O Baldio Da Ilha Do Corvo E O Seu Regulamento De 1896
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O BALDIO DA ILHA DO CORVO E O SEU REGULAMENTO DE 1896 HÉLIO NUNO SANTOS SOARES Soares, H. N. S.(2013), O baldio da ilha do Corvo e o seu Regulamento de 1896. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 22: 155-187. Sumário: A problemática dos baldios foi suscitada pelo liberalismo e manteve-se durante o século XX. Este trabalho tem por base o projeto de Regulamento do Baldio da ilha do Corvo de 1896. Procuramos contribuir para a compreensão do modo de exploração do baldio, nos finais do século XIX e princípio do século XX, bem como a sua influência na organização de uma comunidade isolada, numa ilha esquecida pelos poderes centrais. Soares, H. N. S. (2013), The Common Land of Corvo and its Rules of 1896. Boletim do Núcleo Cultural da Horta, 22: 155-187. Summary: The problem of the commons was raised by liberalism and remained during the twentieth century. This work is based on the draft Regulation of the Common land Corvo, 1896. We seek to contribute to the understanding of the mode of operation of the fallow in the late nineteenth and early twentieth century, and their influence on the organization of an isolated community on an island forgotten by the central authorities. Hélio Nuno Santos Soares – [email protected] Palavras Chave: Baldio, ovelhas, tosquia, dia da lã, suínos, caprinos. Key-words: Common land/fallow, sheep shearing, the day of wool, pigs, goats. 1. O presente trabalho visa contri- XIX. Este trabalho tem por base as buir para um melhor conhecimento informações contidas no projeto de da importância e fruição do baldio Regulamento do baldio, que se trans- do Corvo na sobrevivência dos cor- creve em anexo, elaborado em 2 de vinos, numa ilha agreste e esquecida setembro de 1896 pelo Presidente da pelos poderes centrais e regionais, Junta de Paróquia, P.e José Gregório particularmente no decurso do século de Mendonça. O Regulamento é um 156 Boletim do Núcleo Cultural da Horta desconhecido legado aos corvinos e fizeram com que aagricultura portu- de todos os que se interessam pela guesa passasse por diferentes ciclos historiografia desta pequena comu- de desenvolvimento e estagnação, ao nidade, e dos Açores em geral, e é nível nacional e regional. Assim, as com o objectivo de o dar a conhecer políticas liberais tendiam a aplicar o que apresentamos a exposição que capitalismo à agricultura. Para imple- se segue. mentar este novo paradigma econó- mico, era necessário suprimir todas 2. O século XIX caracterizou-se por as formas de expressão do coletivis- profundas mudanças na ocupação da mo agrário. O resultado, não delibe- terra1 e na exploração2 da mesma em rado, das políticas liberais foi o sur- Portugal. O liberalismo implementou gimento de uma burguesia fundiária uma série de reformas que visavam a em detrimento de uma redistribuição demolição do Antigo Regime, o qual equitativa de terras. tinha a sua base económica na posse Na política agrária liberal encontra- da terra e sua exploração. Estas refor- mos a questão dos baldios3, que, para mas, bem como o contexto político e o liberalismo, era uma das razões económico nacional e3internacional, para o atraso da agricultura nacional4. 1 Cf. FONSECA, Helder Adegar, “A ocupação Manuel, Os Baldios, Lisboa, Caminho, da Terra”, in LAINS, Pedro e SILVA, Álvaro 1987, pp. 17-18. Ferreira da (orgs.), História Económica de 4 Sobre esta temática consultar ABEL, Marí- Portugal – 1700-2000, Vol. II – O Século XIX, lia, “Os baldios portugueses em período de Imprensa de Ciências Sociais, 2004-2005, transição (1820-1910)”, in Revista de His- pp. 83-118. tória, Porto, 1988, pp. 339-343. A autora 2 MARTINS, Conceição Andrade, “A Agri- apresenta-nos a problemática dos baldios no cultura”, in LAINS, Pedro e SILVA, Álvaro liberalismo, o qual considerava os baldios Ferreira da (orgs.), História Económica de como o maior entrave às políticas liberais Portugal – 1700-2000, Vol. II – O Século XIX, na agricultura e obstáculo à libertação da Imprensa de Ciências Sociais, 2004-2005, propriedade particular. O resultado da polí- pp. 219-257. tica liberal foi o surgimento de conflitos 3 Estes bens podiam ser de bens: baldios – entre as populações e o Estado, num claro terrenos de uso comum pertença de todos os clima de conflituosidade e injustiça, dado moradores do termo; maninhos – terrenos que os latifundiários aumentaram as suas incultos de propriedade particular, usados propriedades devido à apropriação dos em comum por um grupo de moradores, baldios. No sul proporcionou o aumento mediante foral, arrendamento ou empraza- de latifúndios, no norte possibilitou a flo- mento estabelecido por um senhorio; Bens restação dos mesmos. Embora se tenham do concelho propriedade privada admi- perseverado alguns baldios devido à ma- nistrativa do concelho. Cf. RODRIGUES, nutenção da pequena e média propriedade. Hélio Nuno Santos Soares 157 A reforma agrária liberal contemplou maras procuraram aproveitar econo- a divisão e apropriação particular des- micamente os baldios e que também a tas áreas, a abolição do compáscuo, coroa tentou actuar sobre a realidade a extinção da propriedade vincular, a fundiária insular, aproveitando os in- venda de bens nacionais e a desamor- cultos para o aumento da produtivida- tização institucional5. Estas políticas de agrícola7. Assim também sucedeu ditaram o fim das diferentes expres- no Corvo e, para compreendermos a sões de organização comunitária ou necessidade de elaboração do Projeto coletiva da propriedade, cuja caracte- de Regulamento, é necessário perce- rística principal era a sua não perso- ber a importância do baldio para a nalização, como diz Marília Abel6. subsistência e vivência dos corvinos Nos Açores, a importância dos bal- durante o século XIX e princípios do dios como terreno de pasto comum século XX. esteve presente e a própria legislação A ilha foi propriedade de diversos se- régia (lei de 12 de Março de 1772) nhores ao longo dos tempos: Infante confirmou para as ilhas que, tal como D. Henrique8; os duques de Bragan- no reino, os baldios eram um direito ça; os Teives; os Teles de Menezes; dos povos. Porém, desde meados do os Fonsecas9; os Mascarenhas10; a século XVIII verificamos que as câ- para a pastorícia; d) formas específicas de No plano administrativo dos baldios, esta administração desses bens e terrenos. Cf. responsabilidade foi atribuída às Câmaras RODRIGUES, Manuel, Os Baldios, Lisboa, e Juntas de Paróquia, as quais domina- Caminho, 1987, p. 22. das por caciques locais autofavoreciam- 7 Cf. RODRIGUES, José Damião, “Baldios”, se através do arrendamento e alienação. in Enciclopédia Açoriana, Direcção Regio- 5 FONSECA, Helder Adegar, “A ocupação da nal da Cultura. <URL: http://www.cultura Terra”, in LAINS, Pedro e SILVA, Álvaro cores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default. Ferreira da (orgs.), História Económica de aspx?id=5514 >. Portugal – 1700-2000, Vol. II – O Século XIX, 8 Cf. Carta de doação ao Infante D. Henri- Imprensa de Ciências Sociais, 2004-2005, que por D. Afonso V, em 1455, in ARRUDA, p. 107. Manuel Monteiro Velho, Colecção de docu- 6 Cf. ABEL, Marília, “Os baldios portugueses mentos relativos ao descobrimento e povoa- em período de transição (1820-1910)”, in mento dos Açores, 3.ª edição, Ponta Del- Revista de História, Porto, 1988, p. 339. As gada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, formas de vida comunitária, segundo Jorge 1989, p. 125. Dias, caracterizam-se por: a) a posse 9 Ibidem, p. 211. Cf. Carta de confirmação coletiva de grandes zonas do território por D. Manuel I em 1504. Cf. Arquivo dos nacional; b) a partilha equitativa de bens; Açores, Vol. I, 1980, pp. 25-28. c) formas específicas de aproveitamento e 10 O 1.º Conde de Santa Cruz foi D. Francisco cultura destas zonas, com especial destaque de Mascarenhas, para a sua biografia con- 158 Boletim do Núcleo Cultural da Horta Coroa – por incorporação após o pro- to desta pequena porção de terra foi cesso do Marquês de Pombal contra tardio, realizando-se por três tentati- esta família. O último senhor da ilha vas, sendo a última a efetiva e defi- foi Pedro José Caupers, em 181411, e nitiva, já em meados do século XVI, seus descendentes até à extinção do sob a posse da família Mascarenhas, aforamento em 185512. O povoamen- condes de Santa Cruz e, mais tarde, duques de Aveiro. Mas não é objetivo sultar LEITE, José Guilherme Reis, “D. Fran- deste artigo dissecar todas as ques- cisco de Mascarenhas (conde da Vila da tões, já amplamente estudadas, acerca Horta e 1.º conde de Santa Cruz), in Enci- do descobrimento e povoamento da clopédia Açoriana, Direcção Regional da ilha do Corvo13. Cultura. <URL:http://www.culturacores.azores. gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=8112>. 11 O Príncipe Regente D. João concede, por 13 Cf. COSTA, Susana Goulart da, Açores: alvará de 3 dezembro de 1814, a mercê das Nove Ilhas, Uma História, Ponta Delgada, terras das Flores e Corvo com as respetivas Presidência do Governo dos Açores, Direção obrigações e direitos, sendo a escritura de Regional da Cultura e Centro de Conheci- aforamento por três vidas passada a Pedro mento dos Açores, 2008, pp. 32-40; GOMES, José Caupers, moço do guarda-roupa do Francisco, Flores e Corvo – o «outro» ar- príncipe, a 6 de março de 1815. Cf. MACEDO quipélago, Câmara Municipal das Lajes das António da Silveira, História das Quatro Flores, 1989; Idem, A Ilha das Flores: da Ilha que formam o Distrito da Horta, 2.ª descoberta à actualidade – subsídios para edição fac-similada, Direção Regional dos a sua história, 2.ª edição, Lajes das Flores, Assuntos Culturais, 1981, p. 567. Para uma Câmara Municipal das Lajes das Flores, breve biografia de Pedro José Caupers, ver 2003; LEITE, José Guilherme Reis, O Povoa- LEITE, José Guilherme Reis, “Caupers, José mento do Corvo, Academia da Marinha, Pedro”, in Enciclopédia Açoriana, Direcção Lisboa, 2002; MENESES, Avelino de Freitas, Regional da Cultura.