O baldio da ilha do Corvo e o seu Regulamento de 1896

Hélio Nuno Santos Soares

Soares, H. N. S.(2013), O baldio da ilha do Corvo e o seu Regulamento de 1896. Boletim do Núcleo Cultural da , 22: 155-187.

Sumário: A problemática dos baldios foi suscitada pelo liberalismo e manteve-se durante o século XX. Este trabalho tem por base o projeto de Regulamento do Baldio da ilha do Corvo de 1896. Procuramos contribuir para a compreensão do modo de exploração do baldio, nos finais do século XIX e princípio do século XX, bem como a sua influência na organização de uma comunidade isolada, numa ilha esquecida pelos poderes centrais.

Soares, H. N. S. (2013), The Common Land of Corvo and its Rules of 1896. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 22: 155-187.

Summary: The problem of the commons was raised by liberalism and remained during the twentieth century. This work is based on the draft Regulation of the Common land Corvo, 1896. We seek to contribute to the understanding of the mode of operation of the fallow in the late nineteenth and early twentieth century, and their influence on the organization of an isolated community on an island forgotten by the central authorities.

Hélio Nuno Santos Soares – [email protected]

Palavras Chave: Baldio, ovelhas, tosquia, dia da lã, suínos, caprinos.

Key-words: Common land/fallow, sheep shearing, the day of wool, pigs, goats.

1. O presente trabalho visa contri- XIX. Este trabalho tem por base as buir para um melhor conhecimento informações contidas no projeto de da importância e fruição do baldio Regulamento do baldio, que se trans- do Corvo na sobrevivência dos cor- creve em anexo, elaborado em 2 de vinos, numa ilha agreste e esquecida setembro de 1896 pelo Presidente da pelos poderes centrais e regionais, Junta de Paróquia, P.e José Gregório particularmente no decurso do século de Mendonça. O Regulamento é um 156 Boletim do Núcleo Cultural da Horta desconhecido legado aos corvinos e fizeram com que aagricultura portu- de todos os que se interessam pela guesa passasse por diferentes ciclos historiografia desta pequena comu- de desenvolvimento e estagnação, ao nidade, e dos Açores em geral, e é nível nacional e regional. Assim, as com o objectivo de o dar a conhecer políticas liberais tendiam a aplicar o que apresentamos a exposição que capitalismo à agricultura. Para imple- se segue. mentar este novo paradigma econó- mico, era necessário suprimir todas 2. O século XIX caracterizou-se por as formas de expressão do coletivis- profundas mudanças na ocupação da mo agrário. O resultado, não delibe- terra1 e na exploração2 da mesma em rado, das políticas liberais foi o sur- . O liberalismo implementou gimento de uma burguesia fundiária uma série de reformas que visavam a em detrimento de uma redistribuição demolição do Antigo Regime, o qual equitativa de terras. tinha a sua base económica na posse Na política agrária liberal encontra- da terra e sua exploração. Estas refor- mos a questão dos baldios3, que, para mas, bem como o contexto político e o liberalismo, era uma das razões económico nacional e3internacional, para o atraso da agricultura nacional4.

1 Cf. Fonseca, Helder Adegar, “A ocupação Manuel, Os Baldios, Lisboa, Caminho, da Terra”, in Lains, Pedro e Silva, Álvaro 1987, pp. 17-18. Ferreira da (orgs.), História Económica de 4 Sobre esta temática consultar Abel, Marí- Portugal – 1700-2000, Vol. II – O Século XIX, lia, “Os baldios portugueses em período de Imprensa de Ciências Sociais, 2004-2005, transição (1820-1910)”, in Revista de His- pp. 83-118. tória, Porto, 1988, pp. 339-343. A autora 2 Martins, Conceição Andrade, “A Agri- apresenta-nos a problemática dos baldios no cultura”, in Lains, Pedro e Silva, Álvaro liberalismo, o qual considerava os baldios Ferreira da (orgs.), História Económica de como o maior entrave às políticas liberais Portugal – 1700-2000, Vol. II – O Século XIX, na agricultura e obstáculo à libertação da Imprensa de Ciências Sociais, 2004‑2005, propriedade particular. O resultado da polí- pp. 219-257. tica liberal foi o surgimento de conflitos 3 Estes bens podiam ser de bens: baldios – entre as populações e o Estado, num claro terrenos de uso comum pertença de todos os clima de conflituosidade e injustiça, dado moradores do termo; maninhos – terrenos que os latifundiários aumentaram as suas incultos de propriedade particular, usados propriedades devido à apropriação dos em comum por um grupo de moradores, baldios. No sul proporcionou o aumento mediante foral, arrendamento ou empraza- de latifúndios, no norte possibilitou a flo- mento estabelecido por um senhorio; Bens restação dos mesmos. Embora se tenham do concelho propriedade privada admi- perseverado alguns baldios devido à ma- nistrativa do concelho. Cf. Rodrigues, nutenção da pequena e média propriedade. Hélio Nuno Santos Soares 157

A reforma agrária liberal contemplou maras procuraram aproveitar econo- a divisão e apropriação particular des- micamente os baldios e que também a tas áreas, a abolição do compáscuo, coroa tentou actuar sobre a realidade a extinção da propriedade vincular, a fundiária insular, aproveitando os in- venda de bens nacionais e a desamor- cultos para o aumento da produtivida- tização institucional5. Estas políticas de agrícola7. Assim também sucedeu ditaram o fim das diferentes expres- no Corvo e, para compreendermos a sões de organização comunitária ou necessidade de elaboração do Projeto coletiva da propriedade, cuja caracte- de Regulamento, é necessário perce- rística principal era a sua não perso- ber a importância do baldio para a nalização, como diz Marília Abel6. subsistência e vivência dos corvinos Nos Açores, a importância dos bal- durante o século xix e princípios do dios como terreno de pasto comum século xx. esteve presente e a própria legislação A ilha foi propriedade de diversos se- régia (lei de 12 de Março de 1772) nhores ao longo dos tempos: Infante confirmou para as ilhas que, tal como D. Henrique8; os duques de Bragan- no reino, os baldios eram um direito ça; os Teives; os Teles de Menezes; dos povos. Porém, desde meados do os Fonsecas9; os Mascarenhas10; a século XVIII verificamos que as câ- para a pastorícia; d) formas específicas de No plano administrativo dos baldios, esta administração desses bens e terrenos. Cf. responsabilidade foi atribuída às Câmaras Rodrigues, Manuel, Os Baldios, Lisboa, e Juntas de Paróquia, as quais domina- Caminho, 1987, p. 22. das por caciques locais autofavoreciam- 7 Cf. Rodrigues, José Damião, “Baldios”, se através do arrendamento e alienação. in Enciclopédia Açoriana, Direcção Regio- 5 Fonseca, Helder Adegar, “A ocupação da nal da Cultura.

Coroa – por incorporação após o pro- to desta pequena porção de terra foi cesso do Marquês de Pombal contra tardio, realizando-se por três tentati- esta família. O último senhor da ilha vas, sendo a última a efetiva e defi- foi Pedro José Caupers, em 181411, e nitiva, já em meados do século XVI, seus descendentes até à extinção do sob a posse da família Mascarenhas, aforamento em 185512. O povoamen- condes de Santa Cruz e, mais tarde, duques de Aveiro. Mas não é objetivo

sultar Leite, José Guilherme Reis, “D. Fran- deste artigo dissecar todas as ques- cisco de Mascarenhas (conde da Vila da tões, já amplamente estudadas, acerca Horta e 1.º conde de Santa Cruz), in Enci- do descobrimento e povoamento da clopédia Açoriana, Direcção Regional da ilha do Corvo13. Cultura. . 11 O Príncipe Regente D. João concede, por 13 Cf. Costa, Susana Goulart da, Açores: alvará de 3 dezembro de 1814, a mercê das Nove Ilhas, Uma História, Ponta Delgada, terras das Flores e Corvo com as respetivas Presidência do Governo dos Açores, Direção obrigações e direitos, sendo a escritura de Regional da Cultura e Centro de Conheci- aforamento por três vidas passada a Pedro mento dos Açores, 2008, pp. 32-40; Gomes, José Caupers, moço do guarda-roupa do Francisco, Flores e Corvo – o «outro» ar- príncipe, a 6 de março de 1815. Cf. Macedo quipélago, Câmara Municipal das Lajes das António da Silveira, História das Quatro Flores, 1989; Idem, A Ilha das Flores: da Ilha que formam o Distrito da Horta, 2.ª descoberta à actualidade – subsídios para edição fac-similada, Direção Regional dos a sua história, 2.ª edição, , Assuntos Culturais, 1981, p. 567. Para uma Câmara Municipal das Lajes das Flores, breve biografia de Pedro José Caupers, ver 2003; Leite, José Guilherme Reis, O Povoa- Leite, José Guilherme Reis, “Caupers, José mento do Corvo, Academia da Marinha, Pedro”, in Enciclopédia Açoriana, Direcção Lisboa, 2002; Meneses, Avelino de Freitas, Regional da Cultura. . Um dos mais recenrecen-- José Reis, História dos Açores – do desco- tes estudos sobre esta figura é da autoria de brimento ao séc. XX, Angra do Heroísmo, Rodrigues, José Damião, “Um europeu nos IAC, Vol. I, 2008, pp. 63-110; Riley, Car- trópicos: sociedade e política no rio joanino los, “Uma Fronteira Ocidental – as Flores na correspondência de Pedro José Caupers”, e o Corvo no contexto das rotas atlânticas”, in Rodrigues, José Damião (org.), O Atlân- in Boletim do Núcleo Cultural da Horta; tico Revolucionário – circulação de ideias Horta, Vol. XI, 1993-95; Idem, “A Ilha e de elites no final do Antigo Regime, Pon- despovoada”, in Enciclopédia Açoriana, ta Delgada, Centro de História Além-Mar, Direcção Regional da Cultura. ; Idem, “O Cor- Saramago, João (org.), , Câ- vo – um lugar à Margem (histórias da peri- mara Municipal do Corvo, 2001, pp. 49-53. feria insular)”, in Atas do Colóquio O Faial Hélio Nuno Santos Soares 159

Importa perceber que, durante o pe- te novo senhor ocorreu a 23 de maio ríodo de posse da ilha pelos condes de de 1817,15sendo confirmada a posse Santa Cruz, algures no século XVII, na sua totalidade: «constam ser toda os corvinos começaram a ser sujeitos esta ilha do Corvo, cuja ilha contém ao foro de 40 moios de trigo e 80$000 cento e setenta e oito foreiros que réis em dinheiro. Por este motivo, a pagam de foro anual quarenta moios renda condicionava a paisagem agrá- de trigo e oitenta mil réis em dinheiro, ria e o próprio sistema económico pertencente às lãs»16. Os 178 foreiros da ilha, delimitando a pastorícia de podem corresponder, salvo algumas ovinos nas terras altas e o cultivo de exceções, ao número de agregados trigo nas terras chãs. O isolamento familiares existentes na época na ilha, da ilha, os ataques de piratas e corsá- embora não signifique que correspon- rios, o aumento populacional e o não dam ao número exato de fogos, dado desagravamento da renda levaram ao que na mesma habitação poderiam estrangulamento económico e social residir duas ou três famílias, com la- da ilha. ços de parentesco entre si. Curiosamente, no mesmo ano em que Na esperança de alívio dos seus sa- Napoleão assinou o Tratado de Fon- crifícios, os corvinos dirigiram, em tainebleau – o homem responsável 1818, ao novo senhor da ilha uma por irradiar os ideais da Revolução petição solicitando a redução de sacri- Francesa pela Europa, os quais fo- fícios: «de aliviar-lhes da renda que ram introduzidos em Portugal pelas pagam pelos pastos dos quais não ti- três invasões francesas –, o Príncipe ramos proveito algum; ou perdoar-lha 17 Regente D. João concedia, por alva- por alguns anos» . A esta petição dos rá de 3 dezembro de 181414, a mercê corvinos, em carta de 18 de janeiro de das terras das Flores e Corvo com 1819, respondeu Pedro José Caupers concedendo o perdão: as respetivas obrigações e direitos a Pedro José Caupers, moço do guarda Por efeitos de piedade e comiseração roupa do príncipe, a 6 de março de hei por bem perdoar aos suplicantes o 181515. A posse da ilha por parte des- pagamento dos oitenta mil reis a que anualmente estão obrigados pelas pasta-

e a Periferia Açoriana no século XV a XIX, Horta, 1995, pp. 57-70. 15 Jorge, P.e Lourenço, Notas do Corvo. 14 Macedo, António da Silveira, História das Saramago, João (org.), Vila do Corvo, Quatro Ilha que formam o Distrito da Horta, Câmara Municipal do Corvo, 2001, p. 25. 2.ª edição fac-similada, Direção Regional 16 Ibidem, p. 27. dos Assuntos Culturais, 1981, p. 567. 17 Ibidem, p. 33. 160 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

gens somente nos anos de mil oitocentos em projeto, bem como os ideais libe- e dezanove e de mil oitocentos e vinte rais e expetativas da presença que daí 18 somente . advieram chegaram à ilha do Corvo. Era uma oportunidade única que não De modo a aumentar a pressão sobre se repetiria certamente. Os corvinos, os responsáveis políticos de Lisboa e liderados por Manuel Thomaz de alertando para o «estado de decadên- Avelar, deslocaram-se à Terceira para cia e ruína» em que se encontravam mostrar o pão negro que comiam, ou as duas ilhas, o juiz de fora da ilha seja, o pão de junça e pedir a inter- das Flores, João Eneas do Couto Pes- venção de D. Pedro e do seu ministro tana, dirigiu uma representação a Sua . A audiência Majestade, em carta de 25 de junho ocorreu no dia 13 de março de 1832. de 182419. Na realidade, manteve‑se Pelo Decreto n.º 20, de 14 de maio de a mesma exploração económica e 183220, o Governo da Regência, pela social sobre as gentes do Corvo. Em mão do ministro Mouzinho da Sil- finais do século XVIII e inícios do veira, comovido com a agrura destes século XIX, o Corvo, ou melhor, as povos, reduziu a vinte moios de trigo, populações corvinas viviam ostraci- isto é, a metade do que pagavam a zadas pelo poder central, dotadas ao Pedro José Caupers e aboliu o foro de esquecimento e à margem dos pode- 80$000 réis pagos em dinheiro, sendo res regionais e de Lisboa. o rebanho dividido pelos habitantes Ora, no contexto das lutas liberais, os como estes entendessem. E, pelo rela- Açores assumiram uma posição privi- tório de 20 de junho de 1832, Mou- legiada. A chegada de D. Pedro à ilha zinho da Silveira aconselhou a ele- Terceira, a 3 de março de 1831, como vação da de Nossa Senhora regente em nome da filha D. Maria, dos Milagres a vila e respetivo con- deu um novo impulso à cidade de celho, referindo o «entusiasmo» dos Angra e aos Açores, num contexto de habitantes com tal medida e dando o reformas administrativas preparadas seu parecer: «o mar os separou, e eles por Mouzinho da Silveira. A notícia devem por isso ter o seu regime sepa- da presença do Rei e das reformas já rado (…) que me parece deve ser eri- gida em Vila»21. D. Pedro, tendo em conta este relatório, pelo Decreto 18 Ibidem, p. 35. 19 Citado por Gomes, Francisco António N. Pimentel, A Ilha das Flores: da descoberta 20 Jorge, P.e Lourenço, Notas do Corvo. à actualidade – subsídios para a sua his- Saramago, João (org.), Vila do Corvo, tória, 2.ª edição, Lajes das Flores, Câmara Câmara Municipal do Corvo, 2001, p. 39. Municipal das Lajes das Flores, 2003, p. 34. 21 Ibidem, p. 43. Hélio Nuno Santos Soares 161 n.º 33 de 21 de junho de 1832, deter- Perante esta situação, provavelmente, minou: «a povoação da Ilha do Corvo, aliavam-se os novos ideais liberais denominada Nossa Senhora dos Mi- que foram penetrando na sociedade lagres, fica elevada à categoria de vila das duas ilhas. O velho temor aos terá Câmara Municipal independente. senhores das ilhas deixou de existir, O nome da vila será Vila do Corvo»22. dando lugar ao relaxamento no paga- Apesar da importância destas duas mento das rendas devidas pelo respe- medidas, manteve-se a cobrança das tivo foro25. De modo a explicar esta rendas. Contudo, a cobrança das atitude, Francisco Gomes informa- mesmas era cada vez mais difícil por ‑nos que os povos «julgaram extin- parte de família Caupers. Em 29 de tos» os foros pelos decretos de 13 de outubro de 1836, o Governador Civil agosto de 1832 e pela lei de 22 de oficiou à Câmara que D. Mariana junho de 184626. Esta opinião pode ser Caupers Machado reclamava, o Prazo confirmada pela escritura de remis- da ilha do Corvo23. Este documento são de foros do Corvo, realizada na é um claro sinal dessas dificuldades vila de , no dia de arrecadação das rendas. Uma das 1 de setembro de 185527. Dado que razões era o absentismo dos atuais esta situação não encontrava solução, enfiteutas, fazendo-se representar por no Verão de 1853, Augusto Machado procuradores nos atos oficiais, como de Faria e Maia, procurador e irmão verificamos nos documentos que va- de José Inácio Machado de Faria e mos mencionar seguidamente. A res- Maia Júnior, deslocou-se às ilhas do posta da Câmara do Corvo ao ofício do grupo Ocidental, estando à data de Governador Civil teve o seguinte teor: 28 de junho na ilha do Corvo, cele- brando, na Casa da Administração do Deus queira ser em nosso patrocínio para que Sua Majestade de uma vez deixe 25 descansados estes pobres que tão ansio- Macedo, António Lourenço da Silveira, sos vivem por saberem qual a sua sorte História das Quatro Ilhas que formam o e destino. Assevero a V. Ex.ª que caso de Distrito da Horta, reimpressão fac-similada por algum motivo tais foros se viessem a da edição de 1971, Angra do Heroísmo, pagar todos os povos teriam de abando- DRAC, 1981, Vol. I, p. 75. 26 nar a terra que os viu nascer e irem para Gomes, Francisco António N. Pimentel, outra para poderem passar e manter vida, A Ilha das Flores: da descoberta à actua- e isto pela grande pobreza que aqui há24. lidade – subsídios para a sua história, 2.ª edição, Lajes das Flores, Câmara Municipal das Lajes das Flores, 2003, p. 35. 22 Ibidem. 27 Jorge, P.e Lourenço, Notas do Corvo. 23 Ibidem, p. 101. Saramago, João (org.), Vila do Corvo, 24 Ibidem, p. 102. Câmara Municipal do Corvo, 2001, p. 49. 162 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

Concelho, o Auto de reconhecimento desespero na cobrança das rendas, de seu irmão: porque José Inácio Machado de Faria e Maia Júnior sabia que a posse de Como é considerado e julgado terceiro facto das ditas terras não era efetiva foreiro ou enfiteuta, na conformidade da e que os habitantes da ilha não o escritura de aforamento feita a seu avô Pedro José Caupers no Rio de Janeiro em reconheciam como tal. Deste modo, 6 de Março de 1815 (…) declarou ele, justifica-se a insistência no reafirmar procurador sobredito, que em nome do a posse. Assim, os foreiros foram inti- actual foreiro dito seu irmão e constituin- mados a pagar as rendas do respetivo te, reconhecia, como de facto reconhe- foro – que, provavelmente, não cum- ceu, a Fazenda Nacional como senhorio direto de toda esta ilha, sobra a qual pesa priram – como diz Silveira Macedo: o foro anual de 20 moios de trigo28. «reconhecendo porém as dificuldades de cobrar os foros atrasados e mesmo Este auto foi celebrado perante o de arrecadar o que fosse vencendo Administrador do concelho Manuel vendeu o foro aos foreiros com um Francisco Mendes, em representação abatimento raseavel»30. do povo da ilha. Neste documento, foi De modo a efetivar esta decisão, José reafirmada a legítima posse da ilha e Inácio Machado Faria e Maia Júnior a renda devida ao foreiro ou enfiteuta. solicitou a D. Fernando, Rei Regente, Assim, aos corvinos era recordada a remissão do foro de vidas das dife- a sua dívida e obrigação. Contudo, o rentes terras que possuía nas duas problema da arrecadação das rendas ilhas. D. Fernando, por carta de re- manteve-se, levando a que, em 7 de missão datada de 8 de junho de 1855, fevereiro de 1855, comparecesse o ditou: «confirmar a mencionada re- procurador Mateus Luís de Men- missão pura e irrevogável, (…) para donça na Casa da Administração do daqui em diante possuírem e desfru- concelho, na presença do Administra- tarem as mesmas terras como livres, dor do concelho, Manuel Francisco aludiais (sic) e desembaraçadas do Mendes, tendo o referido procurador referido encargo»31. O requerente, de reafirmado a posse da ilha por parte 29 do seu enfiteuta . 30 Macedo, António Lourenço da, História A presença destes dois procuradores, das Quatro Ilhas que formam o Distrito da num período de ano e meio, revela a Horta, reimpressão fac-similada da edição preocupação e, de certo modo, algum de 1971, Angra do Heroísmo, DRAC, 1981, Vol. I, p. 76. 31 Jorge, P.e Lourenço, Notas do Corvo. 28 Ibidem, p. 45. Saramago, João (org.), Vila do Corvo, 29 Ibidem, p. 47. Câmara Municipal do Corvo, 2001, p. 51. Hélio Nuno Santos Soares 163 modo a pagar a remissão, foi obri- rido como propriedade senhorial, em- gado a satisfazer nas Caixas Centrais bora nos sucessivos documentos dos do Ministério da Fazenda a quantia séculos XV e XVI a ilha, na sua tota- de 240$000 réis. A 1 de setembro do lidade, seja propriedade dos diferen- mesmo ano, foi celebrada a escri- tes senhores da mesma. Levanta-se, tura de remissão do foro anual de 20 então, a questão de saber o momento moios de trigo imposto sobre as terras em que o baldio deixou de ser pro- que ali possuíam e que confinavam, priedade particular e passou a ser do pelo norte, com o baldio do concelho; domínio coletivo. Também se pode a sul, com a rocha do mar; a leste e a interpretar de outro modo: quando é oeste, com a costa do mar. A referida que o baldio foi instituído? Dado que escritura foi assinada na vila de Santa a ilha era uma propriedade particular, Cruz das Flores na residência de logo não havia baldio. Nesta linha de Francisco Xavier de Mesquita e Sil- ideias, o baldio surgiu tacitamente veira, na qual compareceu, pessoal- aquando da divisão do rebanho de mente, José Inácio Machado de Faria ovelhas, embora no Decreto n.º 20, e Maia Júnior e os representantes de 14 de maio de 1832, Mouzinho dos possuidores de terras do Corvo: da Silveira não refira a propriedade Manuel Francisco Mendes; Manuel da terra ou do baldio. Na escritura de Tomás Avelar; António Vicente Gal- remissão de foro diz que o baldio é vão; António Pedro e o P.e Manuel do concelho. Nas atas camarárias de Teixeira Machado32, comprometen- novecentos, a Câmara tem a incum- do-se a pagar o valor de vinte pen- bência de zelar pela correta explo- sões33. Com a celebração deste con- ração do mesmo. Sabemos que, após trato, concluiu-se a “revolução” ini- a extinção do concelho pelo Decreto ciada em 1832, tornando, legal e efe- de 18 de novembro de 1895, a gestão tiva, uma realidade que se verificava do baldio passou a ser da competência desde o referido ano. Os corvinos da Junta de Paróquia. Em 1939, o bal- passam a ser, de forma definitiva, os dio é administrado pela Junta de Fre- proprietários da ilha: de modo parti- guesia34. Podemos depreender que, cular numa parte e de modo comuni- após a restauração do concelho do tário no baldio. Corvo pelo Decreto de 13 de janeiro Denote-se que, nesta escritura de re- de 1898, o baldio continuou a ser missão de foro, o baldio já não é refe-

34 Livro de Atas da Câmara Municipal do 32 Ibidem, p. 49. Corvo (1939-1940), fl. 10v, Sessão de 2 de 33 Ibidem, p. 52. setembro de 1939. 164 Boletim do Núcleo Cultural da Horta administrado pela Junta de Paróquia 1855. A divisão das ovelhas ou gado e, com a implantação da República, lanígero, como é denominado nas essa competência foi transferida para atas da Câmara Municipal e Projeto a Junta de Freguesia de Nossa Senhora de Regulamento pelos habitantes da dos Milagres. ilha, não impediu que continuasse a existir um único rebanho, composto, 3. O baldio do Corvo assemelha-se em 1842, por 1250 ovelhas, que per- na sua exploração ao quadro que en- mitiam uma produção de lã na ordem contramos nas zonas centro e norte de dos 610 quilos36. No ano de 1871, Portugal continental. Nestas regiões, existiam 1060 ovelhas37, atingindo‑se a pequena e média propriedade favo- a cifra de 3447 em 193438. Note-se receu a manutenção dos baldios, a par que no Corvo não havia um sistema da contestação e petições dirigidas às de pastoreio de ovelhas, como pode- cortes35. Ao nível comparativo, o libe- ríamos pensar, o gado pastava livre- ralismo desejou extinguir os baldios, mente no baldio. A criação de ovelhas ao nível nacional, mas, no Corvo, foi assumia um complemento em relação a razão do seu surgimento. A explo- às restantes atividades agrícolas e ração do baldio era realizada de dois pecuárias, em que as zonas de cada modos: pela criação de ovinos ou de atividade agrícola estavam perfeita- suínos e aproveitamento do coberto mente identificadas39. arbóreo. O art.º 1 especifica a área de Com estes números e sem separação abrangência do baldio: «Denomina‑se de animais, as populações desenvol- “Baldio” a pastagem de logradoiro veram um sistema de marcas de posse publico, sito nos altos d’esta Ilha do Corvo e rochas adjacentes». 36 Arquivo dos Açores, Vol. III, 1980, p. 550. 37 Macedo, António Lourenço da Silveira, Ovelhas História das Quatro Ilhas que formam o Distrito da Horta, reimpressão fac-similada da edição de 1971, Angra do Heroísmo, Com a abolição da renda em dinhei- DRAC, 1981, Vol. III, pp. 217-224. ro, o rebanho de ovelhas do conde 38 Medeiros, Carlos Alberto, A Ilha do Corvo, foi dividido pelas famílias, embora a 2.ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, extinção do regime foreiro somente p. 87. Segundo fontes orais, o rebanho che- tenha ocorrido, em definitivo, em gou atingir a cifra de 5000 a 7000 ovelhas. 39 Cf. Gil, Maria Olímpia Rocha, “Pastagens e criação de gado na economia açoriana 35 Cf. Abel, Marília, “Os baldios portugueses dos séculos XVI e XVII (elementos para o em período de transição (1820-1910)”, in Re- seu estudo)”, in Boletim do IHIT, Angra do vista de História, Porto, 1988, pp. 340-341. Heroísmo, Vol. XL, 1982, pp. 503-549. Hélio Nuno Santos Soares 165 dos animais. Provavelmente, ficava dade, com testemunhas, sendo obri- ao critério de cada proprietário a origi- gado ao pagamento de uma coima44. nalidade de cada marca. Numa fase Quando era impossível a prova de inicial, a marcação aplicou-se somen- propriedade, o animal tornava-se te às ovelhas e suínos; posteriormente, «propriedade nullius», sendo leiloa- aplicou-se também aos bovinos – pro- do, revertendo o valor do leilão para vavelmente na segunda metade do a Junta de Paróquia45. século XX, após a extinção das ove- Cada família possuía o seu sinal e o lhas na ilha e o desenvolvimento da mesmo era transmitido de pais para monocultura da vaca. O registo da filhos46. Em casos excecionais, com a mesma em livro próprio era impres- morte do último detentor dessa marca cindível, facto que ocorreu em 1897 ou sinal, a Câmara poderia atribui-lo pelo então Presidente da Junta de a outra pessoa47. O Projeto de Regu- Paróquia, P.e José Gregório Mendon- lamento proíbe, perentoriamente, que ça40, tendo sido deliberado o levan- alguém marcasse um animal que tamento em sessão de Câmara a 6 de não fosse seu, a pena era dez dias de janeiro de 189541. prisão48. Este mau hábito tornou-se Esta deliberação exigia que todos os transgressão, mas não foi exigente o criadores deviam participar à secre- suficiente para corrigir os costumes taria da Câmara o respetivo sinal até das populações do Corvo, pois a me- 31 de janeiro desse ano. Deste modo, mória das gentes ainda relata esta todos os animais eram obrigados a ocorrência em pleno século XX49. possuir uma marca nas orelhas42 para Como bem afirma João Saramago, poderem pastar no baldio43. Caso o esta forma de marcação não era apli- proprietário não cumprisse este requi- cada ao restante gado, porque as sito essencial, teria de provar que o caraterísticas físicas permitiam a sua 50 animal encontrado era sua proprie- identificação individual . Mas, como

44 40 Saramago, João, “As Marcas de Posse Ibidem, Art.º 16. Utilizadas para Gado na Ilha do Corvo em 45 Ibidem Finais do Século XIX”, in Atas do Colóquio 46 Ibidem, Art.º 13. O Faial e a Periferia Açoriana no séc. XV 47 Ibidem a XIX, Horta, 1995, p. 467. 48 Ibidem, Art.º 32. 41 Livro de Atas da Câmara Municipal do 49 Testemunho de Manuela Emília Avelar, nas- Corvo (1892-1898), fl. 68, Sessão de 6 de cida em 1921. janeiro de 1895. 50 Saramago, João, “As Marcas de Posse 42 Projeto de Regulamento do Baldio, Art.º 14. Utilizadas para Gado na Ilha do Corvo em 43 Ibidem, Art.º 13. Finais do Século XIX”, in Atas do Colóquio 166 Boletim do Núcleo Cultural da Horta já disse, durante o século XX a situa- de Freguesia, como entidade respon- ção alterou-se. O registo das marcas sável pelo baldio54. de gado é contemporâneo do Projeto Em 1880, a Câmara deliberou a de Regulamento do baldio, também obrigatoriedade da participação de elaborado pelo P.e José Gregório um homem de cada casa «que tenha Mendonça, em 189751, em que o pri- parte no mesmo gado». Face a esta meiro contempla o segundo52. deliberação podemos depreender que Manteve-se o ajuntamento de gado algumas famílias não respeitavam o ovino em dois dias do ano: o pri- costume de todos se entreajudarem, meiro em fins de maio e o segundo determinando uma coima de 240 em setembro, designado o “dia da lã”, réis para os infratores55. Esta medida como nos transmite a tradição oral53. coloca em causa a própria ideia do Eram dias de festa, em que somente espírito comunitário do Corvo. os doentes ficavam em casa. No pri- A deliberação camarária foi incluída meiro dia, fazia-se o ajuntamento de no Projeto de Regulamento no Art.º todo o rebanho e realizava-se a tos- 27, com a salvaguarda de partici- quia do mesmo; no segundo dia, pação no ajuntamento e respetiva tosquiavam-se os animais que, even- divisão das ovelhas para tosquia ou tualmente, não foram tosquiados em marcação. A novidade foi a introdu- maio e marcavam-se as fêmeas com ção de que os inválidos ou mulheres tinta no lombo do animal ou em todo se faziam representar, dado que estes o corpo. A marcação com tinta visa- também poderiam ser criadores, con- 56 va facilitar a identificação das crias forme as circunstâncias de cada um . enquanto mamavam, para mais tarde Esta especificação demonstra a preo- serem marcadas nas orelhas com o cupação de envolver toda a comuni- sinal do respetivo proprietário. No que concerne à melhoria genética 54 Livro de Atas da Câmara Municipal do do rebanho, a informação é parca. Em Corvo (1939-1940), fl. 10v, Sessão de 2 de 1939, a ilha recebeu um ovino repro- setembro de 1939. 55 Livro de Atas da Câmara Municipal do dutor, o qual ficou a cargo da Junta Corvo (1880-1890), fls. 2, Sessão de 2 de setembro de 1880. 56 Medeiros, Carlos Alberto, “Ilha do Corvo O Faial e a Periferia Açoriana no séc. XV – Geografia Humana”, in Enciclopédia a XIX, Horta, 1995, p. 468. Açoriana, Direcção Regional da Cultura. 51 Projeto de Regulamento do Baldio, Art.º 13. . 53 Maria Manuela Rita, nascida em 1944, e Cf. Projeto de Regulamento do Baldio, Pedro Alves, nascido em 1924. Art.º 27. Hélio Nuno Santos Soares 167 dade e a corresponsabilidade de todos, mesmo, com os seus altos muros e nomeadamente, dos criadores. Deste com as dimensões originais. Após modo, os indivíduos, a partir dos doze a chegada do imenso rebanho, «os anos, eram considerados aptos a par- animais vão sendo apartados pelos ticipar nestas lides, o que é comum respectivos donos, que os amarram a a uma sociedade onde as crianças, uma grossa corda esticada entre duas desde cedo, aprendem participando estacas cravadas no terreno e é deno- nas tarefas agrícolas57. minada cobra»62. A participação da totalidade dos O tenente Miguel Araújo testemu- agregados familiares, nesta atividade nhou este dia, o qual designou por coletiva, permitiu a manutenção de “festa da tosquia”63, descrevendo-o uma consciência de solidariedade nos como uma quebra da rotina dos cor- trabalhos coletivos58. O dia come- vinos «agitada pelas emoções dos çava com o ajuntamento de gado, folguedos populares que constituem pelas seis horas da manhã, por todo um ajusta compensação aos duros 59 o baldio , com a comparência obri- esforços do trabalhador»64. A designa- gatória ou representação de todos os ção deste dia perdurou até ao pre- criadores. Estes não podiam compa- sente como o “dia da lã”. Neste dia, 60 recer e abandonar o local . Esta nor- era permitido aos jovens fazer tudo ma dá a entender que existiria algum o que lhes estava proibido durante o tipo de confirmação de presenças ano – por exemplo, fumar65 – e vi- antes de se iniciar o respetivo ajunta- nham visitantes da ilha das Flores mento. Posteriormente, iniciava-se para assistir à concentração das ove- o ajuntamento de todas as ovelhas, sendo conduzido o enorme rebanho ao curral existente no sítio dos Lagos, 62 Araújo, Tenente Miguel C., “A Festa da infelizmente, já destruído pela incons- Tosquia na Ilha do Corvo”, in Açoreana, 61 ciência do homem , mantendo-se, Fascículo IV, Vol. I, 1937, pp. 238-239. contudo, o caminho de acesso ao Cf. Medeiros, Carlos Alberto, A Ilha do Corvo, 2.ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, pp. 87-89. 57 Projeto de Regulamento do Baldio, Art.º 27. 63 Ibidem. 58 Medeiros, Carlos Alberto, Primórdios do 64 Ibidem. Comunitarismo numa ilha Atlântica – o 65 Dr. João Cardigos dos Reis e Maria Emí- Corvo, Angra do Heroísmo, IHIT, Vol. XLI, lia Avelar. Esta atitude de permissividade e 1983, pp. 155-156. queda de tabus poderá indiciar um certo tipo 59 Projeto de Regulamento do Baldio, Art.º 27. de rito de passagem. Contudo, o estado da 60 Ibidem, Art.º 28. nossa investigação impede-nos de clarificar 61 Ibidem, Art.º 25. este aspeto. 168 Boletim do Núcleo Cultural da Horta lhas, uma «imensa mancha branca não o permitisse, ficava adiado para mosquetada de preto», como classi- o primeiro dia favorável69. Por estas fica. As razões que justificavam a referências denota-se a variação da visita dos forasteiros eram o convívio data do primeiro dia, as razões dessa e a ajuda nesta laboriosa tarefa, bem alteração são uma incógnita até ao como o recebimento de um cordeiro momento, se bem que, em meados ou porção de lã, como refere este do século XX, o dia do ajuntamento autor. Embora seja questionável se, fosse na segunda-feira de Pentecos- de facto, os visitantes eram muitos, tes, cujo motivo tinha que ver com a despesa seria, certamente, onerosa, o aproveitamento das carnes de vaca mas justificada pela necessidade de e pão confecionados para a véspera, o mãos para execução do trabalho. Domingo de Pentecostes70. Alguns destes visitantes eram de Como podemos observar, as datas da fracos recursos económicos, por isso realização do ajuntamento de ovelhas a sua vinda ao Corvo era necessária estavam próximos dos equinócios do para os mesmos, pois neste dia tinham inverno e da primavera. Vemos o fator comida e gratificação. climatérico associado. Os valores de Para o mesmo autor, o dia da concen- precipitação, temperatura e humidade tração ocorria nas últimas segundas- influenciavam o dia da tosquia. A ne- ‑feiras dos meses de abril e setem- cessidade de executar a esta operação bro, confirmando a tradição de finais antes do verão, de modo a anteceder a do século XIX66. Por sua vez, Raul subida da temperatura e da humidade, Brandão apresenta as mesmas datas67. estavam subjacentes. Precaver a so- Carlos Alberto Medeiros menciona brevivência dos animais e a qualidade que «o dia da lã calha sempre em fins da lã tornava-se imperioso. Por outro de Maio ou princípio de Junho»68. No lado, ambos os dias se situam entre mês de setembro de 1894, o ajunta- ciclos agrícolas distintos. O primeiro mento foi determinado pela Câmara dia situa-se no fim das sementeiras; para o dia dezassete e, caso o tempo o segundo no término da colheita de trigo e início da colheita do milho. 66 Projeto de Regulamento do Baldio, Art.º 26. 67 Brandão, Raul, As Ilhas Desconhecidas. 69 Livro de Atas da Câmara (1892-1898), Prefácio de António Machado Pires, Lisboa, fls. 57v e 58. Sessão de 16-09-1894. Cf. Pro- Editorial Comunicação, 1987, p. 58. jeto de Regulamento do Baldio, Art.º 26. 68 Medeiros, Carlos Alberto, A Ilha do Corvo, 70 Testemunhos de Lino Fraga, nascido em 2.ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, 1944, e Maria Manuela Rita Nunes, nascida p. 88. em 1944. Hélio Nuno Santos Soares 169

Realçando-se que no segundo dia pela tarde e noite dentro, por vezes, requeria menos trabalho. ainda no dia seguinte. O dia era importante na comunidade. Uma nota final relativa ao gado ca- Todos os criadores compareciam, mas prino, que nunca teve grande expres- não era permitido a qualquer criador sividade na ilha. Dadas as suas cara- antecipar-se à tosquia coletiva71. Este terísticas físicas, poderia pastar em princípio era tão fundamental que, conjunto com as ovelhas, mas nem nem no dia do ajuntamento, o criador isso era costume ou permitido. A sua podia principiar sem que essa ordem criação circunscrevia-se, como hoje, fosse dada pelo zelador72. Esta preo- às rochas da ilha, tendo como con- cupação está na mente do legislador dição «não invadir a propriedade que, por sua vez, exprime a consciên- particular»74. cia do costume e dos valores secula- res. Assim, os homens circulavam Suínos por entre o imenso rebanho de modo a irem fazendo a divisão das ovelhas, A criação de suínos foi outra impor- tendo em conta as marcas existen- tante atividade pecuária da ilha do tes nas orelhas. Em simultâneo, aos Corvo, constituindo a carne de porco berros, chamavam pelos donos da- uma das principais bases da alimen- quelas que encontravam. No exterior tação dos corvinos. Para António de do curral, cada família escolhia um Lacerda Bulcão, aquando da sua es- local, onde se fixava a “cobra”, ou tada de cinco dias na ilha do Corvo, seja, uma corda de piteira ou espa- havia 846 suínos75; Silveira Macedo, dana73, presa nas duas extremidades em 1871, apresenta 500 suínos76, a duas estacas de bem presas registando-se um claro decréscimo ao solo. Na mesma corda poderiam em relação à visita de Bulcão. estar presas muitas ovelhas. Cada O número de animais destinados à ovelha era presa a esta corda, sendo matança era de dois a três. Os porcos posteriormente tosquiada com tesou- que se pretendia matar eram criados ras próprias. A tosquia prolongava-se junto de casa, num local que se de-

71 Projeto de Regulamento do Baldio, Art.º 29. 74 Projeto de Regulamento do Baldio, Art.º 4. 72 Ibidem, Art.º 31. 75 Arquivo dos Açores, Vol. XI, 1890, p. 350. 73 Designação científica phormium tenax, 76 Macedo, António Lourenço da Silveira, também designada por filaça ou linho da História das Quatro Ilhas que formam o Nova Zelândia. Cf. Shafer, Hanno, Flora Distrito da Horta, reimpressão fac-similada of the Azores a field guide, ����������������2.ª edição, Mar- da edição de 1971, Angra do Heroísmo, graf Publisher, 2005, p. 272. DRAC, 1981, Vol. III, p. 224. 170 Boletim do Núcleo Cultural da Horta nominava “pátio do porco”, que por fechados por uma cancela. O Projeto sua vez, tinha, no seu interior, um de Regulamento apresenta seis can- desnível, por relação a este, de um celas de comunicação com o baldio, metro a metro e meio – o chamado havendo um «buraco existente aos “poço”, ou seja, o depósito de estru- Lagos para a sahida dos suínos», que me. Este depósito normalmente tem foi mandado tapar78. Esta abertura uma abertura na parede, que confron- existia, provavelmente, para facilitar ta com uma canada ou rua. Este por- a saída dos mesmos ao fim da tarde. tão estava tapado com pedras ou com O curioso deste facto é que os mes- um portão de madeira para facilitar a mos não eram conduzidos por nin- limpeza do mesmo, cujo estrume era guém no regresso e, ao entrarem no descarregado para os carros de bois interior da vila, cada qual seguia para ou transportado em cestos de vime o seu “pátio”. Encontramos, nesta si- até ao mesmo ou diretamente para tuação, semelhanças com os rebanhos as terras. Esta abertura fica elevada de ovelhas que, em algumas aldeias em relação à rua, de modo a facilitar de Portugal continental, têm a mesma a transposição da parede e respetiva rotina. O adágio popular espelha esta colocação, nos ombros, dos cestos prática “ao porco e o genro somente com o estrume. A alimentação dos se ensina uma vez”79. Contudo, por porcos era feita à base de milho ou postura municipal foi determinado: farinha de milho, batata, beterraba, É proibida a divagação d’animais suínos abóboras, mogangos, inhames, leite e destinados a engorda no decurso do lavagens. anno, pelas ruas e praças d’esta Vila, Conforme a época do ano, os porcos desde o primeiro de Julho até o último de criados junto da casa, eram libertos Dezembro de cada anno; e quem infringir pela manhã, após serem alimenta- este artigo pagará 240 réis para o cofre da dos, e levados pelas pessoas para as Camara, ficando sujeito ao duplo no caso de reincidência80. “terras de cima” ou baldio, segun- do «costumes antiquíssimos d’estes O argumento utilizado para delibe- povos»77. A família abastada não ne- ração desta postura teve que ver com cessitava de colocar o seu porco no baldio, embora não fosse regra geral. 78 Os mais pobres conduziam-nos à Ibidem, Art.º 36. 79 zona dos Lagos, no baldio, ficando Maria Manuela Nunes Rita, Vila do Corvo, nascida em 1944. 80 Livro de Atas da Câmara Municipal do 77 Projeto de Regulamento do Baldio, Intro- Corvo (1880-1890), fl. 81v, Sessão de 10 de dução. setembro de 1887. Hélio Nuno Santos Soares 171 a saúde e higiene pública da vila, por- adequada à boa alimentação dos ani- que, como é natural, os porcos contri- mais. buíam para a sujidade das ruas. Esta A toponímia ajuda-nos a perceber postura foi alterada posteriormente, alguns aspetos da realidade passada. caiu em desuso ou simplesmente foi Presentemente, há um local da Vila ignorada pela população, pois, em do Corvo que se denomina de “Can- meados do século XX, o hábito de le- cela” e, segundo o que foi possível var os porcos para o baldio ou “terras apurar, no passado existia uma can- de cima”, ao longo de todo o ano, sem cela que vedava a passagem dos ani- restrições, ainda se mantinha. mais da vila para a zona das “Terras A colocação de suínos no baldio era de Baixo”, aquelas que ficam nas nociva ao mesmo, como bem expres- imediações da vila. Esta denomina- sa o P.e José Gregório de Mendonça ção ajuda-nos a perceber que, apesar na introdução ao Projeto de Regula- de os animais circularem livremente, mento. Aí refere a «impossibilidade havia limitações às zonas de circula- de evitar que os suinos entrem no ção dos mesmos. Baldio, o que seria de summa vanta- Os chamados porcos de criação, gem, mas a que se opõem costumes isto é, as porcas reprodutoras ou os antiquíssimos d’estes povos»81, por- que não se pretendia engordar rapi- que o animal ao “foçar” no chão, «en- damente, eram lançados no baldio levece [a terra] e as aguas arrastam ao quando atingiam dois a três meses. mar»82, o que levou à obrigação de A alimentação do baldio era parca, colocação de duas argolas metálicas por este motivo e conforme a época no focinho dos animais83. O legisla- do ano, eram alimentados com milho, dor dotado de maior clarividência, uma ou duas vezes por semana. De devido à sua formação, tentava com modo a serem identificados pelos estas medidas impedir que o baldio se respetivos proprietários, aplicou-se tornasse «improdutivo». A colocação o mesmo sistema de marcas nas de porcos no baldio em nada favore- orelhas que se utilizavam nos bovinos cia, somente prejudicava os terrenos, e ovinos84. Se todos beneficiavam da nomeadamente e a reconstituição da colocação dos porcos no baldio, nem pastagem com uma cobertura vegetal toda a gente concordava que podiam circular em todos os locais do mesmo.

81 Projeto de Regulamento do Baldio, Intro- dução. 84 Medeiros, Carlos Alberto, A Ilha do Corvo, 82 Ibidem, Introdução. 2.ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, 83 Ibidem, Art.º 4. p. 89. 172 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

Por esta razão foi apresentado, à Câ- espaço do pátio na povoação encra- mara, um abaixo-assinado pedindo vada entre o mar e a montanha face um artigo de postura a proibir a circu- à amplitude do baldio e a pequenez lação de suínos na “Fajã das Negras”. do animal perante a imensa cratera de Este pedido foi aceite, ficando os 300 metros de profundidade. infratores sujeitos a uma coima de A carne de porco e seus derivados 85 500 réis , por seu lado, o proprietário eram a base da alimentação das famí- de todos os suínos encontrados abaixo lias corvinas. A habitação que matava dos “bardos do Concelho”, isto é, os dois a três porcos por ano era con- limites dos baldios, seria multado em siderada “casa farta”. As matanças 120 réis e, em caso de reincidência, o ocorriam praticamente no mês de de- montante seria a duplicar86. zembro, em vésperas de Natal. Havia O príncipe Alberto I do Mónaco visi- uma clara associação entre estes dois tou a ilha em julho de 1896. Nessa acontecimentos, permitindo fazer visita, efetuou uma excursão à cratera festa de família, com a espirituali- do Caldeirão, onde fotografou e cons- tatou a presença dos porcos no inte- dade inerente à época. rior do Caldeirão: «gozámos a sereni- dade dos costumes campestres, neste Zeladores e Cabos lugar de paz: alguns porcos, donos dos prados, vieram comer dos nossos O Projeto de Regulamento introduziu pratos e roubar o nosso pão com uma ou integrou os cargos de zelador, em familiaridade inconsciente»87. A doci- número de três, que tinham por fun- lidade dos animais explica-se pelo ção zelar pela correta manutenção do motivo de serem alimentados regular- bardo do baldio, ou seja, o muro divi- mente pelos donos. A liberdade a que sório88. De entre os três zeladores, um estavam dotados os porcos é visível era nomeado “chefe dos zeladores”, o na observação, com uma antropomor- qual presidia ao ajuntamento do gado fização dos mesmos, ao considerá-los nos dias da tosquia, averiguava a «donos dos prados», e sublinhando comparência ou representação de to- assim o antagonismo entre o reduzido dos os criadores89. A introdução desta figura permitia uma melhor coorde- 85 Livro de Atas da Câmara (1880-1890), nação de toda atividade e uma dimen- fl. 49v, Sessão de 29 de julho de 1883. são legal de investidura em autorida- 86 Ibidem, fl. 19, Sessão de 12-02-1882. 87 Saramago, João e Barros, Jorge (org.), Memórias Corvinas, Câmara Municipal do 88 Projeto de Regulamento do Baldio, Art.º 20. Corvo, 2001, p. 9. 89 Ibidem, Art.º 23. Hélio Nuno Santos Soares 173 de. Outra figura nomeada pela Junta Confrontações de paróquia era o cabo. O Projeto de Regulamento não especifica o seu A Câmara tinha a incumbência de número, pelo que podemos depreen- zelar pela manutenção do baldio, der que ficava ao critério da Junta de dado que era proprietária do mesmo. Paróquia, conforme as necessidades90. A posse do baldio pelas Câmaras con- Os cabos tinham por função presidir feria-lhes a possibilidade de arrendar a esquadras que integravam os respe- e alienar partes ou a totalidade do tivos criadores e faziam «a conser- mesmo. A lei da desamortização dos vação de uma das seis cancellas que baldios de 1869 veio facilitar a alie- fecham o Baldio pelo lado do sul nação94. Por sua deliberação cama- (…), ou um lanço de bardo dos que rária foram nomeados três cidadãos não ficam a cuidado dos respectivos para fazerem o alinhamento das tapa- proprietários»91. das, isto é, os muros de divisão, que Um aspeto deveras curioso é o facto confrontam com o baldio e os cami- de os zeladores ou cabos beneficia- nhos públicos95. Outra atribuição da rem de metade do valor da aplicação Câmara era fiscalizar as apropria- das multas92. Esta mercê era o venci- ções indevidas de terrenos do baldio, mento pelo cargo que exercido, bem como a que foi denunciada pelo Ad- como um estímulo ao correto exer- ministrador do concelho, em 188996. cício do mesmo. A forma de apropriação era muito O cargo de cabo manteve-se até à sui generis: os proprietários «intes- extinção completa do rebanho de ove- tados com o Baldio» deslocavam as lhas, embora tenha perdido alguma paredes97. Esta situação consta da in- destas atribuições, confundindo‑se timação de comparência do cidadão com a função de zelador, como pude averiguar pela tradição oral93.94 95 Livro de Atas da Câmara Municipal do Corvo (1868-1880), fl. 33, Sessão de 6 de março de 1875. 96 Ibidem, (1880-1890), fl. 119, Sessão de 2 de 90 Ibidem, Art.º 17. junho de 1889. 91 Ibidem. 97 A apropriação individual dos baldios tor- 92 Projeto de Regulamento do Baldio, Art.º 50. nou-se prática normal durante o século XIX. 93 Maria Manuela Rita, nascida em 1944, e Os grandes proprietários latifundiários au- Manuela Emília Nunes, nascida em 1921. mentaram o seu património fundiário de- 94 Abel, Marília, “Os baldios portugueses em vido por esta via. A atitude de apropriação período de transição (1820-1910)”, in Re- dos corvinos é análoga, mas não detém a vista de História, Porto, 1988, p. 343. mesma expressão na sua efetivação. As 174 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

António Valadão d’Ana98 e das decla- A gravidade da apropriação indevida rações do mesmo99, provavelmente era penalizada com a pena máxima, alegando que as mesmas sempre esti- a prisão durante dez dias. As proibi- veram naquele local ou na esperança ções aos proprietários confinantes que ninguém notasse a alteração. Esta com o baldio eram extensivas à não atitude revela que o desejo de dispor abertura de “buracos” para passagem 101 de mais alguns metros quadrados era de animais . desejável numa ilha onde 1 m2 deti- A exploração do baldio com as ove- nha um valor exorbitante e era uma lhas em total liberdade, sem pasto- reio, era um fator inconveniente, necessidade perene. O Projeto de porque estes animais têm uma maior Regulamento, nos Art.os 41 e 42, re- propensão para a transposição dos gulamenta este aspeto tão curioso da tradicionais muros de pedra sobre- apropriação ou desresponsabilização 100 posta. Deste modo, a introdução da da manutenção da parede divisória . obrigação contida no Art.º 9 estabe- lece que o proprietário cujo prédio Câmaras também tinham liberdade para confina com o baldio «é obrigado arrendar e alienar os baldios. A Câmara do a elevar e a conservar o bardo ou Corvo aquando da constituição da Comis- parede divisória, na sua altura de um são de Melhoramentos em 1890, de modo a possibilitar a ampliação do então único metro e setenta decímetros, medidos chafariz da vila fez uma permuta de terreno pelo lado do logradoiro publico». com António José de Fraga. De modo a A explicação para a contemplação saldar as dívidas camarárias nos finais do desta norma é explicitada na intro- século XIX, por diversas vezes se lançou dução ao documento. Assim, todos os a discussão da venda de terreno no baldio proprietários eram, em simultâneo, para esse efeito. Cf. Abel, Marília, “Os bal- criadores que protegiam a proprie- dios portugueses em período de transição (1820-1910)”, in Revista de História, Porto, 1988, p. 342; Jorge, P.e Lourenço, Notas bem como o bardo do rei. Este último é do Corvo. Saramago, João (org.), Vila do uma parede que se destaca pela sua altura Corvo, Câmara Municipal do Corvo, 2001, e largura situada no meio das propriedades p. 127. privadas, variando entre os 100 e os 300 98 Livro de Atas da Câmara Municipal do metros abaixo do atual bardo. Esta topo- Corvo (1890-1892), fl. 51, Sessão de 23 de nímia indica-nos que o baldio ocupava agosto de 1891. uma área superior à atual, mais de 50% da 99 Ibidem, fl. 52, Sessão de 6 de setembro de área da ilha; que, provavelmente, no pe- 1891. ríodo em que a ilha esteve sujeita à Coroa 100 A parede divisória é denominada de bardo. o bardo do rei foi mandado construir. Atualmente existem dois bardos: o que faz 101 Projeto de Regulamento do Baldio, Art.º a delimitação entre o privado e o baldio, 35. Hélio Nuno Santos Soares 175 dade pública e a sua propriedade pri- Outros modos de usufruto do baldio vada: um duplo interesse. A construção destes muros de pedra A abertura de regos de água indevi- solta remonta ao progressivo arrotea- damente, ou seja, sem autorização mento da ilha, mas a fixação da sua da Câmara, nas ribeiras e caminhos «altura de um metro e setenta decíme- públicos, implicava a aplicação de tros, medidos pelo lado do logradoiro uma coima de 240 réis105. As ques- publico»102 ocorreu em finais do sé- tões levantadas pela divisão e posse culo XIX. Um outro aspeto curioso de cursos de água são uma das carac- é a existência de portões de pedra, terísticas existentes nas comunidades encimados por uma grande pedra, o rurais, que se envolviam regularmen- que facilitava a colocação de pedras te em disputas pela divisão de águas. de menor dimensão sob a mesma e A impertinência dos habitantes ao impedia a sua transposição pelas ove- procurarem utilizar o baldio em bene- lhas, mas também a entrada de cães fício pessoal mantinha-se, recusando- que atacassem o rebanho, causando ‑se a cumprir as posturas municipais, prejuízo. Estes portões ainda se abrindo regos de água e, por isso, «se observam em alguns locais, subsis- julgavam donos d’elles»106. De modo tindo alguns dos mesmos nas terras a esclarecer as dúvidas, o Presidente da particulares no interior do Caldeirão. Câmara expôs a situação ao Gover- De modo a precaver eventuais ataques nador Civil do Distrito, o qual, em ou a solucionar um problema existen- ofício de 28 de abril de 1882, «res- te, por deliberação camarária, os pro- pondeu que a Câmara tem o direito de prietários de cães ficavam obrigados mandar tapar os mesmos regos, como a identificar os animais com o seu está expresso na postura»107. A fim nome na coleira, a prendê-los duran- de solucionar a questão, foram man- te a noite e a colocar uma focinheira dados «quebrar os regos ou vallados 108 quando saíssem da vila103, bem como que causam prejuízo a terceiros» , à solicitação de licença para posse de quanto aos restantes regos, os donos animais de «espécie canina»104. 105 Livro de Atas da Câmara Municipal do Corvo (1868-1880), fl. 17, Sessão de 19 102 Ibidem, Art.º 9. de fevereiro de 1870. Cf. Projeto de Regu- 103 Livro de Atas da Câmara Municipal do lamento do Baldio, Art.º 33. Corvo (1880-1890), fl. 19, Sessão de 12 106 Ibidem, (1880-1890), fl. 28, Sessão de 9 de fevereiro 1882. de julho de 1882. 104 Ibidem (1898-1900), fl. 38, Sessão de 3 de 107 Ibidem. fevereiro de 1900. 108 Ibidem. 176 Boletim do Núcleo Cultural da Horta foram obrigados a registá-los na Câ- gar pessoas, animais e bens, no dia mara, pagando a obrigatória quantia à dia das gentes. Devido ao facto de de 240 réis. A atitude de questiona- toda a comunidade se sentir possui- mento do Presidente de Câmara pode dora de baldio, também entendia que ser interpretada como dúvida de exer- estava no direito de construir indis- cício de autoridade sobre o baldio, criminadamente e deliberadamente que foi esclarecida prontamente. para seu uso pessoal, algo que dei- O Projeto de Regulamento contem- xou de ser permitido111. O Projeto de plou este aspeto da exploração de Regulamento vem afirmar que tudo águas. Assim, a abertura de regos, era de uso comum, embora se pudes- valas e aquedutos requeria a prévia se conceder licenças para uso pessoal, licença da Junta, de modo a que os salvaguardando que ninguém poderia usufrutuários os explorassem109. Os maltratar os animais de outrem, parti- criadores eram também obrigados a cularmente os porcos, os principais 112 contribuir com dois dias de trabalho beneficiários dos mesmos abrigos . anual para «levantamento de abrigos As restrições à extração de pedra, e extinção de precipicios ou logares inertes ou demais materiais geoló- de perigo commum aos animaes que gicos de origem vulcânica também pastem no baldio»110. Deste modo de foram salvaguardadas, necessitando de prévia licença113. manutenção permitia incentivava-se O baldio proporcionava aos corvinos a consciência comunitária dos corvi- múltiplos benefícios para uso quoti- nos, sendo um modo de pagamento, diano, nomeadamente, «os juncos, em mão de obra, da exploração e fetos, silvas e quaisquer outros espé- manutenção de animais no baldio. cies de mondas que n’ele se desen- Ao realizarmos uma caminhada pela volvam, e também os escrementos ilha do Corvo, deparamo-nos com dos animais»114. As rochas adjacentes diversos chiqueiros construídos em também eram consideradas baldio115. diversos locais ou furnas escavadas Nelas criavam-se as cabras, mas aci- nas encostas. Tudo realizado pela mão ma de tudo aí se recolhia lenha para do Homem, que arroteou esta ilha. A função destas construções era abri- 111 Ibidem, Art.º 6. 112 Ibidem, Art.º 6. 109 Ibidem, Art.º 5. Cf. Livro de Atas da 113 Ibidem, Art.º 7. Cf. Livro de Atas da Câmara Municipal do Corvo (1898-1900), Câmara Municipal do Corvo (1898-1900), fl. 131v, Sessão de 4 de novembro de 1899. fl. 7, Sessão de 18 de dezembro de 1898. 110 Projeto de Regulamento do Baldio, Art.º 114 Ibidem, Art.º 37. 34. 115 Ibidem, Art.º 1. Hélio Nuno Santos Soares 177 as populações116, numa ilha em que social subjacente e as dinâmicas de a cobertura arbórea, devido à pres- organização interna da/o mesma/o, são demográfica, ficou confinada às de modo à satisfação de uma neces- falésias da ilha. Contudo, era expres- sidade comum. Denotando-se, igual- samente proibido realizar fogueiras mente, as diferenciações sociais pelo nesses locais, de modo a salvaguardar status quo que determinados indiví- um bem tão precioso. duos poderiam deter na comunidade, ao exercerem determinado cargo. 4. Do exposto, cremos poder con- Assim, pode considerar-se que estas cluir que o Regulamento do baldio do regulamentações não só regulam, Corvo é um precioso auxiliar para a como criam diferenciações sociais. reconstituição da exploração econó- O Regulamento integrou as sucessi- mica do mesmo em finais do século vas posturas camarárias já em vigor. XIX e princípios do século XX. A sua Visou regulamentar o principal modo elaboração é a prova de que os cos- de usufruto: a pecuária e a sua orgâ- tumes já não eram suficientes para nica, mas não se cingiu somente a regular a organização da exploração este aspeto. A fruição do baldio fazia- do baldio e das demais atividades ‑se através da extração de inertes, de associadas ao mesmo. Deste modo, cursos de água e recolha de cobertura o Regulamento traduziu uma neces- arbórea, embora fique patente a im- sidade resultante da complexificação portância que a criação de ovinos e da exploração deste espaço. Também suínos representava para uma comu- é reveladora da capacidade ou inca- pacidade que a comunidade detinha nidade isolada. Uma questão fica em para se autorregulamentar, indepen- aberto: saber se efetivamente o Regu- dentemente do suporte legal subja- lamento vigorou e, se sim, até quando. cente. O baldio do Corvo mais do que Pelo que se pôde apurar, algumas das um elemento produtivo, numa dimen- suas regulamentações mantiveram-se são capitalista da exploração da terra, conforme o costume, dado que a tra- foi um meio de subsistência fruto de dição oral não transmitiu a existência uma necessidade117. do mesmo. Esta é uma vertente ainda As informações contidas no docu- por explorar. mento revelam-nos a/o rede/meio

gradecimentos 116 Ibidem, Art.º 39. A 117 A bel, Marília, “Os baldios portugueses em período de transição (1820-1910)”, in Ao Doutor José Damião Rodrigues Revista de História, Porto, 1988. pela orientação deste trabalho. 178 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

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Projeto de Regulamento do Baldio do Corvo – 1896118

(Na folha de rosto) Remetido ao Administrador do Con- honra de apresentar, respondendo a celho de Santa Cruz, em 2 de Dezem- uma consulta desta Junta, confirmou bro de 1896118 aquella disposição legal, e por este motivo urge que a Junta assuma esta Copia = Ilustríssimo Senhor! A extin- obrigação mais e empregue os meios ção do Concelho d’esta ilha do Corvo conducentes a tornar não só effectiva, coube (sic) a esta Junta, em virtude mas util e fructifera a sua administra- do numero cinco do artigo cento e ção. Neste intuito, e, para não perder noventa e um do Codigo Adminis- tempo, desde que recebi o documento trativo, a administração do Baldio citado, procurei organizar um Projeto ou pastagem do logradoiro publico. de Regulamento para a administração A Excelentíssima Comissão Distrital do Baldio; Projeto de Regulamento em sua sessão de dezoito de Julho que se torna tanto mais necessário do corrente anno, cuja copia tenho a quanto a carência absoluta de dispo- sições regulamentares relativas as 118 O manuscrito original encontra-se no assumpto tornam essa administração Arquivo Municipal da Câmara do Corvo. completamente impossivel a esta 180 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

Junta. Procurei na organização deste entre o Baldio e terrenos particulares. projecto seguir quanto me foi possí- Se os proprietarios não fossem tam- vel as disposições contidas no Código bém os creadores, seria mais equita- de Posturas da extinta Camara Muni- tivo que estes e não aquelles vellas- cipal desta ilha a cujo cargo tinha sem pelos bardos ou paredes. Difficil estado o Baldio; mas não obstante de será porem encontrar n’esta ilha um forçar-me por evitar inovações, foi- proprietário que não seja também ‑me impossível deixar de incluir no creador, e por isso deixe de utilizar o projeto algumas medidas tendentes a Baldio com os seus animaes de uma suprir as lacunas que se estavam e ou outra espécie; por este motivo não a additar outras que a experiencia e a há também razão para que o proprie- opinião publica aconselham. As mais tario não seja o encarregado da con- importantes são as contidas nos arti- servação da parede divisoria entre gos terceiro, nono e trinta e quatro. o seu predio e o logradoiro publico, Na impossibilidade de evitar que os porque d’ella se utiliza como dono e suinos entrem no Baldio, o que seria como usofructuario do Baldio. Assim de summa vantagem, mas a que é facil a vigilancia pelos tapumes, em se opõem costumes antiquíssimos quanto que a divisão d’estes pelos d’estes povos, dispõe o artigo tercei- creadores torna este serviço compli- ro que elles só possam ali ser levados cadíssimo, quasi impossivel, e uma em condições de não causarem quais- fonte perene de prejuizos. Basta que quer (sic) dannos. A falta absoluta de um ou outro se descuide em tapar o raízes uteis a alimentação d’aquella seu lanço de bardo para que os ani- espécie de animais torna para eles maes invadam a propriedade parti- inútil a foça que não sendo impedida, cular e causem danos; em quanto que tornará o Baldio em breve absoluta- o proprietário tem duplo interresse mente improductivo, pela carencia de em impedir que os animaes invadam terra vegetal que a foça enlevece e as o seu predio e ninguém, como o pró- aguas arrastam ao mar. Com esta me- prio dono vella pelo que é seu. Sem dida os suinos nada perdem, porque estas alem d’outras as razões que nada lucravam fuçando; e as outras fundamentam o artigo nono e outros. especies lucram e com elas os crea- A necessidade de alguns abrigos em dores; porque o terremo não fuçado logares descampados, e a conveniên- produz erva e não é depauperado cia de obstruir alguns precipicios pelas aluviões. O artigo nono e outros onde tem perigado e podem perigar que lhe são relativos providenciam animais, justificam o artigo trinta e relativamente às paredes divisórias quatro. Não falo nas disposições pe- Hélio Nuno Santos Soares 181 naes, porque são a garantia das outras d’esta Ilha do Corvo e rochas adja- que, sem estas, se tornariam inúteis. centes. Não julgo este projecto exento de Art.º 2 defeitos antes pelo contrário. O tem- po porem os ensinará a conhecer e a Todos, e só os moradores d’esta ilha e corrigir, quando agora escapem ao Parochia, podem levar seus gados de judicioso exame e correções da Jun- qualquer espécie, a pastar no Baldio ta. Ainda assim creio ter concorrido da mesma. com o limitado de meus conhecimen- Art.º 3 tos para o bem dos habitantes d’esta Parochia e ilha a quem amo como O gado suíno só poderá pastar no filhos; e confio que a Junta aprovando Baldio munido de duas argolas me- o terá feito um importantíssimo ser- tállicas, mettidas na parte superior da viço a se administrados. Haverá um tromba ou focinho, que iniba de foçar. outro, que, ferido nos seus interes- Será punido o dono do animal que for ses e ainda mais no seu amor pró- encontrado sem ao menos uma das prio, fique descontente. Nenhuma lei referidas argolas. contenta a todos. Procurando o bem comum, fica-nos tranquilla a cons- Art.º 4 ciência e assim termos cumprido o O gado caprino só poderá pastar nas nosso dever. rochas, em condição de não invadir a propriedade particular. Ilha do Corvo dois de Setembro de mil oito centos noventa e seis. O Presi- Art.º 5 dente da Junta – Padre Jose Machado No Baldio ninguém poderá abrir Gregório de Mendonça – assignado. regos, vallas ou qualquer outra forma de aqueduto, nem tão pouco conser- var os existentes, para qualquer fim, mesmo o de conduzir agua a seus pre- Projecto de Projeto de Regulamento dios, sem previa licença da Junta; e, para a administração e uso do Baldio quando esta lhe seja concedida, será Parochial de Nossa Senhora dos Mila- sempre com condição de reconduzir a gres do Corvo. agua pelo seu prédio à mesma grota, Art.º 1 ribeira ou bacia hidraulica de que a Denomina-se “Baldio” a pastagem utilizar, e nunca a outra ou a prédio de logradoiro publico, sito nos altos algum particular. 182 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

Art.º 6 e setenta decímetros, medidos pelo As furnas, chiqueiros, ou quaisquer lado do logradoiro publico. outros abrigos existentes no Baldio, Art.º 10 são como este de uso comum, e As cancellas ou portaes que, do Bal- d’elles ninguém poderá apropriar-se. dio, dão ingresso para os prédios par- A Junta poderá conceder licenças in- ticulares, fazem parte dos bardos ou dividuaes para cada creador habituar paredes dos mesmos prédios; e, pelos os seus animaes suínos a um d’esses respectivos proprietarios, devem ser abrigos ou chiqueiros; mas esta licen- conservadas nas condições dos mes- ça não autorisa o concessionário a mos bardos ou paredes, e sob as mes- maltratar qualquer outro animal que mas penas. ao mesmo local se refugie. Art.º 11 Art.º 7 Nenhum proprietário poderá maltra- Ninguém poderá, sem previa licen- tar qualquer animal, que do Baldio, ça da Junta, fazer no Baldio, furna, chiqueiro ou qualquer outro abrigo lhe invada a sua propriedade. Poderá para uso exclusivo dos seus animaes, porem impor ao dono do animal as sob pena de perder as obras, alem da multas legaes e exigir o pagamento multa. do prejuízo recebido, se o seu bardo tiver a ultima designada no artigo Art.º 8 nono. No Baldio ninguém poderá abrir Art.º 12 minas, fossas ou fazer qualquer outra escavação, que modifique a superfí- Na secretaria da Junta haverá um cie do solo, para extração de areias, livro ou caderno para registo dos barros, pedras ou qualquer outra signaes, de que usam nos seus gados cousa, nem mesmo fazer vallas para os diversos creadores. auxilio dos tapumes, sem previa §único. O registo dos signaes será licença da Junta, sob pena de repor feito gratuitamente pelo secretario da o terreno no anterior estado, alem da Junta. multa. Art.º 13 Art.º 9 Nenhum creador poderá levar a pas- Todo o proprietario cujo predio con- tar no Baldio qualquer animal, sem finar com o Baldio, é obrigado a ele- que seja marcado com o signal de var e a conservar o bardo ou parede que usa, que previamente tenha feito divisoria, na sua altura de um metro registar, e pelo qual o possa conhecer. Hélio Nuno Santos Soares 183

§único. Morrendo qualquer individuo cada uma das quaes sob a direcção que tenha signal registado, os seus d’um de seus membros, denominado herdeiros devem participar à Junta, Cabo, terá a seu cuidado ou a conser- para ser averbado o nome do indi- vação de uma das seis cancellas que viduo para quem transita o signal de fecham o Baldio pelo lado do sul, e que elle usava em seus gados. Não impedem que, pelos caminhos, os o fazendo no praso de dois mezes animaes invadam ás propriedades poderá ser concedido a outro que o particulares, ou um lanço de bar- pessa ou reclame. do dos que não ficam a cuidado dos respectivos proprietarios. Art.º 14 Os signaes serão feitos nas orelhas Art.º 18 dos animaes, e perfeitamente confor- Nenhum creador, de qualquer idade me com os designados no registo. ou sexo, avisado pelo respectivo cabo, poderá recusar-se a concorrer Art.º 15 com os outros, em partes iguaes, para Ao gado vacum é dispensado o signal os reparos e conservação das refe- em razão da depreciação, que esse ridas cancellas ou bardos. defeito traria ao animal em regra, des- tinado a exportação. Art.º 19 Logo que sejam approvadas as pre- Art.º 16 sentes posturas a Junta dividirá as Todo o animal de qualquer outra es- esquadras e indicará a cada uma a pécie, que, no Baldio, for encontrado cancella ou bardo em que tem de cui- sem signal, só será entregue a seu dar, e nomeará os respectivos cabos. dono quando este prove com teste- Estes poderão ser de mettidos á von- munhas perante o chefe de zeladores, tade da Junta, ou a requerimento seu que o animal lhe pertence e tiver pago quando tenham servido dois annos, a multa de seis centos e vinte cinco e não lhes convenha continuar; mas reis. isto não obsta a que possa se nomeado §único. Não podendo provar-se a dois annos depois, e obrigado como quem pertence o animal ou sendo qual quer outro a exercer o cargo. abandonado, será considerado pro- Art.º 20 priedade nullius, arrematado e o seu produto constituirá receita da Junta. A Junta nomeará três Zeladores que vigiem pelos bardos, divididos para Art.º 17 esse fim em outras tantas porções, e Todos os creadores, com signal regis- compillam os proprietários a eleval‑os tado, serão devididos em esquadras, e a conserval-os na altura designada 184 Boletim do Núcleo Cultural da Horta no artigo nono; e façam alem disso Art.º 26 observar as posturas do presente São designados permanentemente código, participando á Junta as trans- para o ajuntamento e tosquia do gado gressões para serem punidas. lanígero a ultima segunda feira do Art.º 21 mez do Abril e a altura do mez de Setembro. O Zelador ou Cabo que foi negligente § único. Se por causa do mau tempo, no cumprimento de seus deveres, será não for possível effectuar os ajunta- demitido, e punido com as multas mentos ou tosquias nos dias designa- que, por sua negligencia ou descuido, dos n’este artigo, terão estes logar não haverem sido impostas. nos primeiros dias de bom tempo que Art.º 22 imediatamente que se lhes seguirem. Nenhum creador do sexo masculino, Art.º 27 e valido, de mais de vinte e um an- Todo o creador com signal registado nos, e de menos de sessenta, poderá é obrigado a comparecer, sendo varão escusar-se dos cargos de Zelador ou valido, ou a fazer-se substituir, sendo Cabo, uma vez que não exerça outro invalido, ou do sexo feminino, por cargo gratuito, e tenha sido exento individuo do sexo masculino, valido, dois anos entre cada dois de serviço. e maior de doze annos, no sitio dos Art.º 23 Lagos e nos dias designados para o ajuntamento e tosquia do gado laní- Um dos três Zeladores será denomi- gero, pelas seis horas da manhã; e a nado = Chefe de Zeladores = e incum- ajudar sob a direcção do Zelador para bido em especial de presidir ao ajun- esse fim commissionado ao referido tamento do gado nos dias de tosquia, ajuntamento. e de averiguar se os creadores compa- recerem ou se fazem representar para Art.º 28 o mesmo ajuntamento. O creador que depois de comparecer aos Lagos, se retirar ou não concorrer Art.º 24 com os outros para o ajuntamento do O gado lanígero que foi apascentado gado, considera-se como não tendo no Baldio, será tosquiado nos dias comparecido e incorrer as mesmas para esse fim designados pela Junta. penas. Art.º 25 Art.º 29 No sitio dos Lagos há um recinto ou Nenhum creador poderá tosquiar rez curral, onde se reunirá o gado laní- sua, pastoriada no Baldio ante do dia gero para as competentes tosquias. designado para o ajuntamento geral. Hélio Nuno Santos Soares 185

Art.º 30 Art.º 35 Todo creador que da má fé, ou em É prohibido danificar os bardos ou rabisco, tosquiar rez que não seja sua, cancellas que fecham o Baldio ou será obrigado a restituir em do em que n’elle encravados, o separam dos dobro a lã ao dono do animal alem da prédios particulares, ou abrir n’elles respectiva multa. buracos para a passagem de animaes. Art.º 31 Art.º 36 Nos mesmos dias de tosquia ninguém Será mandado tapar o buraco exis- poderá apoderar-se de qualquer ani- tente aos Lagos para a sahida dos mal, mesmo seu, antes que todo o suínos, e, do Baldio, não haverá outra gado tenha dado entrada no curral, e sahida para a via publica, alem das seja autorizada a tiragem pelo Zelador cancellas acima mencionadas. Rea- respectivo. brir o buraco é violar o bardo. Art.º 32 Art.º 37 É prohibido assignar animal alheio É licito aos habitantes d’esta fregue- ou contra assignal-o. O que praticar sia e ilha cortar no Baldio e utilizar tal crime, alem da multa respectiva em proveito próprio, os juncos, fetos, será condenado em dez dias de prisão silvas e quaisquer outros espécies de pela primeira vez e o dobro na reinci- mandas que n’ele se desenvolvam, e dência. também os escrementos dos animais. Art.º 33 Art.º 38 É prohibido sujar a agua ou por qual- A ninguém é licito lançar fogo ou por quer modo danificar as fontes, lagos, qualquer modo danificar as mondas lagoas, ou poços existentes no Bal- ou escrementos que qualquer parti- dio, ou que venham a existir ou a cular haja colligido no Baldio para construir-se. seu uso. Art.º 34 Art.º 39 A Junta poderá exigir de todos os É licito a qualquer habitante d’esta creadores até dois dias de trabalho em ilha apanhar lenha nas rochas do cada anno para levantamento de abri- Baldio, e mesmo fazer carvão, uma gos e extinção de precipicios ou loga- vez que torne as necessárias provi- res de perigo commum aos animaes dencias para que o fogo não queime que pastem no Baldio. as lenhas que não forem utilizadas. 186 Boletim do Núcleo Cultural da Horta

Art.º 40 Art.º 45 É prohibido lançar fogo ou por qual- Serão punidas com a multa de mil quer modo danificar os arvoredos duzentos e cincoenta reis as trans- existentes nas rochas que fazem parte gressões dos artigos 6.º, 7.º, 8.º, 11.º, do Baldio. 30.º, 35.º, 36.º, e 43.º Art.º 41 Art.º 46 Nenhum proprietário poderá demolir Serão punidas com a multa de seis a parede do seu prédio confinante centos e vinte cinco reis as transgres- com o Baldio, modifical-a desde a sões dos artigos 3.º, 4.º, 13.º, 14.º, 18.º, base ou mesmo abandonar o prédio 27.º, 28.º, 29.º, 31.º e 34.º para livrar-se do encargo de tapar o Art.º 47 bardo, sem que o tenha participado à Junta, para que esta fiscalize se a As reincidências serão punidos em parede é ou não levantar no mesmo dobro. local, vigie pelos novos confinantes Art.º 48 ou de o alinhamento sendo neces- Metade das multas pertencerá ao sário. Zelador ou Cabo que as impuser, isto Art.º 42 é, que denuncia as respectivas trans- A ninguém é licito apropriar-se de gressões; a outra metade constitue qualquer porção do Baldio, por mí- receita da Junta. nima que seja. A transgressão d’este Art.º 49 artigo será punido, alem da multa, As disposições d’este código em nada com dez dias de prisão, reparação dos prejudicam a aplicações d’outra lei, dannos causados e reposição do ter- a que os factos n’elle mencionados reno no antigo estado. estejam sujeitos. Art.º 43 Art.º 50 É prohibido maltratar, perseguir, Este código começará a vigorar oito espantar ou provocar a luctas os ani- dias depois de notificada a esta Junta maes que pastem no Baldio. a sua aprovação, ou depois que tenha Art.º 44 decorrido o praso de sessenta dias, Serão punidas com a multa de dois contados da data do recebido do mes- mil e quinhentos reis as transgressões mo na Administração do Concelho. dos artigos, 2.º, 5.º, 9.º, 10.º, 22.º, 32.º, § único. É concebido a praso de três 33.º, 38.º, 40.º, 41.º e 42.º. mezes, depois da publicação d’este Hélio Nuno Santos Soares 187

Codigo, para os diversos proprietá- Fui presente o Regedor rios elevarem, os seus bardos a altura António Pedro Alves designada no artigo nono, e só depois d’este lapso de tempo será o mesmo O secretario da Junta artigo nono levado execução. António Jose da Rocha

Ilha do Corvo 2 de Setembro de 1896 Pe. José Machado Gregório d’ Men- Visto o art.º 176, n.º 23 do Codigo donça Administrativo e usando da faculdade Presidente da Junta que me confere o n.º 7 do art.º 252 do mesmo Codigo, approvo o presente Os Vogaes Projeto de Regulamento passa a admi- Joaquim Pedro Nunes nistração do Baldio da parochia de Joaquim Jose das Pedras Nossa Senhora dos Milagres