Eurípides chamada Hipólito. Ela tematiza a história do filho de Teseu que, por sua beleza, acabou atraindo o desejo de Afrodite. Contudo, o jovem era virgem e desmedida e unicamente devoto de Ártemis – o que gerou tanto ódio da deusa filha de Urano que a fez encantar Fedra, a madrasta do rapaz para que ela se apaixonasse por ele. Mas novamente ele recusou qualquer enlace e isto fez com que a mulher do rei se suicidasse e escrevesse uma carta na qual dizia que Hipólito a havia seduzido. Teseu, então desterra o próprio filho e pede ajuda de Poseidon para castigar o que ele considerava ser uma traição incestuosa (e um tanto quanto edipiana). Assim, o deus dos mares envia uma besta marítima que ataca Hipólito e o leva a expirar. Antes de sua morte, ele é levado novamente 30

até a corte, onde – por influência da voz de Ártemis que se dirige ao soberano – Teseu descobre que fora enganado e que agiu erroneamente. Nesta questão, temos dois pontos a ressaltar. O primeiro é a mudança da figura de Teseu em relação ao que é pintado em Édipo em Colono na qual ele aparece como justo e equilibrado (uma oposição à erronia desmedida e pusilânime de Creonte). Já a segunda, se refere ao fato de que, no final da peça, Ártemis diz que se vingará do que ocorreu fazendo o mesmo com o primeiro devoto de Afrodite que aparecer – o que retoma o caráter vingativo dos deuses gregos que nos servirá de mote comparativo e que já está presente nas interferências divinas nos textos homéricos (nos quais, Apolo, por exemplo, é retratado com ligado a um lado positivo solar e à fecundidade do solo ao mesmo tempo que pode levar doenças e lançar suas flechas de longe, levando à morte) e histórias míticas (tais como a morte de Asclépio pelo soberano máximo do Olimpo que se, por um lado, mantém a ordem cósmica, por outro, pode fulminar com seu raio se enraivecido). Além disso, também faremos alusão, nas análises, ao texto shakespeariano sobre um príncipe que tem o pai morto pelo próprio tio e que finge estar louco e fala e raciocina tanto consigo mesmo antes de decidir se irá ou não se tornar um assassino (para punir tal crime familiar – o que já é uma proximidade com a figura de Orestes, como comentaremos a seguir) para recuperar o reino que chega a ser considerado como realmente desequilibrado pelos demais personagens. Há ainda uma relação um tanto quanto incestuosa entre Cláudio (o atual rei da Dinamarca, algoz e fratricida assassino do rei anterior) e a rainha (mãe de Hamlet, ex- cunhada do atual rei com o qual se casa) similar à de Édipo em Jocasta (de Édipo Rei). Aliás, de acordo com Ferreira (2018, p. 29), a Oresteia esquiliana estaria alicerçada num herói que concretizaria o que a autora chama de ―arquétipo simbólico do vingador‖, na medida em que, para usar as palavras dela:

Ésquilo, o escritor grego, elaborou a Orestéia (2004) para narrar o retorno do rei Agamêmnon ao palácio em Argos (depois da Guerra de Tróia), o assassinato do mesmo - planejado por sua própria esposa e o amante dela, Egisto –, o retorno de Orestes para vingar a morte do pai, e a perseguição pelas Fúrias até a absolvição do herói na cidade de Atenas. (FERREIA, 2018, p. 29).

Desta sorte, vemos que o tempo mítico utilizado como mote para a tragédia referida anteriormente é cíclico e sempre retorna a um marco zero, com a punição de um crime familiar sendo sempre passada para a próxima geração, na medida em que a série de assassinatos da descendência de Agamêmnon, na verdade, é fruto da punição de todos os Atridas, seus antepassados fratricidas. De acordo com o universo mítico que está além das três 31

peças de Ésquilo, na árvore genealógica ascendente de Agamêmnon haveria- como atesta Ferreira (2018)- três irmãos: Atreu, Tiestes e Crisipo, sendo que os dois primeiros mataram este último mas depois voltaram-se um contra o outro, de modo que Atreu mata os próprios sobrinho e os serve disfarçadamente como alimento a Tieste (que deles era a figura paterna). Para este quadro punitivo, a única exceção é o próprio Orestes, pois ele é absolvido (pelo voto final de Atena) em decorrência da intervenção de Apolo em sua defesa (que utiliza o fato da deusa Palas ter nascido diretamente da cabeça de Zeus para afirmar, fazendo um jogo retórico, que é mais válido defender a honra de um pai do que a de uma mãe, pois há inclusive seres sem mãe). Já a Alice de Carroll (2009) tematiza a diegese de uma garota que, muito similarmente às etapas descritas por Campbell (1997), é chamada a sair de seu cotidiano por um coelho que aparece correndo vestindo com um terno, portando um relógio e gritando ―É tarde!‖. Ela acaba caindo em sua toca (uma espécie de limiar para outro mundo) e adentra num espaço no qual enfrenta acontecimentos impensados (como bolos e bebidas que a fazem crescer ou diminuir consideravelmente de estatura) e conhece muitos seres sobrenaturais (como um gato que desaparece, um chapeleiro e uma lebre loucos e a chamada Rainha de Copas que é protegida por um exército de cartas do baralho, inclusive por seu fiel Valete) até retornar ao final para seu próprio mundo, final este no qual o leitor descobre que ela havia, na verdade, sonhado o País das Maravilhas. Acresce que A demanda do Santo Graal, por sua vez, aborda as peripécias e o código de honra dos cavaleiros medievais que deveriam se manter castos, puros e servis à Igreja e a Deus até encontrar o Graal e conseguir a salvação de sua alma. Agora sobre Ájax, pode-se dizer que se trata do desenrolar trágico do melhor guerreiro depois de Aquiles e que, portanto, se achava por direito o merecedor das armas do filho de Tétis que havia sucumbido na Guerra de Troia. Contudo, dada a interferência do plano divino, elas são dadas a Odisseu – protegido da deusa Atena que, aliás, joga uma erronia enganadora em Ájax para que este se insurja de raiva e mate um rebanho de animais quando pensa (ainda por influência do engano da mesma divindade) estar matando o exército grego que lhe havia ofendido. Quando percebe o que fizera, o herói, por vergonha de si mesmo, se joga sobre a própria espada e só tem as honras fúnebres por influência do poder de convencimento do discurso de Odisseu aos monarcas gregos. Passando agora a discorrer sobre o enovelamento narrativo de Filoctetes, retomamos as asserções de Brandão dos Santos (2007) na introdução de sua tradução para trazer a baila os fatos anteriores ao que está escrito na tragédia em si de que no final da Guerra de Troia, 32

Filoctetes é mordido por uma cobra no pé, o que lhe origina uma chaga pestilenta em razão da qual o herói não cessa de se lamentar e de uivar de dor. Por isso e também pelo odor de tal chaga, é abandonado por seus companheiros de guerra na ilha de Lemnos. Uma década depois desse acontecimento, uma revelação oracular afirma que Troia cairá apenas com a ajuda de Filoctetes e de seu arco. Dessa forma, Odisseu e o filho de Aquiles, Neoptólemo voltam para o resgatar (e a peça em questão se inicia nessa tentativa de resgate), embora o primeiro acabe usando sua astúcia e destreza na palavra para convencer o jovem a tentar roubar a arma do exilado. De qualquer modo: ―de modo paradoxal, na versão de Sófocles, Filoctetes vive por dez anos privado até mesmo da realização de seu nome, que seria ―aquele que possui amigos‖, em um espaço de isolamento social, cívico e religioso.‖ (BRANDÃO DOS SANTOS, 2007, p. 40- 41). Outra tragédia clássica por nós retomada nas análises comparativas com Doctor Who foi Alceste, na qual Admeto teria que ser morto por não ter feito uma dada libação, mas por influência do discurso de Apolo (que serviu em sua corte como punição por ter se rebelado contra Zeus após este ter fulminado seu filho Asclépio, em virtude das habilidades médicas deste terem chegado a um nível tão impressionante a ponto de conseguir ressuscitar um morto) contra a morte e da negociação para que alguém morra no lugar do rei. A única que aceita é sua esposa (que nomeia a peça). Muitos autores interpretam esse ato como uma abnegação dela por força de seu ―amor feminino‖ e respeito ao marido. Contudo, disso discordamos, pois nos aproximamos mais das afirmações de Brandão dos Santos (2008; 2017) de que declarar isso é forçar a realidade grega à sincronia atual, já que os casamentos na antiguidade grega eram arranjados (e não por amor, pelo menos não sobretudo) e o ato da mulher teria sido mais fruto de que caso Admeto morresse, ela seria obrigada a casar novamente com outro homem que seria o próximo rei e seus filhos com Admeto passariam a ser bastardos e a ocupar uma posição subalterna. Por tais questões, ela teria partido e deixado a casa em luto, durante o qual Héracles aparece para visitar Admeto. O rei, obedecendo aos preceitos gregos de ksenia, acaba recepcionando-o e não só não comentando explicitamente que sua mulher tinha falecido, como também impedindo que esta informação chegasse ao semi-deus de modo algum, deixando que este ficasse tendo regalias de comida e bebida num cômodo isolado do palácio enquanto os servos e demais integrantes tinham seus cabelos cortados em luto e realizavam as demais cerimônias necessárias à situação. Quando descobre a verdade, Héracles fica não apenas envergonhado, como se sente em dívida, em razão da qual vai até o Hades de onde resgata a figura que nomeia a peça. Portanto, é de opinião de 33

Brandão de Santos (2008) que tal tragédia fale da jornada da mulher da vida à morte e, depois à ressureição: Assim, Apolo e Morte, cada um figurando também uma possibilidade de desenlace do que ainda está por se encenar, põem-nos diante da casa de Admeto, no último dia de vida de Alceste. Com essa abertura, marcada pela presença de duas divindades que se opõem, o poeta situa-nos também diante do conflito que haveremos de presenciar durante o restante do espetáculo: a encenação da morte de Alceste e a sua volta à vida, com todas as ambiguidades que essas duas situações podem gerar. Toda a concentração dramática do prólogo, portanto, centra-se neste dia, o último em que ainda Alceste pode fazer uso da palavra. (BRANDÃO DOS SANTOS, 2008, p. 99)

Cabe salientar ainda que, em nossa ótica, é interessante o fato de que Alceste quando revivida retorna completamente coberta com um véu e não fala – o que retoma o fato de que as mulheres gregas não tinham voz na ágora e eram, tal qual comenta Marchetti (2018), corpos frios. Segundo esta última autora referida, o corpo na época da Grécia Antiga era símbolo de poder e se relacionava com o que não precisava ser escondido por não ser vergonhoso. Aliás, como expõe muito bem a mesma autora, a própria palavra grega para verdade (ἀι εηεηα), indica aquilo que não está velado, em razão do alfa privativo negar a ideia de ocultação, já que o radical é o mesmo de Leto (mãe do deus Apolo, que andava toda coberta). Na ótica de Marchetti (2017), havia, em tal panorama grego, uma dicotomia primária entre os belos e bons e os excluídos. Os primeiros eram os aristocratas detentores do poder e centrais na sociedade que seriam lembrados posteriormente nas ânforas, nas comédias, nas tragédias, corpos vistos como quentes e que não precisavam ser cobertos, justamente por serem ‗belos‘, musculosos (até por referirem-se normalmente a atletas). Já os segundos eram os que não tinham nome e/ou que eram impedidos de usar a palavra (como escravos, crianças e mulheres), não tendo voz individual, corpos frios passivos que podiam ser usados e eram brancos (em virtude de não tomarem sol) e flácidos e, por isso, teriam que estar sempre cobertos. Ou seja, o trecho final da peça (com os traços de total velamento da figura feminina e ausência de voz para ela) pode ser interpretado sob um primeiro viés crítico e irônico do autor (que consideramos ser mais plausível) frente à realidade e as convenções sociais da época ou como algo que seguia as convenções. Quanto a Persas (escrita em 472 a. C.), sabe-se que se trata de uma peça que aborda:

[...] os momentos finais das Guerras Médicas, quando os persas perdem a Batalha de Salamina e estão retornando para casa, mais precisamente para Susa, capital do país. A rainha aflita, acompanhada dos anciãos, aguarda notícias de seu filho, o rei Xerxes, e dos homens que lutavam para conquistar a Grécia. Muitos fatos, embora não-verídicos, revelam a criação artística de 34

Ésquilo, que não poupou esforços para colocar em cena um retrato da guerra mas, ressaltam também, que por motivos justos e de acordo com os deuses, da primeira grande guerra entre o Ocidente e o Oriente, os gregos foram os vitoriosos.‖ (RODRIGUES, 2011, p. 19).

Tais Guerras Médicas foram movidas por um anseio de expansão do Império Persa e de Unificação Médio Oriental e compostas por quatro grandes combates: Maratona, Termópilas, Salamina e Plateia. Assim sendo, inicialmente tem-se a dúvida se essa peça poderia realmente ser classificada como ―tragédia‖, haja vista que se baseia e tem como tema, a piori, eventos de cunho histórico e não necessariamente um mito – o que seria o habitual do gênero de acordo com o que afirmamos nos parágrafos anteriores. Contudo, esta dúvida cai por terra quando vamos além desse plano superficial e percebemos que, na verdade, o referido evento histórico é visto e retratado como tão grandioso que acaba por receber uma leitura mítica, o que torna a obra em questão trágica – alguns autores como Garvie (2009), chegam a declarar que a mencionada peça de Ésquilo iguala as Guerras Médicas à Guerra de Troia. De qualquer modo, quanto à obra geral do autor, salientamos que os planos humano e divino não aparecem como dois compartimentos estanques, completamente separados e incomunicáveis nas obras esquilianas, pois ―[...] o universo humano e o divino se refletem um no outro em Ésquilo. Dessa perspectiva, um conflito humano representa um conflito divino.‖ (VIDAL-NAQUET, 2008, p. 229). Também é digno de nota que, para Rodrigues (2011), os dramas esquilianos seriam caracterizados por apresentar ―três níveis‖: o político (pois haveria certas propostas sociais e preocupação com a pólis; no caso de Os Persas, por exemplo, trabalha-se o tema político da Guerra contra os bárbaros), o moral (relacionado com uma ordem – analogamente ao que comentaremos acerca do poema de Sólon- e temeridade aos deuses, pois o homem retratado cai por uma imoralidade que esbarra, como afirma Lesky (2003), numa ordem divina pré-estabelecida.) e religioso (relativo à não-distinção, não- separação entre os planos humano e divino, à presença nas peças de rituais divinatórios e de sonhos proféticos, e de Zeus como uma figura aterrorizante, mas, ao mesmo tempo, pacificadora e mantenedora e/ou restauradora de uma ordem, de um equilíbrio). Aliás, com relação ao plano moral, Rodrigues (2011) ainda afirma que, por influência dos temas de justiça, eunomía e sofia trabalhados em Sólon, Ésquilo trabalharia em sua obra uma série de dicotomias, tais como: loucura (ἄλνηα) em oposição a bom senso (θξ όλεζηο); piedade (εὐζέβεηα) em contraponto a atitudes impiedosas (δπζζεβ ία); desmedida (ὕβξηο) como valor 35

negativo oposto ao comedimento, à moderação (ζ σθ ξνζύ λε), a justeza (δηθαηνζύλε) como o pólo positivo de medidas embasadas na ousadia (ζξάζνο); e a prosperidade (ὄι βνο) como o oposto da desgraça, ruína ou erronia (ἄηε). É fato histórico confirmado que os persas tinham um exército muito mais numeroso que o heleno. Além disso, até existiu certa inteligência dos persas ao construir pontes duplas de barcaças através do Helesponto amarradas por cordas e ligadas por tábuas, que uniam o que hoje chamamos de Ásia e a Europa. A despeito disso, os gregos – tanto na realidade histórica quanto na peça que a mitologiza- sob a égide do general Temístocles, se utilizaram não apenas da coragem guerreira em prol da cidade, mas também da sabedoria (ζνθ ία) que os levou a desenvolver estratégias, armadilhas, maquinações enganosas (δόι νο). Entre elas estão os atos de atrair os persas para desfiladeiros a fim de tentar diminuir a superioridade numérica dos inimigos (que acabaram vendo sua grande quantidade de naus chocando-se entre si em virtude do pequeno espaço); de levar – assim que houve sinais de invasão iminente de Xerxes- toda a população ateniense para Salamina (haja vista que era melhor perder a cidade física que o povo até porque se o povo sobrevivesse, outra cidade poderia ser fundada ou a anterior reconstruída); e de mandar um soldado grego às tropas persas para dizer, mentirosamente, que eles partiriam em fuga durante à noite, o que levou Xerxes a fazer com que seus homens ficassem à noite toda em guarda e pela manhã, quando os gregos atacaram (como estava em seu plano), estivessem cansados demais para batalhar. Como consequência disso, os homens do ―soberbo e copioso‖ – e, portanto, desmedido- exército persa acabaram ―mortos de modo vil por morte infame‖ (ÉSQUILO 2002, p. 210-212). Ou seja, os inimigos dos helenos não tiveram uma ―bela morte‖, não pereceram no auge de sua beleza física; embora Xerxes continue vivo e contemplando a luz o que na verdade representa uma punição a todos os seus atos hybritas: ver tudo ruir em vida, tal qual a figura mítica e desmedia de Creonte (que, como pode ser verificado na Antígona de Sófocles, postula um édito humano de não sepultamento de um dos sobrinhos que fere uma lei divina, rompendo – para trazer Sólon novamente à baila- uma ordem que deve ser reestabelecida). Essa aproximação se mostra ainda mais possível ao final da peça esquiliana, quando Xerxes se lamenta e questiona o porquê de não ter sido enterrado com seus soldados: submetendo-se à lei de sepultamento de acordo com os padrões gregos. Contudo, é necessário salientar novamente que há em Ésquilo um espelhamento entre os planos humano e divino, de modo que os atos de Xerxes foram causados pela Áte que turva 36

os pensamentos humanos gerando uma sucessão (―teia‖) de erros. Xerxes deixa-se confundir, cegar, perturbar pela Áte, e, como rei - para aludir a Sólon- age despoticamente contra tudo e todos, descuida dos limites estabelecidos pelos deuses, desmede-se em seus atos, rompe uma harmonia e sofre uma punição divina por isso. Nas palavras de Rodrigues (2011): A falta (hamartía) existe como decorrência dos atos humanos que são punidos pelos deuses. E, em Os Persas, eles ocorrem pela presença ofuscante da deusa Áte, que envolve o homem em suas redes e, através da hybris (o excesso, a desmedida, a soberbia), faz com que ele caia em desgraça. (RODRIGUES, 2011, p. 58).

É a isso que se refere a seguinte fala de Dario, na qual vemos o poder criacional de Ésquilo que se utiliza de uma metáfora agrária:

―[...] A soberbia, ao florescer, produz a espiga da Erronia cuja safra de lágrimas será total‖ (ÉSQUILO, Os Persas, 2009, p. 221).

E ela realmente produziu uma safra de atos desmesurados na figura de Xerxes que - num édito humano (λόκνο) que, aludindo novamente à figura despótica de Creonte, contrariava uma ζεκηο - juntou o Helesponto (o que a natureza e os Deuses haviam separado), destruiu com seu exército, os templos gregos, desonrando os deuses e quis descomedidamente ser maior que seu pai e ter cada vez mais riqueza, acabando, por conseguinte, recebendo da própria mãe, o epíteto de ζνύξηνο – o mesmo dado em Homero ao Deus da Guerra não pensada, Ares, por oposição à deusa Atena da luta que envolvia sabedoria e também discursos enganosos – muito mais próxima dos gregos, pelo que afirmamos acima. Aliás, é relevante comentar que Os Persas traz uma estrutura comum em muitas tragédias que já é mencionada num dos poemas filosóficos morais de Sólon, o seu Fragmento 15, no qual se apresenta uma distinção entre os homens economicamente pobres, mas que são nobres e justos ao aceitarem as riquezas que os deuses lhes deram; dos homens (economicamente) ricos que são vis por serem injustos e procurarem bens materiais, prejudicando alguém por meio do cometimento de certas ὕβξηο, ofensas ou a um λνκόο (lei humana) ou a uma Θέκηο (lei divina), que desequilibram um θóδκνο (uma pré-estabelecida ordem divina justa) pela ação de um erro (ἀκαξεία ) que vai ser remediado por alguma vingança divina (λέκεδηο), sendo que esta gera uma desgraça (ἀvth) até a ordem ser restabelecida. 37

É para evitar todo esse processo (que está sob a égide da εζηή (Sorte)) que o eu lírico do poema de Sólon afirma que ―não pegaremos a riqueza [injusta] daqueles/ em troco da virtude‖. Afinal, se a injustiça será castigada seja pelos deuses, seja pela ação de outros homens, é melhor ser justo e, assim, alcançar prosperidade. Contudo, o Xerxes retratado por Ésquilo parece não ter se atentado para esses avisos, pois, se, de acordo com os postulados do ateniense Sólon, a virtude, excelência seria alcançada por meio da sabedoria e da reflexão (δνζία) que culminaria em medidas justas (diké), sendo estas alicerces a uma eunomía (bom governo), Xerxes (o rei persa) aparece, em Ésquilo, como aquele que perdeu a guerra porque lhe faltou δνζία como governante, tomou medidas injustas e até hybristas (como tentar unir dois continentes que haviam sido separados por eventos naturais), acabando à frente de um governo disnômico, injusto. Resta dizer, por fim, que a dramaticidade da peça também é feita por oposições como a de Xerxes e Dario. Este, além de ser representante o mundo dos mortos, é apresentado como um passado glorioso, um rei ἄθαθε (sem-mal) experiente e eunômico, bondoso e justo, unificador do Império, contrariamente a seu filho que aparece como um exemplar do mundo dos vivos do que não deve ser seguido, o presente de ruína, jovem disnômico, hybrista (submetido ao θαθόο), descomedido inclusive em relação ao feitos do pai. Esta oposição aparece inclusive marcada na peça, pois quando sai Dario (visto como sábio), entra Xerxes (o que foi hybrista e levou à ruína) estropiado e rasga as próprias vestes, reconhecendo a decadência do Império, somatizando a derrota, despindo-se da opulência inicial e distinto, portanto, da rainha Atossa que tinha aparecido ligada à opulência. Já que nos parágrafos anteriores comentamos sobre a estrutura cíclica das tragédias sobre o rompimento de uma ordem até o re-estabelecimento do equilíbrio cósmico, vale retomar as asserções de Ferreira (2018), para quem o caráter trágico das obras gregas antigas se verifica na contrariedade entre uma decisão ou reflexão humana e uma força tensora adversa que advém do Estado, das leis, das paixões impossíveis, dos desígnios divinos, do acaso ou do próprio herói. Já, para Romilly (1971), nas tragédias gregas, a ação trágica (num teatro não brechtiniano), embora falasse de mitos passados e às vezes estivesse em obras (como as esquilianas) que dialogassem com o passado onde estaria a causa dos males presentes, se instauraria– como já diziam os postulados aristotélicos- num presente único, o presente da representação, sem a ação de um narrador a fim de que os espectadores se identificassem com as ações apresentadas, sofrendo medo e piedade e purgando os sentimentos por catarse. 38

De acordo com Romilly (1971), o tempo nas obras de Ésquilo é visto como um mestre, como um instrutor de lições que leva ao aprendizado pelo sofrimento (tanto que os velhos normalmente são retratados com justos, sábios e às vezes como conselheiros e os jovens como imprudentes) e este mesmo tempo está sob a égide da justiça e dos planos divinos (daí uma certa concepção causal dos fatos e do trágico ser resultado da punição, do sentenciamento de um erro do personagem frente a alguma regra ou a algum desígnio dos deuses, desígnio este que é inevitável). Tal sentença, aliás, acaba se proliferando, às vezes, para toda a família, como se fosse uma moléstia genética. É por isso que – de acordo com a autora- Agamêmnon, na peça homônima acaba morto pela própria esposa e pelo amante desta. Tal punição viria, em sua ótica, como pagamento não apenas das desmedidas da figura de um rei que já na Ilíada rouba a cativa de Aquiles e desdenha do sacerdote apolíneo Crises, como também acaba enfurecendo Ártemis quando sua tropa estava em Áulis, de onde só parte depois de sacrificar a própria filha Ifigênia – ato que gera uma enorme raiva em Clitmnestra. Contudo, o assassinato do marido converte- se num crime familiar (na verdade numa espécie de moléstia consanguínea transmitida de geração para geração), punido nas Coéforas sob ação judiciosa das Erínias pelo próprio filho Orestes que comete um matricídio, mas é deste crime absolvido – dada a intervenção de Apolo- no julgamento presidido e decidido pelo voto final de Atena (Eumênides). Nessa mesma esteira segue Sete Contra Tebas, obra na qual se enovela o fratricídio dos dois irmãos Polinices e Etéocles, que acabam se entrematando, não apenas para fazer jus a uma profecia do próprio pai, mas também para continuar o processo de extirpação da raça dos labdácidas (manchada por crimes como incesto). Os dois filhos de Édipo haviam acordado de se alternar no poder de Tebas, mas Etéocles se recusou a entregar o trono o que levou Polinices a fugir para Argos, onde casou com a filha de Adrasto e de onde organizou uma expedição contra sua cidade natal encabeçada por ele e outros seis combatentes. Outro exemplo dessas afirmações é a figura prometeica que, como consta em Prometeu Acorrentado, é preso ao Cáucaso por correntes inquebrantáveis forjadas por Hefesto por ter tentado enganar Zeus por duas vezes e por ter, segundo a figura de Oceano criada por Ésquilo, uma língua desmedida e ser um πνηθὶιῳ (ardiloso no falar e no agir) tal qual o será a figura de Odisseu na sua história de retorno à Ítaca (Odisseia), na Guerra de Troia (tematizada pela Ilíada) nos discurso proferidos no Ájax e também quando tenta convencer Neoptólemo em Filoctetes. De qualquer modo, já que tocamos no mito prometeico, vale ressaltar que ele já é narrado em Hesíodo (1979; 2012) e começa em uma época em que homens e deuses ainda 39

viviam em harmonia e os homens não precisavam trabalhar e nem adoeciam (a ―época de ouro‖). Até que, quando Zeus se torna o rei do céu, fica designado que homens e deuses precisavam se separar e cada um assumiria suas funções, culminando nas demais eras cíclicas: como a Era de Prata e a dos Heróis. Mas, antes delas, Prometeu, que antes era o titã de maior confiança de Zeus, fica encarregado de atuar em tal separação. Ele, de acordo com Hacquard (1996) e Salvador (2013), teria tentado enganar o senhor do raio ao sacrificar um boi e pegar as melhores partes da carne do animal e escondê-las sob o estômago e o couro, fazendo-as adquirir um aspecto repulsivo. Já a gordura que aparentava ser saborosa, apenas escondia os ossos do boi. Assim divididas, as duas porções são então oferecidas ao maior deus do Olimpo, mas este desconfia da armadilha. Apesar disso, Zeus ainda escolhe a carne com melhor aparência, mas com pior gosto. Sua escolha – aparentemente equivocada – condena os humanos a realizar sacrifícios, a comer a carne do animal sacrificado, ao trabalho, ao cansaço, a doenças, à velhice e à morte, pois eles comiam a carne de um inocente, que, ao contrário dos ossos que ficaram com os deuses, era perecível. Além disso, ainda segundo os dois autores citados no parágrafo anterior, Zeus teria retirado o trigo e o fogo dos agora mortais. No entanto, Prometeu sobe ao Olimpo, rouba o fogo e o traz até a Terra numa fécula seca. Tal atitude não foi tão efetiva quanto possa parecer a priori, já que este elemento na Terra não era perpétuo, como aquele que aquecia os deuses. Como castigo, o titã é ainda acorrentado ao monte Cáucaso, tem seu fígado devorado por uma águia eternamente (pois o órgão sempre se regenerava) e seu irmão, Epimeteu, recebe Pandora como ―presente‖ dos deuses, uma mulher bela e graciosa, mas que também possuía palavras mentirosas e que acaba, instigada pela curiosidade enviada por Zeus, abrindo a caixa que continha uma quantidade considerável de males e desgraças, dispersando-as pela humanidade. De qualquer modo, para retomar as considerações de Romilly (1971), vale dizer que, em sua ótica, há na obra de Sófocles, uma maior importância do homem e uma menor dos deuses. Tal declaração é seguida por Rodrigues (2017), pois para tal autor, se Ésquilo (que retrata o homem como joguete dos deuses) e Eurípedes apareceriam como extremos (no qual há certa ênfase no humano), Sófocles viria como um meio-termo ao trazer os deuses, mas já apresentando conflitos mais individualistas do homem que – como Filoctetes- se vê sozinho e acha uma falta de sentido no mundo. Assim, em Sófocles, o tempo menos que um cumpridor da justiça e de uma sequência de faltas passadas para um mal presente, seria mais a fonte de instabilidade e das mudanças 40

dos homens, a qual se adiciona a ideia de arbitrariedade, de acaso (týkhe), como o Filoctetes (antes guerreiro brilhante, mas por muito tempo uma espécie de náufrago solitário, abandonado e sofredor de uma terrível sequela na perna), que seria – ainda de acordo com Romilly (1971)- uma das maiores vítimas das vicissitudes, das mudanças entre a fortuna e o infortúnio pelas quais passam os homens. É por isso que, de acordo com a autora, embora haja certo respeito por figuras velhas, seria mais evidente em Sófocles, o medo humano pelo envelhecimento e pelos males e atrofias mesmo biológicas trazidos com a avançar dos anos. Ora, já dizia Eco (2007) citando Nietsche que: [...] no belo, o ser humano se coloca como medida de perfeição [...] adora nele a si mesmo. No fundo, o homem se espelha nas coisas, considera belo tudo o que lhe devolve a sua imagem [...] o feio é entendido como sinal e sintoma de degenerescência [...] Cada indício de esgotamento, de peso, de senilidade, de cansaço, toda espécie de falta de liberdade como a convulsão, como a paralisia, sobretudo o cheiro, a cor, a forma da dissolução, da decomposição [...] tudo provoca a mesma reação: o juízo de valor de ‗feio‘. [...] O que odeia o ser humano? Não há dúvida: o declínio de seu tipo‖ (ECO, 2007, p 15).

Nesse sentido, diferente de Ésquilo, o trágico em Sófocles surgiria não de uma obrigação de seguir cega e inquestionavelmente os preceitos divinos, mas sim de uma recusa de seguir as alterações trazidas pelo tempo, cujo papel é de denunciar – mais cedo ou mais tarde- as virtudes ou fraquezas do homem, um tempo que no Édipo Rei denuncia a personagem que intitula a peça, embora esta não consiga ver como sua vida mudou, na medida em que é cega para as mudanças que o tempo trouxe e que estão de acordo com suas escolhas pessoais, com o acaso e com os desígnios dos oráculos de que ele cometeria patricídio e incesto. Aliás, o que demonstra muito bem Édipo Rei é que – relembrando o Páris que se envolve com Helena causando a Guerra de Troia e que tinha nascido como Alexandre na corte de Príamo, mas fora abandonado porque, no seu nascimento, sua irmã Cassandra havia profetizado que a vida dele representaria também a queda de Troia- Laio tentando fugir do oráculo que o sentenciava de morte pelas mãos do próprio filho, acaba dando força para a realização do mesmo, pois, em vez de matar a criança, o dá a um pastor que lhe transpassa os pés com o ferro, permitindo que o próprio Édipo, já crescido, ao tentar fugir de outro oráculo que dizia que ele mataria o pai e se casaria com a mãe foge da cidade em que foi criado pelos pais adotivos – que ele crê serem biológicos- e justamente nessa fuga encontra a comitiva de Laio e, depois de um desentendimento, acaba por matar a todos). 41

É também por essa mesma questão do tempo que, embora em Antígona se traga a questão mítica da necessidade de morte de um dos filhos restantes de Édipo, é muito mais forte o embate entre um rei desmedido e que parece ter enlouquecido ao longo dos anos e em razão de ter conseguido poder (Creonte) com suas novas leis humanas e as leis anteriores divinas, imortais e não escritas defendidas por Antígona que desobedece o próprio tio ao jogar terra sobre o corpo do irmão Polinices para que este pudesse ter o descanso eterno. Assim, da filha do antigo rei, ela – que já tinha se transformado na filha-irmã de um ato moralmente condenável, de princesa se transforma em condenada real. Por fim, na obra de Eurípides, para Romilly (1971), embora haja questões já presentes nos tragediógrafos mencionados anteriormente (como o castigo- análogo aos trazidos pelo tempo esquiliano- do deus Dionísio, em Bacantes, a um erro que foi cometido por gerações anteriores e o desvelamento sofoclianamente gradativo da inocência de Hipólito frente à acusação de tentativa de conquista da madrasta, engano causado aliás pela influência de Afrodite que invejara a devoção e castidade do rapaz em nome de Ártemis, como seria bem ao gosto de Ésquilo), teríamos sobretudo não tanto os homens elevados pregados por Aristóteles para os protótipos de tragédia, mas, em vez disso, haveria nas tragédias euripidianas já experiências mais particulares e comuns do dia a dia, algo um tanto quanto distante de conflitos sofridos pela instância humano em relação à sua submissão aos deuses e nem em confronto com as mudanças do passar dos anos, que já se encaminharia para seus conflitos dentro de casa. Este último tragediógrafo também retrataria o desmantelar do homem com o passar do tempo, mas não de uma forma geral (como a espécie humana envelhece) e sim particular. Além disso, como últimas questões teóricas relevantes (à comparação analítica feita nas seções seguintes), não poderíamos nos esquecer das questões teatrais que amplificavam o pathos trágico e da relevância das amas e escudeiros (próxima a dos companheiros de viagem do Doctor Who, como exporemos a seguir). Para iniciar a discussão de tais assuntos, retomaremos a ótica de Santos (1995), para quem, normalmente nas tragédias gregas antigas, o mensageiro cumpre mais um papel de reminiscência épica do que algo propriamente dramático, na medida em que, por ter presenciado eventos não mostrados ao público, acaba sendo fidedignamente portador de discursos habitualmente terríveis e desconhecidos pelos protagonistas (e/ ou narrativas até então desconhecidos do público sobre mortes de alguns personagens que acabaram acontecendo na coxia, fora das vistas dos espectadores), mensagens que são narradas e não mostradas e que acabam por se transformar em fatores causadores de peripécias, mudanças na 42

curso em que a ação dramática vinha tomando até o momento em que as mensagens desses integrantes dramáticos são reveladas. Nesse sentido, ele também cumpriria – ainda segundo Santos (1995) – um importante papel no crescente teor de um pathos trágico por trás das ações representadas, no ato de tornar o cenário conhecido ao público e também de fazer, por meio das reviravoltas causadas por seus dizeres, o encontro do herói com seu destino. Como ocorreria, na ótica dele em Sete contra Tebas, pois:

[...] O contraste entre o conhecimento do ambiente no interior da cidade e o desconhecimento do inimigo exterior vai-se sucessivamente esbatendo ao longo da progressão da acção dramática. Neste movimento, o mensageiro desempenha um papel fundamental. É que, se Etéocles, enquanto senhor da cidade de Cadmo, é, por excelência, o conhecedor da ambiência interna da cidade, o mensageiro-espião, por força da missão de que fora incumbido, é o único conhecedor da ameaça argiva, que, através da exactidão do seu relato, se vai progressivamente tornando concreta, palpável, personalizada perante Etéocles e os olhos dos espectadores. No prólogo, o mensageiro, sendo uma voz activa, introduz o universo accional e dramático da peça; mas, acima de tudo, completa e reforça os receios de Etéocles, expressos nos vv .1-38, e adensa o clima de turbulência com as " ζαθῆ" que, no v. 39, traz ao "ἄλαμ Καδκείσλ". De tal forma há um "crescendo" nos receios da cidade-navio que o seu timoneiro, numa reacção como que instintiva aos incitamentos à acção expressos pelo mensageiro a partir do v. 63 (com o acumular de imperativos), acusa a gravidade das informações recebidas e nada mais lhe resta do que suplicar aos deuses da cidade protecção e auxílio. A oração de Etéocles (vv.69-77) pode ser vista como a resposta instintiva, através de uma súplica tão piedosa como simultaneamente ominosa e significativamente contraditória e ambígua, ao quadro negro do "ressoar da vaga terrestre" (v.64) com que o mensageiro descreveu a situação. O coro, no párodo (vv.78-180), reflecte a gravidade da situação e lança "um apelo emocionado aos deuses, baseado na consciência de que nada se realiza sem eles." (SANTOS, 1995, p. 160).

Para esse teor patético crescente, também contribuiria um elemento presente em muitas obras: os sonhos proféticos. Como atesta Ferreira (2018), nas Coéforas, por exemplo, teríamos o sonho da própria rainha Clitemnestra de que ela estaria amamentando uma cobra com o leite e o sangue advindos de seus seios. Além disso, durante um dos episódio d‘ Os Persas há um sonho profético da rainha persa Atossa que aguardava por notícias do filho Xerxes (que havia ido batalhar contra os gregos). Em tal sonho, a soberana vê duas mulheres brigando. Uma ―nas rédeas tinha a boca dócea ao mando‖ (que metaforizava os Persas, submissos a um governante) e outra era insubmissa aos arreios de Xerxes (tal qual a Grécia). Mas, se não bastasse essa previsão vinda de um mundo onírico, assim que acorda, Atossa vai fazer libações, mas acaba passando por 43

uma experiência terrena também premonitória, pois vê um falcão (símbolo do exército grego) depenando a cabeça de uma águia (que simboliza os persas). Esta passagem tem por função não apenas aumentar o pathos do público, como também servir de prolepse aos eventos que vão se suceder. Acresce que o fato da profecia estar tanto no plano da realidade (com a visão da briga das aves), como no do sonho (um mundo superior um tanto quanto divino, ou, ao menos, não terreno) reitera a característica dos dramas esquilianos de espelhamento mencionada por Rodrigues (2011) de não-separação total entre o divino e o celeste. Outro recurso para aumentar o temor e a piedade advindos da identificação catártica do público com os personagens é, sem dúvida, o emprego de metáforas tão cifradas quanto os sonhos já apresentados. Como confirma Santos (1995), n‘Os Sete Contra Tebas os dois filhos de Édipo e irmãos consanguíneos Etéocles e Polinices lutam, após a morte do pai e antes da morte da irmã que se opõe a Creonte e sepulta o que havia guerreado contra o reino (retratada em Antígona), pela terra tebana – uma terra que, de acordo com o autor, os deu a vida, mas também é ligada à morte porque recebe os corpos dos cadáveres, os come e bebe seu sangue. Desta sorte, o tema que motiva o embate já é, metaforicamente, uma prolepse do desfecho, na medida em que: ―Os irmãos, que lutaram por um quinhão de terra como dádiva de uma herança, acabam, afinal, por receber, na morte, partes iguais dessa tão ambicionada terra!‖‖ (SANTOS, 1995, p.163-163). Um outro trecho da mesma peça talvez sirva para corroborar ainda mais o que estamos afirmando. O mesmo autor referenciado na linha acima comenta sobre também um sonho metafórico a respeito da invasão do irmão que não havia conseguido chegar ao poder de Tebas: O invasor desenfreado é apresentado através da metáfora do cavalo ofegante que inunda a planície de branca espuma; a poeira, símbolo de destruição, ergue-se por toda a planície! As metáforas náuticas sucedem-se em catadupa: o invasor é o "furacão de Ares" (v.63); Etéocles é o "diligente timoneiro da nau" (v.62); a tempestade argiva está iminente! Não deixa de ser sintomático que, no momento em que o mensageiro passa da descrição para o incitamento à acção (através dos imperativos dos vv. 58, 63 e 65), o próprio mensageiro não encontre outra forma senão mesclar o seu discurso com uma série de significativas metáforas. Num momento de turbulência, de inexistência de capacidade racional perante a gravidade da situação, o discurso do mensageiro traduz, ao nível sintácticosemântico, o estado de espírito de uma cidade de que também ele faz parte. E, tal como lhe faltam as palavras exactas, também à cidade e ao rei, em particular, irão faltar as acções mais adequadas! Sendo o recurso à metáfora característico do acentuar da emotividade ou da impossibilidade de correctamente se traduzir a realidade, Ésquilo não poderia ter escolhido 44

melhor ocasião para introduzir aquela que, segundo Winnington-Ingram, é uma das metáforas recorrentes da peça: a da cidade-navio na tempestade! (SANTOS, 1995, p. 162).

Além dessas funções dos mensageiros e do pathos presente em episódios oníricos e metafóricos, não poderíamos deixar de mencionar o papel das amas e dos escudeiros sobretudo nas tragédias clássicas francesas. Sobre tal assunto, vale salientar que, segundo Moretto (2006), o teatro clássico francês teve seu apogeu no século XVIII durante os reinados de Henrique IV, Luís XIII e Luís XIV. Nesta época renascentista, na qual havia uma concepção antropocêntrica de mundo (que concebia o homem como centro do universo), de acordo com o autor citado, a arte deveria seguir a algumas regras canônicas como estar alicerçada num ―bom senso racional‖ que controla e evita desregramentos imaginativos e furores poéticos, imitando a natureza e as ações humans, a fim de ―[...] obedecer aos gostos do público ao qual as obras trágicas eram destinadas‖, ou, em outros termos, para agradar aos cortesãos ―refinados‖ do rei, de os moralizar e os instruir, provocando a identificação dos espectadores com os personagens das obras (MORETTO, 2006, p. 57). Portanto, no que concerne à tragédia (nos moldes franceses de então), ela seria um mimetismo normalmente em cinco atos, baseado em histórias ou lendas da antiguidade greco- latina, apresentando apenas questões que fossem consideradas como possíveis, verossimilhantes e que seguiam as regras das três unidades e a unidade de tom (em razão da mescla de gêneros ser algo evitado e da necessidade de então, seguindo postulados aristotélicos, de se ligar elementos secundários a uma única ação central que deveria se passar num único local durante uma única revolução solar). Como consequência, a aparição de elementos maravilhosos e sobrenaturais em cena no teatro clássico francês era uma coisa quase que interdita. Além disso, como episódios de morte, de violência, de assassinato poderiam chocar o público, era conveniente que tais episódios se desenrolassem fora da cena e não aos olhos do público. Em Andromaque de Racine, por exemplo, é a confidente Cléone que conta a Hermione como Pyrrhus foi assassinado no tempo e é Pylade que conta a Oreste que Hermione se apunhalou diante do corpo de Pyrrhus. Aliás, de acordo com Oliveira (2016) e Moretto (2006), os confidentes nas tragédias clássicas francesas serviam não somente para evitar que os heróis da nobreza falassem sozinhos, mas também para os trazer à razão, ao controle, ao equilíbrio de suas pulsões, como 45

ditavam as conveniências da época, evitando que eles se perdessem na cólera, no ódio ou em paixões desmesuradas como faz Pylade com a intenção de Oreste de raptar Hermione:

« Pylade : Eh bien ! il la faut enlever, J'y consens. Mais songez cependant où vous êtes. Que croira−t−on de vous, à voir ce que vous faites ? Dissimulez : calmez ce transport inquiet ; Commandez à vos yeux de garder le secret. » (RACINE, 2009, p. 37).

À parte dessas questões é necessário falar ainda que os enigmas, metáforas e sonhos enigmáticos comentados acima retomam e muito aspectos presentes no Édipo Rei de modo geral. Aliás, na peça mencionada haveria um jogo de linguagem já no título, pois uma tradução literal do grego apontaria para Édipo Tirano. Acontece que, como filho de Laio, na verdade, o ser bípede ou de pés inchados (caracteres semânticos referenciados no próprio nome Οἰδίπους (formado provavelmente de νἴδα ‗saber,‘ πνπο ‗pés‘ e δη ‗dois‘)), seria o próximo soberano de Tebas por direito consanguíneo. Contudo, acaba matando o próprio pai e assumindo o trono à força (tiranicamente) – o que dá margem a uma das primeiras dualidades do drama. Aliás, como atesta Sebastiani (2018), daquele que venceu o enigma da Esfinge afirmando que aquele que começa a andar com quatro patas (quando engatinha), depois com duas (quando adulto e ereto) e depois com três (na velhice quando se apoia numa bengala) é ele mesmo, o próprio homem, restaria apenas uma única certeza: ―Édipo é o próprio enigma que (não) resolveu. O animal quadrúpede, então bípede, então trípede, é o ser humano; mas o que é o ser humano, ou melhor, um ser humano? Essa é a primeira das respostas que Édipo não soube, não pode ou não quis dar.‖ (SEBASTIANI, 2018, p. 2). Na visão do mesmo autor, o Édipo seria o Homem que quer o que quer, faz o que faz e vive o que vive pela hesitação constante entre as forças divinas, sua própria vontade humana e o acaso; ou seja, uma terceira margem entre a certeza inalcançável eventual de um oráculo que aponta para um futuro possível e (até certo ponto inevitável) e o erro manifesto passado que resultasse num eu-aqui-agora presente e em desgraça. O trágico seria resultado também do lado passional e não pensado, não refletido da personagem, haja vista que:

Ao invés de questionar, reage de modo passional, precipitado, e comete ―a‖ falha essencial (hamartía), raiz e matriz de toda a sequência de seus erros. Quando Édipo ouve de um bêbado, no palácio em Corinto, que ele era filho bastardo, parte para consultar o oráculo em busca de saber quem são seus pais. Ante a resposta famosa – ―matarás teu pai e dormirás com tua mãe‖ – 46

se apavora e foge para nunca mais retornar à cidade, certo de que a divindade se referia a Pólibo e Mérope, o casal real de Corinto que o criara. Édipo presume saber. Desse erro primeiro e revelador, dessa presunção fundadora motivada pelo horror instintivo, não refletido, decorrem todos os demais. Em uma sequência espantosamente rápida, uma vez que mal havia deixado o oráculo, mata todos os integrantes da comitiva na trifurcação de estradas, logo após soluciona o enigma da esfinge e se casa com a rainha viúva. Édipo fala e age, mas não questiona nem se dá conta de como suas atitudes impulsivas o levam precisamente a cumprir o vaticínio. (SENASTIANI, 2018, p. 4).

Vemos, portanto, que Sebastiani (2018) retoma o caráter didático das tragédias gregas por nós comentado na seção anterior sobre falar a respeito do que é humano e do que vem a ser interditado a humanos – algo muito análogo às declarações de Pereira (2015) de que Édipo não seria nem o juiz, nem promotor e nem o réu, mas o eu humano que está em cada um de nós, até porque no final do drama sofocliano: Édipo, que investigou a si mesmo como Heráclito (fr. 101 DK) e Sócrates, que acaba de (não) encarar e (re)conhecer a si mesmo, se arrasta cego pela cena, desejoso de lacrar-se por completo se pudesse (vv. 1386-1390), morto- vivo, macho-fêmea dionisiacamente aniquilado, privado da vista, do poder, do pai, da mãe-esposa, dos filhos-netos, do cunhado-tio, de todo paradigma. Absolutamente sozinho, agora é o legítimo filho da týkhe, como ele próprio entrevira, esse abismo-týkhe-nada escancarado, ―tríplices caminhos‖ (v. 1399) apontados numa mesma sua direção, (in)explicáveis como o enigma que (não) soube resolver. Um Édipo, enfim, diametralmente oposto àquele que conhecemos no início da peça. Ao mesmo tempo, um Édipo que continua humano: se não alcançou a plenitude da alétheia-coerência de Sócrates – cegar-se é resolver-se ou fugir? Ou ambos? Ou nenhum? –, ao menos de algum modo renasceu e parte para nova travessia. Como todos nós. Como sempre.‖ (SEBASTIANI, 2018, p. 9).

Além disso, Pereira (2015) relaciona, de maneira muito inovadora e interessante, as peças gregas com a área do Direito, afirmando, na mesma esteira de Foucault, que a tragédia Édipo Rei também poderia ser interpretada como ―[...] uma busca pela verdade processual.‖ (PEREIRA, 2015, p.11). E é justamente nesse sentido investigativo do desvelamento de enigmas, da resolução de dúvidas por meio da investigação de pistas que temos - como será comentado na seção seguinte – primeiro uma ligação com a série Doctor Who, além de um paralelo também com romances policiais como os escritos por Agatha Christie ou Arthur Conan Doyle. Mas isso já são questões para as próximas seções. Passemos, portanto, a apresentar a metodologia empregada em nossa pesquisa.

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4 METODOLOGIA DE TRABALHO

Apresentamos aqui quais foram os materiais e métodos e etapas da pesquisa por nós desenvolvida e que acabaram resultando nesta monografia. Iniciamos dizendo que a primeira das etapas girou em torno da leitura de peças clássicas e demais obras literárias. Como já conhecíamos a série, tínhamos em mente alguns livros com os quais havia semelhanças (explicitadas na seção de Análise dos Dados) e cuja (re-)leitura se justificava na medida em que contribuiriam com nossos objetivos de comparação. Dentre eles estavam A Odisseia, Ilíada, as novelas de cavalaria, como A demanda do Santo Graal (analisada por ANTONIETTE LOPES, 2014), Alice no país das maravilhas de Carroll (2009), Hamlet (de SHAKESPEARE (1997)) e O Médico e o Monstro (STEVENSON, 1991). Concomitantemente a isso, realizamos a leitura e elaboração de fichamentos, resenhas e resumos da bibliografia referente às áreas com as quais nossas investigações estabeleciam interfaces e/ou das quais retirávamos contribuições de natureza teórica. A seguir, todos os episódios das dez temporadas foram re-assistidos, de modo a tentar estabelecer relações, paralelos entre as produções canônicas citadas anteriormente e a parte moderna da série (na forma de narrar, em personagens que se tornam semelhantes por trejeitos, ações, falas, vestimentas). Todos os resultados das etapas descritas até este parágrafo eram debatidos, em momentos posteriores, em reuniões com nosso orientador que sempre propunha outras leituras possíveis dos episódios, outras relações que nos haviam escapado entre o universo grego e o universo pop, de modo a que os pontos por ele especificados levaram, por muitas vezes, à revisão não apenas dos episódios, mas também à adjunção de aportes teóricos (e de peças) com os quais ainda não havíamos entrado em contato. Antes de apresentarmos as análises propriamente ditas, ainda resta dizer que também foi possível apresentar os desdobramentos deste trabalho em eventos acadêmicos, como a Semana de Letras da FCLAr organizada pelo Centro Acadêmico local (―Paulo Leminsky‖). Em tal oportunidade, apresentamos a comunicação oral No labirinto de ecos da garota suflê: a receita de como passar de mera acompanhante a uma Senhora do Tempo, que acabou se transformando numa das subseções descritas abaixo. 48

5 ANÁLISE DOS DADOS

Passamos, a partir de agora a apresentar os relacionamentos entre a produção midiática em questão e as obras de nosso aporte teórico mencionadas anteriormente. A nosso entender, a série em questão não só retoma e reformula mitos e lendas, como também empreende a ficcionalização de escritores e músicos e concretiza, atualiza vários arquétipos já trabalhados por peças e demais obras consideradas canônicas. A fim de que nosso mergulho analítico no objeto deste trabalho não pareça ser feito de modo errático, cabe salientar que – em vez de uma divisão por episódios ou por personagens – realizaremos deliberadamente um movimento de aspectos gerais para mais específicos., na medida em que acreditamos ser esta a estrutura que permitirá ao leitor não apenas um conhecimento maior da série, como também um melhor acompanhamento do fio analítico. Ou seja, para facilitar a compreensão por parte do leitor das afirmações feitas nos parágrafos anteriores, dividimos cada uma das questões apresentadas em subseções, iniciando por uma apresentação geral da série que descreve a mitologia do seriado. Em seguida, apresentamos diversas possibilidades de interpretação do protagonista (e de certos vilões) em conjunto a obras literárias diversas; para terminarmos com uma análise da trajetória dos acompanhantes do Doutor. 5.1 Aspectos introdutórios sobre Doctor Who: conhecendo a série

A fim de inserir o leitor no universo a ser abordado neste texto, cabe dizer que Doctor Who é uma série da BBC de Londres que começou a ser filmada nos finais da década de 1960, parou de ser transmitida na TV nos anos 80-90 e retornou nos anos 2000. Por conta disso, ela costuma ser dividida em série clássica (que contém as temporadas iniciais transmitidas no século XX) e moderna (posterior ao ano 2000). É necessário explicar também que ela tem como mote a viajem no tempo (algo que já fora trabalhado até mesmo em muitos livros, tais como O mochileiro das Galáxias). Seu personagem principal, autodenominado ―The Doctor‖ (ou o Doutor) é um extraterrestre (com características corporais bem próximas às humanas), viajante do tempo-espaço, e oriundo do planeta Gallifrey, onde residia sua raça, composta de seres extremamente inteligentes que tinham dois corações, os chamados ―Senhores do Tempo‖ (Time Lords). As crianças deste planeta eram retiradas de suas famílias aos oito anos para serem levadas à ―Academia‖, um tipo de escola, onde eram iniciados, levados até um oráculo denominado Cisma Destemperada (uma brecha na tela da realidade, por meio da qual tudo do tempo-espaço 49

podia ser visto através de um vórtice). Por exposição constante ao vórtice do tempo, os Time Lords acabaram adquirindo a habilidade de se regenerar por até doze vezes ao longo de suas vidas (depois da 12a, eles se tornavam mortais). Claro que o doze aqui também não é um número escolhido ao acaso, na medida em que remete à quantidade de números de um relógio e à quantidade de signos da roda zodiacal do Ocidente. De qualquer modo, quando o corpo de um Senhor do Tempo morria por algum dano muito grave ou por velhice, era iniciada a liberação de um hormônio chamado lindos que, por um lado, regenerava suas células num ciclo de 15 horas, mas, por outro, mudava alguns traços de sua personalidade e características físicas (podendo até alterar seu sexo biológico), embora preservasse suas memórias. Esse processo normalmente envolvia a liberação de uma grande quantidade de energia, convertida numa luz vermelho-alaranjada muito semelhante ao fogo. E aqui temos a primeira menção ao mundo grego: uma referência – mesmo que implícita- ao mito da Fênix, animal que entrava em combustão ao ficar muito velha e renascia das próprias cinzas. Embora possa parecer um tanto quanto contraditório o mesmo indivíduo adquirir outra personalidade, é inegável, como esclarece o próprio Doutor, que a maioria dos seres vivos (principalmente os humanos) é contraditória e constantemente mutável, na medida em que podem engordar, emagrecer, pintar os cabelos, mudar a aparência física de seus corpos (hoje em dia até existem cirurgias plásticas) e até passar a agir de forma diferente ao longo de suas vidas, mas permanecerem os mesmos em essência. Além dessas questões, é necessário explicitar que, apesar dos Senhores do Tempo poderem observar galáxias e universos, havia uma lei de nunca interferirem em assuntos alheios. Contudo, quando ainda era jovem, o Doutor se recusa a continuar passivo frente a injustiças e à violência desnecessária. Como conseqüência, seu irmão, Braxiatel foi incumbido de destruí-lo, mas acaba permitindo que ele escape. O Doutor, então, rouba uma espaçonave/máquina do tempo do tipo TARDIS 40 (acrônimo para Time And Relative Dimension In Space) e foge de seu planeta em companhia de sua neta Susan. É interessante que todas as Tardis, na verdade, são vivas, providas de almas e têm um exterior maior que o interior. Apesar do interior da Tardis do Doutor ser enorme, por exemplo, seu exterior não passa de uma cabine telefônica azul. Mas, como nessa fuga inicial ele não tinha total controle sobre a nave, acaba caindo na Terra, onde se estabelece por um tempo. Depois, ao adquirir mais habilidade, passa a viajar pelo tempo-espaço (ainda em sua Tardis), lutando – com o auxílio de uma chave-sônica que ele vai aperfeiçoando- contra aliens e salvando planetas (dentre eles a Terra, por várias vezes) 50

e galáxias de malfeitores. Normalmente, é acompanhado por amigos que vai conhecendo em suas viagens, a maioria deles terráqueos, cuja função é, sobretudo, manter equilibrada a entidade heroica que per si já é sobrehumana e, portanto, excessiva – o que demonstra um ponto de ligação com os confidentes das tragédias francesas clássicas e com os acompanhantes dos heróis em grande parte das histórias tradicionais (papeis do Pátroclo, em relação a Aquiles, por exemplo ou de Sancho Pança em relação a Dom Quixote). Claro que, como humanos, esses companheiros terráqueos são mortais e, como alguns são assassinados pelos inimigos do protagonista e outros param de acompanhá-lo e passam a proteger suas famílias de eventos extraterrestres, o Doutor acaba sendo seguido por vários ao longo das temporadas. Abaixo, podemos visualizar os mais marcantes deles, bem como em que temporadas eles normalmente aparecem e viajam com o protagonista:

Figura 1: Acompanhantes do Doutor ao longo das temporadas

Fonte: Elaboração própria

Outra informação introdutória relevante é que alguns Senhores do Tempo não divulgam seus nomes a fim de evitar cair num truque antigo que permitia que uma criatura controlasse a outra apenas invocando sua nomeação. Aliás, isso foi utilizado durante o episódio ―The Shakespeare Code‖ da 3ª Temporada por uma bruxa que, ao verbalizar o nome 51

da então companheira de viagem do Doutor (Martha Jones), fez com que ela perdesse os sentidos. Por estas razões, certos membros da espécie do Doutor (e ele próprio) usam títulos que funcionam como promessas: algo pelo qual viver. Ou seja, ―Doutor‖, na verdade, é a materialização do juramento que o protagonista fez a si mesmo de nunca desistir, mesmo frente às piores adversidades, sempre proteger e curar os demais e sempre achar uma alternativa para evitar catástrofes. E até por pouquíssimas pessoas conhecerem seu nome, vários personagens recorrem constantemente à pergunta, que justifica o título da série, Doctor Who? (Doutor Quem?). Aliás, falando em nome, é de suma necessidade trazer à baila o potencial que o referido título tem de abarcar os principais sentidos do item lexical grego ιό γoο, não apenas quanto à ‗palavra‘ (haja vista todo o mistério e peso no verdadeiro nome do personagem chave), mas também ao sentido de ‗cálculo‘, na medida em que o protagonista se utiliza muito da razão, da lógica, de cálculos matemáticos e físico-químicos. Por ter vários inimigos e ser constantemente atacado, o Doutor passou por treze regenerações até o momento: sete na série clássica e seis na moderna, como se vê na imagem abaixo:

Figura 2: As regenerações do Doutor

Fonte: Elaboração própria 52

Na verdade, a série já está num momento em que o Doutor pela primeira vez se regenera num corpo biologicamente feminino, mas essa nova temporada (na qual ele será interpretado por Jodie Whitaker) ainda estava por sair no momento de nossa pesquisa e, portanto, ela não foi adicionada ao corpus de análise. De qualquer modo, embora até o momento tenha-se apresentado o protagonista como um personagem bondoso e solidário, que normalmente tenta negociar e manter a paz, é necessário deixar claro que – tal qual fizera Orestes nas Coéforas e analogamente ao que fez Ártemis, na peça Hipólito, na ameaça final contra Afrodite (retomando o lado vingativo dos deuses gregos, caráter este que se presentifica nas setas mortíferas de Apolo e no raio de Zeus) – a despeito de tentar manter a ordem cósmica dos universos, quando enfurecido (tal qual a figura do Hulk criada pela Marvel), o Doutor pode retomar o arcabouço arquetípico do vingador sendo alguém extremamente vingativo que age sem piedade, principalmente quando seus inimigos colocam em risco a vida de seus companheiros de viagem. Ou seja, de maneira análoga à figura mítica de Zeus (dotada ao mesmo tempo de um equilíbrio ordenador, mas também de uma potência de aniquilação) e ao personagem de Robert Louis Stevenson, Dr. Jeckyl, que dividia seu interior com o assassino Mr. Hyde, o protagonista da série Doctor Who também tem um lado monstro. Afinal, ele chegou a assassinar toda sua raça quando era um Guerreiro na Guerra do Tempo (mesmo que numa regeneração futura tenha impedido a si mesmo de fazer isso, transportando seu planeta para outra galáxia). Além disso, quando viajava com Martha Jones foi perseguido por extraterrestres chamados de ―A família‖ que pretendiam absorvê-lo para permanecerem vivos e, para tentar enganá-lo, roubaram corpos humanos. Por pena desses seres, já que eles não representavam um perigo real, o Doutor fugiu por um tempo (e chega até a usar o mecanismo camaleão da sua nave para apagar a própria memória e se passar por humano), até ter a identidade recuperada por influência de sua companheira de viagem, perder a paciência, explodir a nave desses inimigos e impingir castigos terríveis a todos, como prender um deles num monte rochoso com correntes praticamente inquebráveis, como fizera Hefestos na tragédia Prometeu Acorrentado. Aliás, quando impinge o castigo mencionado de acorrentamento encarna não apenas seu lado monstro, como também o vencedor da Guerra do Tempo, o tempo que, ao gosto de Ésquilo como afirmaria Romilly (1972), pune um erro, assumindo o arquétipo do Vingador que já tinha sido vestido por Orestes no mito e nas tragédias que dele tematizam. Mais um exemplo talvez aclare a relação realizada nos parágrafos anteriores. Na 9ª temporada, o protagonista coloca um chip extraterrestre na testa de uma Viking chamada 53

Ashildr, que havia morrido. O circuito integrado torna o sistema imunológico dela altamente inteligente, não apenas trazendo-a de novo à vida, como também a transformando num ser imortal. Episódios depois, eles se reencontram e agora é a governante de um bairro habitado por extraterrestres e tem um pacto com um ―espírito sombra‖. Para manter a ordem no bairro, todos os que cometem crimes são por ela sentenciados à morte, e têm apenas o tempo de se despedir de seus conhecidos, antes de terem suas energias vitais tomadas pelo espírito sombra que, para ceifá-los, assume a forma de um corvo. Acontece que Ashildr começa a rivalizar com o Doutor e arquiteta um plano que tinha como objetivo aprisioná-lo. Ela coloca uma moradora em estado de coma induzido numa redoma e acusa injustamente um amigo de Clara Oswald (então acompanhante de viagem do Doutor), de ter assassinado essa moradora. Seu objetivo era fazer com que o Doutor, assim que descobrisse que a civil estava viva, colocasse a mão na fechadura da redoma e tentasse utilizar a chave de sua Tardis para tirar a moça de lá – o que faria com que a mão dele ficasse presa. Mas tudo acaba saindo dos limites a ponto de Clara, para salvar o amigo, assumir a autoria desse ―crime‖ que, na verdade, nem tinha ocorrido e, como consequência, passar a ser a próxima vítima do corvo. Indignado com a possibilidade de perder sua fiel companheira, o Doutor ameaça Ashildr, dizendo que ou ela salvava a Clara, ou ele faria da vida dela um inferno e a perseguiria mesmo que fosse para chegar ao fim do mundo. Ela responde que ―o Doutor nunca faria isso‖ e ouve do próprio protagonista que ―O Doutor não está mais aqui, você está presa comigo e eu vou acabar com você e com tudo que você ama‖. Ou seja, ela não estava mais falando com o lado que jurou proteger e curar a todos, mas sim com o lado guerreiro, com o Monstro, que foi capaz de matar sua própria espécie. Um último ponto a ser comentado gira em torno da constatação que segue: muitas temporadas da série iniciam-se ou terminam com um episódio comemorativo de Natal, exibido normalmente em Dezembro. Ao lado disso, é relevante que o Doutor estava originalmente destinado a morrer numa cidade chamada Natal - fato que não apenas representa simbolicamente o fechamento de um ciclo, como também aproxima o protagonista da figura de Cristo, um também arquetípico ―salvador‖ nascido, segundo a tradição cristã, em 25 de dezembro. Feitas estas observações, passamos a discorrer, a seguir, sobre os vilões, cuja aparência, poderes e habilidades são bem variados, embora muitos tenham em comum o fato de atualizarem questões literárias e também míticas. É este o caso dos Daleks, pois, estes nada mais são que seres também ambíguos que, com a armadura, são praticamente invulneráveis, 54

embora sem ela, tenham uma forma extremamente pequena, desfigurada e, às vezes, gelatinosa que demonstra, de certo modo, fragilidade:

Figura 3: Armadura robótica de um Dalek Figura 4: Dalek fora da armadura

Fonte: Capturada do episódio The Parting of the Ways Fonte: Idem

Ou seja, esses inimigos do protagonista da série seriam uma reformulação da imagem, da forma daquele cavaleiro medieval que é forte quando está com a armadura, mas frágil sem ela, ressalvadas, obviamente as diferenças de que os Daleks são guerreiros sem emoções que só querem destruir todas as outras espécies por considerar todas elas inferiores e também que normalmente os cavaleiros da Idade Média estavam a serviço da Igreja, já que eles foram transpostos para a literatura, no século XII, em novelas de cavalaria com finalidades pedagógicas e morais e até com princípios cristãos, como ocorre n‘A Demanda do Santo Graal, na qual aparece o personagem Gallaaz como ―o puro dos puros‖, o cristão que deve se manter casto (sem contato com as mulheres, vistas como tentações demoníacas) em nome da salvação divina. Desse ponto de vista, os Daleks (que, apesar de sempre serem derrotados pelo Doutor, continuam tentando exterminar os demais seres) seriam mais como Lancelote, que segundo Antonietti Lopes (2014), por reiteradamente cair na sedução feminina, pode ser visto como ―o modelo do pecador incontrito, que persiste no erro‖. Além disso, os Daleks – de certo modo - também são uma prova de uma argumentação já trazida à baila pelos pensamentos de Xenófanes. Para tal autor, os deuses gregos eram representados à imagem e semelhança do homem. Se as vacas pensassem, elas provavelmente também achariam que os deuses têm quatro patas. E nós, como homens, não conseguiríamos conceber algo como diferente. Acresce que nas descrições de monstros da Antiguidade –por mais assustadores e sincréticos que fossem – haveria sempre traços de animais misturados com questões antropomórficas. Afinal, mesmo um monstro geleia tem olhos e/ou boca, tal qual os antagonistas da série em questão, na medida em que mesmo sendo gelatinosos e 55

desfigurados, têm olhos e um projeto de boca – atributos humanos. O próprio doutor, apesar de extraterrestre também –em todas as suas regenerações até o momento – assumiu apenas formas antropomórficas. Mas, para além dos Daleks, outros personagens também seguem os preceitos elencados anteriormente. Dentre os que reformulam mitos clássicos, estão os ―Anjos Lamentadores‖ (ou simplesmente Anjos): Figura 5: Anjo em posição de ataque

Fonte: Retirada do episódio Blink (Pisque)

Trata-se de criaturas rivais do protagonista que desenvolveram um notável sistema de defesa: quando observadas, são bloqueadas quanticamente, ficando travadas, impedidas de se movimentar, tornando-se estátuas de pedra com asas (por isso, anjos) assim que algum ser vivo olha em direção a elas. Ou seja, elas seriam uma reformulação do mito da Medusa, pois, se a górgona mitológica com cabelos de serpentes transformava em pedra todos os que olhavam para ela, os Anjos propositadamente fazem-se parecer estátuas inofensivas àquele que os vê (afinal ninguém pode matar uma pedra e nem vai pensar em fazê-lo), mas ficam apenas esperando até o ser que as observa virar o rosto para outra direção ou piscar. Quando isso acontece, eles podem assumir sua forma verdadeira e se movimentar livremente, até tocar sua presa. Através desse simples toque, o Anjo rouba toda a energia dos anos que sua vítima viveria se não o tivesse encontrado e a envia para algum espaço, num momento passado, como acontece, no episódio 10 da Terceira Temporada, intitulado Blink (Pisque), com a personagem Katherine, que é convidada por sua amiga Sally Sparrow para verificar um casarão abandonado, onde acaba tocada por um anjo e, como consequência, enviada a Hull em 1920. Além das questões já comentadas, ao longo dos episódios também aparecem algumas donzelas sedutoras, atraentes, mas capazes de realizar maldades e serem até potencialmente fatais, como eram as sereias mitológicas que se mostravam para os marinheiros como belas mulheres, mas que os atraíam para a água através de seu canto e os afogavam - mulheres que, 56

como diz o eu lírico baudelairiano do poema A une passante, têm no ―olhar um céu calmo, lívido e tranquilo, onde dorme o furacão‖ e representam não apenas ―a doçura que fascina‖, mas também ―o prazer que mata‖ (BAUDELAIRE, 2003, p. 164). Tais personagens seriam uma realização da figura da femme fatale, muito explorada na Literatura por simbolistas e também pelos românticos (até porque estes últimos queriam falar do homem em sua totalidade, no que ele tem de belo e de grotesco e apresentavam em suas produções ora mulheres-anjos idealizadas, puras e inalcançáveis, ora mulheres-demônios). Falamos do arquétipo de figura feminina que utiliza ferramentas de sedução e outros sortilégios, tal qual fazia Morgana le Fay, personagem que, nas histórias de Rei Arthur, era uma sacerdotisa com poder visionário que realizava rituais e encantamentos à serviço da divindade chamada A Grande Mãe, e tal qual fizera Circe, no canto X da Odisséia, ao transformar companheiros de Odisseu em porcos (depois de dar-lhes uma poção misturada numa bebida e tocar-lhes com sua varinha), e seduzir o próprio Odisseu que, embora tenha consumido uma planta dada por Hermes e escapado, assim, do efeito de transformação da poção da filha de Hélio, permaneceu por um tempo compartilhando o leito e a vida com a deusa. A propósito, no terceiro episódio da 6ª Temporada de Doctor Who, intitulado The Curse Of The Black Spot, aparece o que é mostrado a priori como uma sereia que farejava o sangue dos marinheiros feridos para os destruir. Na verdade, ao final do episódio, se descobre que ela era uma projeção extraterrestre que procurava feridos e doentes pelos mares e os levava até uma nave médica, onde mantinha seus pacientes vivos e estáveis, mas, por ser apenas uma projeção, não sabia e nem podia curá-los. Em outras palavras, embora ela atacasse qualquer um que a tentasse impedir de levar aquele que não estavam completamente saudáveis (e, por isso, tinham a palma das mãos marcada por ela com uma esfera negra), não era uma assassina – o que representa uma mudança com relação à figura mítica da sereia. Em Doctor Who, outra concretização do mesmo arquétipo aparece mais prototipicamente na figura da bruxa da espécie Carrionite do episódio The Shakespeare Code (já comentado). Segundo esse episódio, aliás, as Carrionite haviam sido banidas para uma prisão chamada Escuridão Profunda, mas o lamento do gênio Shakespeare quando seu filho morreu, fez com que três delas voltassem à Terra. Elas, então, teriam arquitetado um plano para libertar as outras de sua espécie: usaram magia para falar telepaticamente com o construtor do Globe Theater e instigá-lo a erigir uma construção poligonal (um tetradecágono), para representar as 14 estrelas da configuração planetária de Rexel (local de origem das Carrionite). Depois, utilizando-se das artes do vodu, elas encantaram Shakespeare, 57

levando-o a escrever uma peça denominada ―Amor é um esforço vencedor‖, ao final da qual colocaram palavras mágicas para abrir o portal que selava as demais bruxas. Além disso, no final desse mesmo episódio, há uma referência à personagem Rainha de Copas do livro Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, pois, como se vê na imagem a seguir, a rainha Elisabeth I, trajada com adorno espalhafatoso em forma de coração (figura que no baralho representa o naipe ―copas‖) aparece para assistir o espetáculo e ameaça o Doutor, dando a seus guardas a ordem: ―Cortem a cabeça dele‖, frase que ficou famosa pela releitura feita por alguns filmes da Disney da personagem Rainha de Copas (que ameaçou Alice com a mesma frase): Figura 6: Rainha Elizabeth I vestida como ―Rainha de Copas‖

Fonte: Retirada do episódio The Shakespeare Code

Pelo exposto, vê-se que a série empreende uma ficcionalização da figura literária do autor William Shakespeare. Outras ficcionalizações como essa se fazem presentes, como, por exemplo, no 7° episódio da 4ª temporada (intitulado The Unicorn and the Wasp), quando o Doutor já viajava com outra companheira chamada Donna Noble – mesmo porque Martha Jones, ao final da 3ª temporada, deixa de acompanhá-lo em suas aventuras para assegurar a proteção da própria família. No episódio em questão, Doutor e Donna viajam até 1920 e encontram a escritora Agatha Christie na mansão da rica Clemency Eddison. Todo episódio se desenrola como um livro da autora de romances policiais citada anteriormente, pois na mansão vários crimes acontecem como roubo de jóias, assassinatos e uma tentativa de envenenamento ao Doutor, pistas vão sendo descobertas, personagens interrogados, até que, com a ajuda do Doutor, a própria Agatha, assumindo o espírito bisbilhoteiro da sua personagem Miss Marple e o estilo de seu detetive ficcional Hercule Poirot - que aparece investigando crimes em vários livros, como Morte na Praia (1987) - começa a retomar os acontecimentos do dia, juntando-os com as pistas, desvelando os segredos dos presentes e descobrindo que quem havia roubado as jóias, o ladrão conhecido como Unicórnio era a jovem ruiva que se passava por uma ―Senhorita Redmond‖. Também se 58

descobre que 40 anos atrás, numa viagem a Deli, Clemency Eddison (a maior fã dos livros de Agatha Christie presente na mansão) teria se apaixonado por um alienígena que usava uma forma humana para aprender sobre humanóides, mas que na verdade era uma vespa gigante. Do relacionamento dos dois, teria nascido um filho, que teria sido abandonado num orfanato e educado por padres. Ao final, revela-se que essa criança era o padre que estava na casa e que ele havia cometido todos os assassinatos porque, dias antes, enfureceu-se com jovens que roubavam sua igreja, assumiu sua identidade vespa e conectou-se ao colar que sua mãe usava (na verdade, um Gravador Telepático Vespiforme) na hora dessa transformação e absorveu todos os romances de Agatha Christie da mente de sua mãe. A partir daí, ele passou a crer que a mecânica desses romances seria um modelo a ser seguido e, por isso, teria cometido todos esses assassinatos. Aliás, esse episódio, a nosso ver, pode ser interpretado como uma mise-en-abîme da série em geral, na medida em que em todos os episódios há algum evento sobrenatural que tem que ser desvendado e solucionado, ou, dizendo de outra forma, uma situação problemática, enigmática e conflituosa para a qual – analogamente ao que faria um detetive- se averiguam, se investigam as causas por meio de pistas até chegar às soluções. Se por um lado, como afirmou Sebastiani (2018), Édipo abre e tragicamente vai ao cabo de uma investigação contra si mesmo; por outro, cremos ter aqui processos tão análogos ao da tragédia sofocliana que, a nosso ver, a diegese midiática em questão pode ser interpretada como tendo como força motriz uma grande busca, ou remetendo às já mencionadas novelas de cavalaria, como o Grande Graal perseguido o autoconhecimento do protagonista e também de aspectos humanos (solidariedade, mas também raiva e descontrole emocional) tematizados neles, haja vista que no fim de cada ciclo e início de cada regeração, o Doutor passa a ter um novo rosto e uma nova personalidade, passando a ter que continuar se movendo, até para passar a se (re) conhecer, pois ele, sempre que regenera, fica – tal qual o Édipo – cego para si mesmo. Vale ressaltar também que o protagonista retoma tanto o δόι νο, quanto a ζνθ ία dois valores que têm grande importância para mundo helênico e que foram responsáveis, de acordo com o que é apresentado em Os Persas, pela vitória grega nas Guerras Médicas. O que nos leva a fazer tal afirmação é a sabedoria e a habilidade de arquitetar maquinações enganosas e estratégias mirabolantes do Doutor. Trata-se de um ser que rapidamente faz cálculos matemáticos e ao longo dos episódios demonstra ter conhecimentos de várias áreas desde a anatomia biológica de várias espécies, perpassando a habilidade de tocar flauta, piano e guitarra até falar várias línguas dentre elas a língua que a série denomina ser a específica dos 59

bebês, mas que também mente, quando necessário, chegando a enganar seus próprios companheiros de viagem para os resguardar. É isso que acontece quando na oitava temporada não tendo como evitar a própria morte (pois era um acontecimento fixo no tempo que o Doutor morreria pelas mãos de River Song e evitar isso faria com que o próprio tempo se esfacelasse), ele viaja com a Tardis para dentro de um robô que assume sua forma corporal, cumpre o que o destino tinha acordado, mas permanece vivo apesar de seus amigos Amy e Rory Pond acreditarem em sua morte. Essa enganação premeditada também ocorre em inúmeras outras passagens quando ele finge, por exemplo, que vai abandonar Clara Oswald com bonecos assassinos, mas, na verdade, usa o tempo em que ela fica presa para investigar esses antagonistas e pensar numa maneira de efetivamente resguardá-la) Além dessas questões, não se pode deixar de comentar que ainda no episódio The Curse Of The Black Spot (já mencionado anteriormente), o capitão do navio pirata que era assombrado pela sereia que farejava sangue é levado para dentro da Tardis e compara os instrumentos e partes da nave com os de uma embarcação, dizendo que ―um navio é um navio‖. Ao fazer isso, indiretamente o próprio Doutor é aproximado ao tópos heróico do pirata, que organiza uma equipe (no caso, os humanos Rory e Amelia, chamada pelo protagonista de ―Amy‖) e viaja num ―barco‖ à procura de aventuras e de contato com outros seres (considerados, para o Doutor, como ―tesouros perdidos‖). Na verdade, tal comparação esconde um outro paralelo: o do Doutor com Odisseu, pois ambos saem de casa, enfrentam muitas peripécias e perdem muitos companheiros em suas múltiplas viagens. Acresce que, se o segundo demora muito para regressar a Ítaca, o Doutor também tem que esperar muito tempo até conseguir, apenas na nona temporada, regressar a Gallifrey. Em outros termos, a jornada de ambos toca no tema do retorno para casa. Já que se falou anteriormente sobre Donna Noble, é preciso mencionar que o nome dessa personagem lembra, de certo modo, o título da canção Dona Nobis Pacem, cuja autoria é atribuída a Mozart. Aliás, quando o Doutor (interpretado por David Tennant) tem que se regenerar após salvar o avô da Donna de uma cabine de radiação, alguns seres começam a cantar uma canção para homenageá-lo, na qual uma das vozes entoa, sobretudo, ―Nobis Pacem‖. Para entender a relevância desta canção, urge retornar ao episódio Journey’s end, no qual, Donna fica presa sozinha na Tardis e acaba tocando a mão que o protagonista tinha perdido lutando contra o rei Sycorax, a mão que recebeu parte da energia de recuperação logo depois que o Doutor (interpretado por David Tennant) se regenera, sem alterar as 60

características de seu corpo. Esse toque fez com que o membro amputado se transformasse num clone humano do Doutor e com que Donna recebesse a mente desse Senhor do Tempo, passando a ser tão inteligente quanto ele. Mas o sistema nervoso central humano dela não era capaz de suportar tamanha inteligência e sua cabeça teria literalmente explodido se o Doutor não tivesse apagado sua memória, fazendo-a esquecer completamente de tudo que havia passado com ele. Não só isso, a partir desse dia, eles nunca mais poderiam se encontrar, pois se a presença dele trouxesse de volta as recordações da moça, isso a levaria à morte. Daí se compreende que não faria sentido cantar ―Dona Nobis Pacem‖ para amenizar a dor pela qual o Doutor estava passando, pois isso faria com que ele rememorasse o trágico fim de Donna Noble, com a qual não estava mais viajando, e com a qual, provavelmente, nunca mais voltaria a viajar, tendo em vista que ela nem se lembrava de tê-lo conhecido. Uma última ficcionalização ocorre com a figura de Beethoven que, embora não apareça explicitamente na série, é citado como sendo o responsável pelo Doutor ter aprendido a tocar piano. Além disso, no 4° Episódio da 9ª Temporada, o próprio Doutor (já em sua 13ª regeneração, interpretada por Peter Capaldi) sugere que a composição da 5ª Sinfonia de Beethoven teria sido fruto de uma de suas viagens, pois, em visita ao amigo músico alemão, ele, como fã, teria levado para Ludwig assinar as partituras da Sinfonia destacada. Mas, na linha do tempo do alemão, ela ainda não tinha sido composta. Então, Beethoven teria copiado das partituras levadas pelo viajante do tempo todas as notas e publicado em seu nome a 5ª Sinfonia. Depois de falar isso aos telespectadores, o Doutor toca algumas notas (da 5ª Sinfonia) com sua guitarra e elas tem muita similaridade com um trecho que reincide algumas vezes no início da trilha sonora de abertura da série. Além dessas questões, o protagonista da série pode ser interpretado como uma personagem hamletiana, pois é, como Hamlet, alguém solitário e hesitante. Embora a personagem de Shakespeare seja um príncipe da Noruega e viva, portanto, num castelo cercado de convivas, após encontrar o espectro de seu pai (o antigo rei da Noruega, recém falecido) que afirma ter tido o reino, a esposa e a honra roubados pelo próprio irmão, Cláudio (tio de Hamlet), que teria cometido um fratricídio para assumir o comando do reino e casar com a rainha Gertrudes, Hamlet promete vingar o pai e recuperar o reino, finge-se de louco e desfaz seu noivado com Ofélia, mas, por vezes, hesita se transpõe a linha de um nobre puro e até imaturo para se tornar o responsável pelo assassinato do próprio tio e de seu ex-genro, Polônio (um dos maiores aliados de Cláudio). Além disso, a habilidade de Hamlet (que se utiliza de uma linguagem figurada até para argumentar) com as palavras, na peça shakespeariana, nas suas maquinações interiores (solilóquios) – já que ele não pode contar 61

com mais ninguém sobre suas dúvidas - acerca da natureza da existência e também da difícil decisão que ele deveria tomar (ser ou não ser um assassino, mesmo que fosse para retomar seu reino e expurgar o ato incestuoso de sua mãe e de seu tio), acaba isolando-o, pois ela não é compreendida pelos demais personagens, nem mesmo por seu amigo Horácio. Tanto é verdade que, após o diálogo com o ex-noivo, em que vê o relacionamento desfeito, a própria Ofélia chega a pedir que o ―céu de bondade‖ (SHAKESPEARE, 1997, p. 76) ajude Hamlet e que os ―poderes celestiais‖ restituam-lhe ―a razão‖ (SHAKESPEARE, 1997, p. 77). Exemplar das maquinações de Hamlet, é o excerto a seguir:

Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? [...] Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas [...] se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? [...] De todos, faz covarde a consciência. [...] Mas, silêncio! Aí vem a bela Ofélia. Em tuas orações, ninfa, recorda-te dos meus pecados. (SHAKESPEARE, 1997, p. 73-74)

De maneira semelhante, o protagonista da série Doctor Who permanece durante muito tempo como último sobrevivente de sua espécie (por isso, sente-se solitário e retoma o molde do abandonado em solo estrangeiro, renegado e sem amigos que já havia sido concretizado na figura de Filoctetes) e, devido à sua aguçada inteligência, verbaliza pensamentos interiores sobre as causas e soluções das situações conflituosas pelas quais passa que, às vezes, não são compreendidas nem mesmo quando ele está com algum de seus companheiros de viagem, ou seja, apesar de sua habilidade ardilosa na forma de pensar e agir (o que é um ponto de ligação não só com o Odisseu retratado não só na Odisseia, como também no Ájax, mas também com a figura prometeica que, por sua língua e demais desmedidas é acorrentado ao Cáucaso e tem seu fígado eternamente comido por uma águia), permanece incompreendido, como quando, no episódio Blink (já citado), pensa consigo mesmo sobre como os Anjos Lamentadores agem. Outro exemplo ocorre no fim da 2ª temporada. Logo depois de Rose Tyler ficar presa num mundo paralelo, Donna Noble, que estava se casando, é misteriosamente transportada da Igreja para dentro da Tardis. O Doutor passa todo o episódio 14 da 2ª temporada (The 62

Runaway Bride) investigando e descobre que ela estava sendo contaminada pelo próprio noivo por substâncias chamadas Partículas Huon (um dos componentes de sua Tardis) e, devido a toda a ansiedade do enlace matrimonial, elas teriam atingido seu ponto de ebulição no corpo da moça, ativando-se e puxando-a até a nave. Mas ele reflete sobre todas essas informações em pouco mais de 30 segundos num intenso fluxo de consciência, de modo que, Donna, sem entender nada, como reação, lhe dá um sonoro tapa na cara. Em outra situação, já na 9ª temporada, ele e Clara Oswald estão procurando a saída de uma cripta dos Senhores do Tempo, guardada por fantasmas chamados Deslizantes. Ele, então, tenta explicar a natureza da estrutura da cripta, mas se utiliza de uma linguagem tão técnica e metafórica que a resposta irônica de Clara Oswald à explicação é ―Eu deveria entender alguma coisa?‖ Além disso, como se disse, o Doutor também, por vezes, demonstra hesitação. Como Hamlet hesita frente a necessidade de matar seu tio para recuperar o reino, o Doutor, na Guerra do Tempo, hesita em destruir todo seu planeta (e vários inocentes), mesmo em fúria com os Senhores do Tempo que, para terminar a luta contra os Daleks, pretendiam destruir o vórtice temporal, abolindo todas as demais criaturas do universo. Hesita também no episódio The fires of Pompeii (Pompéia), no qual, seres de lava chamados Pyrovile haviam se instalado nas regiões profundas do Vesúvio e estavam impedindo que ele entrasse em erupção, pois pegavam a lava do vulcão para dar energia a uma máquina que convertia humanos em Pyrovile. O Doutor, que estava levando Donna para uma das primeiras viagens dela, pretendia chegar a Roma, mas acaba aterrissando em Pompeia. No decorrer do episódio, ele se vê em outra decisão difícil : ou salva os habitantes de Pompeia e deixa os Pyrovile dominar o mundo com o mecanismo por eles criado, ou inverte o sistema, ativa o vulcão e explode as criaturas, mas também a cidade com os seus habitantes. Como ele acaba considerando que a erupção do Vesúvio era um dos eventos fixos no tempo (eventos históricos que no ciclo temporal ocorreram e sempre deveriam ocorrer, pois, caso contrário, a própria realidade estaria comprometida), acaba ativando o Vesúvio, levando-o a expelir material magmático, mas, pelo menos, devido à insistência de Donna, usa sua Tardis para salvar uma família de Pompeia, embora todos os demais nativos morram com o acontecimento. Expostas, assim, as questões introdutórias, passamos – a seguir – a abordar assuntos um tanto quanto mais específicos, tentando analisar, sobretudo, questões do universo grego por trás da série.

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5.2 O mundo heroico e helênico por trás dos acompanhantes

Nesta subseção, apresentamos relacionamentos com o universo helênico e com o que Campbell (1997) denomina de trajetória cíclica do herói. Já havíamos iniciado tal aproximação quando falamos sobre as figuras meio-humanas que atualizam mitos: tais como os Anjos. Nesse mesmo sentido, acaba aparecendo num dos episódios um ente meio homem e meio touro que aprisionava suas vítimas dentro de sua nave, fazendo –a se transformar num labirinto de fobias para seus alvos, (uma clara referência ao Minotauro, criatura que vivia no labirinto de Minos e que foi derrotado, de acordo com a narrativa mítica, graças ao auxílio do novelo de linha dado por Ariadne). Até por essas questões, é de nossa opinião que o universo helênico é muito presente no seriado, mesmo quando não é diretamente mencionado e nem os personagens a ele remetidos. Um primeiro ponto a ressaltar quanto a isso é a forma não linear como o tempo é trabalhado em Doctor Who, não só pelo personagem título ser um viajante do tempo. Ora, pelo menos até o ciclo das doze regenerações estar completo, a vida de um Senhor do Tempo, em vez de ter um ponto final que linearmente seria cabal (o último ponto de chegada de um início que começou antes), é cíclica (analogamente à concepção das punições familiares trágicas e das Eras hesiódicas), pois cada regeneração representa não apenas o fim de uma personalidade (e de sua trajetória), mas – concomitantemente - o início de uma nova, tal qual a perseguição em prol de uma punição de crimes familiares nas tragédias clássicas recomeçava a cada nova geração até toda a árvore consanguínea manchada por um erro estar extinta. Acresce que o seriado se utiliza de várias prolepses que contribuem e muito para aumentar o suspense patético crescente e até o terror diante do que é apresentado (e manter os espectadores interessados em assistir os episódios subsequentes), de modo semelhante ao que ocorria nas tragédias clássicas. Tais prolepses, na verdade, são uma das consequências de um mecanismo que dissocia os tempos apontados por Benveniste (1989). Vale salientar que o referido autor propõe a existência de três tempos. O primeiro seria o tempo físico que passa independente de nossa vontade, embora psiquicamente, ele passe de forma diferente para cada um de nós até porque alguns acontecimentos podem marcar mais uns que outros. O tempo crônico, por sua vez, seria um recorte cultural do tempo físico dependente de três condições: uma estativa (já que o tempo crônico depende de ponto zero, axial, para os cristãos, o nascimento de Cristo), uma diretiva (estabelecimento de um antes e um depois 64

desse ponto zero) e uma mensurativa (fixam-se unidades de divisão (anos, meses, semanas, dias, horas, minutos, segundos)). E por fim, haveria ainda o tempo linguístico, sendo que este último estaria fortemente ligado ao exercício do discurso. A forma mórfica do presente, por exemplo, coloca o evento como simultâneo ao momento em que foi proferido por um sujeito que faz uso da enunciação para produzir seus enunciados, a partir da construção linguística de instâncias de pessoa, lugar e tempo embreados (eu-aqui-agora), quando fala metalinguisticamente de si mesmo, do lugar em que está no momento em que fala e do tempo sobre o qual está falando ou debreados (ele- lá-então) quando fala sobre um outro sujeito, um outro lugar e/ ou uma época não correspondente ao momento da fala. Esse presente do momento em que o emissor se apodera das possibilidades enunciativas e se torna um eu, construindo um interlocutor (um tu ao qual ele se dirige) e um ele (o assunto da conversa), seria, na ótica de Benveniste (1989), o ponto axial do tempo linguístico. Além desse eixo/ simultaneidade, haveria uma não simultaneidade quanto ao último tempo, manifestada em duas subcategorias: anterioridade (marcada no português, no caso dos verbos, prototipicamente em alguma das formas de pretérito) e posteridade (os futuros mórficos). Ora, como o Doutor é um viajante do tempo, pode se deslocar para um espaço-tempo futuro ou passado em relação ao que estamos vivendo e passar a viver aventuras de modo que o presente dos fatos narrados dele talvez não corresponda ao presente crônico de quem assiste e possivelmente é um elemento temporalmente debreado em relação a outro sujeito ou a um outro viajante do tempo com o qual o protagonista possa se relacionar: é o que acontece quando, enquanto ainda viajava com Donna Noble, ele, de sua perspectiva (e na dos espectadores), encontra pela primeira vez a Dra. River Song, uma mulher então tão enigmática e sedutora como uma femme fatale. Paradoxalmente, ela havia mandado um chamado de socorro para ele da maior biblioteca do universo porque seu grupo de pesquisadores acabou preso num local em que havia extraterrestres que imediatamente consumiam toda a carne de um indivíduo caso ele adentrasse em qualquer área sem iluminação (o que, de acordo com a série, seria a origem da fobia humana pelo escuro). Na ótica dele, ela ainda era uma desconhecida, mas no final do episódio em que ocorre tal aparição (e durante o qual ela age como se tivesse um estreito vínculo de afeto com ele e o conhecesse há muito tempo), River acaba se matando para salvá-lo. E bem mais à frente, ficamos sabendo que ela também era uma viajante do tempo que, na verdade, vai ser a filha de Amélia Pond (outra acompanhante do Doutor). Mas a timeline dos dois não transcorre cronologicamente com os mesmos referentes de antes e depois de modo que quando ele a 65

conheceu na biblioteca, para ela, na verdade, foi a última vez que eles se encontraram, pois ela se suicidou (retomando novamente o arquétipo alcestiano do feminino que abre mão da própria vida em prol dos entes queridos). Mesmo assim, eles – no meio das próprias viagens, acabam se encontrando e até se casando. Em outros termos, num dado episódio, os fatos que são mostrados ao espectador e que instauram um presente enunciativo são temporalmente embreados na focalização (GENETTE, 1995) do Doutor ou dos seres que o acompanham naquele momento, de modo que a perspectiva que passa para quem assiste é a que o protagonista (e/ ou a que seus companheiros) tem naquele momento. Dessa monta, se, em Édipo Rei, Antígona cumpre a função de olhos para o próprio pai, pois lhe apresenta os personagens que adentram na cena, comenta onde estão; em Doctor Who, nós espectadores somos edipianamente levados pelo olhar que o protagonista e seus amigos possuem naquele momento. Nesse sentido, assumimos a focalização (GENETTE, 1995) do protagonista e de seus ajudantes, eles são a nossa Antígona. Talvez, para o leitor, tudo isso possa parecer paradoxal, mas tal impressão advém de uma tendência de nossa contemporaneidade de tratar os três tempos expostos por Benveniste (1989) como se fossem questões implicadas e sobrepostas, em virtude do monopólio de uma concepção de tempo como linha com um ponto zero no Big Bang, etnocentricamente segmentada em períodos anteriores aos atuais, vistos injustificadamente como ―piores‖ ou ―menos evoluídos‖ que a etapa temporal atual de quem olha. Essa mesma concepção, como expõe Hawking (2005) acredita que tal ponto zero, o que hoje é um universo inteiro, estaria espremido num ponto único de tamanho nulo, com densidade, curvatura tempo-espacial e temperatura infinitos. No entanto, é o mesmo Hawking (2005) quem afirma que hoje já se criaram outras teorias sobre o universo e que, mesmo dentro da teoria da relatividade (que correlaciona tempo e espaço as percepções de um referencial, como o posicionamento espaço-temporal do observador em relação ao fato observado), embora não tenhamos aparatos de engenharia para tanto, haveria plausibilidade em crer em viagens no tempo, na medida em que, por exemplo, poderíamos ser alçados dentro de uma máquina do tempo (que também seria uma espaçonave) numa velocidade próxima à da luz e retornar à Terra, quando, então perceberíamos que, a despeito de que, para nós, o único espaço teria sido durante toda a viagem nada além do que a máquina, na Terra teria se passado muito mais tempo do que a nossa viagem havia durado para nós mesmos em nossa perspectiva. 66

Alguns exemplos talvez aclarem esta questão. Quando ainda viajava com Martha Jones, o Doutor acaba encontrando uma criatura que lhe diz ―You are no alone‖, frase que no momento em que é enunciada não faz sentido nem para ele, nem para os espectadores que acompanham os fatos por meio de seu olhar. Contudo, temporadas depois, ele viaja para um tempo futuro em que a humanidade se limitava a poucas pessoas que viviam reclusas e protegidas contra a grande maioria que, por influência de uma mutação genética, se transformara em canibais. Um dos poucos sobreviventes era um doutor em Biologia, o Professor Yana, que trabalhava com uma assistente alienígena chamada Chanto (assim nomeada porque marcava o início de seu turno de fala ―por Chan-― e o final pela partícula ―–to‖) para tentar construir um foguete que levaria essas pessoas para ―A Terra Prometida‖, um espaço que ainda não havia sido contaminado. Acontece que, em dado momento, Martha acaba presa com esse professor aparentemente inofensivo e acaba visualizando que o relógio dele tem as mesmas insígnias que estavam no mecanismo camaleão que o Doutor já havia utilizado. Mas apenas um Senhor do Tempo poderia ter aquele objeto e teoricamente todos – com exceção do Doutor- estavam mortos. Isso causa não apenas uma dúvida, como também um suspense na personagem e nos telespectadores da série que acompanhavam os fatos através do que era presente para ela. A companheira do protagonista então começa a bater na porta, mas o professor Yana abre o relógio e recupera a memória. É então que sabemos, junto com ela, que ele na verdade é o Master, um antigo ―amigo‖ (e paradoxalmente inimigo) do Doutor que fugiu de Gallifrey antes do final da Guerra do Tempo e que havia criado essa personalidade falsa para se proteger. O antagonista também diz que, na verdade, todas as pessoas que já estavam na foguete seriam enviadas para serem decaptadas e ter seus cérebros coletados e transplantados em robôs que o serviriam. Nesse momento do episódio, enquanto Master ri sarcástica e diabolicamente e Martha desesperadamente tenta destravar a porta, a narrativa tem um feed- back retornando até a cena em que é dito que o Doutor não estava sozinho. A frase ―You are not alone‖ ressoa enquanto as inicias Yana são escritas na porta. Só então, tal frase é ressignificada e passamos a entender que ela queria dizer que ainda havia outro Senhor do Tempo, cujo pseudônimo retomava as primeiras letras de cada palavra dessa frase proléptica; Yana, portanto, nada mais era que um acrônimo para You are not alone: o enigma estava, assim, desfeito. Ou seja, o episódio no qual aparecem os alienígenas dA Família, apesar de ter tido muito pouca audiência quando inicialmente exibido, converte-se numa chave narrativa para a solução de um enigma (quem é Professor Yana e porque o protagonista não estava sozinho) e 67

também para ativar no telespectador crescente terror na re-introdução do arqui-inimigo do Doutor na série moderna, uma vez que o caráter patético não seria o mesmo se já não soubéssemos que apenas um Senhor do Tempo poderia ter um relógio como o que o Professor Yana portava. Vale comentar que a figura do Master, a nosso ver, é um Retrato de Dorian Gray colocado em cena, já que fica a todo momento fazendo maldades para chamar a atenção do Doutor e tentar se mostrar como mais inteligente e mais hábil (já que considera que o Doutor é injustamente visto como mais forte, mais bondoso ou mais sábio), enquanto o protagonista tenta uma reaproximação. Para nós, o intuito, a motivação diegética desse arqui-inimigo, na verdade, é jogar na cara do protagonista o lado monstro que ambos possuem (o monstro ou, para usar uma terminologia de JUNG (2000), as sombras que todos nós temos). E isso fica explícito quando na 9ª Temporada ele– já em outra regeneração- diz ao Doutor: ―O que eu quero com tudo isso? Eu quero meu amigo de volta! Nós não somos diferentes, Doutor‖. Ou seja, se Dorian Gray permanece belo e juvenil, apesar de cometer atos atrozes e que fazem a sua alma definhar, alma esta que se materializa no quadro que o rapaz ganhou de um amigo; o Master é o próprio quadro de um Doutor que – mesmo que por bons motivos- explodiu milhares de inocentes que lhe eram conterrâneos. Há alguns fatos interessantes quando dessa declaração. O primeiro deles é que Master estava desaparecido desde o episódio com o avô de Donna que levou à regeneração do Doutor na Terceira Temporada. Na época em que ―ele‖ reaparece, o Doutor era acompanhado por Clara Oswald e ambos chegam até um instituto tentando se comunicar com o falecido namorado da jovem. São recepcionados por um ser feminino que se apresenta (falsamente) como um robô chamado Missy e que diz querer apresentar o ambiente para o Doutor enquanto um de seus assistentes fala com a jovem. Quando ambos estão sozinhos, o protagonista começa a perceber algo estranho e pergunta a todo momento: ―Quem é você?‖ (pergunta que, aliás, também está por trás de toda a investigação jurídica feita pelo filho de Jocasta em Édipo Rei). Para tal pergunta, o Doutor sempre recebe como resposta um sorriso sarcástico que verbaliza: ―Você sabe quem eu sou‖, até que em dado momento, o pseudo-robô lhe diz: ―Eu sou a Missy, mas caso você queira, querido, pode continuar me chamando de Master‖. Isso gera um terror absurdo no protagonista (e também nos telespectadores) que passa a temer pela segurança de Clara. Como ficamos sabendo na 10ª temporada, o que havia ocorrido é que num momento futuro o Master encontra sua próxima regeneração e num ato que alude ao arquétipo dos irmãos que rivalizam (já concretizado nas figuras de Polinices e Etéocles), ambos acabam – 68

ao menos aparentemente- se entrematando. A Missy (já no final de sua primeira regeneração como um ente feminino) tenta proteger o Doutor e trair a si mesmo (trair um plano maquiavélico do Master que faria com que todos morressem) e esfaqueia o Master pelas costas, mas ele faz um disparo energético nela, enquanto ambos riem ironicamente dizendo ser paradoxal um morrer pela mão do outro. Até o momento, não foi dito o que ocorreu com a Missy, mas se sabe que o Master regenera-se e se torna a Missy começando um ciclo que aparentemente vai terminar quando ele já como Missy esfaquear a si mesmo iniciando seu processo de regeneração. De qualquer modo, a autonomeação dele também é relavante. ―Master‖ pode ser traduzido como ―mestre‖, mas também pode ser alusão a algo melhor, ao chefe de algum estabelecimento ou de uma organização clandestina. E esse sema (de algo melhor) se mantém no eco à miss (vencedora de um concurso de beleza) que está contido em Missy. Seja o ―Mestre‖ ou a ―Mulher mais Bela‖, o Master acaba tematizando também a figura do guerreiro que é julgado como segundo, mas que quer para si o protagonismo e a primazia do topo; ele – para nós- é também um Ájax reformulado que vê o Doutor como um Odisseu. E a fala da Missy ―Sabe quem eu sou‖ também nos remete à peça de Sófocles que retrata o mito edipiano, pois ambas ficam entre um aparente conhecimento e um desconhecimento do que ocorre e de si mesmo, da própria natureza. Édipo – como afirma Sebastiani (2018)- pensa saber quem é, mas se desconhece, Missy diz que o Doutor sabe quem ela é, mas até aquele momento não a tinha reconhecido e não tinha reconhecido a sua sombra metaforizada na figura dela, pois tentava esconder de si mesmo seu passado assassino de alguém que, tal qual Polinices, erguera a mão contra a própria pátria, mas não para governar (como o filho de Édipo) e sim para salvar o resto do universo. Mas, para além desses ―paradoxos‖ temporais, outra questão digna de menção é que, a nosso ver, todas as acompanhantes de viagem do Doutor, ao entrar na toca do coelho alcançam o País das Maravilhas do protagonista, ultrapassando seus limites de humanas, se aproximando de figuras heroicas – de maneira similar aos personagens das tragédias gregas analisados por Campbell (1997). Além disso, cremos ser possível afirmar que o arquétipo, já presente na tragédia euripidiana Alceste, do feminino que abre mão de tudo (inclusive, às vezes, da própria vida) em prol de um doar-se pelo próximo e/ou por um ente querido ganha figura e presença na narrativa diegética de muitas das acompanhantes do Doutor (e até mesmo na sua esposa River Song da qual trataremos em subseção específica), haja vista que Rose Tyler tenta, em vão, abandonar a mãe (que havia sido transportada para outro universo) para proteger a Terra 69

lutando ao lado do protagonista contra ciborgues e acaba quase morrendo ao absorver a energia da Tardis para o salvar; Martha Jones recusa sua nova vida de continuar viajando pelo espaço-tempo com seu mestre para proteger a vida da mãe; Amy Pond pisca os olhos diante de um anjo lamentador permitindo propositadamente ser por ele tocada (o que equivale praticamente a um suicídio intencional, pois o toque de tal criatura tirou dela mesma todos os anos que ainda viveria e a transformou em energia vital para o próprio anjo) a fim de ser lançada para o mesmo tempo passado que seu marido (que havia sido tocado pela mesma criatura segundos antes), sem falar na figura de Clara Oswald – que sempre esteve ao lado do Doutor e que decide pular na linha do tempo do ser que intitula a série, mesmo sabendo que seria estilhaçada em incontáveis versões e ecos de si mesma que, como uma receita, se manteriam fieis ao papel de salvar o Doutor em todas as suas regenerações. Mas aqui já entramos em assuntos que merecem um tratamento à parte. Por isso, passamos a seguir, a apresentar a narrativa heroica por trás de alguns acompanhantes do Doutor e também aspectos relevantes à nossa comparação com o universo clássico e das narrativas populares.

5.2.1 Rose Tyler: a trajetória da Chapeuzinho-Vermelho que vira Lobo- Mau

A trajetória desta personagem muda drasticamente quando, após sair do que ela considerava um dia normal de trabalho na loja de departamentos em que trabalhava, encontra o Doutor (já em sua 9ª regeneração, quando sempre vestia uma jaqueta de couro) que havia acabado de vencer manequins que haviam criado vida. Desde então, ela passa a acompanha-lo em suas aventuras pelo espaço-tempo. A moça loira de sorriso fácil interpretada por Billie Piper fez tanto sucesso com os fãs do seriado que permaneceu como co-protagonista até a 10ª regeneração do Doutor. Eles, aliás, ficam tão próximos que acabam se apaixonando, mas não podem ficar juntos até porque ela em sua última aparição acaba presa num mundo paralelo futuro. Mas, um pouco antes disso, no 13° episódio da 1ª temporada moderna (The Parting of the Ways), o personagem Jack Harkness (ou capitão Jack), interpretado pelo ator John Barrowman cruza o caminho dos dois. Inicialmente, Jack era um viajante do tempo golpista que vendia artefatos de guerra inúteis para quem encontrava. Tentou fazer o mesmo quando encontrou pela primeira vez Rose e Doutor, mas depois se redime, cria um lanço de amizade com os dois e passa a viajar com eles por alguns episódios, entre eles o comentado anteriormente, durante o qual o Doutor, 70

Rose e o capitão Jack vão parar na única nave Dalek (aliens inimigos dos Senhores do Tempo que tem o corpo de um robô como armadura) que escapou à Guerra do Tempo (que deverá ser mais bem detalhada num momento posterior da aula). Para que sua amiga fiel não terminasse assassinada pelos Daleks como acontece com Capitão Jack, o Doutor faz a Tardis voltar à Terra com Rose dentro, enquanto ele luta com os vilões sozinho. O que ele não esperava é que Rose não apenas olharia dentro do vórtice de tempo da nave, transformando-se no ser conhecido como Bad Wolf (que pode ver o passado, o presente e o futuro), como também voltaria para salvá-lo e para ressuscitar e tornar o capitão Jack num ser imortal. Mas a mente humana da jovem não conseguiria conter esse poder que a teria consumido se o Doutor não tivesse absorvido toda a energia. Nem mesmo ele conseguiu contê-lo e teve consequentemente que se regenerar. E esses últimos acontecimentos são muitos próximos ao que ocorre com Donna Noble – como comentaremos a seguir. Mas antes, cremos ser necessário justificar a apresentação do enredo do episódio citado anteriormente: o capitão Jack vai ter um importante papel na 10ª regeneração do Doutor. Aliás, depois do episódio 13, o personagem de John Barrowman passa a vagar sozinho porque é abandonado por seus companheiros (porque eles na verdade não percebem que ela tinha voltado à vida por influência da Bad Wolf). O Capitão avista-os dois episódios depois, quando o Doutor, ainda em seu ciclo de regeneração (da 9ª para a 10ª), estava numa luta de espadas contra o líder dos Sycorax (extraterrestres que tinham invadido a Terra). No meio da luta, o Doutor tem uma mão decepada, mas como ainda estava se regenerando, instantaneamente outra nasce em seu lugar e ele vence o Sycorax. Contudo, o capitão Jack não conseguiu falar com seus amigos. A única coisa que ele pôde fazer foi resgatar a mão perdida do Doutor e carregá-la até encontrá-lo novamente duas temporadas depois, quando o Doutor já estava viajando com outra companheira, Martha Jones. É ainda necessário salientar, por fim, para que o sub-título dessa seção se justifique, valores que consideramos estar subjacentes à estrutura superficial das temporadas em que aparece a personagem Rose Tyler. O nome dela, em nossa ótica é relevante, pois é sabido que, retomando uma dicotomia saussuriana, o significante rosa remete prototipicamente a um significado de uma flor vermelha. Além disso, vários elementos das duas primeiras temporadas reiteram a referência à figura de um lobo, seja pela escrita Bad Wolf pichada em becos, na rua onde morava a personagem e até na Tardis (por um jovem vândalo), seja pela aparição de um lobisomem (um personagem de muitas narrativas populares) no 2° episódio da 2ª temporada, intitulado Tooth 71

and Claw – no qual a família real britânica é mostrada como se fosse portadora de licantropia, correspondendo, na verdade, a uma linhagem de seres meio homem e meio lobo. O que estamos tentando dizer é que Rose Tyler, ao encontrar o Doutor e aceitar viajar com ele, aceitar o chamado para a aventura, nos temos de Campbell (1997), atravessa o limiar de uma mera humana que vendia roupas (de uma Rosa qualquer, um mero Chapeuzinho Vermelho) para o Lobo-Mau que termina num universo paralelo futuro ao nosso. Aliás, a prova cabal de que ela se torna literalmente senhora de Dois Mundos – para aludir novamente a Campbell (1997)- é que na Terceira Temporada, ela – já humana novamente, mas não tão humana quanto no início- consegue retornar a seu planeta de origem e auxiliar o Doutor, Donna, Martha e Capitão Jack a derrotar certos Daleks que haviam sequestrado a Terra.

5.2.2 A figura de Martha Jones: a narrativa de aprendizado de um Telêmaco aprendiz de Medicina que internaliza o que significa ser Doutor por meio de uma Atena reformulada

Toda a terceira temporada - os 14 episódios em que o Doutor viaja pelo espaço-tempo com a estudante de Medicina Martha Jones (uma futura Doutora, ou futura Doctor, para usar o termo inglês) – pode, em nossa ótica, ser entendida como uma narrativa de aprendizado, próxima à Telemaquia da Odisséia, pois, se na obra grega, Telêmaco tem uma família inicialmente desestruturada, com um pai ausente que ainda não havia voltado da Guerra de Troia e a mãe sendo cortejada por vários pretendentes que invadiram as posses de seu marido Odisseu e usufruem de seu castelo, Martha também não tem uma figura paterna presente, pois embora ela tenha vários irmãos, seus progenitores são separados e ela vive apenas com a mãe, já que o pai renegou a família para viver com uma amante. Além disso, por um lado, na Odisseia temos a figura divina e extremamente inteligente de Atena levando Telêmaco para várias viagens (a Feras, à corte de Nestor, ao aposento de Menelau em Esparta) a fim de introduzir o menino nos valores sociais e culturais da sociedade grega (como hospitalidade, a maneira pela qual funciona um palácio, os processos de sucessão ao trono, as instituições do casamento e da família) e fazer com que ele obtenha informações com relação à sua genealogia, certificando-se de que realmente é filho de Odisseu, de quem também ouve os feitos e de cujo paradeiro recebe pistas. Por outro lado, na temporada referida de Doctor Who, temos a figura também inteligente e também acima da humanidade de um Senhor do Tempo empreendendo várias viagens com uma humana. Eles são transportados para a Lua (juntamente com todo o hospital 72

em que Martha estagia), onde ajudam a capturar um alienígena fugitivo; viajam para Londres em 1599 (onde derrotam um grupo de bruxas), para o novo lar da humanidade (o planeta Nova Terra) no ano de 5 bilhões e 53 (libertando a cidade de Nova Nova Iorque de um engarrafamento que durava décadas), impedem que Daleks tomem Manhattan, derrotam um vilão que pretendia implementar uma máquina de rejuvenescimento que causava vários efeitos colaterais (como a alteração no DNA dos que a utilizavam e passavam a ser aberrações mutantes desfiguradas), respondem ao pedido de socorro da tripulação de uma nave que estava sendo consumida por um sol e à beira da explosão, conseguem libertar Londres de um grupo de Anjos (que são congelados como pedra eternamente ao serem obrigados a olhar uns para os outros), e impedem um arqui-inimigo do Doutor de utilizar os últimos humanos do ano 100 trilhões que não haviam se tornado antropófagos como soldados que matariam os próprios antepassados. Ou seja, por meio de viagens, o protagonista da série inglesa tenta transmitir a Martha os valores por trás de seu juramento, o que significa ser um Doutor: a tentativa de proteção às mais diversas espécies e a consciência de que normalmente há saídas para conflitos e catástrofes. E ele realmente consegue porque, no final ela concretiza o molde arquetípico do sábio andante que transmite seus conhecimentos, do profeta que passa a palavra (e mais uma vez temos aqui o lógos) recebida, por revelação, de seu mestre sobre-humano, pois ela percorre sozinha várias partes do mundo, levando esperança aos que passavam por alguma dificuldade e contando as proezas que tinha visto o Doutor realizar e que tinha realizado ao lado dele. Depois, ela decide renunciar à possibilidade de continuar a explorar o universo com seu ―professor‖, por assim dizer, para usar tudo que havia aprendido para proteger a própria família. Se a Alceste da tragédia clássica abdica da vida em prol dos familiares (notadamente para que os filhos não sejam vistos como bastardos de um novo rei) e a Antígona se impõe frente à figura masculina de Creonte, Martha faz algo análogo ao se impor contra o convite (à primeira vista irrecusável) do protagonista e ao renunciar à vida de viagens para cuidar de seus ascendentes (sobretudo, da sua mãe) – até porque ela já havia se tornado uma Doctor, já havia entendido a lição do protagonista. E tanto isso é verdade que o Doutor tem a seu lado uma futura doutora, nesta temporada, que, numa das imagens de divulgação da série, os dois aparecem em posição praticamente especular, o que ajuda a reiterar que Martha vai passar a refletir o modelo, o exemplo dado pelo protagonista:

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Figura 7: Imagem de divulgação da 3ª Temporada

Fonte: site:

Bem diferente disso mostra-se a imagem de divulgação da 4ª temporada em que o Doutor aparece com o peito estufado e o queixo levantado, numa pose de coragem e proteção indicada até pelo braço esquerdo dele, que parece restringir a passagem de Donna Noble, resguardando-a de algum perigo que possa surgir:

Figura 8: Imagem de divulgação da 4ª Temporada

Fonte: site:

Um último ponto a ressaltar é o poder de lógos e, de um modo semelhante ao que temos nos enigmas e cifras de Édipo Rei, os jogos de linguagem presentes não só na futura profissão (Doctor) como também no próprio nome completo da personagem, uma vez que – temporadas mais tarde- mostra-se que Martha acaba se casando com o ex-namorado de Rose Tyler (a primeira acompanhante do Doutor) cujo nome era Mickey Smith. Assim, num nível profundo, há não só um entrelaçamento entre as acompanhantes, como também a atribuição de dois títulos à Martha (a corroboração de seu status de médica), na medida em que ela passa a ser nomeada como Dra. Martha Smith-Jones, sendo que Smith era o nome falso que o 74

Doutor usava para se disfarçar. Em outros termos, de um estágio inicial de coordenação aditiva em que havia dois sujeitos agindo: O Senhor Smith e a estudante Jones (e aqui também é sintomático que o primeiro episódio dessa temporada se intitule Smith and Jones), o percurso narrativo culmina na figura de Martha conjugando ambas as questões que, no início, estavam coordenadas e, para retomar os termos de Campbell (1997), se transformando na Senhora de Dois Mundos Dra. Martha Smith-Jones. 75

5.2.3 Os resmungos e a importância de Donna Noble

Além das questões já comentadas sobre a ligação do nome da personagem com a música clássica atribuída a Mozart, a personagem interpretada pela comediante Catherine Tate é carregada de simbologias muito interessantes. Sua primeira aparição na série ocorre quando o protagonista tinha acabado de explodir uma estrela, produzindo uma super nova a fim de conseguir energia suficiente para que sua imagem chegasse até o mundo paralelo em que Rose Tyler estava presa. Mas o portal criado acaba se fechando antes que ele conseguisse se despedir ou dizer que a amava – num episódio que acabaria simplesmente de modo trágico se, de repente, Donna Noble não aparecesse até então inexplicavelmente dentro da Tardis vestida de Noiva e perguntando aos gritos que lugar era aquele, como tinha saído da Igreja na qual estava prestes a se casar e como ela havia sido ―raptada‖ - perguntas às quais o Doutor com o rosto completamente perplexo consegue responder apenas com vários ―O quê?‖ Os motivos pelos quais a personagem acabou atraída à Tardis e também os porquês dela vir a esquecer de tudo que passou ao lado do Doutor já foram expostos anteriormente, de modo que aqui o que é necessário comentar é a concepção temporal cíclica da série referida na passagem comentada acima (pois, como já afirmamos, em Doctor Who, o aparente final de um elemento muitas vezes esconde um novo (re)começo). Ora, uma Super Nova só é formada (analogamente a um Big Bang) de uma estrela que morre com uma explosão que acaba criando outros elementos. Nesse sentido, não é gratuito esse símbolo, pois ele representa metaforicamente não só o adeus momentâneo à Rose Tyler, como também o surgimento do novo metamorfoseado em Donna Noble. Aliás, o vestido de noiva também traz simbologias no mesmo sentido. Na Grécia Antiga, até serem dados em casamento quando passavam a viver num gineceu, os descendentes aristocratas do sexo biológico feminino eram denominados de παξζέλνο. O enlace matrimonial representava, num nível de significação não superficial, a morte da virgem παξζέλνο para o surgimento da γπλή (mulher casada). Segue nessa esteira a seguinte afirmação de Brandão dos Santos (2008):

Lembremo-nos também do corte de uma mecha de cabelos e seu oferecimento em memória de Hipólito, feito pelas jovens no dia do seu casamento. A instituição é estabelecida por Artemis em honra ao seu dileto cultuador (E. Hípp. 1423-30) e liga a virgindade do jovem, que ocasiona sua morte, por isso mesmo, à despedida das jovens nubentes de sua própria virgindade. Assim, o gesto simbólico do corte do cabelo parece estar inserido num quadro ritual de despedida um pouco mais amplo, que 76

aproxima de maneira paradoxal o ritual do casamento com o do ritual fúnebre. No casamento, ao abandonar o mundo de seus pais, sua família, suas companheiras, para ir a um mundo estranho e a uma nova casa, à de seu marido, que também é um estranho, a oferta de uma mecha de cabelo parece sinalizar o abandono de seu mundo virginal, uma espécie de morte iniciática que o casamento oferece. (BRANDÃO DOS SANTOS, p. 98, 2008).

A aproximação entre casamento e morte já tinha sido utilizada na tragédia Antígona, pois a personagem que intitula a peça, após ser confinada por ordem do tio (ficando momentaneamente viva, mas de modo paradoxal, espacialmente apartada dos vivos no que ela mesma denomina de ―alcova nupcial‖), acaba se enforcando com o véu do vestido que usaria para se casar com Hémon. De qualquer modo, a importância de Donna Noble não fica só nesse ponto. Apesar de ter uma personalidade forte (que, na verdade, escondia uma auto-estima muito baixa) e viver resmungando e constantemente brigando com o Doutor, é somente pela presença dela que o clone do protagonista (que acaba ficando no mundo paralelo de Rose) consegue impedir que o Doutor morra e é ela que leva o Doutor a salvar uma família romana da explosão do Vesúvio, pois ele havia dito que, por ser um evento fixo no tempo, todos os habitantes do local deveriam morrer. Mas ela acaba implorando tanto que ele cede e resgata seis entes consanguíneos, que passam a cultuar os dois como deuses. Esse acontecimento tem extrema relevância, pois o patriarca de tal família foi interpretado por Peter Capaldi que, temporadas depois viria a representar o papel do próprio Doutor sob a motivação diegética de que a lembrança da intervenção de Donna Noble no The fires of Pompeii permaneceu tão viva que o Doutor teria conscientemente escolhido o rosto dessa patriarca para o lembrar que ele sempre pode salvar alguém por mais sem solução que a situação possa parecer. Outro ponto a ressaltar é que mesmo que a personagem tenha aparecido inicialmente na 2ª Temporada, acaba num primeiro momento recusando o convite do Doutor de ser sua acompanhante de viagem o (chamado para a aventura, de acordo com CAMPBELL (1997)) e ele acaba, em seguida, encontrando com Martha Jones, com quem vive as aventuras de tal temporada. Contudo, Donna já havia ultrapassado o linear de humana alheia a questões extraterrestres e passa muito tempo investigando eventos sobrenaturais a fim de procurar pelo Doutor até reencontrá-lo na 3ª temporada (da qual é co-protagonista). Acresce que, além de ter ultrapassado sua condição inicial de humana, apesar de voltar a ela, na sua última aparição, Donna Noble aparece se casando e é observada pelo Doutor (então interpretado por David Tennant) que estava se regenerando e se despedindo de seus 77

antigos companheiros. Sem que ela perceba (para evitar qualquer rememoração), ele coloca um bilhete de loteria premiado no vestido de noiva dela. Ou seja, ciclicamente o último episódio em que ela aparece fecha não apenas o ciclo dela (ao remeter ao primeiro episódio de sua própria jornada), mas também fecha todo um ciclo no qual o Doutor se encontrava com Rose Tyler, Martha Smith e o Capitão Jack – personagens dos quais ele se despede e que não voltam mais a aparecer.

5.2.4 No labirinto de ecos de Clara Oswald: a receita da garota suflê de como passar de mera acompanhante a uma “Senhora do tempo”

Nesta subseção, pretendemos não apenas complementar a apresentação da referida acompanhante de viagem do Doutor, como também isentá-la de algumas injustiças que certos (pseudo)fãs da série acabam proferindo. Para eles, Clara, seria ―perfeita demais‖, o que a tornaria uma personagem ―fraca‖. A nosso ver, isso não tem respaldo na trajetória narrativa dela, até mesmo porque na afirmação de que algo ―perfeito‖ seria ―fraco‖ há, no mínimo, um paradoxo que beira a incoerência. Acresce que a personagem em questão, como representa uma humana, tem sim defeitos (sendo extremamente bipolar, e, às vezes, um tanto quanto impulsiva e temperamental). Figura 9: Doutor e Clara dentro da Tardis

Fonte: capturada do episódio Hell Bent

Contudo, cremos que entre as causas da aversão à Clara Oswald exista primeiro uma misoginia (misoginia esta que já estava presente na forma pejorativa como a mulher é descrita em Hesíodo), e, além disso, uma rejeição ao fato dela provar que o protagonista não é um ser onipotente, mas que, bem longe disso, também é alguém que precisa de ajuda e de companhia. 78

Desse modo, uma das funções de Clara, a nosso ver, é humanizar a figura do Doutor para que ele não se transforme em algo desmedidamente sobre-humano (já que tal excesso beiraria uma inverossimilhança). Em outros termos, nosso intuito aqui é quase que fazer um Elogio à Clara Oswald, próximo ao que o retórico Górgias fez com Helena. Para ele, diferente do que fazem algumas interpretações da diegese mítica do confronto entre os helenos e Troia, não seria possível culpar a mulher de Menelau por tal Guerra na medida em que, de acordo com os argumentos de Górgias, ou ela foi raptada e aí sofreu uma violência, ou foi submetida a um desígnio divino, envolvendo-se com Páris em virtude do pagamento da promessa de Afrodite (que havia dito ao então pastor que, caso fosse escolhida como a mais bela deusa, lhe daria o amor da mulher mais bela, no caso, Helena), ou então se apaixonou e não há possibilidade para um humano ir contra o amor e nem contra os deuses. Para começar, ressaltamos que sua primeira aparição no seriado ocorre quando o protagonista acaba preso com Rory e Amélia Pond no planeta dos Dalek. Uma voz feminina enigmática faz várias interferências dizendo que está presa numa nave há dez anos no planeta, de modo que dele não conseguiu sair, embora tenha conseguido hackear o sistema operacional dos próprios Daleks (algo que nem o Doutor jamais conseguiu fazer). Em razão de possuir acesso ilimitado ao sistema operacional deles, durante o episódio, essa voz – autonomeada como a explorada Oswin Oswald- aparece dentro do que imagina ser sua nave avariada ouvindo constantemente a música L’amour est um oiseau rebelle (um dos trechos mais conhecidos da Ópera Carmen de Bizet) e afirmando ter como passatempo produzir suflês (o que o Doutor acha absurdamente estranho e até impossível, haja vista que, para ele, se ela nunca conseguiu sair da nave não teria onde encontrar leite o suficiente para a produção de tais sobremesas). Por vários momentos, ela interfere impedindo que o trio acabe morrendo, até que o Doutor consegue chegar até o local onde ela estava e descobre que ela havia se transformado num Dalek e que seu sistema nervoso havia fantasiado que ela estava presa na nave para evitar um sofrimento psicológico muito grande. Ao saber disso, Oswin Oswald se revolta e quase se transforma completamente num inimigo do Doutor, mas, no fim, diz que ele estava errado e que ela era humana. Não só isso: ela ainda o compele a sair o mais rápido possível dali, porque havia acionado um mecanismo que explodiria o planeta todo e ainda verbaliza um de seus bordões ao longo da série: ―Corra, garoto esperto. E, por favor, lembre-se de mim de vez em quando‖. Tempos depois, o Doutor encontra uma mulher (que trabalhava como garçonete e babá de duas crianças) chamada Clara Oswald com a voz muito parecida com a de Oswin que o 79

ajuda a lutar contra um ente chamado de Grande Inteligência que pretendia se materializar num boneco de neve para dominar o universo. Acontece que, em dado momento, o Doutor a convida a viajar com ele e ambos fogem até sua Tardis, que estava estacionada num local muito alto. Entretanto, são seguidos por uma figura feminina maligna de gelo (criada pela Grande Inteligência) que derruba a Clara antes dela adentrar na nave. Em virtude da queda, ela acaba morrendo, mas a sua morte se converte em algo positivo porque o choro de lamento da família em cuja casa ela era babá e governanta faz com que o próprio clima se altere, provocando chuva, e a precipitação de água líquida derrete o gelo e todas as criaturas de neve criadas pelo referido vilão, frustrando o plano dele. Por muitas outras vezes, uma mulher com a mesma aparência e mesma voz de Clara acaba aparecendo e morrendo evitando que o protagonista sucumba – o que acaba aumentando o interesse dele por todo esse mistério, todo o enigma por trás do que ele passa a chamar de ―Garota Impossível‖, afinal realmente seria impossível para uma humana ressuscitar tantas vezes. Na verdade, acabamos sabendo na 8ª temporada que todo esse enigma por trás de Clara- referindo-nos novamente aos termos cunhados por Benveniste (1989)- esconde novamente uma diferença de perspectiva quanto à passagem crônica e mensurativa do tempo. Logo após a morte de Amélia Pond por um Anjo Lamentador, o Doutor entra num estado depressivo e se isola num mosteiro até receber em meados de 2012 em sua Tardis o telefonema de alguém que se identifica como a professora Clara Oswald que dizia ter recebido aquele número da ―moça da loja onde tinha comprado um notebook‖ caso precisasse de assistência técnica. Ela não estava conseguindo se conectar no wifi de sua casa e pensava estar falando com um técnico em informática. O Doutor, então, rastreia a ligação e pensa estar indo reencontrar sua Garota Impossível. Entretanto, retomando o mesmo mecanismo por trás do mistério que envolvia a figura de River Song, a professora Clara que ele encontra ainda não o conhecia, embora ele já a tivesse visto várias vezes. Ela acaba raptada por um grupo ligado à Grande Inteligência que estava sequestrando pessoas que se conectavam a um wifi aberto e colocando-as numa espécie de nuvem digital. Ela é salva pelo protagonista e então ambos passam a viver aventuras juntos. É assim que se inicia a sétima temporada da série. Ou seja, se para Clara, esse tinha sido o marco zero, o primeiro ponto de encontro com o Doutor, para ele, esse evento era o reencontro de alguém que já havia estado antes em sua trajetória. De qualquer modo, a partir de tal momento, tal Senhor do Tempo passa a viajar com essa professora que, por mais que se esforce, ironicamente não consegue fazer para as duas 80

crianças das quais cuida como babá o suflê de sua mãe, até o momento em que A Grande Inteligência os leva até o local onde futuramente seria o túmulo do Doutor. Em tal ponto no espaço-tempo, a linha temporal dele havia se aberto como uma ferida, na qual o referido vilão adentra e, embora seja despedaçado por conta disso, passa a refazer todas as conquistas do protagonista em derrotas, de modo que todas as pessoas, planetas, universos que ele havia salvado passam a morrer. Ao ver isso, Clara também se joga dentro de tal ferida e é estilhaçada em incontáveis versões de si mesma, de modo que é só nesse momento que os telespectadores entendem que todas as Claras, que haviam aparecido anteriormente ao telefonema que ela fez para ele, eram ecos dessa Clara que, mesmo sabendo que morreria, se jogou dentro do Doutor para evitar que a Grande Inteligência anulasse todos os salvamentos que o protagonista havia feito em todas as suas regenerações.

Figura 10: Os ecos de Clara Oswald

Fonte: Elaboração própria

Depois disso, ambos os protagonistas voltam a se deslocar pelo espaço-tempo ajudando necessitados e lutando contra alienígenas até o momento já comentado quando Clara acaba morrendo ao ter sua energia vital tomada pelo espírito-sombra que punia os infratores da cidade de Ashildr. Tal episódio, aliás, pode ser interpretado como uma entrada no que Campbel (1997) chamaria de ventre da baleia, uma vez que o Corvo algoz entra pelo ventre de suas vítimas. Mas, apesar dele, como grande parte dos heróis, Clara consegue sair desse estado, já que o Doutor, depois de voltar para Gallifrey, consegue novamente roubar outra Tardis (já que a dele havia ficado no bairro de Ashildr na Terra), voltar à cena da morte de sua 81

amiga e congelar o espaço-tempo um segundo antes dela morrer e retirá-la desse frame temporal, de modo que ela passa a ser biologicamente imortal, já que seu coração ficou temporalmente estacionado um segundo antes de dar a última batida. A despeito disso, a morte dela havia se tornado um evento fixo no tempo (devendo ocorrer sempre) cuja quebra poderia resultar, inclusive, no desfacelamento da causa-e-efeito do universo, de modo que todos os eventos históricos passariam a ocorrer simultaneamente no mesmo espaço, resultando numa quebra da realidade empírica. Aliás, disso o protagonista é alertado pela própria Ashildr que lhe lembra o oráculo de que um ser originado de dois povos (um mulo) iria destruir o universo. A antiga viking interpreta esse mulo como sendo a dupla Doctor-Clara, uma vez que a garota já deveria ter morrido e também porque a tal ―moça da loja‖ que deu o número do Doutor para Clara foi a Missy, sob o pretexto (como descobrimos em episódios futuros) de que e garota era perfeita para ele Todo esse fato é considerado, por Ashildr, um indicativo que a Missy sabia, de alguma forma, desse oráculo e sabia que a relação do Doutor com esta acompanhante se tornaria tão perigosa a ponto de por em risco a realidade temporal do univero. Após ouvir a argumentação de Ashildr, o Doutor decide tentar retirar a memória de Clara e deixá-la viver como se nunca o tivesse conhecido (como já havia feito com Donna Noble). Mas ela descobre tal intenção, manipula o óculos sônico do protagonista de modo que, quando ele tenta dar cabo de seu plano, é ele quem acaba se esquecendo dela. Após tal fato, Clara -pilotando a nova Tardis- leva o Doutor até um local ermo para onde carrega também a nave dele. Quando o protagonista acorda, adentra na espaçonave/ máquina do tempo dela cujo exterior está metamorfoseado como um restaurante onde ele já havia lanchado com River, Rory e Amélia. Em tal episódio, que corresponde ao final da 9ª temporada, Clara aparece vestida como uma garçonete e pede que o protagonista – ainda desorientado- conte para ela sobre a amiga de quem ele tanto fala, em troca da comida que ela lhe oferece. Esse trecho é altamente significativo já que carrega em si a dualidade conhecimento X desconhecimento, rememoração X falta de memória e de conhecimento sobre a veracidade do passado que está presente também na auto-investigação da tragédia sofocliana Édipo Rei. Ora, o Doutor começa a narrar para o que ele considera como uma simples garçonete estranha as aventuras que viveu com uma mulher chamada Clara Oswald que o salvou inúmeras vezes, mas de quem não recorda nem a voz e nem mesmo o rosto. O paradoxal é que, sem que ele saiba, está dizendo isso para a própria Clara.

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Figura 11: O Doutor frente-a-frente com o passado do qual não se recorda

Fonte:

Terminado o relato de seu passado, o Doutor começa a tocar em sua guitarra uma música que acabara de compor para esse ―fantasma‖ de seu passado (uma música que, demonstrando ser mais um paradoxo temporal, esteve presente em muitos dos episódios nos quais os ecos da personagem morriam). A isso, Clara reage dizendo que muito provavelmente a amiga dele teria adorado a canção e esconde uma lágrima. A seguir, com os olhos marejados, ela abre uma porta -que, na realidade, é a entrada de sua Tardis- e deixa o Doutor só. Dentro da máquina do Tempo, tinha ficado Ashildr que diz a ela que o mecanismo de mimetismo da Tardis tinha travado para um restaurante e lhe pergunta o que ela fará em seguida. Oswald responde que voltará para Gallifrey porque sabe que deve morrer pelo corvo, mas que fará esse retorno pelo caminho mais longo – o que sugere que, numa inversão de papeis, ela vai passar a viajar espaço-temporalmente pelos universos em companhia daquela que fora responsável indireta de sua morte física e da morte da união dela com o Doutor. Ela, então, dá partida na nave e desaparece juntamente com o restaurante (que nada mais era que o exterior da nave), deixando o Doutor frente-à-frente com a Tardis dele. O protagonista, então adentra no que disfarçadamente parece uma cabine telefônica e lá dentro encontra como último recado de sua fiel escudeira a mensagem: ―Corra, garoto esperto, e seja um doutor‖. Em outros termos, como ele não mais se lembra exatamente de quem ela é, o mais relevante é que ele não se desequilibre voltando a ser o monstro que destruiu o próprio povo. 83

Aliás, o fato dela morrer por influência de um ceifeiro em forma de corvo torna irônica a sua primeira aparição ao som de L’amour est un oiseau rebele (que era uma prolepse desse momento final). E a nós falantes de português também parece significativo que uma personagem intitulada Clara acabe morrendo não apenas à noite por influência de um pássaro negro, como também viva lutando contra as sombras (na terminologia de JUNG (2000)) de seu maior amigo ao tentar jogar luz ao lado altruísta e solidário dele e encobrir, dele próprio, seu lado disfórico e belicamente vingativo. Nesse sentido, a importância de Clara para a série é a mesma das amas das tragédias clássicas: trazer o Doutor para a ação racional e equilibrada de seu lado médico. Afinal, ela chega a lembrar a 12ª Regeneração do protagonista, quando ele tinha voltado para o próprio passado onde encontrou sua regeneração anterior e o War Doctor antes de explodir o próprio planeta, da promessa que significa seu próprio nome ao dizer, entre lágrimas, que ele sempre tentou encontrar uma outra forma para salvar as pessoas e que ele não era um assassino. É por meio dessa interseção que as três regenerações juntas transferem Gallifrey para uma galáxia perdida, antes do planeta ser atingido pelo ataque final dos Daleks que acabou fazendo com que eles se auto-destruissem – o que culmina na mudança do passado do próprio Doutor. Em termos mais teóricos, podemos dizer, portanto, que numa linguagem semiótica (que remete a BARROS (2011)) a Clara, num programa narrativo de doação, passa de um sujeito mortal com pouca inteligência e pouco conhecimento (estava em disjunção com essas questões) para um sujeito em conjunção com a imortalidade e em conjunção com uma Tardis, um sujeito que – sendo provido de um dólos e sophía- age com engodos, às vezes mente para se salvar, de maneira similar a de Odisseu ou à de Penélope que sempre descostura à noite o tecido que estava fazendo para não ter que escolher nenhum dos homens que a cortejava. Clara inicialmente não era dotada dos valores modais para ter esses objetos-valor: não sabia nada do espaço-tempo e nem como pilotar uma Tardis e, por não saber, não podia, nem queria fazer nada de heroico. Mas ela é chamada a isso, na medida em que o Doutor é um destinador- manipulador (quem faz o sujeito fazer) dela: a dota desses valores modais, passa toda sua experiência para ela. Contudo, é relevante que ela futuramente vai ser o destinador- manipulador dele porque, quando ele perde a Amy, não quer mais viajar, mas a Clara, já como um de seus ecos, faz com que ele se transforme de um sujeito que não queria e até não devia mais se envolver em viagens espaciais, para alguém que fica curioso em saber quem é a mulher que vive aparecendo, para alguém que sabe, pode e deve viajar para alcançar essa descoberta, para 84

entrar em conjunção com ela - até porque, como já afirmamos, toda vez que um dos ecos dela morre, fala pra ele: ―Corra, garoto esperto e lembre-se de mim‖. Ora, essa injunção dos ecos dela anseia interferir no programa narrativo do Doutor, transformando em alguém que vai entrar em disjunção com seu lado monstro e entrar em mais estreita conjunção com seu lado Doutor (e essa é uma das justificativas de sua imprecação final ―Seja um doutor‖). Uma vez, ela mesma ao tentar, sem sucesso, fazer o suflê da sua mãe diz que ―o suflê não é o resultado, não é o suflê, mas a receita‖. E, de maneira muito interessante, todos os ecos da Clara seguem fieis à receita de salvar o Doutor, seja de seus inimigos, seja dele mesmo. Portanto, diferentemente do que muitos afirmam, não cremos que ela seja um personagem incoerente. Acresce que, a nosso ver, ela pode muito bem tematizar e simbolizar o que Junqueira (2013) define como ―dispersão do sujeito moderno‖, sujeito este que, desde Freud se vê dividido entre id, ego e super ego. Nesse sentido, é relevante abrir alguns parêntesis aqui e expor que a crença de que nós humanos temos pensamentos e opiniões por nós mesmos não encontra validade na realidade empírica (pelo menos não completamente), pois – como demonstram muito acertadamente as pesquisas de Freud (1930; 1997), Marx (apud Gregolin (2016)) e de Saussurre (2012) - este homem que se quer todo-poderoso, se sente (ou quer ser) um ente uno e dono de si mesmo, na verdade, vive constantemente em guerra (seja quando suas vontades internas entram em conflito com o social, seja por suas próprias pulsões divergentes), já que psiquicamente ele é um ego cindido que media os atritos entre os desejos de seu id e as convenções e regras sociais internalizadas numa instância psíquica vigilante e punidora, o super ego. Além disso, como atesta Gregolin (2016), esse mesmo homem encontra-se inserido (e, de certo modo, submetido) à superestrutura (convenções culturais, ritualísticas, tabus, instituições produtoras e veiculadoras de ideologias, organização da estrutura política) e à infraestrutura (modo de produção dominante, relações de produção e grupos sociais envolvidos) de seu contexto social, pois mesmo que queira e tente reagir a elas tem que aceitar que elas existem anteriormente a ele. Assim, seus pensamentos, opiniões e mesmo suas verbalizações não seriam completamente opiniões puramente pessoais, na medida em que – tal qual afirmaria Althusser (segundo o que nos diz Gregolin (2016)) – nos discursos efetivos poderiam se verificar marcas históricas de lutas sociais e esses mesmos discursos só fariam sentido porque estariam inseridos numa formação ideológica que abarcaria o que pode (e deve ser dito) em 85

determinada época, as impressões construídas sócio-historicamente a partir de uma ideologia dominante (―a relação imaginária do homem com as suas condições materiais de existência, que, ao se transformar em práticas, reproduz as relações de produção vigentes em uma sociedade de classes‖ (idem, ibidem)). Seguindo tais noções, Bloch (1930, p. 102-103 apud ALMEIDA PRADO, 1972), afirmará que ao poeta dramático moderno (que pretende falar sobre o homem moderno) se abriram dois caminhos: ou ele tenta copiar os gritos e onomatopeias do teatro clássico ou procuraria traduzir, estilizar esses gritos, tirando deles discursos mais próximos da realidade historicamente empírica na qual estava inserido. O segundo caminho teria sido seguido pelo teatro francês de matriz anouilhana através do ―corte do diálogo, do ar de improvisação, do ritmo menos narrativo e mais oral das frases‖ (ALMEIDA PRADO, 1972, p. 99-100). O que está referido nas declarações acima é o fato de que houve um período em que se acreditou num realismo artístico, pois se pensava que os códigos (a pintura, escultura, a língua concretizada no teatro, na narrativa e na poesia) eram capazes de atingir a representação, reprodução da realidade empírica, sensível que se apresentava diante do artista, por meio de uma espécie de ―cópia‖ o mais próxima possível desses estímulos sensoriais. A narrativa realista, por exemplo, é composta essencialmente por um narrador heterodiegético, com focalização onisciente e personagens com totalidade. Contudo, de acordo com Rosenfeld (1996), na passagem entre os séculos XIX e XX, teria havido uma espécie de espírito de época, um zeitgeist, cuja influência teria levado a um processo de ―desrealização‖, na medida em que teria deslocado, de forma exponencial, as manifestações artísticas de tal momento histórico do polo da representação fiel do exterior para o interior do artista - seja ele o pintor, o escritor, o escultor. Acresce que esse mesmo processo teria – de acordo com Santini (2014)- se tornado palpável nas vanguardas europeias. No Impressionismo, por exemplo, segundo a mesma autora, se inicia um desinteresse pelo objeto que é dissolvido nos suportes (como as telas dos quadros) com a perda nos contornos e com a separação do campo visual e do campo da consciência. O que se representa, então, é o que está na retina do pintor e não aquilo que está diante dos olhos dele. É uma busca pela sensação visual em sua imediaticidade, através da experimentação do código, na pintura as cores, tintas e na literatura, a linguagem. Ambas passam a ser vistas como incapazes de representar o real em sua totalidade. Já, a partir do Futurismo, a principal proposição é a abolição do passado, o enfoque no presente e a representação do caráter dinâmico do mundo moderno. Além disso, a cidade, cuja modernidade é apreendida de forma eufórica, progressista, aparece como elemento 86

fundamental. Com relação ao verso, este deveria, segundo o Manifesto técnico delia letteratura futurista, ser livre, as palavras postas em liberdade a partir da reestruturação da sintaxe, dada pela valorização do substantivo, pelo uso de verbos no infinitivo (que acarreta ausência de declinação no verbo, tornando-o impessoal), ausência de adjetivos (eliminação do sintagma) e analogias, construindo velocidade, flashs, instantâneos. Na mesma época, o Cubismo traz uma realidade exposta a partir da superposição de planos que cria uma ideia ilusória de simultaneidade, como se quem observa girasse em torno do que é representado. Ou seja, mais uma vez não interessa a fidelidade ao real, mas sim a: ―representação da realidade através de formas geométricas, desmontando os objetos para que, remontados pelo espectador, deixasse transparecer uma estrutura superior, a forma plástica essencial e verdadeira da beleza‖. (TELLES, 2002, p. 115 apud SANTINI, 2014). Uma outra prova de manifestação desse espírito de ―desrealização‖ pode ser observada na corrente artística abstrata surrealista que trouxe como contribuição para a arte a teoria do irracional, visando trazer à superfície o que há de profundo no inconsciente. É também nessa corrente que surge a incorporação de métodos fotográficos e cinematográficos. Mas anterior ao Surrealismo, a corrente Dadaísta já trazia a contestação absoluta de todo e qualquer valor, a começar pela arte, já que propunha sua dissolução. Há, durante esse período, a chamada ―crise da representação‖, que foi a negação da lógica, a negação da linguagem como suficiente para dar conta do objeto; a estética do nonsense, e a discussão se tudo poderia ser convertido em obra de arte. No âmbito do romance moderno, de um modo geral, esse processo de desrealização – como atesta Santini (2014)- não só desmonta a onisciência narrativa pelo monólogo interior e tira de primeiro plano o narrador de fatos objetivos, como acaba com a sucessão temporal e com a unicidade do personagem. Além disso, cremos que se pode encontrar uma das evidências do mesmo espírito no que Szondi (2001), com relação ao teatro, denomina como ―crise do drama‖ que se refere, de acordo com as palavras de Junqueira (2013): A um drama que já não se sustenta mais pela ação e pelo diálogo. Estas duas foram as mais importantes categorias formais do drama que se produziu desde o Renascimento até o momento em que um vertiginoso processo de mecanização do mundo [...] começou a provocar uma espécie de falência das relações intersubjetivas que, em teatro, se expressou pelo isolamento das personagens e pela inserção progressiva do elemento épico no seio da forma dramática. (JUNQUEIRA, 2013, p. 47).

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Ou seja, seguindo os pensamentos da referida autora (que faz eco às considerações de Peter Szondi (2011)), o drama – que sempre representa o homem- teria reassumido uma nova forma porque o homem da época teria sofrido mudanças. Neste sentido, como o zeitgeist postulado por Rosenfeld (1996) internalizou cada vez mais a arte nas impressões e sensações dos sujeitos, o teatro passou à representação do homem da época que já não era o mesmo de dantes e que também estava se distanciando cada vez mais das relações com outros sujeitos que eram exteriores a si. Temos, portanto, uma dupla internalização, uma vez que o homem da época estaria se isolando cada vez mais do social e que as representações artísticas estariam partindo cada vez mais para o interior dos sujeitos: [...] a crise deflagra-se no momento em que a velha forma dramática, por definição baseada no diálogo e nas ações decorrentes de relações intersubjetivas, não dá mais conta de expressar suficientemente ou adequadamente os novos temas que, desde o final do século XIX, tendem a infiltrar-se no drama moderno. Esses novos temas refletem naturalmente a situação em que se encontra o sujeito, o homem comum, que aos poucos [...] se vai transformando em ―coisa‖, em peça da absorvente engrenagem da produção industrial que vai progressivamente moldando um novo mundo em que os homens já pouco ou quase nada dialogam entre si e onde a vontade de agir é frequentemente cercada por um sistema socioeconômico que afronta o sujeito, que o aliena e o priva de qualquer ação livre. Ora, num mundo em que o diálogo se torna tão rarefeito quanto as relações intersubjetivas, como poderia sobreviver o drama? Só mesmo transformando-se, é evidente. [...] Assim, a matéria que nos tempos modernos se oferece aos dramaturgos é a de uma ―vida que não vive‖, porque já não se relaciona com outras vidas senão enquanto componente funcional da mesma maquinaria – o sistema capitalista de produção – a que todas as vidas estão sujeitas. Daí que pululem no teatro moderno personagens introvertidas, autocentradas, já muito mais dadas ao monólogo que ao diálogo. (JUNQUEIRA, 2013, p. 9-10).

Em suma, para nós, a função dos ecos da Clara é próxima à cumprida pelas heteronímias de Fernando Pessoa e pelas máscaras assumidas pelos livros de Florbela Espanca. Essa aproximação entre os dois autores portugueses é sugerida por Junqueira (1992; 2003) para quem tais máscaras florbelianas representariam o esforço da poetisa empírica para ser reconhecida pelos literatos de sua época e, ao mesmo tempo, a desorientação de um ego fictício à margem de um grupo social culto do qual deseja participar e que deseja ―enfeitiçar‖, ―conquistar‖ e seduzir por meio dos feitiços da adoção das máscaras de Princesa Encantada, Madre Enclausurada, Feiticeira Amorosa e da Velha. Além disso, ainda é de opinião de Junqueira (2003) que as poesias de Florbela Espanca, a despeito de possuírem características decadentistas/simbolistas, tematizam e ficcionalizam – tal qual o fazem os modernistas portugueses- um sujeito que se perde e se dispersa no labirinto de si mesmo, um homem que equivale ao eu lírico criado nos poemas de 88

Sá-Carneiro que busca eternamente a perfeição, os modelos de arte perfeita do mundo das essências, para se transformar num gênio raro, mas se tenciona em toda com um desejo de ser comum, ―normal‖, como o resto da sociedade. Em outras palavras, na obra sá-carneriana, se por um lado, há um sujeito burguês ligado aos confortos da vida do mundo material, há também e, ao mesmo tempo, um artista que anseia pelos modelos de arte perfeita do mundo inteligível – o que configura uma espécie de neoplatonismo. Nesse sentido, o dilaceramento de Clara Oswald pode muito bem representar o dilaceramento do homem contemporâneo cindido entre suas instâncias psíquicas, a infra e a superestrutura da sociedade em que habita e submetido às regras gramaticais de sua língua mãe, embora continue preso no labirinto interno de si mesmo. Ora, Clara Oswald configura-se como uma Senhora de Dois Mundos (nos termos de CAMPBELL (1997)), um meio termo entre o que ela era antes de ser chamada para a aventura com o Doutor e o que ela continua sendo como humana, haja vista que, embora viaje com o Doutor, na Terra é uma professora aparentemente comum, não sendo – para retomar um poema sá-carneiriano- nem eu nem um Outro, ―mas qualquer coisa de intermédio, pilar da ponte de tédio entre mim e o Outro‖. No fim de sua trajetória, ela é avaliada positivamente, alcançando a apoteose comentada por CAMPBELL (1997), e recebendo uma Tardis, um veículo exclusivo dos Senhores do Tempo, de seu destinador-manipulador (o Doutor), como recompensa por cumprir o acordo narrativo firmado. Mas ela, como destinador-manipulador, também julga o Doutor positivamente, julga que ele cumpriu bem sua trajetória até o momento, por isso ela dá uma nova chave de fenda sônica para ele e o carrega até a Tardis dele. Além disso, no fim, ao deixar escrita na espaçonave do protagonista a frase ―Corra, garoto esperto, e seja um doutor‖, ela se mostra novamente como um destinador-manipulador, fazendo o Doutor continuar a própria trajetória e intimando-o a não ceder espaço para o monstro por trás do médico. Tal intimação é também o aviso de que ela não estará mais como elemento regulador dele – o que o obrigará buscar um novo, ou seja, uma nova companhia em suas viagens, até mesmo porque, nas múltiplas viagens com todos os humanos que já o haviam acompanhado, ele já tinha passado o limiar de seu mundo conhecido, não era mais apenas um Senhor do Tempo, ele também tinha ganhado humanidade.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Falar sobre os mitos, lenda, arquétipos e figuras clássicas (literárias e musicais) por trás de uma série com elementos significantes tão múltiplos e variados não é tarefa das mais fáceis. Aliás, urge esclarecer que nosso intuito neste texto não era afirmar que os roteiristas da série teriam indubitavelmente lido as peças e demais livros aqui citados. Mas, de qualquer modo, convém lembrar que, como afirma Jung (2000), moldes arquetípicos podem ser revisitados e concretizados sobre a forma de personagens em suportes distintos (às vezes até com relação à época em que foram produzidos). E, como postula Rosenfeld (1996), espíritos de época podem agir e continuar agindo em diferentes suportes de representação. Ou seja, esperamos ter demonstrado que há aproximações possíveis entre as formas de narrar e também sobre o comportamento de certas personagens de produções distintas. Como prova de tal afirmação seria até possível utilizar as produções midiáticas atuais em aulas regulares do ensino básico. Seguindo os quatro estágios fundamentais da Arquetipologia Mitodológica proposta por Diniz (2016), como uma ideia, seria possível, por exemplo, dividir a classe em grupos e pedir que cada um deles lesse uma obra literária (que fizesse parte do conteúdo a ser trabalhado ao longo do semestre) e, num seminário a ser apresentado a toda turma, tentasse relacionar os heróis que aparecem nas obras literárias com alguma produção de seu universo jovem. Claro que a duração (em aulas) dessas atividades vai depender da quantidade de alunos da sala e da consequente quantidade de livros e de temas a serem escolhidos. O objetivo dessas leituras não seria tratar o literário e o não-literário numa relação vertical (que representasse uma diferença hierárquica nos valores dos dois) nem usar um como ponto de partida ou de chegada para o outro, mas sim estabelecer relações entre ambos, e utilizar da proximidade e do elo empático dos jovens com a produção midiática por eles escolhida para aproximá-los empaticamente também da literatura. Acresce que o professor também deveria se comprometer a realizar as leituras e a tentar entender as séries, filmes, animes escolhidos pelos alunos. Utilizando-se da tabela de topoi heróicos de Mota Diniz (2016), seria possível, além disso, sugerir a leitura da Ilíada, dos Lusíadas ou d‘O Guarani, esperando que os estudantes de um grupo relacionassem-nos com alguma série, filme ou HQ que, como Aquiles (filho de Peleu e da nereida Tétis, que teria lutado na Guerra de Troia e padecido com uma flecha em seu único ponto fraco, o calcanhar), ou Vasco da Gama (que, na obra de Camões, ao 90

conquistar os mares, eleva o nome dos portugueses) também tivesse um herói que lutasse por sua nação, como ocorre em muitos mangás e animes com samurais que lutam para defender suas cidades, vilas e países de origem. Outro tema poderia ser a leitura da obra de O médico e o Monstro a fim de identificar outros personagens que, como Dr. Jeckyl/Mr. Hyde, também se transformassem quando enfurecidos. Um exemplo muito atual é o personagem Naruto dos quadrinhos e também dos animes de mesmo nome transmitidos e exportados pela Tv Tokyo, um ninja que faz de tudo para proteger seus familiares, amigos e sua vila de modo geral, mas que ainda bebê teve o espírito de uma besta raposa aprisionada dentro do próprio corpo e, assim, nos estágios iniciais de sua vida quando irado, passa a agir descontroladamente, perdendo controle sobre si mesmo e cedendo-o à besta citada. Mas, a parte desse exemplo prático do que tentamos fazer nesta monografia, gostaríamos de terminar afirmando que Doctor Who? (Que Doutor?/ Doutor Quem?) é uma pergunta que provavelmente nunca vai ser respondida porque, retomando o episódio em que aparecem os encantamentos das Carrionite, mencionar o nome dele implicaria dar poder a quem o detivesse. Acresce que um nome muitas vezes e infelizmente não deixa de ser uma (de) limitação, no sentido de que o processo de nomeação acarreta – como expõe Abreu (2010)- no estabelecimento de uma categoria que internalizamos. O problema é que muitas vezes essa categoria é representada como se fosse um compartimento estanque não relacionado com mais nada, definido de acordo com o algoritmo: Se algo se chama X é porque está dentro dos limites do que é X, sendo X e nada além de X, ou seja, é X, somente X e nada além disso, não equivalendo, portanto, a Y e nem a Z. Ora, o Doutor, tendo entrado em contato com tantos seres e retomando tantos arquétipos e tantos heróis, não cabe em limitações como esta. Afinal nem mesmo aos moldes estanques sobre gêneros os Senhores do Tempo como ele se submetem. Ou seja, ele é bem o oposto de algo (de) limitado e, até por conta disso, já teve vários rostos, passando a ser um herói de muitas faces. Vamos além: em nossa visão, não é gratuito o fato de muitos episódios nos quais ocorre outra regeneração do protagonista serem transmitidos durante o especial de Natal (data que, para alguns cristãos marca o nascimento de Jesus Cristo), pois tal personagem concretiza e atualiza muitos moldes heroicos de nosso inconsciente coletivo, sendo ele mesmo em vez de um doutor, de um médico qualquer, o autonomeado The Doctor, O Doutor, o molde arquetípico daquele que dedica sua existência a salvar a maior quantidade possível de vidas, independente do lugar e do tempo em que estiver e que em vez de ter uma velha, retrógrada e 91

única opinião formada sobre tudo, não passa – como contaria Raul Seixas- de uma ―metamorfose ambulante‖, como todos nós. Aliás, se o teatro clássico e a literatura de modo geral, tal qual postula Rodrigues (2018), falam do homem e se, como interpreta Sebastiani (2018), o Édipo de Sófocles continua sua trajetória, mesmo depois de se cegar (seja para se resolver consigo mesmo, seja para fugir desse eu inicialmente desconhecido, depois conhecido, mas monstruoso; o Doutor (cuja identidade estamos sempre tentando (re)descobrir como ele mesmo faz) sempre continua seguindo (em frente?), malgrado continue preso a um eterno ciclo de términos e recomeços, de enigmas que voltam com outras roupagens, de Esfinges oraculares que o perseguem. Afinal, não se pode negar que o homem é um conjunto de complexidades em diálogo: desde semi-mutações dos códigos genéticos, a um aglomerado de células que formam tecidos diferentes, órgãos diversos e distintos em inter-relação, pulsões psíquicas, relações e tensões sociais com os outros seres das comunidades nas quais habitam, sendo que esses outros seres também são genética, somática e psiquicamente atualizados por meio da tensão entre várias complexidades. Ou seja, o homem é complexo demais para ser limitado a oposições binaristas simplistas como ―certo‖ e ―errado‖, ―macho‖ e ―fêmea‖. E a Literatura e todas as demais artes e produções que falam do homem seguem, em nossa ótica, o mesmo caminho. Em suma, a despeito de a pergunta Quem é o Doutor não ter apenas uma única resposta possível (afinal ele já foi e será muitas coisas), de modo que ela depende de um referente espaço-temporalmente embreado; para nós, ela acaba resvalando na questão enigmática de quem somos nós humanos, quem somos em relação ao que fomos e ao que seremos, em relação a esses vários eus presentes que, como já dizia Freud, habitam dentro desse meu ser complexo e não-uno, mas paradoxalmente unitário e mais paradoxalmente ainda uma unidade diante de um social, em relação ao eus futuros ou passados, aos eus outros que estão, estavam ou estarão dentro do nós? Se Sebastiani (2018) afirma, com o título de seu texto, que ―Somos todos Édipo‖, nesta monografia gostaríamos de ter demonstrado, sobretudo com os arquétipos, que Doctor Who também representa os múltiplos enigmas eternamente (in)decifráveis que somos todos nós.

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THE SHAKESPEARE Code. Escrito por: Gareth Roberts. Intérpretes: David Tennant (The Doctor) & Freema Agyeman (Martha Jones). Produção executiva: Russel Davies & Julie Gardner. Música: Murray Gold. Primeiro diretor assistente: Peter Bennett. Londres: BBC, 2007. 1 arquivo digital (45 minutos e 33 segundos, 198 MB), son., col., .mkv, v.o. inglesa, leg. português.

THE UNICORN and the wasp. Escrito por: Gareth Roberts. Intérpretes: David Tennant (The Doctor) & Catherine Tate (Donna Noble). Produção executiva: Phil Collinsson; Russel Davies & Julie Gardner. Música: Murray Gold. Primeiro diretor assistente: Gareth Williams. Londres: BBC, 2008. 1 arquivo digital (44 minutos e 41 segundos, 185 MB), son., col., .mkv, v.o. inglesa, leg. português.

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