Hélio Oiticica para além dos mitos

1 Hélio Oiticica para além dos mitos

Seminário Internacional Centro Muninipal de Artes Hélio Oiticica 4-7 julho 2016

Organizadores Barbara Szaniecki Giuseppe Cocco Izabela Pucu (em colaboração)

2 3 Apresentação

Referência de arte contemporânea na rede de equipamentos da Prefeitura do Rio, o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica comemora seus 20 anos em 2016, consolidando-se como um espaço cultural que estimula a reflexão acerca das artes visuais por meio de sua programação variada. A come- moração vem no momento em que o Rio de Janeiro se tornou a primeira cidade da América do Sul a receber os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, e a Secretaria Municipal de Cultura (SMC) reafirmou como uma de suas principais missões a valorização das mais variadas expressões artísticas e manifestações culturais presentes na cidade, colocando a sua produção criativa sob os olhos do mundo.

Por isso, é com muito orgulho que a SMC apoia o Seminário Internacional “Hélio Oiticica: para além dos mitos”, que discute o legado do pintor, escultor e artista plástico carioca que dá nome ao centro de arte contemporânea da Rua Luís de Camões. Mesas-redondas, conferências e debates reúnem pesquisadores e pensadores que se debruçaram sobre a sua obra.

Constituído como um marco para a criação do corredor cultural do Cen- tro Histórico do Rio de Janeiro, o Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO) expõe em suas galerias trabalhos de artistas nacionais e estran- geiros, dá espaço para a discussão de temas pertinentes para a sociedade contemporânea e valoriza o diálogo entre diferentes vertentes da arte, indo ao encontro de uma das principais missões da SMC, que é promover um acesso à cultura cada vez mais democratizado e com um olhar atento para o público carioca.

Por acreditar e fomentar a cultura sob a forma das mais diversas expres- sões e linguagens, a SMC se alegra em apoiar este seminário, que integra a série de eventos comemorativos pelos 20 anos do CMAHO, e deseja que cariocas e visitantes se apropriem ainda mais deste espaço.

Junior Perim Secretário Municipal de Cultura do Rio de Janeiro Introdução comportamento-contexto e a reformulação dos problemas locais para a constituição urgente de uma linguagem-Brasil ou face-Brasil, antropofágica Para comemorar os 20 anos do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, o como ele próprio definiria, cujos valores se situariam no âmbito univer- Seminário Internacional Hélio Oiticica: Para Além dos Mitos reuniu críticos, sal. Neste eixo, foi discutida a condição e a produção cultural brasileira, cientistas sociais, pesquisadores, designers, poetas e artistas ao longo atravessadas por questões e lutas de gênero e étnicas. A mesa trouxe as de quatro dias. O seminário teve como foco principal discutir o legado do contribuições de Barbara Szaniecki, Cíntia Guedes, Gonzalo Aguilar e Paola artista Hélio Oiticica (1937-1980) a partir e para além do campo da arte, Berestein Jacques e, à noite, a conferência de Celso Favaretto teve como tendo em vista a diversidade de questões presente nos seus escritos e em debatedor Luiz Camillo Osório. seus trabalhos de arte, entendidos como partes de uma mesma prática artístico-intelectual. Oiticica é um autor-artista revisto com frequência O tema da quarta-feira, 6 de julho, foi “Área aberta ao mito. O mito da cria- nas últimas décadas, no entanto, são poucas as chances de reunião de ção”. Se a modernidade foi moldada pelo ideal da criação como atributo pesquisadores oriundos de diversos campos de pensamento e práticas do artista, acentuando-se em direção ao individualismo, a ideia de criação assim como interessados em novas abordagens e abrangências da obra do na concepção de Oiticica é posta radicalmente em jogo. Muitos de seus artista. Composto por mesas-redondas e conferências, todas seguidas por trabalhos-proposições constituem um simples gesto que aponta a poesia debate com o público, o seminário se estruturou em quatro eixos temáticos que subjaz à criação anônima, presente no mundo como prática coletiva. baseados em quatro proposições/sentenças/obras desse importante artista Se a criação é uma experiência de coprodução do mundo, do comum, de que, obviamente, guardam estreita relação entre si. novas formas de vida, foi um dos questionamentos desenvolvidos neste eixo que se debruçou sobre a produção textual de Oiticica e se desdobrou nas Os trabalhos do seminário tiveram início na segunda-feira, 4 de julho, com diversas práticas presentes. A mesa trouxe Ana Kiffer, André Vallias, Rafael o tema “Seja marginal, seja herói. O mito da marginalidade”. A expressão Zacca e Ricardo Basbaum, com mediação de Patrick Pessoa, enquanto a “Seja marginal, seja herói”, estampada numa bandeira em 1968, no auge da conferência de Peter Pál Pelbart contou com Tania Rivera como debatedora. ditadura militar, indicava que Oiticica assumia na sua trajetória a dimensão ético-social como sentido crítico, refletindo em tudo que ele fez posterior- O seminário se encerrou nas atividades de quinta, 7 de julho, com o tema mente. O herói popular evocado poeticamente contra a opressão policial nos “Museu é o mundo. O mito da instituição”. Se museu é o mundo, é a ex- permite, neste eixo, abordar a condição de exclusão dos pobres, a relação periência cotidiana, como diria Oiticica, neste eixo foram discutidas as da favela com a polícia e o tráfico, e também com o “asfalto”, paradoxo possibilidades de extravasamento da experiência da arte para o mundo inerente à cidade do Rio de Janeiro. Já no campo cultural, a “Marginália” e no mundo, o que nos convoca a pensar outras instituições possíveis a abrangia desde o cinema aos jornais e revistas, da música às artes visuais, partir dessa permeabilidade entre arte e vida. Tomando esse movimento de bem como a chamada contracultura e os projetos de descentralização da renovação das instituições como algo para além da arte, esses processos produção para além dos principais centros econômicos do país. O tema foi na sociedade em geral foram discutidos com as contribuições de Izabela desenvolvido na conferência de Giuseppe Cocco, com Izabela Pucu como Pucu, Lisette Lagnado, Luiz Guilherme Vergara e Max Jorge Hinderer Cruz debatedora e prosseguiu na mesa com Eleonora Fabião, Frederico Coelho, mediada por Mario Chagas e na conferência de Jesús Maria Carrillo Castillo Gerardo Silva e Luiz Eduardo Soares com mediação de Bruno Cava. com Giuseppe Cocco como debatedor.

A terça-feira, 5 de julho, trouxe o tema “Tropicália. A pureza é um mito”. Esperamos que publicação dos textos dos autores faça o seminário seguir Em 1967, Oiticica apresentava seu penetrável Tropicália, um labirinto cheio provocando. de referências à cultura popular que colocava em crise o “culto do bom gosto”. Tomando o experimental como posicionamento crítico, Oiticica Giuseppe Cocco, Barbara Szaniecki e Izabela Pucu (em colaboração) propunha a transformação radical dos conceitos-valores vigentes e do Organizadores sessão 1: Seja marginal, seja herói. sessão 3: Área aberta ao mito. O mito da criação. 174 O mito da marginalidade. 10 Tania Rivera Bruno Cava Involuções sobre escrita, corpos e cadernos 178 MOVIMENTO HO 14 Ana Kiffer Eleonora Fabião

Hélio’cubrações em torno do diagrama 196 Heróis, anti-heróis e anônimos: marginalidade Andre Vallias e extermínio em um texto de Hélio Oiticica 34 Frederico Coelho

Éden é o mundo. Só têm razão de existir os inventores 204 Um boi com cara de cavalo. O lugar de herói do ajudante Rafael Zacca de pedreiro Amarildo Dias de Souza, o Amarildo 42 Gerardo Silva

Hélio Oiticica: exercícios de autoconstrução Hélio Oiticica e a intervenção tropicalista como de si como artista 212 contraponto à memória recalcada da dualidade ontológica [antropofagia, dialogia criativa, abertura participativa Ricardo Basbaum e expansão do repertório] 56 mudar O valor das coisas 232 Luiz Eduardo Soares Peter Pál Pelbart

Hélio Oiticica depois de junho de 2013: na trama da terra que tremeu 78 sessão 4: Museu é o mundo. O mito da instituição. 248 Giuseppe Cocco Mário Chagas Fazer instituição como crítica 252 sessão 2: Tropicália. A pureza é um mito. 104 Izabela Pucu Luis Camillo Osorio Instituição, programa in progress? 270 Penetrável Rio de Janeiro: seja gari, seja herói 108 Lisette Lagnado Barbara Szanieki Utopia Tripartida Brasileira = Terra + Sociedade + Luta Hélio Oiticica, Lygia Clark e 284 E se Hélio fosse hoje? Ou, como a favela chega ao museu 122 Cíntia Guedes Luiz Guilherme Vergara

Hélio Oiticica e o under-underground 136 TROPICAMP: pré- e pós-Tropicália ao mesmo tempo. Algumas notas sobre a noção de Tropicamp (1971) Gonzalo Aguilar de Hélio Oiticica 302 tropicália brasília: a pureza é um mito 146 Max Jorge Hinderer Cruz Paola Berenstein Tropicália: objetivação de uma imagem brasileira 162 Celso Favaretto A instituição em xeque: trabalhando nas ruínas do museu 320 Jesus Carrillo sessão 1 Seja marginal, seja herói. O mito da marginalidade.

Marginal é criação

Bruno Cava

Das cinquenta cidades com maior taxa de homicídios do mundo, vinte e uma são brasileiras, bem à frente do segundo lugar, a Venezuela, com nove.1 A grande maioria das vítimas são homens jovens, negros, morado- res de bairros mais pobres das grandes metrópoles.2 Os territórios são controlados por um agregado de gangues, milícias e máfias, numa zona de indiscernibilidade entre lícito e ilícito, estado e não estado, polícia e bandido. No subterrâneo dessa realidade de violência e morte, prospera uma economia de ilegalidades cujos tentáculos se estendem às eleições, ao sistema financeiro, ao comércio internacional. Hoje, uma das vanguardas mais fortes da América do Sul, vinda dos Andes, quer repensar o mundo segundo o paradigma cosmopolítico do bem viver. Diante da brutalidade dos fatos, contudo, viver já é desafio o bastante por aqui.

1 Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_cities_by_murder_rate 2 Fonte: http://www.mapadaviolencia.org.br/ O paradoxo consiste na constatação de que os mesmos territórios temer os meios materiais com os quais intervimos no mundo sensível em atravessados pela tanatopolítica são aqueles que pulsam de uma energia que somos. Enfrentar os dilemas entrando neles. aparentemente infinita de recriação. A potência na pobreza é legião, fonte Como não sentir a violência que nos cerca? E a potência transformadora inesgotável de empreendimentos sociais, culturas de resistência, estéticas que ela, de maneira desfigurada, exprime como substrato? A perplexidade e devires minoritários que dão carne e vida às cidades. Múltiplas iniciativas com que recebemos a interpelação “Seja marginal, seja herói” até hoje de mercado e estado se misturam e coexistem nessas usinas biopolíticas, comprova como Hélio não deixou de ser-nos contemporâneo. Essa é uma segundo uma complexa trama de sujeitos, capturas e liberdades. Nenhuma delícia, porque nos preenche de possibilidades, mas também o nosso dicotomia fará sentido nessas condições, tudo é estratégia, limiar, nuance. grande drama. Não é para principiantes. Com a inscrição dos territórios pobres no regime flexível do capitalismo, parte do que sob o malho da pacificação militar, as suas populações foram financeirizadas e incluídas nos circuitos de pro- Bruno Cava Graduado em Direito pela UERJ e em Engenharia pelo ITA, pós-gra- dução, circulação e consumo de bens e serviços, com grande impacto na duado em Gestão Pública e mestre em Filosofia do Direito pela Uerj, atualmente microeconomia local e na macroeconomia da cidade e do país. pesquisa movimentos, lutas urbanas e processos criativos. É nessa zona paradoxal, interzona onde reinam os contrastes entre o mínimo e o máximo existenciais, que um programa marginal, um “programa in progress” – para falar com Hélio – pode voltar a funcionar. A marginalidade percorreu, de uma forma ou de outra, o inteiro percurso de Hélio. No final dos anos 1950 e começo dos 60, como margem construtivista tensionada até as bordas do real, como mais um cúmplice do sequestro brasileiro do modernismo, isto é, a antropofagia. Ao redor de 1968, como dupla recusa: de um lado, do militantismo pastoral das esquerdas inspiradas pela saga das montanhas cubanas; de outro, o degringolamento do momento tro- picalista passados os primeiros fogos. Nos anos 1970, a marginalidade ao próprio processo histórico, marginália exasperada, povoada de malditos que, exilados e renegados, precisam reinventar a própria ambiência em que podem existir e criar. Diferentes sentidos de marginal que se unem na trajetória em zigue-zague do artista e escritor. Consequência das inquietações formais, “antiartísticas” e pessoais, Hélio se relaciona com os moradores e a realidade da favela na fase dos parangolés da Mangueira, quando conhece marginais em carne e osso. Em 1968, estampa os dizeres na bandeira: “Seja marginal, seja herói”. A força da intervenção até hoje impressiona e mobiliza debates, nem tanto pelo gesto transgressivo por si, como por revolver fundo a ambivalência do banditismo social e da violência urbana: brutal e transformador, cri- minoso e mártir, maldito e herói, – tudo ao mesmo tempo e em diferentes graus que se sobrepõem. Graças ao artista, o que passaria batido como noticiário de polícia vira um acontecimento, e vai deflagrar um programa comum para um tempo de pressões cada vez mais insuportáveis. Essa é uma chave persistente em suas obras, intervenções e ambientações: mexer com a base inconsciente da vida comum para funcionar a partir de um nível primário que nos faz sentir antes de poder ver e dizer algo. Não

12 13 MOVIMENTO HO

Eleonora Fabião Performer, teórica da performance e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Criar não é a tarefa do artista. Sua tarefa é a de mudar o valor das coisas. Hélio Oiticica. Experimentar o experimental, 1972

Boa tarde a todos os presentes e aos companheiros de mesa. Agradeço aos organizadores deste seminário – Bárbara Szaniecki, Giuseppe Cocco e Izabela Pucu – o convite para apresentar aqui trabalhos que venho reali- zando nas ruas do Rio de Janeiro e de muitas outras cidades desde 2008. Contar aqui sobre o que venho praticando por aí, desde que decidi sair da caixa-preta do teatro e do cubo branco da galeria para agir na rua. Ou seja, quando decidi trabalhar num campo marcadamente misturado onde regulamentação e imprevisibilidade reinam juntas e delirantes. Esse convite me intrigou. Demorei a responder. Conversei diretamente com quem me fez a proposta. Por que, num seminário sobre Hélio Oiticica, apresentar as Ações? As Ações Cariocas, as Berlinenses, as Fortalezenses, as Bogotanas, as Rio-Pretenses, as Andreenses? E as tantas outras ações da Série Precários, as Manchas, os Quase nada, sempre tudo, a Série Coisas Que Precisam Ser Feitas [SCQPSF], et cetera, et cetera, et cetera? Por quê? Perguntei, sigo me perguntando, e por isso decidi que esta fala será um compartilhamento dessa pergunta com vocês.

15 Penso que o convite foi feito não porque as Ações tenham uma relação mais, nem menos. Nada mais, nada menos. Assim, o que convencionalmente intencional ou direta com o trabalho do Hélio Oiticica, mas porque as Ações tem pequeno valor passará a ter grande valor; e o que supostamente tem pensam e agem em espaços abertos por HO – por HO, seus parceiros e os grande valor passará a ter pequeno valor. Mas não apenas isso – inverter tantos outros complicadores culturais que, antes de nós, se perguntaram valores estabelecidos é dobra importante mas não suficiente. A tarefa do sobre a vida da arte e a arte da vida. Ou seja, talvez o convite para estar artista é buscar uma nova objetividade. E, consoante, novos modos de aqui tenha sido feito porque as Ações agem no influxo do que chamarei de subjetivação, de agenciamento, de existência pessoal e coletiva. A escala MOVIMENTO HO. Pois fato é que para além das criações propriamente ditas da obra é existencial e social. O que está em questão é a transvaloração – dos Metaesquemas, dos Bilaterias, dos Relevos espaciais, Penetráveis, de valores, a herança nietzschiana – o desinteresse por valores absolutos, Bólides, Parangolés, Tropicália, Éden, Cosmococa, Crelazer, Aspiro ao por crenças e morais absolutas, seja a metafísica platônica, a moral cristã grande labirinto, Programa ambiental, Suprassensorial, Esquema geral da ou o totalitarismo mercado-capital. Transvaloração de valores que se faz nova objetividade, Delirium ambulatorium, et cetera, et cetera, et cetera por meio do reconhecimento da historicidade e da relatividade de valores –, para além da obra propriamente dita, de suas fases e do conjunto das tidos como universais, da coragem e da impetuosidade do ultrapassamento, fases, da trajetória como um todo, Hélio Oiticica fez MOVIMENTO. e da valorização do corpo e da imanência para a potencialização da vida. MOVIMENTO HO: ‘H’ que são duas paralelas ao infinito com curta pon- “Mudar o valor das coisas”. Mudar a coisa do valor. Mudar o valor do valor. te perpendicular ligando-as pelo quase-meio; ‘O’ que é círculo, buraco, HO dá a ver e dá a sentir, através dos projetos que realiza e dos mo- possibilidade de mergulho, outro tipo de ponte. HO e o Mergulho do cor- dos como vive a vida, um corpo mutante de valores que não para de se po – os múltiplos corpos dos corpos, os buracos e as pontes infinitas. As refazer (e de propor refazimento aos que vivenciem sua obra). Vejam, não conexões, os materiais, texturas, textos, cartas, telefonemas, labirintos, se trata aqui do inevitável transformar-se inerente ao corpo e à vida, mas neologismos, conceitos, gente, muita gente, Rio de Janeiro, Nova York, de um projeto de potencialização estético-crítica que envolve artista e Londres, Mangueira, museus, galerias, terrenos baldios, ruas, Ninhos. O público, e conjuga as dimensões corporal e social. HO é corpo-classe, objeto, o problema do objeto, o não objeto, o quasi-objeto, o probjeto, o corpo-gênero, corpo-raça, corpo-nascido-no-ano-de-1937, na cidade do transobjeto, o objetoato, o objeto relacional, o parcial, o aberto. O entre- Rio de Janeiro, Brasil. Tem peso, cheiro, tamanho e cor. Tem meio social, -objetos. E tudo, menos o objeto: a “coisa”. A coisa toda; toda a coisa. A densidade política, massa histórica e vontade construtiva. E nesse corpo, verve do HO – seu brio, seu inconformismo e mais os brancos, amarelos, e, por conseguinte, no corpus dessa obra, movimento é fator decisivo – HO laranjas e vermelhos-luz. O timing da sua bossa, da sua ginga, do seu passo, faz seu trabalho movendo-se entre classes, raças, gêneros, lugares. Entre do seu passe. Tantos e tudos desencadeando movimentos que reverberam o morro e o asfalto, a filosofia e o samba, entre ricos e pobres, corpos e até aqui, até agora, tamanha a potência e a inteligência da coisa toda. sexualidades, norte e sul, entre continentes. Essa mobilidade – trânsito, Tamanha a energética conceitual, corporal e material da cosmocoisa que transitividade, transa, transe – é potência elementar. E mais, seu interesse segue se desdobrando prismática, política e sensória. pela participação do espectador – que ele nomeou em certo momento Uma obramovimento que lançou mão, como diz HO, de “tudo o que há “participador”3 – é consequência direta de sua participação em seu meio, de no mundo”, já que “tudo o que há no mundo poderá ser o meu material”.1 seu engajamento como artista propositor e pensador, de sua mobilização. Movimento suprarrigoroso de experimentar o experimental já que “criar Mobilização. Mobilização aqui é referente conceitual da maior importância não é a tarefa do artista. Sua tarefa é a de mudar o valor das coisas”.2 Nem – mobilizar, ou seja, pôr em movimento, ativar, motivar, impulsionar, a si mesmo, a outros, a materiais. E, igualmente, ser mobilizado pelas gentes, 1 Oiticica, Hélio. “Entrevista para a Cigarra por Marisa Alvarez de Lima (1966)”. In: En- matérias, lugares, circunstâncias. Em se tratando de MOVIMENTO HO o que contros Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 41. está em questão é uma poética e ética da mobilização para além de uma 2 Oiticica, Hélio. “Experimentar o experimental (1972)”. In: Encontros Hélio Oiticica. Op. categorização estilística como “arte participativa”. cit., p. 108. Nesse texto Oiticica se refere a Yoko Ono, outra complicadora cultural da maior relevância. Ono publicou em 1971 um texto intitulado “What is the relationship between the world and the artist?”, em que diz: “Os artistas não estão aqui para des- truir ou criar. Criar é algo tão simples e artless a fazer quanto destruir. […] O trabalho de um artista não é destruir, mas mudar o valor das coisas”. In: Yoko Ono One Woman 3 Oiticica, Hélio. “Anotações sobre o Parangolé”. In: Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Rio- Show 1960-1971. New York: MoMA, 2015, p. 215 (minha tradução). Arte, 1992, p. 93.

16 17 Quando perguntado: “Você é pelo indivíduo ou pela coletividade?”, você coexistem no mesmo espaço-tempo, mas porque formam umas às outras. respondeu: “Pelos dois: para mim não pode haver separação; são apenas Sobre as implicações políticas desse “materialismo vital” Bennett diz: “Por duas polaridades numa totalidade social.”4 Pois caro HO, estamos vivendo que advogar pela vitalidade da matéria? Porque me parece que a imagem hoje no Brasil uma crise política gravíssima e são muitas as manifestações de matéria morta instrumentalizável, assim como nossa fantasia destrutiva e ocupações acontecendo por todo o país. Temos debatido cotidianamente de conquista e consumo, alimenta a hubris humana [o descomedimento sobre modos de ação poético-políticos condizentes com a situação e a al- humano]. Isso se dá de modo a não nos deixar perceber (ver, escutar, tura de sua gravidade. Simultâneo ao corrente processo de autoavaliação e cheirar, saborear, sentir) uma gama mais ampla de poderes não humanos renovação da esquerda brasileira, crescem e se fortalecem os partidos de circulando por dentro e em torno dos corpos humanos”.5 O materialismo direita – não apenas no Brasil mas no mundo. Na chamada “aldeia-global”, vital seria, pois, um projeto de evidenciação da interligação sensório- regida por valores empresariais e pela lógica do capital, aumenta, em -social de todas as coisas, e de avaliação de suas dinâmicas e implicações velocidade assustadora, a intolerância, o fascismo, o terrorismo. Nesses políticas e ecológicas. tempos de totalitarismo mercado-capital a questão de fundo (e de frente) é: Outro pensador, o teórico da dança André Lepecki, articula os conceitos afinal, o que é política hoje?; de que trata?; onde, quando, quem faz?; como de “coisa” e “subjetividade”, e argumenta que em distintas peças contem- faz?; como queremos fazer? E, a par e passo, avança alarmante, e talvez porâneas o que está sendo performado é “a emancipação do dançarino irreversível, a crise ambiental. Pois nessa conjuntura te digo: somos muitos de sujeito à coisa”.6 Em “9 variações sobre coisas e performance”, Lepecki hoje implicados em dia a dia experimentalizado. Somos muitos, artistas e revisita um ponto de vista amplamente difundido e aceito – aquele que diz ativistas, experimentando experimentação, desmontando noções duras de que uma estratégia colonialista de base é transformar pessoas em coisas. “indivíduo” e de “comum” através de processos de singularização e coleti- O autor contra-argumenta propondo que “o colonialismo (e o capitalismo) vização (alguns mais elaborados, outros, menos, mas muitos buscando). transforma sujeitos menos em ‘coisa’ do que propriamente em mercadorias: Estamos trabalhando por mudanças efetivas de valores para desmontar a objetos com valor de uso e valor de troca destinados ao descarte”.7 E sugere: lógica do capital e da violência, ampliando o imaginário político e propondo novos modos de ação. Aumentam as ações artísticas em que a questão talvez um devir-coisa não seja um destino tão ruim assim para a subje- não é simplesmente criar obras, mas fazer cidade, fazer mundo, fazer vida. tividade. Quando olhamos ao redor, certamente parece ser uma opção Também vem crescendo nos últimos anos discussões em torno da melhor do que continuar a viver e a ser sob o nome de “humano”. A “coisa” noção de novo materialismo e do conceito de coisa. São pesquisadores nos lembra que organismos vivos, o inorgânico, e aquele terceiro produ- de diversos campos – cientistas políticos, teóricos da performance, femi- zido pelo seu confronto chamado “subjetividade”, todos necessitam ser nistas, ambientalistas, estudiosos queer, artistas – engajados no debate. libertados da força subjugadora chamada dispositivo-mercadoria – força Estamos procurando dar conta da insuficiência teórica, da incapacidade que esmaga a todos num modo de vida empobrecido, ou triste, ou dócil, de mobilização e do esgotamento crítico das noções de “sujeito” e “ob- ou limitado, ou utilitário”.8 jeto” para pensar e fazer vida hoje. Um exemplo: em Vibrant matter: a political ecology of things (Matéria vibrante: uma política ecológica das “Mudar o valor das coisas”. Mudar a coisa do valor. Dar valor à coisa. coisas, 2010), a cientista política Jane Bennett apresenta o mundo como Pois interessa nesse MOVIMENTO HO estabelecer conexões mais po- um ecossistema formado por “coisas” em vez de povoado por objetos tentes e menos hierárquicas, colonialistas, tristes ou utilitárias entre as passivos e sujeitos ativos – uma rede de relações em que matéria animada e inanimada, orgânico e inorgânico, corpos humanos e não humanos não são meras categorias antagônicas mas forças articuladas numa teia de 5 Bennett, Jane. Vibrant matter: a political ecology of things. Durham- London: Duke University Press, 2010, p. ix (minha tradução). agentes e agenciamentos. O antropocentrismo é desafiado por um ecos- 6 Lepecki, André. Singularities: dance in the age of performance. Londres e Nova York: sistema vibrante de coisas; coisas interdependentes não apenas porque Routledge, 2016, p. 20. 7 Lepecki, André. “9 Variações sobre coisas e performance”. In: Urdimento #19. Santa 4 Oiticica, Hélio. “Entrevista para a Cigarra por Marisa Alvarez de Lima (1966)”. In: En- Catarina: Udesc, 2012, p. 96 (minha ênfase). contros Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 45. 8 ibid., p. 97.

18 19 coisas humanas e não humanas. Interessa enfatizar a insuficiência de visões O ato humano imanente, demasiadamente imanente, imensamente humano. estanque de sujeito-artista e objeto-obra para acessar as transvalorações O samba especificamente – uma dança de descentramento, uma experi- operadas por Oiticica, para dar conta do movimento em questão. Quando ência de margear o centro gravitacional do corpo por meio de sucessivos perguntado: “Que mensagem pretende trazer – ou não haverá mensagem?” desequilíbrios curvilíneos prontamente rearranjados em novos, ágeis e Respondeu: “Nenhuma – a minha mensagem é a obra não formulada – curvilíneos desequilíbrios. Difícil colocar o samba em palavras. Talvez seja cada qual cria o seu conceito, a sua vivência ao contato com a obra; uma mais simples dizer: “É melhor ser alegre que ser triste/ alegria é a melhor mensagem preconcebida seria fatal ao próprio sentido primeiro da obra”.9 coisa que existe/ é assim como a luz no coração/ Mas pra fazer um samba Ou seja, o caráter do MOVIMENTO HO é marcadamente performativo – “é com beleza/ é preciso um bocado de tristeza/ é preciso um bocado de a obra não formulada”, não há “mensagem preconcebida”; sentido é algo tristeza/ senão, não se faz um samba não [...]”16 Como se, no movimento a ser elaborado no contato e não a ser decifrado. Tudo dependerá das re- de aceitar a tristeza encontrássemos já certa alegria; e ao sambar essa lações vividas, das vivências experimentadas, dos agenciamentos em seu tristeza, pudéssemos olhar para ela, ou ainda, dançar com ela, deslocando- materialismo vital. Tudo dependerá porque tudo depende. Tudo depende. -a, descentrando-a pelos quadris. Um pequeno avanço diagonalizado para Há ainda dois últimos temas nos quais gostaria de tocar antes de apre- frente e um pequeno recuo para trás – o desequilíbrio oscilado do passista. sentar os trabalhos que selecionei para mostrar a vocês hoje. Um deles é E “Meu pai sempre me dizia/ ‘meu filho tome cuidado/ quando eu penso o interesse de HO pelas ruas e pela cidade. Disse: “A minha vida é prati- no futuro/ não esqueço o meu passado’/ Desilusão, desilusão/ danço eu, camente na rua, eu tenho uma facilidade enorme em fazer amizade com dança você/ na dança da solidão”.17 pessoas que eu não conheço”.10 Guy Brett comenta sobre a sua “relação Programa MOVIMENTO HO #1: Nalgum lugar, na vastidão entre o passado imensa” com as ruas: “A rua, onde as pessoas e coisas eram anônimas, o e o futuro, no descentramento do presente, em desequilíbrio, dançar um ‘ambiente vivido’, que para Hélio era o cósmico, ‘isto é, o não-naturalista, MOVIMENTO HO. Na Mangueira, no Estácio, em Copacabana; em terrenos multi-transformável’”.11 A rua-cosmos. Já lança mão baldios do Caju, no vão do MAM, na Praça da Bandeira, na Aldeia Maracanã; da visualidade da cidade do Rio de Janeiro e enxerga o Parangolé como em Santa, na Lapa, no Leme, na Vila, na Favela do Quieto, no Morro do uma “asa-delta para o êxtase”: “arte do corpo e do desenrolamento trans- Esqueleto; na Cidade (de Deus), em Duque (de Caxias), no Engenho (de -espacial”.12 Campos ressalta também o interesse de HO pela “provisorieda- Dentro); em Madureira, Ramos, Méier, São Cristóvão ou Santo Cristo. Logo de” e “fragilidade do estético”,13 e por atos que “supunha[m] a alteridade”.14 aqui. Basta seguir em frente toda a vida. Escuto em todos esse comentários sons da cidade, de gente na rua, de tráfego, de cruzamentos, a rua ressoando, o cosmos-rua. * O outro tema é a dança, a importância da dança para seguir elaborando essa ideia-em-processo de MOVIMENTO HO. A dança que é, cito Oiticica, Agora estamos no ano de 2008 e bem perto daqui – no Largo da Carioca, “por excelência a busca do ato expressivo direto, da imanência desse ato”.15 a uns 600 metros de distância do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Trago duas cadeiras da minha cozinha, uma em cada ombro. Coloco uma 9 Oiticica, Hélio. “Entrevista para a Cigarra por Marisa Alvarez de Lima (1966)”. In: En- diante da outra, descalço os sapatos e escrevo numa grande folha de papel contros Hélio Oiticica . Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 41. “CONVERSO SOBRE QUALQUER ASSUNTO”. Espero. Sem a mais pequena ideia 10 Oiticica, Hélio citado por Guy Brett. In: Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: RioArte, 1992, do que possa acontecer, espero. Era a primeira vez de muitas e muitas vezes. p. 235. Quase imediatamente alguém se senta. Um senhor me fala de sua infância 11 Brett, Guy. O exercício experimental da liberdade. In: Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: na cidade e se comove profundamente ao lembrar da mãe adotiva “negra RioArte, 1992, p. 235. como o vestido daquela moça ali”. Um rapaz se senta para comemorar o 12 Campos, Haroldo entrevistado por Lenora de Barros. Asa-delta para o êxtase. In: Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: RioArte, 1992, p. 217-218. fato de que tinha acabado de ganhar seu primeiro emprego como veteri- 13 ibid. p. 218. nário. Muita gente curiosa com a minha sexualidade. Um especificamente 14 ibid. p. 221. 15 Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Luciano Figueiredo; Lygia Pape; Waly Salo- 16 Moraes, Vinicius de. Excerto da letra de “Samba da bênção”. mão (org.). Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 73. 17 Viola, Paulinho da. Excerto da letra de “Dança da solidão”.

20 21 tentando compreender se eu era prostituta, lésbica, lésbica-prostituta Assim foi a Ação Carioca #1: converso sobre qualquer assunto ou prostituta-lésbica, desconsiderando qualquer outra hipótese. “Você se masturba?”, perguntou. “Claro”, respondi. Uma mulher queria saber se eu era psicóloga, pois estava em sofrimento profundo e necessitava ajuda imediata: “os vizinhos de cima andam na minha cabeça”. Identifiquei-me com o caso. Expliquei que não era psicóloga nem padre – “Sou performer. Eu converso. É gratuito, não custa nada. Não envolve lucro, cura ou salva- ção”. Ela se foi. Um ex-boxer, agora síndico de seu prédio, viu passar seu amigo Jorge e gritou: “Vem cá Jorge, essa moça conversa sobre qualquer assunto!” Jorge juntou-se a nós. Três adolescentes de uma escola próxima partilharam a cadeira para conversar, entre outros assuntos, sobre como pedir uma garota em namoro. Rimos muito dos meus casos de adolescência no Rio. Outros dois rapazes, engraxates trabalhando no Largo da Carioca, disseram que eu deveria tomar cuidado com a câmera, pois poderia ser roubada. Chamei a atenção para uma cabine policial localizada a quinze metros de onde estávamos sentados. Entreolharam-se, sorriram e disseram mais ou menos assim: “Esses policiais são os piores. Antes nós roubáva- mos aqui, por isso sabemos. Eles esperam nosso assalto e nos roubam. É Ação Carioca #1: converso sobre qualquer assunto, Largo da Carioca, Rio de Janeiro (2008). Foto: Felipe Ribeiro assim: levam câmera, dinheiro, correntinha, o que for, e ainda espancam a gente”. Em um mês e meio de Ações no Largo da Carioca conheci incon- táveis Rios de Janeiro.18

18 nesta segunda parte da fala apresento textos e imagens que podem ser encontrados no livro Ações Eleonora Fabião. Eleonora Fabião; André Lepecki (eds.) (Rio de Janeiro: Tamanduá Arte, 2015) e também em inglês, Actions Eleonora Fabião (Rio de Janeiro: Tamanduá Arte, 2015). Essa publicação apresenta textos e fotos (em cores) referen- tes a muitas ações realizadas em ruas de diversas cidades desde 2008. Ações reúne também ensaios de Adrian Heathfield, André Lepecki, Barbara Browning, Diana Taylor, Felipe Ribeiro, Pablo Assumpção B. Costa e Tania Rivera. Para acessar a lista dos locais Ação Carioca #1: converso sobre qualquer onde o livro pode ser encontrado consultar www.eleonorafabiao.com.br assunto, Largo da Carioca, Rio de Janeiro (2008). Foto: Felipe Ribeiro

22 23 Ação Carioca #2: bandeira Ação Carioca #7: jarros De pés descalços, sentada diante de uma mesa ao meio-dia, cortar as pala- Dois jarros – um de barro, outro de prata; um cheio d’água, outro vazio. vras “ordem e progresso” estampadas na bandeira brasileira. Costurar uma Com os pés descalços, mover a água de um para o outro até seu desapa- tarja branca no espaço aberto pelo corte. Separar as letras e recombiná-las recimento completo. Caso passantes se aproximem, oferecer os jarros para formar novas palavras. para que realizem a ação também. Ou, oferecer um dos jarros para que a Algumas palavras encontradas: medo, podre, pode, pede, poder, mero realizemos juntos. poder, prego, osso, osso de prego, prego de osso, ego, preso, ego some, ego morde, rede, dor, odor, dom, erro, eros, esmero, dose, demo, regresso, gesso, roer gesso, grosso, germe, geme, mede, morro, moro, mordo, remo, dorme, ser, somos, oremos, rodemos, sopremos, poremos, porem, poro, poros, esporro, se, esse, soro, sogro, peso, modess, pego, rego, rogo, gorro, gomo, ogro, po, po de ogro, segredos, sp, ps.

Ação Carioca #7: jarros, Largo da Carioca, Rio de Janeiro (2008). Foto: Felipe Ribeiro

Da Série Precários (2011/13), também realizada no Rio de Janeiro, se- lecionei duas ações: toco tudo e troco tudo.

Série Precários: toco tudo Com local de partida e de chegada preestabelecidos, caminhar com os olhos fechados. Aceitar a ajuda de estranhos. Tocar e ser tocada.

Ação Carioca #2: bandeira, Largo da Carioca, Rio de Janeiro (2008). Foto: Felipe Ribeiro

Depois de três horas formando e desformando palavras, depois de mui- tas conversas ou de discussões acirradas com passantes, encontrei apenas um anagrama, uma única maneira de reincluir todas as letras. ORDEM E PROGRESSO transformou-se em O SER GORDO SEMPRE ou O SER SEMPRE GORDO ou SEMPRE O GORDO SER ou SER SEMPRE O GORDO.

Série Precários: toco tudo, Rua Uruguaiana, Rio de Janeiro (2012). Foto: Felipe Ribeiro

24 25 Série Precários: troco tudo E uma nota do caderno de notas: Me aproximar de desconhecidos e perguntar: “Você troca alguma coisa “Não enxergava nada que não fosse o branco do saco. Breu branco to- comigo? Te dou alguma coisa minha, algo que eu esteja vestindo ou carre- tal. Sem buracos para os olhos ou para o nariz. Sem buracos. [...] Depois gando, e você recebe. Você me dá alguma coisa em troca e eu recebo”. A da curva estava completamente perdida, caí de uma mureta e fui parar num ação só se conclui quando tudo o que possuo no início for trocado. parque de cachorros que nem sabia que existia. Os cães enlouqueceram com aquela visão. Fiquei completamente imóvel para que eles me cheirassem, para que entendessem que eu estava com mais medo deles do que eles de mim. Nem sei como consegui sair dali. Tem algo de super-herói, algo hilariante e algo muito triste e terrível nisso tudo.” Uma ação da série Quase nada, sempre tudo realizada na Praça Tira- dentes, a uma quadra daqui, em 2012:

Quase nada, sempre tudo #1: 25 tijolos À luz do dia, numa praça. Por horas seguidas fazer e desfazer composições com 25 tijolos.

Série Precários: troco tudo, Feira de São Cristóvão e arredores, Rio de Janeiro (2013). Foto: Felipe Ribeiro

Outra série de 2013 chamada Manchas (Mancha Preta, Mancha Branca e Mancha Vermelha). Programa: caminhar ensacada pela cidade.

Uma imagem da Mancha Branca: Quase nada, sempre tudo #1: 25 tijolos, Praça Tiradentes, Rio de Janeiro (2012). Foto: Felipe Ribeiro

Em outro dia a ação consistiu em fazer e desfazer composições com dezenas e dezenas de pedaços de carvão – Quase nada, sempre tudo #2: carvão. E, em outro dia, com lençóis brancos – Quase nada, sempre tudo #3: 9 lençóis. Notas do caderno de notas: “Não uso estúdio ou sala de ensaio. Não faria sentido. A rua é o espaço do trabalho. Na rua eu invento, descubro, testo, descarto, insisto, desisto. Na rua eu experimento possibilidades. E impossibilidades. É preciso ne- gociar incessantemente.” “É preciso armar a composição e depois se afastar. Dar tempo. […] E então, lá pelas tantas, o material começa a chamar, a pedir movimento. Mancha Branca, Arpoador, Rio de Janeiro (2013). Foto: Felipe Ribeiro A coisa.”

26 27 Em julho de 2015, com no meio da noite tinha um arco-íris, no meio Wall Street Action #1: asphalt snake (Ação Wall Street #1: cobra de asfalto) do arco-íris tem uma noite, um novo movimento se inicia. Esta ação foi dia 1 do mês 11 concebida para ser realizada por um grupo assim como todas as ações 11h da manhã e 11h da noite subsequentes até o presente momento. Programa: convidar amigos para Uma cobra de asfalto se move pela Wall Street e arredores. Somos um con- fazer um arco-íris resplandecer na noite da cidade. Mover juntos: 7 longos junto de pessoas (11 colaboradores, público do festival e passantes que se bambus (3,4m cada) com sete lâmpadas de tungstênio amarradas em suas juntaram a nós) e 7 bambus (3,4m cada, paralelos ao chão) serpenteando pontas – cada lâmpada, uma cor: azul, verde, rosa, roxo, amarelo, vermelho pelas avenidas, ruas e becos às 11h da manhã e às 11h da noite. Essas são e laranja –, todas ligadas por 45 metros de fio a um reversor que, por sua as horas do dia em que a cobra de asfalto – criatura que muda de rabo e vez, está conectado a uma bateria de caminhão arrastada num carrinho cabeça permanentemente e que, por vezes, perde o rabo e a cabeça – sai de feira. Caminhar noite adentro. do buraco.

no meio da noite tinha um arco-íris, no meio do arco-íris tem uma noite Things That Must Be Done Series – Wall Street Action #1: asphalt snake (2015). Foto: Felipe Ribeiro Enseada de Botafogo e Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro (2015). Foto: Jaime Acioli

E, por fim, apresento uma série realizada em novembro passado no Wall Street Action #2: clothesline (Ação Wall Street #2: varal) Festival Performa em Nova York: Things That Must Be Done Series [TTMB- dia 2 do mês 11 DS] – Wall Street Actions (Série Coisas Que Precisam Ser Feitas [SCQPSF] meio-dia – sol no meio do céu – Ações Wall Street) (2015). Dezenas e dezenas de tiras de fita metaloide prateadas e douradas são amarradas como rabiola de pipa numa linha de algodão com 12m de com- primento. A linha franjada conecta pelo topo os 7 bambus (3,4m cada). Caminhamos juntos. As fitas cintilam e ressoam ao vento. Finalmente algum brilho na Wall Street.

28 29 Wall Street Action #4: Rothko’s pallet (Ação Wall Street #4: paleta Rothko) dia 4 do mês 11 nascer-do-sol – de uma hora antes do sol tocar o horizonte até uma hora depois do sol ter tocado o horizonte Agora os bambus estão forrados com lycra colorida. A cor de cada cor, cada quantidade de cada cor, e a sequência das cores são definidas a partir de sete quadros de Mark Rothko (ou seja, cada linha de bambu co- lorido corresponde a uma tela específica do pintor). Primeiro caminhamos separadamente pela Wall Street e arredores; em seguida nos juntamos. Cruzando a alvorada, vemos o despertar das cores.

Things That Must Be Done Series – Wall Street Action #2: clothesline (2015). Foto: Felipe Ribeiro

Wall Street Action #3: almost monochromatic (Ação Wall Street #3: quase monocromático) dia 3 do mês 11 pôr-do-sol – de uma hora antes do sol tocar o horizonte até uma hora depois do sol ter tocado o horizonte Agora 7 lâmpadas de tungstênio estão atadas no alto dos bambus. Todas as lâmpadas têm a mesma cor, exceto uma (6 tons de rosa e 1 amarelo). Todas estão ligadas por 45m de fio a um reversor que, por sua vez, está conectado a uma bateria arrastada num carrinho de carga. Juntos cruzamos o poente e adentramos a noite.

Things That Must Be Done Series – Wall Street Action #4: Rothko’s pallet (2015). Foto: Felipe Ribeiro

Wall Street Action #5: there was a rainbow in the middle of the night, there is a night in the middle of the rainbow (Ação Wall Street #5: no meio da noite tinha um arco-íris, no meio do arco-íris tem uma noite) dia 5 do mês 11 meia-noite – sol no meio do céu de baixo Um arco-íris brilha na noite da Wall Street. Juntos, adentramos a madrugada.

Things That Must Be Done Series – Wall Street Action #3: almost monochromatic (2015). Foto: Felipe Ribeiro

30 31 Things That Must Be Done Series – Wall Street Action #5: there was a rainbow in the middle of the night, there is a night in the middle of the rainbow (2015). Foto: Felipe Ribeiro

A Série Coisas Que Precisam Ser Feitas é uma disputa explícita por espaços simbólicos e imaginários na arena pública. A Série Coisas Que Precisam Ser Feitas é um experimento, nos arredores da bolsa de valores da capital do capital, sobre extensões corporais coletivas, instabilidade, negociação e encontro. SCQPSF é uma meditação sobre abstracionismo e concretude, bruxaria e arte, capitalismo e obscurantismo, bruxaria e capi- talismo. SCQPSF performa abertamente uma luta entre eficácia/eficiência/ efetividade e experimentação, entre vida capital e imaginação política, entre normatividade e vitalidade. Queremos arte se movendo 4 metros acima das nossas cabeças.

32 33 Heróis, anti-heróis e anônimos: marginalidade e extermínio em um texto de Ao longo da história e das sociedades, são inúmeras as possibilidades de definirmos aqueles situados nas margens. Seja como corpos estigmatiza- Hélio Oiticica dos, perseguidos, encarcerados e exterminados, seja como contrapontos contagiosos da ordem dominante, marginais são personagens limítrofes cujas representações estão, até hoje, em permanente movimento. Essa Frederico Coelho perspectiva histórica do marginal como categoria de acusação que se reinventa através do tempo a acumular preconceitos arraigados e motiva- Professor de Literatura na Pós-Graduação em Literatura, Cultura ções conjunturais de diferentes naturezas (econômicas, políticas, morais, e Contemporaneidade/PUC-Rio estéticas, religiosas etc.) será a perspectiva utilizada no texto a seguir. Por ser óbvio que sua definição é demarcada pela posição de um centro, e por ser também óbvio que essa demarcação binária não indica neces- sariamente uma passividade ao assumir tal situação, o marginal se torna um tipo relativo no jogo de poderes de nossa sociedade. No caso do perí- odo que estamos discutindo aqui, definiu-se quem era marginal ou quem vivia à margem em um tempo cuja definição local e universal passava por binarismos conflituosos e absolutos como desenvolvimento e subdesenvol- vimento, centro e periferia ou primeiro e terceiro mundo. Três pares cuja síntese era, essencialmente, progresso versus atraso. O marginal, nesse contexto, acumula as marcas desse atraso como carne e osso do que Glau- ber Rocha chamaria em 1965 de “estética da fome”. Ele é subdesenvolvido, periférico, terceiro-mundista e, claro, atrasado. Mais: ele é, aos olhos da “boa sociedade”, potencialmente violento. O marginal brasileiro nos anos 60 é a gênese de uma regra que vemos até hoje: dentre a população da cidade, ele cumpre o papel de agente descartável na marcha inexorável do progresso. É essa perspectiva ampliada e móvel de marginalidade que permitiu ao artista plástico carioca Hélio Oiticica (1937-1980) apropriar-se dela e transformá-la em um dos pontos centrais de sua obra e de sua vida.

35 Em que consiste, porém, a arte “marginal” de Oiticica? Ou, em sentido da sociedade – ou, ao menos, a mais sujeita à violência legal do Estado. mais amplo, como entender especificamente a “cultura marginal” que foi Em todos os textos e entrevistas sobre esse tema no período, Oiticica afirmada em seu trabalho como frente produtiva e compromisso estético demonstrava uma consciência muito clara das suas motivações. Para ele, coletivo a partir de meados dos anos 1960? Por que um artista plástico o marginal morto virava espetáculo midiático, carne fresca para saciar a de carreira sólida e ascendente, iniciando uma trilha internacional e com sociedade sempre em busca de seus cadáveres expiadores. O heroísmo renome dentre a crítica contemporânea, optou pela ruptura completa em do marginal, assim, não é superficialmente ligado a sua condição fora da prol de um posicionamento à margem do sistema da arte e do consenso lei. Seu heroísmo emana do desejo de inversão – ao menos simbólica – da de seu tempo? sua condição anônima, miserável, violenta, diante da vida no país conser- No caso específico de Hélio Oiticica, alguns pontos são fundamentais vador e repressor daquele período. Tal lema empunhado por um artista para pensarmos a representação do “homem marginal” no âmbito da arte. contestador em 1968 ganha dimensões explosivas. Feito por alguém que Vale lembrar que, ao mesmo tempo em que a questão pode parecer óbvia sabe exatamente o que ocorria nos extermínios e ações policiais entre os na trajetória de alguém tão relacionado ao tema, são muitos os caminhos bandidos cariocas, torna-se uma denúncia. possíveis para sua análise. Aqui, a abordagem não trata de provar algo, É exatamente desse período o artigo “O herói anti-herói e o anti-herói mas sim de oferecer diferentes perspectivas sobre o mesmo lugar-comum. anônimo”. Escrito originalmente para a exposição “O artista brasileiro e a As afirmações públicas e privadas indicando sua posição à margem de iconografia de massa”, foi publicado no Diário de Notícias, na coluna Artes uma série de condições e expectativas sobre sua vida e obra não foram Plásticas, do crítico e curador Frederico Morais. No dia 10 de abril de 1968, apenas opiniões superficiais. Muito menos simples frases de efeito em en- Oiticica expressa em palavras públicas o ponto culminante que seu tra- trevistas ou cartas. Hélio Oiticica, como é sabido, articulou de forma orgâ- balho artístico chegava com sua bandeira. Nesse período, ao contrário da nica suas ideias e seu corpo com o contexto urbano marginalizado carioca época em que conheceu a Mangueira, ele era um nome popular em certos de seu tempo. Ele aprofundou uma reflexão radical sobre a alteridade do meios. Mesmo assim, assume de forma rara e corajosa o lugar de quem artista e do cidadão na sociedade brasileira militarizada e conservadora. compreende os dilemas do criminoso em uma sociedade assassina. Ao Seu homossexualismo assumido, seu mergulho deliberado na vida dos comentar as mortes de amigos famosos (Cara de Cavalo, bandido do morro morros, sua relação tensa, afetiva e poética com bandidos, malandros e do Esqueleto e amigo íntimo do artista, morto depois de um combate com sambistas, sua negação em se ajustar ao mercado comercial da arte, sua a Escuderia Le Coq) e anônimos que estavam no mundo do crime (como resistência aos discursos institucionais, seu anarquismo crônico, o uso Alcir Figueira da Silva, que, citando o artista, “ao se sentir alcançado pela explícito de drogas, as opiniões inegociáveis sobre seu trabalho, sua con- polícia, depois de assaltar um banco, ao meio-dia, jogou fora o roubo e dição emigrante em países do primeiro mundo são horizontes possíveis que suicidou-se”), Oiticica inclusive elucida pontos importantes sobre a relação formam esse amplo campo de caminhos para pensarmos além dos clichês desse universo com seu trabalho (principalmente o Bólide-caixa nº18, B33 o papel fundamental da ideia de marginal nesse trabalho. para Cara de Cavalo, de 1966, e o Bólide-caixa no 21, B 44 de 1966/67). Foram ao menos três momentos em que, ainda nos anos 60, Oiticica Alguns trechos do texto mostram de forma direta como Oiticica se transformou em matéria plástica sua indignação com a situação do marginal encontrava imbuído em assumir publicamente sua condição marginal na urbano carioca. Em dois bólides dedicados ao seu amigo Cara de Cavalo e rejeição absoluta à fome de sangue da sociedade em relação aos bandidos em uma bandeira, a famosa Seja marginal, seja herói. Esta última, pelo seu e seus atos. Podemos ver ali que o espaço privado de sua marginalidade, lema poético e romântico, pela sua força icônica e pela aura que ganhou ao cuja origem rompedora em 1964 atravessou tudo ao seu redor e reinventou longo do tempo, marcou profundamente os debates ao redor do trabalho sua personalidade, já havia transbordado em um caminho sem volta para do artista. Muitas vezes, alimentou leituras equivocadas que buscaram o aspecto político da marginalidade pública. Cito Oiticica: atrelar o lema transgressor a uma simples exaltação da criminalidade. Nada mais pueril. Como se sabe, o caso de Cara de Cavalo tornou-se um símbolo de opres- Se não podemos afirmar exatamente as intenções do artista, podemos são social sobre aquele que é “marginal” – marginal a tudo nessa socie- sugerir o óbvio. Não se trata de transformar alguém em herói pelo fato de dade; o marginal. Mais ainda: a imprensa, a polícia, os políticos – a sujei- ser visto como marginal. Trata-se, isso sim, de heroicizar a parte mais frágil ra opressiva, em síntese, elegeu Cara de Cavalo como o bode expiatório,

36 37 como inimigo público nº 1 (já em 62 haviam feito o mesmo com Mineirinho e complemento, a sua possibilidade vivencial de suportar o cotidiano no e logo depois com Micuçu). Cara de Cavalo foi de certo modo vítima desse Brasil daquele período. Era reconhecer no marginal, enfim, o seu herói. processo – não quero, aqui, isentá-lo de erros, não quero dizer que tudo Citando Oiticica: seja contingência – não, em absoluto! Pelo contrário, sei que, de certo modo, foi ele próprio o construtor de seu fim, o principal responsável pe- O certo é que tanto o ídolo inimigo público no 1, quanto o anônimo são a los seus atos. O que quero mostrar, que originou a razão de ser de uma mesma coisa: a revolta visceral, autodestrutiva, suicida, contra o contexto homenagem, é a mesma maneira pela qual essa sociedade castrou toda a social fixo. Esta revolta assume para nós a qualidade de um exemplo – este possibilidade da sua sobrevivência, como se fora ele uma lepra, uma mal exemplo é o da adversidade em relação a um estado social: a denúncia incurável – imprensa, polícia, políticos, a mentalidade mórbida e canalha de que há algo podre, não neles, pobres marginais, mas na sociedade em de uma sociedade baseada nos mais degradantes princípios, como é a que vivemos. Aqui isto aparece no plano visceral e imediato. Num outro nossa, colaboraram para torná-lo o símbolo daquele que deve morrer e plano, mais geral e com outros conotações estariam as mais heroicas ex- digo mais, morrer violentamente, com todo requinte canibalesco. periências: Lampião, Zumbi dos Palmares, mais adiante o exemplo mais vivo em nós, grandioso e heroico, que é o de Guevara. O problema do Aqui, não há a valorização ao ritual canibal visto pelo prisma positivo marginal seria o estágio mais constantemente encontrado e primário, o da da antropofagia. A devoração que a sociedade fazia em relação ao marginal denúncia pelo comportamento cotidiano, o exemplo de que é necessária era de outra natureza. Destrutiva, sádica, insaciável. Mórbida e canalha, uma reforma social completa, até que surja algo, o dia em que não precise nas palavras públicas do artista. Quero ressaltar a predisposição de um essa sociedade sacrificar tão cruelmente um Mineirinho, um Micuçu, um artista plástico famoso em sua cidade e país pedir a um crítico (Frederico Cara de cavalo. Aí, então, seremos homens e antes de mais nada gente. Morais, generosamente destemido em permitir a publicação) o espaço do jornal dedicado às artes plásticas para desabafar sua revolta não contra a Antes de mais nada, gente. Oiticica proclama o marginal herói para crítica, os demais artistas, os museus ou o público. O desabafo e sua revolta, anular a sina de anti-herói anônimo desses corpos. A afirmação-convite em plena ditadura militar, eram contra a condição dos marginais reais – e da bandeira “seja marginal seja herói” é justamente o acerto de contas do não dos simbólicos, como ele. Oiticica não estava sendo “politicamente artista com aquilo que ele viu de perto ser esmagado rapidamente pela força correto”, nem estava usando um universo desconhecido para mostrar- policial do Rio de Janeiro – seus amigos e conhecidos de vida fronteiriça -se solidário com uma tragédia social. Ali, era uma voz da fronteira entre entre a malandragem e a bandidagem. São heróis sem rosto e sem vida mundos demarcando o que chamava de “momento ético” em sua vida e (a imagem da bandeira é de um cadáver) que, para o artista, precisavam obra. Pois ao mesmo tempo em que é o intelectual que escreve um texto ficar como contraponto mínimo da situação aberta de enfrentamento que em um jornal de grande circulação, ele também se considerava “um deles”. a cidade vive até hoje. Sabendo, porém, que fundamentalmente não era um bandido perseguido No contexto em que Hélio viveu em seu tempo – a ditadura e a contra- pela polícia, podia entender as dores de tais personagens e denunciar cultura como limites desse caldo de repressão, invenção e transgressão –, duramente a sociedade em um jornal de sua cidade. o marginal em seu aspecto criminal transborda para o campo das repre- Mas vale aqui um contraponto que não se pode perder de vista: seu sentações do artista experimental ou fora dos padrões convencionais do texto, apesar de um olhar “de dentro” da situação do criminoso na socie- período. A poesia, o cinema, a imprensa se tornam, aos poucos, “marginais” dade brasileira que só alguém como ele poderia apesentar naquele mo- por múltiplos motivos. Estar à margem “do sistema” (editorial, institucional, mento, denuncia também a incompletude do artista marginal que Oiticica financeiro, político, estético) torna-se um espaço fundamental de reinven- encarnava no Brasil daquela época. Apesar de amigo e companheiro de ção de artistas e pensadores cujas obras não negociam. O artista se afirma bandidos, apesar de conviver nas barras pesadas do mundo criminoso marginal por analogia a duas “categorias de acusação” criadoras de anti- carioca, Oiticica ainda era um intelectual. Era sua arte, seu pensamento -heróis: o bandido e o guerrilheiro. Ambos foragidos da justiça e do Estado, e seu texto que expressariam sua revolta. Em vez de atirar em policiais ou ambos submersos em cafofos e aparelhos, ambos elididos de qualquer morrer com buracos de balas, seu limite no enfrentamento público de suas possibilidade de convivência com a sociedade. Ambos, afinal, armados. ideias era reconhecer no marginal o seu além do homem, a sua extensão

38 39 Não é à toa que a arma de fogo e a violência se tornam tema desse grupo de artistas que se autoproclamam marginais. Filmes de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla apresentam bandidos, mortes, estupros, sangues, ar- mas. Matam a família e vão ao cinema. Com um Hélio Oiticica atuando de arma na mão, Glauber Rocha faz Câncer e o define como um estudo sobre a violência (citando o próprio, violência psicológica, sexual e racial). As músicas do álbum coletivo Tropicália ou panis et circensis são repletas de punhais, sagues, assassinatos, violência contra a mulher, cachorros mortos nas ruas, fuzis. Waly Salmão tem sua iluminação poética em uma cela do Carandiru. Rogério Duarte é preso e brutalmente torturado. Anti-heróis. Oiticica estava no cerne disso tudo. Viu de perto, de muito perto, a vida nas favelas cariocas e a dinâmica sem lei que seus moradores eram obri- gados a inventar a vida e a sobrevida. Seu gesto de proclamar o marginal herói não vem de um obscuro espaço romântico de observação geral da sociedade. Vem de saber que por trás daqueles corpos mortos em fotos espetaculosas de jornais tinha carne que andava, amava e desejava. Sem eximi-los de suas responsabilidades pelas escolhas na vida, entende-os na complexidade mais ampla do demasiado humano. Novamente, não se tratou em momento algum de positivar o crime, mas sim de inverter a lógica exterminadora do pobre que aderiu ao crime. Dar a ele o lugar do herói é, de certa forma, destituir-nos da nossa posição de definidores do bem e mal e, mais, de quem pode morrer sem remorso coletivo e quem não pode ter sua vida atacada por esses que ou morrem ou matam.

40 41 Um boi com cara de cavalo* O lugar de herói do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, I

Desde a icônica imagem da crucificação de Jesus Cristo, passando pela o Amarildo representação de todos os heróis que morreram nas catacumbas e nas fogueiras da inquisição, ou que foram fuzilados ou mortos nas guerras (revolucionárias ou não), sempre temos convivido com a interpelação Gerardo Silva das imagens, de determinadas imagens. Duas delas, em particular, fazem parte do meu imaginário de um modo bastante perturbador. A primeira Professor da Universidade Federal do ABC é a imagem de Ernesto “Che” Guevara no seu leito de morte (na verdade, (UFABC) trata-se de uma maca sobre uma mesa), com os olhos abertos como se estivesse ainda vivo. Como sabemos, o “Che” foi capturado na Bolívia e levado ferido à famosa “escuelita” de La Higuera, onde aguardou por seus verdugos norte-americanos. A imagem fotográfica, que seus captores utilizaram como troféu ou como prova da sua morte, transformou nosso herói revolucionário em um mártir, cuja morte agigantou sua já legendária determinação e coragem pela causa libertária.1

1 essa imagem trágica contrasta com a fotografia icônica deA lberto “Korda” Diaz Gutier- rez (1928-2001), na qual uma mirada perdida no horizonte, porém extremamente grave no seu semblante, contagia-nos com sua determinação revolucionária (essa imagem * Agradeço os comentários dos participantes do Seminário Internacional Hélio Oiticica para foi capturada durante a homenagem do governo cubano às 136 pessoas mortas em um Além dos Mitos, onde este texto foi apresentado, e a Leonora Corsini pelas sucessivas leituras atentado contra um barco francês carregado de armas no porto de La Havana, em 5 de e sugestões. março de 1960).

43 A segunda imagem é mais antiga, porém mais recente na minha memória. social. Como sabemos, este último foi amigo de Hélio Oiticica e foi abatido No dia 28 de julho de 1915, marines norte-americanos invadiram a República por um esquadrão da morte em Cabo Frio, no dia 3 de outubro de 1964, do Haiti – fruto da primeira e única revolução de escravos negros no mundo depois de uma caçada que durou um mês e sete dias para vingar a morte inteiro – e iniciaram uma ocupação militar que duraria quase vinte anos, – em um enfrentamento armado – do detetive Milton Le Coq, contratado até a retirada das tropas em 1o de agosto de 1934.2 Durante a ocupação, pelos “bicheiros” da Vila Isabel para neutralizar Cara de Cavalo. Eis os marcadamente violenta e racista, um grupo de rebeldes conhecidos como motivos que levaram o artista a realizar sua obra homenagem Bólide B 33:5 os “Cacos” iniciam uma guerra de resistência baseada nas mesmas táticas de guerrilha que tornaram possível a revolução, mais de cem anos antes.3 Em começos de 1965 quando germinava a ideia de uma homenagem a Cara Em outubro de 1919, o seu líder, Charlemagne Péralte, ensaia um ataque à de Cavalo, que só veio a se concretizar numa obra em maio de 1966 (Bó- capital Porto Príncipe, sendo, porém, derrotado. Em novembro do mesmo lide-caixa nº18 – B33), o meu modo de ver, ou melhor, a vivência que me ano, ele é emboscado e morto por uma patrulha norte-americana, e seu levou a isso foi a que defini numa carta ao crítico Guy Brett (12/abril/67) corpo seminu é atado a uma porta e fotografado na vertical, para conhe- como um momento ético. Como se sabe, o caso de Cara de Cavalo tornou- cimento das autoridades e de todo o povo do Haiti. Mais uma vez, o feitiço -se símbolo da opressão social sobre aquele que é marginal – marginal a se volta contra o feiticeiro. A imagem-troféu de Charlemagne Péralte, em tudo nessa sociedade: o marginal. Mais ainda: a imprensa, a polícia, os uma posição de quase crucifixão, o transforma em um mito da resistência políticos (Carlos Lacerda pessoalmente chefiou umablitz ao mesmo, ali- haitiana – até os dias de hoje! ás, como já o fizera em relação a outros anteriormente) – a sujeira opressi- Sem dúvida, as imagens dos corpos abatidos de Manoel Moreira (Cara va em síntese, elegeu Cara de Cavalo como bode expiatório, como inimigo de Cavalo) e de Alcir Figueira da Silva, utilizadas por Hélio Oiticica nas suas público no 1 (já em 62 haviam feito o mesmo com Mineirinho e logo de- obras Bólide B33 e B44 e, posteriormente, na bandeira da emblemática frase pois com Micuçu, tudo isso no governo Lacerda, que se tornou símbolo da Seja marginal seja herói, pertencem a essa mesma linhagem expressiva, opressão social policial, inclusive com o trágico caso dos mendigos afoga- com a diferença, porém, de que, nesse caso, elas serão recicladas por uma dos, etc.). Cara de Cavalo foi de certo modo vítima desse processo – não narrativa de segunda ordem, não menos potente, de ressignificação visual quero, aqui, isentá-lo de erros, não quero dizer que tudo seja contingência através da arte.4 Evidentemente, essa operação se impõe pelo fato de os – não, em absoluto! Pelo contrário, sei que de certo modo foi ele próprio o corpos serem, em grande medida, anônimos ou, como no caso de Cara de construtor de seu fim, o principal responsável pelos seus atos. O que que- Cavalo, estigmatizados pelo poder e pela mídia ao ponto de não retorno, ro mostrar, que originou a razão de ser de uma homenagem, é a maneira isto é, ao ponto de poderem ser caçados e mortos sem grande remorso pela qual essa sociedade castrou toda possibilidade da sua sobrevivência, como se fora ela uma lepra, um mal incurável – imprensa, polícia, polí- 2 para os interessados nas circunstâncias e nas consequências da ocupação norte-ame- ticos, a mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada nos ricana do Haiti, ver a obra clássica de Suzy Castor, La ocupación norteamericana de mais degradantes princípios, como é a nossa, colaboraram para torná-lo Haití y sus consecuencias (1915-1934), 1971. o símbolo daquele que deve morrer, e digo mais, morrer violentamente, 3 sobre a estratégia de luta dos revolucionários haitianos durante a revolução, que der- com todo requinte canibalesco (o motivo chave para isso foi o assassina- rotou os exércitos da Inglaterra e da França, duas das maiores potências imperiais na to, numa luta, do detetive Le Coq, do Esquadrão da Morte, organização época, e que culminou com a independência de Haiti em 1804, ver James ([1938] 2010). policial que envergonharia qualquer sociedade de caráter, composta de 4 podemos afirmar que para Hélio Oiticica arte é fundamentalmente experimentação e crítica levada até suas últimas consequências, isto é, até a dissolução do próprio con- policiais assassinos e degradados, que até hoje milita por aí com outras ceito de arte. Na verdade, como ele mesmo assinala, sua arte é, na verdade, uma “arte pessoas e outros nomes). Há como que um gozo social nisto, mesmo nos ambiental” produto de uma experimentação coletiva de espaços, objetos, texturas, que se dizem chocados ou sentem “pena”. imagens e cores na qual a participação ativa do espectador é determinante – às vezes também chamada de antiarte (cf. Oiticica, 1986). No caso dos Bólides e Parangolés, como afirma Celso Favaretto (1992), eles representam as últimas “estruturas primor- diais” do processo de instauração da arte ambiental. Tratar-se-ia de um momento de 5 este texto de Hélio Oiticica foi apresentado em uma exposição de 1968, “O artista brasi- inflexão e ruptura na trajetória experimental do artista no qual se persegue a produção leiro e iconografia de massa”, organizada por Federico de Morais e pela Escola Superior de objetos para além da representação. Os Bólides-caixa, em particular, são “estru- de Desenho Industrial, e realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM/ turas de inspeção”, espaços de sensibilidade que exigem um reconhecimento visual e RJ. Também foi publicado no jornal Diário de Notícias, do dia 10/04/1968. Salvo indica- tátil por parte do espectador como forma de diálogo com a obra de arte. ção, todas as citações do artista utilizadas neste trabalho pertencem a esse texto.

44 45 No que diz respeito à segunda imagem, trata-se de um corpo estendido mais heroicas experiências: Lampião, Zumbi dos Palmares, mais adiante no chão – às margens do rio Timbó – com os braços abertos e na pers- o exemplo mais vivo em nós, grandioso e heroico, que é o de Guevara. O pectiva da cabeça aos pés, utilizada na obra Bólide B44. Como o mesmo problema do marginal seria o estágio mais constantemente encontrado e autor explica, a imagem de Alcir Figueira da Silva, que se suicidou ao ser primário, o da denúncia pelo comportamento cotidiano, o exemplo de que alcançado pela polícia depois de ter roubado um banco, expressa, na é necessária uma reforma social completa, até que surja algo, o dia em mesma lógica da obra homenagem anterior, o problema ou a tragédia da que não precise essa sociedade sacrificar tão cruelmente um Mineirinho, incomunicabilidade de uma vida vivida à margem, que prefere a morte à um Micuçu, um Cara de Cavalo. Aí, então seremos homens e antes de mais prisão. Diz o artista, nada gente.

Já outra vivência sobrevém a do ídolo anti-herói, ou seja, a do anti-herói Vale a pena, a partir dessas palavras, abrir aqui um parêntese sobre o anônimo, aquele que, ao contrário de Cara de Cavalo, morre guardando no suposto romantismo do artista ao compor essas obras. Alguns autores, seja anonimato o silêncio terrível dos seus problemas, a sua experiência, seus na tentativa de contextualizar a violência no Brasil, seja com o propósito de recalques, sua frustração (claro que herói anti-herói, ou anônimo anti-he- fazer uma crítica a certa “fascinação” pela violência por parte das camadas rói, são, fundamentalmente a mesma coisa: essas definições são a forma medias da população, têm observado que essa relação com “o marginal” com que seus casos aparecem no contexto social, como uma resultante) por parte de Hélio Oiticica pertence a um momento da história em que essa – o seu exemplo, o seu sacrifício, tudo cai no esquecimento como um feto “transgressão” era ainda possível. O contexto atual, porém, pelo seu grau parido. Numa outra obra (Bólide-caixa no 21 – B44 – 1966/67), quis eu, de violência, anomia e crueldade, tornaria essa aproximação cada vez mais através de imagens plásticas e verbais exprimir essa vivência da tragédia difícil, senão impossível.6 Além do mais, as obras teriam sido concebidas do anonimato, ou melhor, da incomunicabilidade daquele que, no fundo, em pleno início da ditadura militar, quando o desafio às leis e à própria quer comunicar-se (o caso que me levou à vivência foi o do marginal Alcir institucionalidade era quase um dever moral, enquanto que hoje, em um Figueira da Silva, que ao se sentir alcançado pela polícia depois de assal- contexto democrático, essa postura seria altamente contraproducente. tar um banco, ao meio dia, jogou fora o roubo e suicidou-se). Por que o Embora essas observações tenham sua parcela de legitimidade, a suicídio? Que diabólica neurose (aliás tão shakespeariana) o teria levado verdade é que Hélio Oiticica nunca pretendeu ancorar sua crítica nessa a preferir a morte a prisão? Uma esperança perdida, o desespero dessa relação pessoal com Cara de Cavalo (ou com outros indivíduos do mundo perda, mas qual perda? Uma ideia, sei lá se certa ou não, me veio: seria dito marginal), nem muito menos justificá-los, mas chamar a atenção sobre isto a busca da felicidade (aqui entendida como segurança, afeto, tudo o a dimensão social do problema, sobre a grande parcela de responsabilidade que envolveria a falta que ocasionou essa neurose)? que cabe à sociedade nesses desfechos. Afinal, pergunta o artista, qual a oportunidade que têm os que são, pela sua neurose autodestrutiva, leva- Não precisamos nos deter na veia psicanalisante dessa manifestação. dos a matar ou roubar? “Pouca”, ele mesmo responde. E agrega: “porque A distinção (e a semelhança) entre as duas figuras: o herói anti-herói e o a sociedade mesmo, baseada em preconceitos, numa legislação caduca, anônimo anti-herói, é que nos interessa neste momento. Como afirma o minada em todos os sentidos pela máquina capitalista consumitiva, cria autor, ambas figuras são “resultantes”, não de um de um modo de vida os seus ídolos anti-heróis como o animal a ser sacrificado”. Nesse sentido, escolhido livremente, mas de uma revolta contra ele. mesmo considerando os níveis de violência atuais, entendo que o alvo da crítica continua plenamente vigente. O certo é que tanto o ídolo, inimigo público nº 1, quanto o anônimo são a Voltando às imagens que compõem sua obra de homenagem e crítica, mesma coisa: a revolta visceral, autodestrutiva, suicida, contra o contexto em 1968 Hélio Oiticica apresenta sua bandeira estampada com a imagem social fixo (status quo social). Esta revolta assume, para nós, a qualidade de um exemplo – este exemplo é o da adversidade em relação a um estado social: a denúncia de que há algo podre, não neles, pobres marginais, mas 6 tal como o filme Tropa de elite (dirigido por José Padilha, 2007) que se tenta de- na sociedade em que vivemos. Aqui isto aparece no plano visceral e ime- monstrar que somente tolos inocentes da classe média carioca podem acreditar em construir algum vínculo com o mundo marginal da favela sem que isso não coloque diato. Num outro plano, mais geral e com outras conotações estariam as automaticamente em risco suas próprias vidas.

46 47 do anti-herói anônimo e os dizeres Seja marginal seja herói. Com esse Infelizmente sabemos que ele não sumiu. Amarildo morreu. Não resistiu gesto, entendo eu, o artista libera a sua homenagem da caixa Bólide e a à tortura que lhe empregaram. Foi assassinado. Vítima de uma cadeia de torna um símbolo da resistência aos dispositivos mais brutais de opres- enganos. Uma operação policial sem resultados expressivos. Uma infor- são, sintetizados na ideia da produção social contínua de vidas matáveis mação falsa. Um grupo sedento por apreensões. Um nacional vulnerável ou sacrificáveis, isto é, daqueles que devem morrer e, sobretudo, morrer à ação policial. Negro. Pobre. Dentro de uma comunidade à margem da violentamente, como ele mesmo diz. O fato dela (a bandeira/estandarte) sociedade. Cuja esperança de cidadania cedeu espaço para as arbitra- ter sido exposta em um show da Tropicália, que o próprio artista ajudou a riedades. Quem se insurgiria contra policiais fortemente armados? Quem instituir como movimento artístico e cultural, e de ter sido objeto de censura defenderia Amarildo? Quem impediria que o desfecho trágico ocorresse? e perseguição, como narra no seu livro Verdade tropical,7 Naquelas condições, a pergunta não encontra resposta e nos deparamos deu-lhe uma projeção inesperada. Assim, a imagem do marginal Alcir Fi- com a covardia, a ilegalidade, o desvio de finalidade e abuso de poder gueira da Silva, o anti-herói anônimo, morto nas circunstâncias descritas, exercidos pelos réus. ficou para sempre estampada não apenas na bandeira, como também na memória coletiva da sociedade brasileira. Podemos começar a nos debruçar sobre os sentidos dessa citação inquirindo sobre o significado de “Vítima de uma cadeia de enganos”. Apa- rentemente, Amarildo foi indicado por um informante como alguém que II estava prestando serviço aos traficantes da favela da Rocinha, e foi pego na saída de um bar a caminho de casa. Na hora da detenção, ele estava Mais recentemente, no fim do dia 14 de julho de 2013, na favela da Roci- com seu documento pessoal e não havia nada no seu comportamento que nha no Rio de Janeiro, o ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza foi justificasse a apreensão. Amarildo tampouco tinha passagem pela polícia, levado por policiais militares para a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), nem problemas com os vizinhos da comunidade na qual vivia. Para os recentemente instalada na comunidade, e nunca mais se soube nada dele, policiais, entretanto, a delação do informante era confiável, e ele tinha de a não ser pelos depoimentos que levaram à condenação, dois anos e meio saber algo. Decidiram então torturá-lo para obrigá-lo a falar, para obrigá-lo depois, dos policiais que participaram da operação.8 De acordo com os a dizer o que evidentemente não sabia ou não podia, e o mataram dessa autos da sentença proferida pela juíza Daniella Alvarez Prado,9 forma, torturando-o. Com base nos depoimentos das testemunhas e dos acusados, a juíza afirma que Amarildo “infelizmente” morreu, mas de fato seu cadáver nunca foi encontrado.10 Um segundo elemento se refere à “vulnerável à ação policial. Negro. Pobre. Dentro de uma comunidade à margem da sociedade” (ou seja, como 7 “Uma noite, um juiz de direito que, não sei por que cargas d´agua foi à Sucata ver o diz a canção Haiti de Caetano Veloso e : “todos sabem como nosso show, indignou-se com o estandarte de Hélio. Sob uma ditadura militar, uma re- se trata aos pretos, aos quase pretos e aos quase brancos quase pretos ação moralista contra uma obra que glorificava um marginal tinha tudo para crescer. Mesmo desproporcional como essa: o estandarte devia ter um metro quadrado e não de tão pobres”). Considerando a forma em que foi assassinado, o fato de ficava no palco nem era destacado pela iluminação. Só um fanático se ateria a esse Amarildo pertencer a esse “grupo de risco” não constitui, evidentemente, detalhe com tanta tenacidade. Sem embargo, o juiz conseguiu não apenas suspender nenhuma novidade. Aqui, ele seria mais um número em uma estatística o show como fechar a boate. Ricardo Amaral ficou tentando negociar a reabertura, en- massacrante de homicídios e repressão policial sobre esse segmento es- quanto nós esperávamos, sem muito otimismo, reestrear. O episódio foi muito falado e teve, a médio prazo, terríveis consequências” (Veloso, 1997: p. 307). pecífico da população. De acordo com Waiselfisz (2012), com efeito, entre 8 pelo caso, doze policiais militares foram condenados pela justiça e expulsos da cor- 2002 e 2012, a participação e a vitimização pela violência da população poração, quatro foram absolvidos e mais um grupo de oito pessoas que trabalhavam negra no Brasil representavam 65,1% do total; já quando consideramos os na UPP naquele momento não foram imputados pelo crime. Disponível em: http:// jovens negros, no mesmo intervalo de tempo, esse número aumenta para g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/02/caso-amarildo-entenda-o-que-cada- -pm-condenado-fez-segundo-justica.html. Acesso: 14/04/2016. 9 para consultar a íntegra da sentença: http://s.conjur.com.br/dl/sentenca-amarildo. 10 os policiais foram condenados pelos crimes de tortura seguida de morte, ocultação de pdf. Acesso 21/04/2016. cadáver e fraude processual.

48 49 69,1%. Embora o Estado do Rio de Janeiro não esteja entre os entes da sobreviveram e dos que morreram em tais circunstâncias? No momento federação com os valores mais elevados, o mesmo relatório aponta que em que Amarildo foi abordado pelos policiais o dispositivo foi ativado: em 2010 a taxa de homicídios por 100 mil habitantes era de 21,5 para os negro, pobre, favelado, marginal (a partir daqui acredito que o desfecho brancos e de 41 para a população negra, e que esses valores passam de 42 não interessa demasiado, porque é absolutamente aleatório).13 a 88,5 respectivamente quando considerada a população jovem. Acredito Como sabemos, a notoriedade do caso Amarildo se deveu não somente que a estatística não tenha mudado muito até hoje, e que não seja preciso à mobilização popular pelo seu paradeiro, mas também pelo que estava em explicar onde estão ou onde se encontra a maioria desses jovens. jogo naquele momento. A campanha e mobilização “Cadê o Amarildo” foi Por fim, Q“ uem se insurgiria contra policiais fortemente armados? Quem para as ruas e engrossou as grandes manifestações de junho-julho de 2013, defenderia Amarildo? Quem impediria que o desfecho trágico ocorresse?” expondo o recrudescimento da dinâmica repressiva na cidade por causa Ninguém, pareceria ser a resposta (pelo menos nessa hora). Impunidade da Copa e das Olimpíadas. As próprias Unidades de Polícia Pacificadora policial, portanto, mais do que “desvio de finalidade” ou “abuso de poder”.11 (UPPs) foram questionadas por transformarem-se em forças de ocupação, Por um lado, um tipo de impunidade estrutural e de larga duração, de mais do que de pacificação.14 Diversas personalidades públicas prestaram origem escravagista, que se perpetua através do tempo. Pelo outro, uma seu nome em favor da campanha, que foi amplamente acolhida nas redes impunidade policial produzida cotidianamente como dispositivo de con- sociais, e os grandes jornais e meios de comunicação, normalmente aves- trole dos pobres e das formas múltiplas em que os mesmos se revelam, sos a insistir nesse tipo de notícias, tiveram de fazer sua parte. Também voltando às palavras de Hélio Oiticica. Certamente, o papel de herói de prestigiosos jornais internacionais como o New York Times, Washington Amarildo, diferentemente de Cara de Cavalo e de Alcir Figueira da Silva, não Post, El País, Le Figaro e La Reppublica, entre outros, publicaram artigos se projeta sobre um enfrentamento com as “forças da ordem”, mas sobre e imagens da campanha “Onde está Amarildo?”. No fim, Amarildo ganhou um fundo mais opaco e truculento de tortura e desaparecimento – como também uma biografia, embora permaneça anônimo no sentido de que ele nos porões da ditadura militar.12 Quem pode duvidar do heroísmo dos que mesmo nunca pode contar sua história. Segundo a Wikipédia, Amarildo nasceu em 1965 ou 1966, na favela da Rocinha, onde morou toda sua vida. Era o sétimo de 12 irmãos, filho de uma empregada doméstica e de um 11 de acordo com o Relatório Mundial 2015 do Human Rights Watch, [a polícia brasileira] pescador. Era analfabeto e só escrevia o próprio nome. Estava casado com foi responsável por 436 mortes no estado do Rio de Janeiro e 505 mortes no estado de São Paulo, nos primeiros nove meses de 2014. No estado de São Paulo, isto repre- Elizabeth Gomes da Silva e era pai de 6 filhos. Vivia em um barraco de um senta um aumento de 93 por cento em relação ao mesmo período de 2013. De acordo único cômodo. Pela sua fortaleza física era chamado de “Boi”, e trabalhava com as informações mais recentes disponíveis, compiladas pelo Fórum Brasileiro de principalmente como ajudante de pedreiro. Segurança Pública, uma organização não governamental (ONG), mais de 2.200 pes- soas foram mortas em operações policiais em todo o Brasil em 2013, uma média de 6 pessoas por dia. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/world-report/2015/coun- try-chapters/268103. Acesso: 20/05/2016. Isso representa quatro vezes mais do que III acontece nos Estados Unidos e duas vezes mais do que na Venezuela, um dos países mais violentos da região, de acordo com a mesma fonte utilizada no relatório. Como vimos, Hélio Oiticica constrói sua narrativa sobre o herói anti-herói 12 essa associação também é feita por Caetano Veloso na sua coluna do jornal O Globo, e o anônimo anti-herói na base de imagens de corpos abatidos, isto é, de do dia 11 de agosto de 2013, dedicada ao desaparecimento do Amarildo: Quando eu estava num xadrez da Polícia do Exército, durante o governo militar, no quartel de De- cadáveres. Uma espécie de “necrofilia” imagética que retira os corpos dos odoro, ouvi diversas vezes, à noite, gritos e gemidos estarrecedores, não raro seguidos de comandos de emergência, “traz a padiola”, os urros da vítima dando lugar, depois minosos comuns”, gente pobre dos subúrbios e das favelas a sofrerem aqueles maus de uns segundos de silêncio terrível, à azáfama dos algozes. Eu estava entre presos tratos (alguns pareciam perder a vida nessas sessões). Disponível em: http://oglobo. políticos (Gil, , Antônio Callado, Paulo Francis, Perfeito Fortuna eram globo.com/cultura/pai-9461101. Acesso: 17/04/2016. alguns deles) e havia uma ordem de não nos molestar, agredir ou ferir. Os companhei- ros de xadrez (estávamos divididos em dois grupos, cada um numa cela) diziam que 13 embora não devesse, porque a UPP da Rocinha, assim como as outras, fora instalada aqueles gritos podiam ser de outros presos políticos, trazidos de diferentes quartéis, justamente para evitar, entre outros, esse tipo de resultado. Para uma interpretação de os quais não seriam, como nós, meros artistas, intelectuais e estudantes acusados de como é possível chegar a uma tal situação, antes da instalação das UPPs, ver Silva, 2014. subversão, mas ativistas ligados à luta armada. No entanto, a hipótese mais resistente 14 sobre essa espécie de “deturpação” da política das UPPs, ver a coletânea de textos de (talvez contando com coisas entreouvidas aos carcereiros) era a de que fossem “cri- Silva e Corsini (2015).

50 51 seus lugares de origem, seja nas fotografias-troféu ou nas imagens de jor- que levou Hélio Oiticica a manifestar-se contra toda forma de repressão nais sensacionalistas, para colocá-los em outro registro e ressignificá-los. institucionalizada, seja policial, militar ou de qualquer outra natureza. A Isso também vale para as imagens de Che Guevara e Charlemagne Péralte, violência, ele diz, é justificável apenas como meio de revolta, jamais como embora estas últimas não tenham sido o produto de um gesto deliberado. meio de opressão.16 Mas, como exercer essa arte necrofílica quando não se tem o cadáver? No seu livro Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I (2010), o Como restituir o sentido (sagrado) de uma vida que pertence à sociedade filósofo Giorgio Agamben nos adverte sobre uma obscura manifestação da sem poder atribuí-la a um corpo (ou a uma imagem de um corpo)? Seria faculdade soberana, que consiste em se afirmar sobre um poder que retira suficiente poder imaginá-lo? Alcançaria com as palavras? Provavelmente dos indivíduos tanto sua pertença jurídica quanto seu vínculo fraterno (ou não. Acredito que ele mesmo (o artista) nos chamaria a atenção sobre uma religioso), com uma determinada comunidade, deixando-os completamente outra possibilidade. expostos a uma morte sem valor ou, no seu reverso, a uma vida que não No Bólide 56 Caixa 24, uma obra da mesma série de homenagem a Cara merece ser vivida. Entre os antigos, afirma o autor, essa figura era bem de Cavalo porém menos conhecida, chamada de Caracara Cara de Cavalo caracterizada e, embora comum, constituía uma exceção; já na sociedade (1968), Hélio Oiticica utiliza uma fotografia retrato do amigo morto como contemporânea, ela ameaça tornar-se a norma. Acredito que na interroga- elemento central da proposta (cf. Loeb, 2011). Estampada no fundo de uma ção “Cadê o Amarildo?” e em todas as manifestações que a acompanham, das caixas que compõem a obra (são duas caixas superpostas, a de baixo assim como nos Bólides homenagem e os dizeres “Seja marginal seja herói”, com plásticos, cinza e brita que se espalham pelo chão), ela aparece sem haja algo mais do que uma denúncia (ou momento ético, como queria Hélio dizeres ou poemas, numa tentativa de confrontar o público ou espectador Oiticica); trata-se também da recusa a um poder soberano que tenciona com uma pessoa estigmatizada socialmente que foi morta de maneira brutal transformar nossas cidades em um gigantesco campo habitado pelo Homo pela ação repressiva dos policiais e do Estado – a expressão “Caracara Cara sacer, isto é, por aquele que pode ser morto, torturado e/ou desaparecido de Cavalo”, que dá nome à obra, pode ser traduzida como cara a cara com sem ninguém ter o direito de reclamar. Cara de Cavalo. O que diferencia essa versão das anteriores, entretanto, é o fato de se tratar de uma imagem de Manoel Moreira ainda vivo, olhando para nós (ou para a câmera) de maneira expectante: Olhe para mim! Você sabe quem eu sou? Tem alguma coisa para me dizer? No caso do Amarildo, algumas (poucas) imagens, que constituem pra- ticamente uma única imagem, completam sua breve biografia. Nelas um rosto magro e anguloso com uma mirada forte nos interpela publicamente: Você sabe o que aconteceu! Vamos deixar por isso mesmo? Até quando? Encontramos essa imagem reproduzida em capas de revistas e jornais, camisetas, cartazes e faixas, junto com os dizeres “Cadê o Amarildo?”, “Onde está Amarildo?”, “Somos todos Amarildo”. A imagem se multiplica e se potencializa através de manifestações diversas tais como grafites, projetações, quadrinhos e charges.15 Nas redes sociais essa imagem cir- cula e faz circular. Impossível conter seu apelo indignado diante de uma violência que há muito tempo se tornou insuportável. A mesma situação

15 entre estas últimas, duas chamaram a minha atenção, ambas do chargista Latuff (2013). Na primeira, um policial militar utiliza como arma uma borracha gigante que vai apagando o desenho de Amarildo em passadas (rajadas?) violentas; na segunda, uma criança sai de casa e olha para um chinelo largado no chão e pergunta “Pai?”, enquanto uma viatura se afasta do local a toda velocidade. Em ambas as charges não há testemunhas, e em ambas o corpo desaparece. 16 em carta ao crítico Guy Brett, de 12 de abril de 1967 (Oiticica, 2008).

52 53 Referências

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54 55 Hélio Oiticica e a intervenção tropicalista como contraponto à memória recalcada da dualidade Em 1964, Hélio Oiticica escreveu sobre o “estandarte”, criação que proble- matiza a participação do espectador e iniciou a exploração da dança como ontológica componente da estrutura da obra, entendida como ação. No ano seguinte, a pesquisa conduziu à “capa”, o parangolé, integrando a participação na estrutura-movimento da obra, feita para vestir. A obra desloca-se no corpo [antropofagia, do espectador ou do protagonista da performance. O movimento situa a obra no tempo e no espaço, suscitando, em vez de contemplação, a “vivência dialogia criativa, mágica” (OITICICA, 2011, p. 73). Nesse momento, o espectador passa a ser chamado participador. Tão extraordinária quanto a sensibilidade estética abertura de Oiticica era sua refinadíssima capacidade de refletir sobre suas obras: O vestir já em si constitui uma totalidade vivencial da obra, pois ao des- participativa dobrá-la tendo como núcleo central o seu próprio corpo, o espectador como que já vivencia a transmutação espacial que aí se dá: percebe ele e expansão do na sua condição de núcleo estrutural da obra o desdobramento vivencial desse espaço intercorporal. Há como que uma violação de seu estar como “indivíduo” no mundo, diferenciado e ao mesmo tempo “coletivo”, para o repertório] de “participador” como centro motor, núcleo, mas não só “motor” como principalmente “simbólico”, dentro da estrutura-obra. É esta a verdadeira metamorfose que aí se verifica na interrelação espectador-obra (ou parti- Luiz Eduardo Soares cipador-obra) (Oiticica, 2011, p. 74).1 Antropólogo e escritor 1 anoto à margem: um mundo interativo assim reconstruído instaura o protagonismo individual engajado na sociabilidade eu-tu, portanto avesso ao isolamento individu- alista, e expurga o uso recorrente da categoria “eles” – sobre o qual vou me deter adiante – como confissão de impotência política.

57 Na sequência, Oiticica explica como concebeu a tend”, o primeiro de outro com seus corpos, seus desejos, suas diferenças, embora imersos seus penetráveis, nesse caso o Penetrável parangolé. A meta é proporcionar no tom e no ritmo da comunhão extravagante. a “vivência-total parangolé”, que lançaria o sujeito no mundo ambiental Oiticica também vestiu sua capa-parangolé, também atravessou seu por sua participação nas obras, instando-o a “decifrar a sua verdadeira penetrável e cumpriu seu rito de passagem. Ele menciona a passagem em constituição universal transformando-o em ‘percepção criativa’” (Idem). sua obra – também uma transformação pessoal – do hiperintelectualismo Em 1965, Oiticica refletiu longamente sobre a dança, a desinibição, a ao mito e à sua potência simbólica. Esse caminho experimental desaguou superação de preconceitos, a revisão da relação corpo-espírito, o realinha- na exposição-evento “Tropicália”, em abril de 1967, no Museu de Arte Mo- mento liberador, dionisíaco, de ideias, ações e sensibilidade. Seu interesse derna do Rio de Janeiro (Idem, ibid., p. 108). O próprio Hélio cita o crítico voltou-se para a música, o ritmo, a coreografia popular abrindo espaço para inglês Guy Brett, do Times, para o qual o Parangolé era “algo nunca visto” a intersubjetividade transmutada em intercorporalidade – uma ambiência que poderia “influenciar fortemente as artes europeia e americana”. Mas propícia ao exercício da relação “eu-tu” e sua metamorfose em um “nós” cita-o para dizer que a “Tropicália” seria ainda mais importante: fusional e orgiástico, em cujo contexto a participação (em uma ação cole- tiva) e o pertencimento (a um grupo ou à sociedade) rearranjam o regime O Penetrável principal que compõe o projeto ambiental foi a minha máxi- de distinções entre os indivíduos e entre estes e a coletividade, em paralelo ma experiência com as imagens, uma espécie de campo experimental com à transmutação do espectador em protagonista. A palavra parangolé – as imagens. Para isto criei como que um cenário tropical, com plantas, conversa fiada, papo sem importância, abobrinha – combina autoironia e araras, areia, pedrinhas. Numa entrevista com Mário Barata, no Jornal referência ao coloquial cotidiano, àquilo que nos diálogos é mais forte que do Comércio, a 21 de maio de 1967, descrevo uma vivência que considero o conteúdo intercambiado: o simples estar ali, lado a lado com o outro. importante: parecia-me ao caminhar pelo recinto, pelo cenário da “Tropi- Devolvo a palavra a Hélio, que visitou a Mangueira fazendo circular cália”, estar dobrando pelas “quebradas” do morro, orgânicas tal como a os parangolés: “A derrubada de preconceitos sociais, das barreiras de arquitetura fantástica das favelas – outra vivência: a de “estar pisando a grupos, classes, etc. seria inevitável e essencial na realização dessa terra” outra vez (Idem).3 experiência vital. Descobri aí a conexão entre o coletivo e a expressão individual – o passo mais importante para tal –, ou seja, o desconheci- Penetrar é sentir de novo de um novo modo e viver com mais frescor a mento de níveis abstratos, de ‘camadas’ sociais, para uma compreensão relação com sua morada, o ambiente, consigo mesmo e com os outros. Eis de uma totalidade” (Idem, ibid., p. 76). O artista aproxima-se da con- o ensaio geral para reabrir os grandes dilemas da história do Brasil. A obra cepcão antropológica de festa (Freitas Perez, Amaral e Mesquita, 2012) e de Oiticica interpela o espectador-participador e o incita a desestabilizar do conceito – tão útil no capítulo anterior – de fato social total (MARCEL o que o tempo e as estruturas repetitivas cristalizaram para, das cinzas MAUSS, 1974).2 Recorro a uma metáfora que ele talvez aprovasse: Hélio e dos cacos, da suspensão do que foi naturalizado, do estranhamento, instala na praça central da Polis o umbral – o penetrável – que permite transcorrido o itinerário do ritual de passagem, recompor o puzzle eu-tu. a passagem da dimensão corriqueira em que as estruturas sociais bra- Os penetráveis evocam rituais de passagem (afastamento, liminaridade sileiras autoritárias e iníquas comandam a vida para outra dimensão, desconstrutiva, reintegração), mas os parangolés também aludem ao par externa ao cotidiano, na qual o comando sai de cena e todo o espaço é desestabilização-reestabilização porque vesti-los impõe balançar com eles, tomado pela experiência estética e existencial da redescoberta de sons dançar, mover-se em coreografias inusitadas. Inusitadas porque a forma e sentidos, ritmos e temporalidades, relações consigo mesmo e com os dos parangolés é inusitada, como que a exigir incessantes deslocamen- outros. Essa dimensão não ordinária afirma sua autonomia diante das tos no espaço para ajustar seu feitio assimétrico ao corpo. O parangolé é pressões do sistema institucional, as estruturas, constituindo-se como um manto ou uma capa em cores com divisões e faixas transversais mas fato social total, regido por sua própria lógica contingente e ordenado em contínuas, lembrando a fita de Moebius ou uma peça justaposta a outra, sua anarquia pelo contrato entre indivíduos livres e iguais, um diante do

3 peço que o leitor registre o adjetivo “orgânicas” e a expressão “pisar a terra”. Voltarei 2 sobre a relação de Oiticica e sua obra com o carnaval, consulte Hélio Oiticica. Museu é a elas mais adiante, quando discutir as migrações internas e a urbanização, à luz das o mundo. Organizado por Cesar Oiticica Filho (Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p. 185). reflexões de Tim Ingold sobre as relações entre os seres humanos e o meio ambiente.

58 59 ambas inacabadas, e sempre disformes e desesquilibradas em relação ao o portador do parangolé a dançar, assumindo o protagonismo da cena. A corpo humano ereto. A incompletude sugere vazios a serem preenchidos dança remete a renegociação do corpo com o espaço, no tempo, sendo pelo corpo o que requer movimento. Um convite à dança. O que me parece o espaço ocupado dinamicamente por outros corpos. Rupturas não há, mais interessante na incompletude e na mobilidade é a remissão inevitável mas continuidade e diálogo, na sucessão de metamorfoses coreográficas. e permanente a sobras e restos. A palavra convoca de imediato a tese de Mesmo o salto se dá com as forças disponíveis e nos limites ditados pelo Lorenzo Mammi sobre o estatuto da arte como o que não se deixa assimilar corpo no ambiente, entre outros corpos. plenamente a classificações, conceitos, instituições, cânones ou metodo- Quando traça a genealogia de sua exposição “Tropicália”, Oiticica compõe logias: o resto. Pois é graças ao excesso e à falta, ao evento que transborda uma linhagem que inclui a antropofagia de Oswald de Andrade, Tarsila do e ao objeto que escapa, ao significado que se esfuma e à conta que não Amaral, o cinema de Humberto Mauro e Mário Peixoto, , Noel fecha, que a cultura move-se, em diálogo com a criatividade humana e as Rosa e Araci de Almeida, “e a evolução da música popular urbana no Brasil, dinâmicas sociais (MAMMI, 2012). escolas de samba, macumba, candomblé, todos os mitos e festas populares Para mim foi muito interessante perceber que a ideia de resto não serve do Brasil, principalmente os de origem Negra e Índia, que é o caso geral. apenas para pensar a arte. Serve perfeitamente para designar o desconforto Programas de auditório Emilinha, Marlene, Ângela Maria, Dalva de Oliveira que sinto ao contemplar o conceito de ambiguidade quando empregado etc. etc. e cinema chanchada” (OITICICA, 2011, p. 130). Assinala, portanto, para diagnosticar o aspecto-chave da cultura brasileira. A ambiguidade, seu pertencimento à tradição brasileira relativamente consagrada, à cultura embora verdadeira, alude à incompletude. Se existe ambiguidade é porque pop e à sociedade de consumo, a despeito de sua oposição ideológica ao pelo menos duas versões (não) cabem – ou seja, ambas são impertinentes, sistema econômico e político. Sabe e diz que não fala da estratosfera, não incompletas, ou são pertinentes mas relativas a realidades parciais que cria senão no lugar e no momento histórico que são os seus. conflitam com outras. Parece que a incompletude contamina a própria in- Em evidente diálogo com Hélio, Lygia Clark exibia (performava) as suas terpretação, tornando-a insuficiente ou revelando sua insuficiência. Resto séries Óculos, Máscaras sensoriais e O eu e o tu: roupa-corpo-roupa, também aplica-se às duas alternativas que sugeri – alternativas à resignação com a em 1967 (BASUALDO, 2007, p. 172ss). Ainda em 1967, o cenário de outro ideia de que referir-se à ambiguidade seja suficiente para descrever os fenô- Hélio, Eichbauer, muito próximo do ambiente penetrável criado por Oiticica menos socioculturais ambíguos. Proponho que resto designe a inconclusão para a exposição “Tropicália”, chocou e encantou as platéias de O rei da vela, do processo em que a ambiguidade se realiza: ele permaneceria aberto e de Oswald de Andrade, dirigido por José Celso Martinez Corrêa. Naquele se completaria sob o modo de continuada (re)negociação entre os agentes mesmo ano infernal, sob ditadura mas vibrante como talvez nenhum outro direta e indiretamente envolvidos (cf. VIANNA, 2010). Outra hipótese seria antes ou depois,4 Glauber Rocha estreou sua obra-prima, Terra em transe, adotar a ideia de resto para evocar a natureza prismática da relação entre e José Agripino de Paula publicou seu PanAmérica, sobre o qual escreveu as ambiguidades e a dualidade ontológica instaurada pela escravidão. A Caetano Veloso – a quem Oiticica dedicou o parangolé – no prefácio: “[...] dualidade aparece infletida e refratada, transposta para outras topologias talvez não haja no mundo nenhuma obra literária contemporânea que lhe nas mil e uma faces dos fenômenos ambíguos. A refração deixa restos e possa fazer face. O livro soa (já soava em 1967) como se fosse a Ilíada na performa o novo. Dois restos, portanto: o que sobrou da imagem original e voz de Max Cavalera”.5 O que estava em jogo em todas as frentes era a rein- não foi incorporado no “prisma” e o que o “prisma” produziu além da fonte venção das linguagens artísticas e mais: a reinvenção do modo de pensar original. Desvio e criação, sempre diferença: o vocabulário da ambivalência (e fazer) a sociedade brasileira e suas culturas. A súmula codificada por e da ambiguidade não basta, soa pobre para lidar com a complexidade. Oiticica seria aprofundada, ampliada, ressignificada e desenvolvida pelo Concorde-se ou não com as duas sugestões que apresentei, o fato é que no parangolé estão presentes movimento e incompletude. O primeiro 4 Brincando um pouco com o célebre livro de Zuenir Ventura, 1968, o ano que não ter- surge por força do desequilíbrio, na busca do eixo; a segunda emerge no minou (Planeta do Brasil, 2008), talvez fosse apropriado dizer que 1967 foi o ano que contato entre o corpo e o tecido em desajuste. Somando-se a esses dois acabou cedo demais, sepultado pela carga explosiva que o sucederia. Seu legado fan- componentes a redefinição do espectador, agora participador, conclui- tástico foi abortado pelo drama do AI-5, depois de ter sido em parte deslocado pela urgência e o impacto das lutas políticas. -se que a equação Brasil está montada. O desequilíbrio voluntariamente 5 Veloso, Caetano. Prefácio. In: Paula, José Agripino. PanAmérica. 3a ed. São Paulo: provocado pelo desajuste da capa com o corpo incita a ação, estimulando Papagaio, 2001, p. 5.

60 61 movimento tropicalista, especialmente por Caetano Veloso e Gilberto Gil. recriadora dos tropicalistas –oswaldiana, antropofágica devoradora de Acredito que haja na caixa preta do tropicalismo –entendido como gesto tradições, potencializadora de alternativas e multiplicadora de veredas. estético, existencial e político –, algumas senhas que talvez ajudem a abrir Sua política era outra. Enquanto as canções de protesto ecoavam o velho caminhos no labirinto das interpretações do Brasil. realismo socialista, convocando as plateias para os coros em uníssono nos Em seu ensaio primoroso, “Coro, contrários, massa: a experiência refrões de frases feitas, os rebeldes – com causas para as quais ainda não tropicalista e o Brasil de fins dos anos 60”, Flora Sussekind descreve a havia vocabulário – preferiam desafinar o coro dos contentes, em harmo- proliferação exuberante da criação cultural nas mais diversas áreas e nia com a ousadia transgressora ensaiada por João Gilberto, Tom Jobim destaca uma novidade particularmente significativa: a intensificação das e a bossa nova, cuja importância transcendeu o gosto americanizado da intercomunicações entre os campos culturais (SUSSEKIND, 2007, p. 44). pequena burguesia intelectualizada, surpreendendo o obscurantismo de Em todos eles, processava-se a busca de novas sínteses, acrescenta Flora, muitos críticos sem imaginação. O Maracanãzinho exultava com o mantra, citando Oiticica. O tropicalismo nasce com um disco-manifesto coletivo “quem sabe faz a hora não espera acontecer”, no mesmo compasso que que faria história. Participaram Caetano, Gil, Torquato Neto, , as passeatas entoavam “povo unido jamais será vencido”. Como explica Mutantes, Capinam, Tom Zé e Rogério Duprat. Flora identifica o fio condutor Flora Sussekind: que articulava uma rede dialógica entre os campos e que seria matricial para o tropicalismo, especificamente: Ao contrário, nas criações da Tropicália, interessava [...] provocar o pú- blico e expor-lhe as cisões, sublinhando disparidades, descompassos, Uma vontade construtiva de afirmação de novas relações estruturais, con- trabalhando com uma multiplicidade descontínua de dicções, materiais, jugada paradoxalmente a uma antiformalização desintegradora, a uma com imagens que se desdobram, que se contrariam mutuamente e po- fuga (auto)consciente da forma, tornam-se, pois, elementos fundamen- tencializam tensões. “Toda simultaneidade é complexa”, enfatizaria Glau- tais ao processo de trabalho não apenas de Oiticica ou de compositores ber. Não se trata, aí, pois, de criar correspondências, homogeneidades como Caetano, Gil, Tom Zé; são, igualmente, essenciais à noção de anties- ou analogias entre elementos que, sem maior interferência, e apenas pa- petáculo, ao privilégio do “acontecimento” (e não da “representação”), ralelos, mantenham-se “seguindo na mesma direção”. Seu coro inclui e invocados pelo grupo Oficina (e potencializados em montagens como Na expõe “contrários”. O operador fundamental dos modos corais do grupo selva das cidades e Gracias, Señor), às formas de improvisação trabalha- da Tropicália é, portanto, a simultaneização (p. 49). das por Glauber Rocha em Câncer, e às “imagens descentralizadas e er- rantes”, à “desestetização”, à “negação da forma do filme” que marcariam Na fonte lê-se: “A palavra-chave para se entender o tropicalismo é o cinema de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane (Idem). sincretismo” (Veloso, 2012, p. 286). Eis as perguntas-chave: o que é sincretismo? Qual sua relação com a Compreende-se que esse élan crítico não abrandaria seu sarcasmo simultaneização e com a antropofagia oswaldiana retomada por Zé Celso? dissolvente nem mesmo diante do espelho. Merecer o nome pomposo de De que forma a canção Coração materno, interpretada por Caetano no movimento adjetivado por um título, tropicalista, incomodava seus membros disco-manifesto, dialoga com Macunaíma? Compreender o tropicalismo porque os devolvia à prisão das classificações da qual se empenhavam tanto poderia de fato ajudar a decifrar o Brasil, a cultura popular e suas compli- em escapar. A imprensa carioca insistiu na palavra-chave. Falou sem parar cadas relações com a individualidade e os direitos humanos? na “cruzada tropicalista” (SUSSEKIND, 2007). Até que Caetano contornou a Uma colagem realiza a simultaneização, mas não basta para produzir resistência dos parceiros e os convenceu de que “Se essa é a palavra que os efeitos alcançados pela simultaneidade adotada como estratégia de ficou, então vamos andar com ela” (Veloso apudS ussekind). Não lhe faltou aproximar elementos contrários – ou pertencentes a séries semânticas sensibilidade para a importância da comunicação de massa e do mercado e sintáticas diversas e supostamente incompatíveis –, gerando tensões pop, com os quais o movimento teria de conversar se almejasse a conexão e estranhamentos desnaturalizadores. Operações conhecidas na poesia com a sociedade em grande escala – e essa percepção constituiria um desde sempre mas exploradas com apuro em sua máxima potência – por elemento estratégico do próprio tropicalismo. exemplo, nas vanguardas russas, até o suicídio de Maiakowski – exercitam Flora sublinha a diferença com a arte de matiz populista, politica- a simultaneização. mente engajada na perspectiva tradicional, de que se nutre a intervenção

62 63 A antropofagia não se caracterizaria pela colagem tensionante, mas militar” na abertura da primeira canção do álbum-manifesto, Tropicália, pela assimilação do outro (ou do alvo da devoração), o que envolve a a “Miserere nobis”. Hermano também descobriu um Guevara sibilino es- alteração do devorador, ou seja, a transformação do sujeito no outro que petado por Gil em falsete no meio de outra canção (Vianna, 2010, p. 16). ele come.6 Entretanto, como procurei demonstrar nas considerações so- Mas as alusões guerreiras são secundárias. É claro que me refiro à turma bre o manifesto antropófago, o destino da alteração do sujeito, esse outro da música popular, sobretudo a Caetano e Gil – foi diferente com a trupe que ele devora, ao ser comido, já não é o outro que era antes da relação. do teatro e do cinema. Por isso, a devoração não se esgota em um mimetismo, assim como, no Caetano costuma dizer que só satiriza o que ama. Hermano Vianna âmbito estético, não se reduz à subordinação do outro à lógica poética fala em “ironia amorosa”(op. cit., p. 17), mas tempera seu significado, do poema-sujeito. A antropofagia implica dupla mudança e o movimento assinalando o caráter “trágico e alegre” que identifica no disco-manifesto. da metamorfose. Pelo menos é como a interpreto. Há os que preferem se Capinam, citado por Hermano, disse o mesmo referindo-se à escolha manter no estágio mais simples: o polo que devora assimila propriedades de “Coração materno”, de Vicente Celestino, para o repertório: “Não é do outro e as submete à gravitação de sua linguagem, desestruturando a paródia nem rejeição. Somos filhos disso tudo, e não somos melhores, linguagem objeto e a recompondo segundo a lógica do poema-sujeito da apenas discordamos disso com afeto” (Capinan apud Vianna, op. cit.). devoração. O que vale para o poema se aplica às demais artes. Muito diferente da devoração oswaldiana cheia de veneno, que inundou o A simultaneização pode ser o efeito da devoração no sentido que eu teatro de Zé Celso, e da deglutição barroca e messiânica que Glauber fez lhe atribuo ou no sentido que não me parece o mais fecundo. Ela em certo da mitologia política brasileira e de nossas tradições arcaizantes. Em todos sentido independe da antropofagia para realizar-se. Seu efeito é o estra- eles assomava o desejo de “por as entranhas do Brasil para fora” (VELOSO, nhamento cujo desdobramento é a percepção crítica que desnaturaliza 1997, p. 199- apud VIANNA, idem). Contudo, há diferentes maneiras de determinada forma de vida, isto é, determinada linguagem, digamos ge- fazê-lo: do parto à mutilação, à necrópsia. Outra leitura poderia remeter nericamente. A antropofagia no modo como a compreendo produz mais do ao verbo desentranhar com o sentido de diferenciar e separar as partes do que esse efeito crítico, o qual remeteria ao enriquecimento da consciência todo, ação que corresponde ao trabalho analítico, seja como uma etapa e à instauração de uma metalinguagem inteligente. De meu ponto de vista, do processo de conhecimento, seja como fase inicial de uma colagem, a antropofagia visa ampliar o espectro de abrangência da receptividade, seja como passo metódico para a recomposição transformadora do todo. alargando o repertório e, por essa mediação, estender as possibilidades Cito Caetano, longamente, porque me parece indispensável aconche- criativas, expandir a linguagem e, por consequência, multiplicar as formas garmo-nos na intimidade subjetiva do álbum-manifesto: de vida – mais ou menos como as mutações adaptáveis fazem na evolução biológica. Na concepção do disco Tropicália ou Panis et circensis havia um plano, Flora menciona luta. Caetano, em 68, falou em luta e violência. Era o este sim totalmente tropicalista, de gravar uma velha canção brasileira clima da época – a ditadura emanava enxofre e cinzas. O ódio estava no ar. em tudo e por tudo desprestigiada. Era a supersentimental “Coração ma- Infiltrava-se nos pulmões de todo mundo. Logo depois viriam o desespero terno”, um dos maiores sucessos de Vicente Celestino, o melodramático e suas argolas de chumbo. Por isso a luta fez parte do léxico tropicalista, compositor e cantor de voz operística cuja brilhante carreira remontava só por isso. Era o preço do ingresso na vida feroz daquele tempo. Caetano aos anos 30 e incluía, além de inúmeros discos de sucesso, operetas e pagou tributo como todos nós que militamos na resistência. O movimento filmes, como o recordista de bilheteria, O ébrio de 46. “Coração materno” tropicalista não atravessaria a rua entediado e incólume até a banca de conta a história de um jovem camponês que se vê obrigado a entregar à revistas debaixo da chuva ácida, acendendo um cigarro blasé. É verdade sua amada, como prova de amor, o coração da própria mãe. O matricídio que houve evocações guerreiras aqui e ali entre rimas e clarins, entreden- se dá enquanto a velhinha está ajoelhada diante de um oratório. O jovem, tes. Hermano Vianna chama a atenção para a batida marcial seguida pelo depois de rasgar-lhe o peito e extirpar-lhe o coração, corre para a amada “riff antológico de violão bem alegre, mas urgente, como uma convocação levando-o nas mãos. Na estrada, tropeça e cai, quebrando uma perna. Do coração da mãe, que tinha sido atirado longe, sai uma voz que pergunta: “Magoou-se, pobre filho meu?”, e, num último e extremo golpe comove- 6 essa leitura me parece fiel a Oswald, mas foi inspirada pela análise de Eduardo Viveiros de Castro sobre o canibalismo araweté (Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: dor, exorta: “Vem buscar-me que ainda sou teu”. Jorge Zahar, 1986). Em 67 Vicente Celestino estava praticamente esquecido e seu estilo – o

64 65 extremo oposto do que viera dar na bossa nova – era indefensável. A me- esses atributos acrescentava-se a densidade inusitada conferida à letra: lodia do “Coração materno”, como todas as outras de Celestino, era para a solenidade não empostada, verdadeira, sincera da voz de Caetano fazia nossos ouvidos um mero pastiche de ária de ópera italiana. A ideia de as palavras gravitarem em torno de eixos arquetípicos da cultura popular gravar essa canção me ocorrera por ela ser um exemplo radical do clima e das tradições camponesas. estético acima do qual nós nos julgávamos alçados altamente. Mas essa Em suas reflexões sobre C“ oração materno”, Caetano não cita Macunaí- era uma história que, em vários planos, era mais arcaica do que podia ma. Minha intuição – talvez a memória em fragmentos – levou-me à releitura parecer (VELOSO, 1997, p. 286-287). da obra-prima de Mário de Andrade, depois de passar pelo esclarecedor Morfologia do Macunaíma, de Haroldo de Campos, no qual a ambivalência Caetano refere-se a um episódio infantil que sintetiza o ambiente do- do personagem é destacada, ainda em suas versões popular e indígena. méstico em que transcorreu sua educação estética. Tinha entre quatro e O nome Makunaíma, supremo herói tribal, significa “o grande mau”. Ele seis anos quando sentiu-se humilhado pelo esnobismo cultural dos irmãos aparece como pérfido e grosseiro, mas também criador, transformador ao admitir sua admiração por Vicente Celestino. Por outro lado, o matricídio (CAMPOS, 2008, p. 112). Essa qualidade mágica está presente desde o início bizarro tinha origem em contos populares que tematizavam “a necessidade no romance de Mário. E não apenas como virtude do herói; também como que tem o filho macho de se libertar de um amor materno demasiadamente propriedade da natureza que o cerca. Por aí, chego ao episódio que importa: sufocante” (op. cit., p. 288). Esse mito estaria em sintonia com a sensibi- lidade das massas brasileiras ou até mesmo com “a própria natureza de No outro dia Macunaíma depois de brincar cedinho com a linda Iriqui, saiu toda cultura popular” (Idem). pra dar uma voltinha. Atravessou o reino encantado da Pedra Bonita em Não houve escárnio: Pernambuco e quando estava chegando na cidade de Santarém topou com uma viada parida. O arranjo que Rogério Duprat fez para essa canção é uma das maiores vitórias do tropicalismo. Excelente orquestrador, Duprat criou uma atmos- – Essa eu caço! Ele fez. E perseguiu a viada. Esta escapuliu fácil mas o he- fera de ópera séria (sem, no entanto, deixar de lembrar trilhas de filmes rói pôde pegar o filhinho dela que nem não andava quase, se escondeu por de Hollywood), restituindo dignidade e conferindo solenidade a canção detrás duma carapanaúba e cotucando o viadinho fez ele berrar. A viada execrável, o que fazia ressaltar minha interpretação assustadoramente ficou feito louca, esbugalhou os olhos parou turtuveou e veio vindo veio sincera e sóbria. [...] O resultado [...] é uma peça que comove porque faz vindo parou ali mesmo defronte chorando de amor. Então o herói flechou o ouvinte passar, consciente ou inconscientemente, por todas as referên- a viada parida. Ela caiu esperneou um bocado e ficou rija estirada no chão. cias que pude explicitar aqui –e por tantas outras que não pude (op. cit., O herói cantou vitória. Chegou perto da viada olhou que mais olhou e deu p. 288/289). um grito, desmaiando. Tinha sido uma peça do Anhanga... Não era viada não, era mas a própria mãe tapanhumas que Macunaíma flechara e estava Está tudo aí. A crítica e a diferença de registros não impediram a valori- morta ali, toda arranhada com os espinhos das titaras e mandacarus do zação da canção de Vicente Celestino. Depois de ouvir a gravação belíssima, mato (ANDRADE, 2008, p. 26-27). a sensação do ouvinte, se meu testemunho serve de exemplo, é tríplice: perplexidade, desorientação e encantamento. O choque perturba, inquieta, Sim, exatamente, o matricídio estava já em Macunaíma. O faro de Cae- mistura mapas e bússolas, e tudo se passa sob a aura do deslumbramento. tano não costuma falhar. Intuiu relações profundas com a cultura popular, Mais objetivamente, eis minha hipótese: por meio de Caetano e Duprat identificou alguns pontos de ligação. Escapou-lhe o mais direto e importante. pode-se ouvir “Coração materno” de outra maneira, não só porque os dois O diálogo entre o tropicalismo e a Semana de Arte Moderna, de 1922, tão grandes artistas tropicalistas nos autorizam a fazê-lo, emprestando legiti- ostensivamente travado via Oswald e Tarsila, pôs-se no centro do álbum- midade estética a essa experiência, estendendo sua virtude à canção antes -manifesto, Tropicália, pela via oblíqua de Mário. Curiosamente, a mãe conspurcada, mas, sobretudo porque a gravação fez saltar uma insuspeitada aparece no elogio antropofágico ao matriarcado, em Oswald, e no matricídio, e paradoxal originalidade da peça de Celestino. Originalidade aqui significa em Mário e Caetano. Escrevi extensamente sobre racismo e desigualdades força expressiva, personalidade melódica, harmônica, rítmica e poética. A sociais, mas silenciei sobre a misoginia inscrita no patriarcado despótico.

66 67 A dominação a que a mulher foi submetida não deve passar despercebida, histórico a que me reporto estende-se também ao passado, às formas pelas cabendo à mulher negra o duplo fardo. Por isso, tanto para o modernismo quais o interpretamos, relacionamo-nos com ele e dele nos apropriamos. de 1922 quanto para o tropicalismo dos anos 1960, foi fundamental reverter Os novos ares de liberdade atravessavam de lado a lado a história da mú- simbolicamente essa estrutura de poder, seja pela defesa do matriarcado, sica popular (e da cultura brasileira), os ventos corriam para trás e para seja pela revelação do matricídio na origem de nosso herói sem nenhum frente, levantando poeira, permitindo novos itinerários e descobertas – em caráter. Macunaíma é o mito de origem moderno do povo brasileiro – é contraste com o chumbo opaco da ditadura. Olhar de novo, ouvir de novo, mais ou menos o que admite Mário, em carta a Tristão de Athaíde, em 19 esse frescor de manhã era quase um (re)nascimento, nada no bolso ou nas de maio de 1928 (Campos, 2008, p. 111). E Caetano evoca nosso mito de mãos. O álbum-manifesto interpelava a sociedade brasileira a livrar-se dos origem, pela mediação de Vicente Celestino. antolhos, e essa tarefa formidável deveria ser encetada como uma dimensão Retomo o argumento sobre a originalidade: como seria possível descobrir (essencial) da luta pelas mudanças sociais e políticas. Os estudantes que a autenticidade até então ignorada de uma canção amplamente conhecida vaiavam a guitarra elétrica não estavam mesmo entendendo nada. e depois por longo tempo esquecida? O encontro entre a canção estiliza- O gesto libertador (autorizador) era um gesto autoral, e convidava à da, congelada em classificações rígidas, e a impetuosidade rebelde, livre, participação. Valorizava o indivíduo, inscrevendo-o na comunidade. De autoral, exalando o frescor da juventude, vincada por compromissos com meu ponto de vista, inaugurava um outro sincretismo e uma antropofagia o movimento coletivo que revolvia as entranhas da cultura brasileira, esse diferente daquela encenada por Zé Celso. Caetano, como Gil e seus parceiros encontro, esse diálogo produzia um fruto por tudo estranho, inclassificável, do tropicalismo, compositores, cantores, performers, pensadores da arte, residindo na estranheza dessa conexão a originalidade retrospectivamente da cultura, da sociedade transformavam-se ao transformar a relação da transferida à canção e prospectivamente infiltrada no disco-manifesto, em sociedade com sua memória musical e poética, cruzando gostos de elite e sua carreira, em seus desdobramentos. populares. Caetano mudou Celestino e se transformou ao mudar Celestino. Era possível, portanto, ouvir de novo e ao mesmo tempo pela primeira Em outras palavras: Caetano se transformava ao cantar “Coração materno”, vez uma peça sepultada. Exumava-se o cadáver de uma estética banida ao mesmo tempo em que transformava a canção de Vicente Celestino. Essa do catálogo musical por todos os critérios razoáveis. “Levanta-te e anda”, dupla alteração promovia, simultaneamente, a transformação de práticas sussurravam Caetano e Duprat, soprando vida no oco do fantasma. O reper- e critérios, juízos e sensibilidades, vocabulários musicais e gramáticas tório brasileiro se ampliava – nesse sentido, evoluía. A sociedade recebia poéticas. Ampliavam-se repertórios em múltiplas arenas de atuação: o autorização para fuxicar o relicário abandonado no porão. Registre-se que que um cantor/compositor podia fazer, de que modo podia conversar com valorizar o passado implicava valorizar o país e sua cultura, potencializando a tradição e negociar com as diferenças. O movimento de dupla mudança sua disposição criadora. Observe-se que esse reforço narcísico, no sentido coincide com a interpretação da antropofagia oswaldiana que apresentei. salutar da palavra, valia mais que várias passeatas somadas e certamente O elemento belicista cede lugar ao convívio sem acomodação mútua, sem muito mais que os coros supostamente politizados das redundantes canções recíproca neutralização; pelo contrário, cede lugar ao convívio envolvendo de protesto, carregadas de idealizações simplificadoras, as quais, ante o mútua ação transformadora. O tropicalismo demonstrou que é viável afir- primeiro embate com a complexidade do real, desmaiavam em prostração. mar identidades, pronunciar-se criticamente e marcar diferenças, embora O protagonismo estava em outro lugar. também abraçando alteridades, reconhecendo-lhes a força e a dignidade De fato, havia mais do que a releitura do passado. Havia um gesto estético-cultural. novo no ar, desdobrando o parangolé, fazendo-o girar, um ato libertador Há um plano formal em que peças provenientes de fontes distintas se que revogava as revogações absolutas e irreversíveis. Tornara-se proibido articulam sob a lógica de nova estrutura. O léxico é antigo e a sintaxe, nova. proibir, o que de modo algum implicava aceitar tudo e todos numa geleia Eis uma modalidade sincrética. Derivará dessa configuração nova semântica. geral homogeneizante, acrítica, relativista e vazia. Não se tratava de matar Outro arranjo sincrético inova no léxico mas gera surpresa, submetendo-o o pai, no dia seguinte ao matricídio, dissolvendo todos os limites. O que à sintaxe convencional. Há combinações múltiplas e heterogêneas, em que se declarava suspenso era o banimento da cidade das letras (e das artes) elementos inovadores e tradicionais no léxico e na sintaxe se combinam. como se uma sentença tivesse legitimidade para suplantar a liberdade Essa diversidade de estruturas existe nas artes, nas religiões e em outras criativa e interromper o fluxo da história. Sublinho o seguinte: o dinamismo áreas da cultura humana. Todas elas são sincréticas. O que me parece mais

68 69 importante no tropicalismo, em especial nos percursos de Caetano e Gil, e volúvel, promíscuo e esteticamente rigoroso. O tropicalismo inaugura uma não apenas durante o período em que o movimento teve vigência (pois a dramaturgia para narrar a nova genealogia da cultura popular brasileira marca de origem nunca os abandonou), é sua relação com a alteridade no e apresenta ao distinto público um elenco de jovens que não cabiam nas campo da cultura. Ironizar o que se ama, reconhecendo-se parte de uma classificações disponíveis. Por tudo isso, o movimento tropicalista requer linhagem, valorizando em si mesmos o que é herança e continuidade, e uma etnografia antes que uma semiologia, uma sociologia antes que uma reinventando o que perdera viço na poeira dos escombros. Os ouvidos são crítica estética. Exatamente por esses motivos, as interpretações tradicionais tão importantes quanto os sons e os sentidos das canções. Dedicando-nos do Brasil põem-se em tela de juízo quando o álbum-manifesto chega às a mudar o registro de nossa sensibilidade, credenciamo-nos a compor melhores casas do ramo – e às mais remotas e improváveis. A mensagem canções de novo tipo e, sobretudo, a descobrir novos objetos de prazer, tropicalista perturbadora e desestabilizante não se decifra na lógica das encantamento e sabedoria. Eles serão novos e originais graças à novidade estruturas musicológicas e poéticas: esteve todo o tempo na ponta da lín- de nossa audição. gua dos atores, a depender de suas iniciativas, de seu empreendedorismo, Em outras palavras, eis o gesto exemplar tropicalista: Caetano tira de sua liderança, de sua capacidade de convocação e mobilização, de sua Vicente Celestino pra dançar. Assistindo ao baile, dentro dele, embalados sintonia com o mercado e com os segredos da indústria cultural. Caetano pelo som, compreendemos a beleza do gesto de Gil, tirando Jackson do soube valorizar a jovem guarda de Roberto e mas teve o tino Pandeiro pra dançar, ou Catulo, enquanto Gal desfila com Dalva de Oliveira, de ocupar o proscênio, deslocando as platitudes adolescentes que vendiam Capinam rodopia com Ângela Maria, e Torquato, com Marlene. Caetano gato por lebre e não teriam fôlego para conduzir a juventude na travessia chama Dolores Durán para o meio do salão, encantado com a simplicidade da longa noite. Fundamental é isso: o tropicalismo logrou restabelecer o excêntrica de Jorge Benjor. Tom Zé repassa o som com Carmen Miranda. regime de relação com a alteridade no registro eu-tu. Rogério Duprat troca dois dedos de prosa com Tom Jobim. Os Mutantes O efeito histórico foi extraordinário e até hoje insuficientemente valori- coreografam o samba do parangolé, Oiticica dá o braço a , e João zado: o movimento tropicalista e os desdobramentos que o transcendem Gilberto puxa para um canto e deixa o violão com Dorival Caymi. – embora permanecendo fiéis a seus princípios – formaram nova audiência, A roda se abre. A festa se anima. Pares se formam juntando personalidades novo mercado, nova sensibilidade, uma estética da recepção libertária e culturais, sociais, estéticas distantes no espaço e no tempo, no estilo, no generosa, compatível com a vitalidade exuberante de uma democracia balanço. Caetano tira o bolero do armário e gira na varanda. Gil dá a mão a cultural dinâmica, inclusiva e criativa, que o Brasil jamais conhecera antes. Gonzaga e distribui sanfonas pra roqueiros. Como não é possível entender Tom Zé o diz com admirável lucidez em seu depoimento para o documen- ou curtir a festa de fora, o jeito é participar. Mas o conhecimento possível tário Tropicália, dirigido por Marcelo Machado. está cifrado no modo pessoal do depoimento, do envolvimento. A conversa Retomo outro ponto decisivo: o que caracteriza a dinâmica performática musical é contagiante, não anula diferenças, não dissolve identidades, tropicalista, cuja origem e inspiração vêm de Helio Oiticica, é a predominân- joga com elas e, por isso, elas só resistem se forem porosas e permeáveis. cia da relação eu-tu entre os parceiros diretos ou indiretos, voluntários ou É verdade que soa excessivamente metafórica a referência à festa, acidentais, entre o protagonista e as tradições culturais que interpela, entre baile, rodas de conversa e de samba, pares que se formam e dançam. cada autor e a linguagem herdada, porque a matéria-prima das canções Não obstante as aparências, a descrição é muito menos metafórica do que é parte de uma comunidade de sentido, participa de uma linhagem cuja parece. O que quero dizer é isso mesmo. O tropicalismo não se realiza no dignidade é reconhecida. O que vale para o passado vale para o presente, reino das ideias e das estruturas sígnicas. Seu terreno de ação é o chão da permitindo a extensão interminável do campo de interlocução. festa, é a rua, a praça, o lugar de encontro mais democrático e inclusivo Essa é a linha evolutiva da música popular brasileira de que fala Caetano que se possa imaginar, sem vetos prévios e crachás, sem ingressos pagos Veloso: em vez de linearidade sequencial e aperfeiçoamento progressivo, e cadeiras vip. Sua intervenção no campo da cultura se dá sob a forma de linha e evolução significam ampliação do espectro de abrangência da convite a interlocuções e parcerias, sob o modo de interpelação a todas interlocução criativa e expansão do repertório de realizações e possi- as audiências radiofônicas e televisivas. O movimento tropicalista organiza bilidades. Mais: significa relação entre autores e obras em um circuito e patrocina uma série de performances de personagens cujo carisma só é dinâmico, aberto e inclusivo de trocas. Significa a sucessiva extensão da comparável ao talento transgressor e compassivo, amoroso e irônico, lasso, roda de reciprocidade inspiradora e a potencialização do diálogo crítico

70 71 que, mesmo nas diferenças e tensões, valoriza os interlocutores, reafirma Não por acaso evoco Wisnik. Assim como no drible que se faz como o pertencimento comum a uma linhagem e a reinventa, renegociando a o passo claudicante convertido em “baile”, combinando continuidade e cada passo seu sentido e suas implicações. O povo negro, o samba, as descontinuidade, o circuito de trocas ou o campo de conversa musical e tradições populares, as novas formas do rap, do hip-hop, do funk, nada poética aberto pelo tropicalismo articula continuidades e descontinuidades.7 do que é musical, e mexe com o corpo e a alma, permanece indiferente Wisnik pensava o futebol e associou o drible à elipse, por aí conectando à roda de bambas, onde sempre cabe mais um(a). Nada de geleia geral. o jogo à ambivalência matricial da cultura brasileira – ambivalência que Polifonia, diferenças, choques, mas sempre no circuito das trocas, que a também pode ser entendida como supressão e soma. Creio não deformar internet ampliará e requalificará. A tal ponto se intensifica e expande a sua intuição primorosa se a estendo à nova dinâmica da cultura brasileira, pulsão produtiva da cultura popular brasileira, especialmente em sua ver- que vem reorganizando o espaço musical desde a explosão tropicalista, tente musical, esticando os fios de ligação da rede – como para tirar som aos trancos e barrancos, elipticamente. Nesse caso, deve-se compreender da tensão –, que já não tem cabimento falar em sincretismo, porque seu a elipse como uma das estratégias privilegiadas de ligação entre o novo contrário não faz mais nenhum sentido. Pureza não há e, por isso, a geleia e o tradicional. Insisto no ponto-chave: ambos os polos, o novo e o tra- geral como categoria de acusação esgotou o prazo de validade. Tampouco dicional, redefinem-se mutuamente nessa relação, ambos renegociam o prospera a vanguarda, entendida como tradição da ruptura. No âmbito do pertencimento comum a um campo que se expande, garante continuidade, tropicalismo, o campo musical desdobra-se em múltiplas topologias, mas legitima novas genealogias e incorpora diferenças. Conforme sublinhei, o que predomina – como na dinâmica do parangolé – é a continuidade nas as descontinuidades convertem-se em ritmo, isto é, em parte do jogo, metamorfoses e diferenças, apesar delas e por meio delas. E os ritmos parte da conversa que prossegue. Incorporação aqui nada tem a ver com operam as passagens. O break não quebra nada; faz parte do contínuo, a domesticação reducionista que obsta mudanças. Tem a ver com permea- sequência o incorpora. bilidade à mudança. Volto à reflexão de Wisnik sobre o drible e ao poema de João Cabral No ambiente em que impera o regime eu-tu de sociabilidade, quem de Melo Neto que lhe serviu para exemplificar o funcionamento da elipse, disser “eles”, excluindo algum segmento criativo, correrá o risco de morder “Tecendo a manhã”: a língua, vendo-se em breve cantando em dueto com o Outro, reatando uma relação eu-tu. Não porque tudo seja possível, mas porque os atores Um galo sozinho não tece uma manhã: continuam vivos e renegociam suas relações com valores, opções estéticas ele precisará sempre de outros galos. e referências, dentro e fora do país. Essa rede se globaliza depressa. Nas- De um que apanhe esse grito que ele ceu transnacional. E o tropicalismo derrubou barreiras. Quando Caetano e o lance a outro; de um outro galo e Gil vestiram os parangolés de Oiticica, experimentaram o desajuste da que apanhe o grito que um galo antes capa colorida como impulso ao movimento da dança. Nesse momento, e o lance a outro; e de outros galos assumiram um tipo de protagonismo cuja virtude depende do reconhe- que com muitos outros galos se cruzem cimento dos outros corpos no espaço, depende da atenção ao desenho os fios de sol de seus gritos de galo, ágil de suas coreografias imprevisíveis, livres, individualizadas, porém para que a manhã, desde uma teia tênue, indiretamente coordenadas pela percepção comum de pertencimento à se vá tecendo, entre todos os galos. mesma arena – em expansão. (WISNIK, 2008, p. 310) Caetano e Gil já não são tropicalistas porque o movimento foi um evento datado. Mas permanecem fiéis ao que deu sentido ao movimento e o fez A movimentação mal se vislumbra, mostra-se por seu efeito porque perdurar por seus efeitos, até porque seus efeitos não são mais do que a o verbo lançar é suprimido, lançando-se a ação para a frente sem que se acompanhe a descrição de cada sequência: supressão que é soma, eis a elipse. O resultado é belo como o processo, ambos independentes, dada a 7 Há personagens picarescos nas mitologias indígenas e populares que usam a omissão da passagem entre causa e efeito: “A manhã, toldo de um tecido deficiência de seu movimento físico como recurso para ludibriar os inimigos e operar mediações entre planos distintos, como natureza e cultura, a humanidade e o mundo tão aéreo/que, tecido, se eleva por si: luz balão”. espiritual. Saci Pererê não está sozinho, nem Garrincha foi o único clown genial.

72 73 perpetuação do novo regime de relação com a alteridade a que deu origem. foram recalcadas na memória coletiva: a revolução cultural tropicalista e Em vez de substituir uma classificação antiga, populista ou elitista e careta a formação do Estado democrático de direito, nos termos da Constituição por outra, o tropicalismo suprimiu a ordem das classificações, pondo em de 1988, ainda que sua implantação prática esteja distante. A história do seu lugar a continuidade como experiência e valor. Continuidade que em samba e do futebol, assim como conquistas políticas e mudanças legislativas nada é conservadora ou acrítica, daí a importância da paradoxal categoria representaram ao longo do século XX dinâmicas importantes, de grande evolução, adotada por Caetano, cujo significado, como vimos, não é linear- impacto, contrárias à perpetuação traumática da grande divisão. Porém, -evolucionista. Continuidade aqui aponta para movimento e relação, mais os dois eventos referidos, além da afirmação histórica da consciência negra especificamente para relação em movimento.O que evolui (expandindo-se organizada, situaram os avanços anteriores em novo patamar, oferecendo- – aqui quantidade é indissociável de qualidade) é o repertório não só das -lhes novas condições de possibilidade para seus desdobramentos. obras valiosas, mas dos valores, das possibilidades de (re)criá-las, dos Dramatizando a autopoiesis da individualidade solidária e participativa, meios de produzi-las e de fazê-las circular, ressignificando-se na circula- e recusando clivagens excludentes (símbolos indiretos da grande violência ção. Por isso, evolução aponta para o futuro e também para o passado. brasileira, a escravidão), Oiticica e o tropicalismo foram e ainda são fun- Sublinho o caráter múltiplo da continuidade: trata-se de um modo de ser damentais não só para a cultura brasileira, mas para a história dos direitos e agir na relação com o campo musical e seus atores, de um modo de humanos no Brasil, para a metabolização cultural dos sentimentos, dos pensar, correspondente a certos valores. Portanto, continuidade, aqui, é valores e das experiências que lhes dão sentido. experiência, categoria de pensamento e valor. Esta equação foi formulada desde o primeiro parangolé que impelia o movimento do corpo entre cor- pos, transformando o espectador em protagonista, colando percepcão e uso, portanto sobrepondo inteligência e performance, pensamento e ação, interpretação e intervenção, fazendo coisas com palavras e palavras com coisas, e danças. Quando afirmo que as classificações foram abolidas como modo de funcionamento das relações com os autores da música popular brasileira e suas obras (claro que o campo de referência não se esgota nesses limites), quero dizer que as classificações foram substituídas pela valorização radical da individualidade e a liberdade de suas escolhas autônomas. Entretanto, individualidade não implica individualismo fragmentário ou “egoísta”, da- rwiniano, ou típico do modelo utilitarista, uma vez que, no contexto desse argumento, predomina a relação eu-tu, nos termos já descritos: relação regida pelo “amor”, significando não menos do que respeito e reconhe- cimento da dignidade do outro. Recordemo-nos ainda que o “amor” não neutraliza a crítica e o afastamento, e as transformações, como vimos. A “continuidade” e a afirmação culturalmente heroica da individualidade e de seu gesto livre tematizam tacitamente, revertendo-a, a duplicidade ontológica instalada pela escravidão, recalcada pela memória social e insu- ficientemente desconstiuída pelo igualitarismo democrático – plasmado na Constituição de 1988. O adjetivo heroico se justifica: tratava-se de ousadia subversiva à ditadura e às homogeneizações que ela cobrava, cujos ecos à esquerda eram os coros unívocos. Ousaria dizer que, além do nascimento do movimento negro, há duas grandes intervenções dissipadoras dos efeitos da dualidade ontológica, cujas significações mais dolorosas e profundas

74 75 Referências

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76 77 Hélio Oiticica depois de junho de 2013: na trama da terra que tremeu “Dê-me um corpo”: esta é a fórmula da reversão filosófica. O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, Giuseppe Cocco aquilo que deve superar para conseguir pensar. Professor da UFRJ É, ao contrário, aquilo em que mergulha ou deve mergulhar para atingir ao impensado, isto é, a vida. Gilles Deleuze

“Museu é o mundo”

Comecemos por uma análise material. O mundo é hoje desenhado por redes de territórios e comunicação. Seu espaço-tempo é o da circulação nas me- trópoles. Uma circulação que já é produção: formas de vida que produzem formas de vida, produção de conhecimento por meio de conhecimento, em espiral. Na circulação, a produção se torna uma bioprodução: toda a vida é posta para trabalhar, trabalho e vida coincidem e se misturam. A “alma” do trabalhador tem que descer nas oficinas e ao mesmo tempo as oficinas saem do chão de fábrica para difundir-se na sociedade, entre os territórios (metropolitanos dos serviços) e a comunicação (a nova forma de trabalho em rede). A alma volta a se juntar ao corpo e a produção de subjetividade devem o terreno fundamental da geração de valor. Claude Lévi-Strauss disse em suas conferências no Japão que passamos de uma época que transformava os homens em máquinas para uma em que as máquinas se transformam em homens. Em algum momento, Negri escre- veu: “O homem é hoje uma máquina na qual se inscrevem a produção e a arte”. Ontem, o “abstrato subsumia a vida”, hoje é “a vida que subsume

79 o abstrato”: estamos no meio das máquinas e antimáquinas humanas de Essa ambivalência aparece com aquela nitidez selvagem e naïve da qual Jean Tinguely.1 A produção biopolítica está ancorada nos corpos e nas re- o Brasil é capaz: um sem-número de museus sobrevivendo ou até largados lações que eles instauram entre eles no seio das multidões. Podemos falar e o Rio de Janeiro onde um sem-número de “novos” museus entregues à mesmo de metamorfoses dentro e pela produção de próteses que geram gestão da grande mídia, sem esquecer o mais caro e imponente largado não mais um excedente quantificável de tempo ou de utilidade, mas uma ao nada ainda antes de ser terminado (a “cidade da música”, agora “cida- excedência, algo como um aumento da potência dos corpos acoplados a de das artes” construída por César Maia). Por um lado, como dispositivo novas ferramentas, como os ciborgues de Donna Haraway: as redes que tipicamente moderno de classificação da(s) cultura(s) (e das espécies), se fixam na comunicação e na cooperação dos corpos e o êxodo que se das heranças e das civilizações o museu passa pela crise do moderno e de constitui na mobilidade espacial e sua flexibilidade temporal: “o corpo da sua vocação, como a definia John Dewey, nacionalista, militarista e impe- metamorfose é, pois, aquele que se apropria da ferramenta, a faz sua por rialista.6 Por outro, o museu se torna um agenciamento de produção de meio da rede e do êxodo, sob a forma da prótese”.2 Entre redes e ruas, os sentido e por isso uma “nova fábrica” nos territórios de um trabalho que territórios metropolitanos são atravessados e desenhados por um trabalho se torna comunicação. Emblemática a inauguração (em junho de 2006) que se torna cada vez mais comunicação. Nos termos de Manuel Borja-Villel: do Musée du Quai Branly (“des arts premiers”), onde foram “recicladas” “Em uma sociedade como a nossa, em que a diferença entre produção as coleções de antropólogos, de estadistas (o próprio presidente Jacques e reprodução é cada vez mais escassa e na qual o ator típico do capital Chirac) e do Musée des Colonies, que se encontrava ao lado do grande pós-fordista é o que desenvolve um labor mental ou simbólico, a arte e o jardim zoológico da Porte Dorée: na era pós-colonial, os objetos dos povos museu, como cenário privilegiado onde isso acontece, têm adquirido uma colonizados (e dos indígenas em geral) mudaram de estatuto: de “provas” centralidade até agora desconhecida”.3 Nessa perspectiva, a instituição (científicas) documentais das conquistas e das etnografias, foram pro- museu hoje aparece ao mesmo tempo obsoleta e nova, ultrapassada e movidos ao estatuto de “obras de arte”. Ao mesmo tempo, para além da urgente. E isso na medida em que, como diz mais uma vez Borja-Villel, a manutenção de seu estatuto segregado, essa mudança de estatuto provoca própria “arte tem se convertido em uma espécie de vaselina social, um um sem-número de questões sobre a aura, a autenticidade, o verdadeiro elemento disruptivo, mas que serve para tornar os bairros mais coesos, e o falso das obras.7 A instituição museu é cada vez mais urgente e cada legitimar ações”.4 Borja-Villel fala da Espanha, dos Estados Unidos e da vez mais paradoxal, totalmente atravessada pelo conflito: não por acaso, Europa. No Brasil, a preocupação com a “coesão” social é mínima: o que a inauguração do Museu de Arte do Rio (MAR), em maio de 2013, foi objeto a arte legitima – sem muita vaselina – é uma pacificação que passa pela de uma contestação artística e social que antecipava o levante de junho: militarização e hoje sequer isso. Os artistas, continua Manuel, são para os contestação não apenas do museu, mas também das exposições, em par- moradores o que antes, nos anos 1970, eram os assistentes sociais, sendo ticular aquela dedicada à produção artística de apoio ao movimento dos que estes eram o que antes eram os padres: “Estamos em uma situação sem-teto de São Paulo de 2003. na qual a arte, a cultura e o artista desempenham um papel ambíguo: eles Hélio Oiticica participava da crítica que os artistas faziam da própria têm um papel hegemônico, pois nunca a cultura tinha sido tão popularizada ideia de museu desde a década de 1960, questionando o próprio dispositivo. e, ao mesmo tempo, tão banal...”5 Ele disse, então, que “museu é o mundo”, mas o mundo continua indo para o museu, sob o controle de curadores, críticos e historiadores. Quando o

1 Dorléac, Laurence Bertrand. L’ordre sauvage. Paris: Gallimard, 2004, p. 240 e seguintes. 2 Negri, Antonio. Lettre à Raúl: sur les corps (1999). In: Art et multitude. Paris: Mille et 6 Dewey, John. The collected works of John Dewey – vol. 10 (1934). Southern Illinois Une Nuits, 2009. University Press. Tradução francesa por Jean-Pierre Cometti, Christophe Domino, Fabi- enne Gaspari, Catherine Mari, Nancy Murizilli, Claude Pichevin, Jean Piwnnica et Gilles 3 Borja-Villel, Manuel. 10.000 francos de recompensa (El museo de arte contemporá- Tiberghien. L’art comme experience. Université de Pau, Pau, 2005, p. 26. neo vivo o muerto), Congresso da ADACE, Baeza, 15 a 19 de dezembro de 2006. Anais publicados em 2009, p. 14. 7 Vide o debate organizado no dia seguinte da inauguração pelos curadores do novo museu francês. LATOUR, Bruno (org.). Le dialogue des cultures: Actes des rencontres 4 Borja-Villel, Manuel. La arquitectura como ideologia. In: León, Juan Miguel Hernán- inaugurales du musée du Quai Branly (21 juin 2006). Paris: Babel, 2007. Em particular a dez (ed.). El museo: su gestion y su arquitectura. Madrid: Arte y Estética, 2012, p. 124 relação e o debate seguinte de Daniel Fabre, “De combien de manières un objet peut-il 5 idem, grifo nosso. être authentique?”, p. 327 e seguintes.

80 81 mundo vai para o museu nos descolamos de nossa experiência e passamos o único Cézanne que existe”.10 Jean François Billeter fala do paradigma da à ideia e, como diz Maurice Merleau-Ponty, não nos preocupamos mais com integração que nos gestos torna natural o que é artificial, numa unidade viva o nosso corpo. Assim, perdemos o contato com a experiência perceptiva de estilos, naquela situação em que não há mais oposição entre cultura e e não entendemos mais nada: nem do objeto, nem do sujeito. O museu natureza: “a cultura da música não seria nada sem a natureza do corpo”.11 é nesse caso uma perda de sentido, uma perda de mundo: uma bandeira Trata-se sempre de modulações da existência e “o corpo é uma obra de vermelha nas mobilizações da multidão. arte, pois ele é um nó, um elo de significações vivas”, como um quadro, Para que “museu seja o mundo” é preciso que a arte se mantenha na uma música ou uma dança. A estética é uma experiência encarnada. vivência que a produz e nas experiências que ela produz. Isso nos leva de Merleau-Ponty termina seu denso livro sobre a fenomenologia da volta ao corpo, quer dizer ao verdadeiro veículo do ser ao mundo: ter um percepção com uma longa reflexão sobre a liberdade. A liberdade, diz corpo é ter um ponto de vista, juntar-se ao meio ambiente (milieu), misturar- Merleau-Ponty, é sempre um encontro, pois nós “estamos misturados ao -se com determinados projetos e envolver-se neles. Isso significa que nós mundo e aos outros, numa confusão inextricável”. Nesses encontros, nes- só temos consciência de nosso corpo através do mundo e, em espiral, sa confusão é que se definem as estruturas, as civilizações, os estilos de teremos consciência do mundo através do corpo. Aqui e nesse sentido o vida, as danças e as heranças – os museus de ontem e de amanhã: “Que museu é o mundo. Psiquismo e fisiologia não se distinguem na experiência se trate das coisas ou das situações históricas, a filosofia não tem outra da existência: a união de alma e corpo não pode ser decidida por decreto função que de nos aprender a bem vê-las”. Nesse sentido, a filosofia só se arbitrário sobre dois termos externos (sujeito e objeto), mas acontece a realiza “destruindo-se como filosofia separada” e destruindo ao mesmo cada instante no próprio movimento da existência: na dança entendida tempo, complementamos, a existência segregada da arte. De repente, o por Oiticica como gesto da imanência do ato corporal e expressivo. As filósofo precisa da vida: A“ qui é preciso ficar calado, pois somente o herói danças como evento coletivo e primordial da estética do cotidiano. Como vivencia totalmente sua relação aos homens e ao mundo e não é bom que não pensar na dança da multidão no levante de junho de 2013: os jovens um outro fale em seu nome” (grifo nosso). Aqui, curiosamente, o filósofo jogando seus corpos na luta: na tentativa de tomada da Alerj no dia 17 de conclui citando Antoine de Saint-Exupéry em seu livro: Pilote de guerre. O junho8 e logo depois dançando em cima do caveirão na avenida Presidente escritor narra uma missão como piloto da aviação militar francesa que ele Vargas no dia 20 de junho,9 desafiando o dispositivo de morte que toca o mesmo realizou e da qual ele sobreviveu miraculosamente. Não se trata terror do Estado corrupto para cima dos pobres. só da guerra, mas, sobretudo, da derrota: o que significa arriscar a vida A existência é movimento e todo movimento é ao mesmo tempo cons- quando o país (no caso a França em 1939) já foi derrotado? Saint Exupéry ciência do movimento. Merleau-Ponty lembra que todo movimento tem um pilota um avião de reconhecimento, sem cobertura da caça e com grande fundo que o anima e o leva a cada instante. O movimento abstrato constrói probabilidade de ser derrubado. Sobrevoa as concentrações de tropas e seu fundo ao passo que o movimento concreto tem seu fundo como dado. material de guerra do invasor alemão para tirar fotos e ter informações É no entrecruzamento desses movimentos que se constitui o poder de que – caso ele consiga voltar – não terá a quem encaminhar. O herói que desenhar fronteiras, direções e linhas de força, quer dizer de organizar-se Merleau-Ponty cita é um anti-herói, já derrotado. Mas a significação está formando um mundo. Um movimento é compreendido quando é o corpo mesmo nessa inutilidade do combate: na falta de significação. A França, que o compreende, incorporando-o a seu mundo. Aqui, nesse momento diz ele, e, mais em geral, o humanismo correm o risco de morrer por causa e nesse movimento, Merleau-Ponty diz que o corpo não se compara a um de sua inteligência: uma inteligência totalmente abstrata, aparentemente objeto, mas a uma obra de arte. Por quê? No quadro, em uma música, em cheia de razões e na realidade vazia de sentido, uma alma sem corpo ou uma dança, a ideia só pode comunicar-se pelo desdobramento das cores, um corpo sem alma, uma obra segregada nos muros de um museu. Missão dos sons, dos movimentos: “É a percepção de seus quadros que me restitui impossível, “pátria derrotada”, morte certa: o que fazer na beira do abis- mo? A resposta está num simples convite a sentar à mesa, junto com os companheiros que ainda sobrevivem na fazenda do camponês que abriga

8 Cava, Bruno. A multidão foi ao deserto. São Paulo: Annablume, 2014. 9 Cava, Bruno e Cocco, Giuseppe (orgs.). Amanhã vai ser maior. São Paulo: Annablume, 10 Merleau-Ponty. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. 2014. 11 Billeter, Jean François. Un paradigm. Paris: Allia, 2012, p. 15.

82 83 a esquadrilha. Sentado à mesa, Saint-Exupéry realiza: “Adquiri um novo consumida em sua imagem, se não é em seu uso, por um povo inteiro que laço. Reforcei em mim esse sentimento de comunidade. Tenho o direito se apropria nela de um objeto perfeitamente mágico”.13 A vitória está na de sentar à mesa e de ficar com eles. Esse direito se compra muito caro, comunidade e o amor que a funda: “Nós sentimos o calor dos laços: eis mas ele vale muito caro: o direito de ser”. De onde vem esse valor, esse não porque nós já somos vitoriosos: porque nossa comunidade já nos é sensível. ter preço do direito de ser? Saint-Exupéry explica: “Eu joguei toda minha Uma cultura, uma civilização precisa manter seu fermento”. O humanismo é carne na aventura e joguei para perder”. ameaçado, derrotado por ter perdido seu fermento e por procurar explicar Assim, jogando seu corpo na luta, Antoine de Saint-Exupéry adquire “o sua derrota pela moleza dos fieis. direito de se sentir tranquilo, quer dizer de participar, ser enlaçado, comu- Quais são hoje a obra e o museu capazes de armazenar o fermento de nicar, receber e doar, receber esse amor”. O amor verdadeiro é, pois, uma uma herança viva? Se o que procuramos é esse fermento, essa cultura “rede de laços que faz devir”. A noção de cultura e herança aparece assim viva, é porque pensamos e sabemos que o “ser” não é nem o império da de maneira simples e potente, no meio de algo como uma missa sagrada lógica, nem o império da linguagem, ainda menos das bandeiras e outros e profana: “O camponês que distribui o pão no silêncio [faz] o exercício de totens, mas dos atos e “o ato essencial – para o piloto de guerra que luta um culto: esse compartilhar”. Mais uma vez a noção de valor é mobilizada: derrotado – é o sacrifício”. Nós diremos que o ato essencial é a luta, o “O sabor do pão compartilhado não tem igual”. O culto do comum se torna êxodo: “pois não se trata nem de uma amputação, nem de uma penitência, assim a explicação do sentido de uma luta já perdida, mas que vale a pena mas da dádiva de si mesmo ao ser do qual pretendemos nos reclamar”: ser combatida exatamente porque ela produz sentidos: “Lutei pela luz um território, uma cidade, uma favela! Lutando por um território, “tendo particular na qual se transfigura o pão nos lares de meu País”. No comum, sacrificado uma parte de si a esse território”, tendo lutado para salvá-lo o que acontece é outra economia, uma economia do comum, na qual a e suado para torná-lo mais belo, poderemos entender esse território, ter riqueza se produz na e pela multiplicação dos laços: “Quando o camponês “amor” por ele: um território que não será a soma dos interesses, mas a distribuiu pão, ele não deu nada. Ele compartilhou e trocou. O mesmo trigo soma das dádivas. Temos nesse momento duas pistas de trabalho. Em circulou em nós. O camponês não se tornou mais pobre. Ele se enriqueceu primeiro lugar, a herança como fermento não tem preço: que valor é esse? porque ele se nutriu de um pão melhor: o pão da comunidade”. Esse pão da Entre interesses (juros) e dádivas, qual o papel do comum entre os dois? comunidade e o valor que produz pelo compartilhamento são exatamente o mesmo que os teóricos das redes estão pensando desde a explosão da internet e os movimentos do copyleft: o custo marginal da duplicação da Transformar o valor: uma antiarte e uma política dos corpos informação tende a zero ao passo que seu valor aumenta proporcionalmente ao aumento do numero de compartilhamentos.12 A herança entendida como fermento e como laço nos leva ao debate sobre A riqueza está em outro lugar: nos laços e no sentido que faz a comu- o valor. Sabemos que para a economia clássica o valor é o trabalho incor- nidade e que a comunidade faz. A vitória e o heroísmo também estão em porado nas mercadorias. Para a economia neoclássica o valor é a utilidade outro lugar: “Com certeza, nós já somos derrotados. Tudo desmorona. Mas da mercadoria. Nos dois casos atribuiu-se ao valor uma dimensão subs- eu continuo sentindo a tranquilidade do vencedor”. É importante enfatizar: tancial que existiria a priori, antes da troca mercantil. Para os clássicos, ele não escreveu isso depois da guerra, depois da liberação da França. inclusive os marxistas, a moeda é apenas o reflexo do valor determinado Pelo contrário, ele escreveu sem perspectiva nenhuma de uma vitória que pelo trabalho e, pois, se trataria de alocá-la corretamente em função desses a guerra não lhe deixará o tempo de ver, pois desaparecerá junto com seu parâmetros: para remunerar os “fatores” ou para reduzir ou a exploração. avião alguns tempos depois numa outra missão. Saint-Exupéry complemen- Para os neoclássicos e os marginalistas, a moeda não desempenha nenhum ta: “Qualquer um que leva em seu coração uma catedral a construir, já é papel e, por isso, é preciso não tocar nela para que o equilíbrio possa se um vencedor”. E a catedral, dizia Roland Barthes, é “uma grande criação estabelecer a partir do jogo da oferta e da procura que formam um siste- de uma época, concebida apaixonadamente por artistas desconhecidos,

13 esse famoso texto de Roland Barthes, escrito entre 1954 e 1956, compara as catedrais 12 Aigrain, Philippe. Cause Commune: l’information entre bien commun et propriété. ao automóvel, o que não tira absolutamente nada à força do mito constituído por uma Paris: Fayrad, 2005, p. 67. obra coletiva. Mythologies. Paris: Seuil, 1957, p. 150.

84 85 ma de preços que corretamente reflita a utilidade dos bens que estão no a moeda viabiliza as trocas mercantis não violentas mas passa a conter mercado: no fundo, por trás da troca monetizada, o que acontece seria um dentro dela, como instituição separada, essa violência. Valor e moeda escambo. Paradoxalmente, a utopia marginalista pensa uma economia sem precisam assim procurar algum lastro. O lastro da moeda é, pois, aquele moeda, assim como as utopias libertárias. Para Hélio Oiticica, “as teorias dos emblemas, mas esses emblemas podem ser verdadeiros ou falsos e do valor [...] FEDEM!”14 isso na medida em que tendem a se separar dos processos que os criam e Na realidade, o valor é totalmente relacional, determinado na troca, e a criar sua transcendência. a moeda é a instituição que a troca gera e ao mesmo tempo a permite. A Dessa maneira, a questão do valor nos leva àquela da moeda e essa moeda é aquele objeto que, sendo gerado na troca e pela troca, separa-se àquela do valor e da significação e assim chegamos ao papel da arte e mais, dela e aparece como instituição independente capaz de representar legiti- no geral, da criação: a economia procura resolver na arte os enigmas do mamente o poder social que circula e se produz nas trocas. A potência da valor como se pudesse fornecer um novo lastro, ou uma nova substância moeda vem, pois, do fato de ser um objeto capaz de captar uma confiança ou uma nova transcendência. Lorenzo Mammì diz que na passagem ao geral, um sentimento comum. Ela funciona como um “totem”: o emblema moderno, com o Renascimento, que rompeu a distinção medieval entre de um clã que capta o afeto comum. A moeda é uma representação cole- matéria e espírito, deixando no seu lugar a obra de arte. Essa, ao mesmo tiva, como o totem, que captura os afetos e os sentimentos da sociedade. tempo, torna-se mais instável que seu sentido; é inesgotável. Diante dessa Em retorno, a sociedade lhes atribui propriedades que ela não tem: como variação infinita, Mammì pensa que é a crítica que passa a conferir valor o totem ou uma bandeira tem qualidades sem nenhuma relação com o numa situação na qual a obra não tem matéria definida e, pois, não pode animal ou o pedaço de tecido, da mesma maneira a moeda tem qualidades ser avaliada com base em categorias definidas. É a crítica que confere valor sem nenhuma relação com o metal, o papel ou o sinal digital da qual ela à obra e ao mesmo tempo é a obra que gera suas categorias. “A obra não pode ser feita. Isso porque o emblema não apenas recolhe o sentimento pode mais ser submetida a categorias. Ela própria gera as categorias pela da sociedade, mas serve para produzi-lo.15 Os signos simbolizam as repre- qual é julgada”.16 Estamos na espiral ou numa tautologia? Onde as formas sentações porque contribuíram para formá-las. A moeda, então, simboliza de vida que produzem formas de vida encontram seu lastro? A “casa da o valor porque captura o poder de compra e contribui para o processo de moeda” é o ateliê do artista ou o escritório do crítico? “valoração”. A autonomia do valor não é o resultado de nenhuma substância Hélio Oiticica considera que a “parafernália bestiológica” dos críticos não que haveria por trás do valor, mas do papel que desempenha a moeda. É resolve e lembra que sua própria “evolução pode ser chamada de antiarte, a instituição da moeda que se torna autônoma. Temos, assim, dois enig- daí a conotação com a definição de décio pignatari sobre oswald”.17 Uma mas retroalimentados ou duas tautologias: o enigma do valor que, sendo perspectiva que está em aberta “oposição ao sistema vigente de administra- totalmente relacional, procura na moeda seu lastro e o enigma da moeda ção da cultura (complexo editorial, ensino, museus, exposições, concertos, que procura sua métrica no “valor”. Nessa dupla dimensão enigmática etc.)”.18 Sua inspiração é situacionista: a antiarte é o único caminho para se temos a potência e ao mesmo tempo a fragilidade do sistema de trocas fugir da sociedade do consumo e do espetáculo: “enquanto a ‘obra’ for ‘obra’ que delas depende. Contudo, parece claramente que são os mecanismos continua a urgência de ‘criar obras’: sempre me impressionou, dando-me relacionais do mimetismo e do desejo que explicam a mecânica do valor e tédio e desinteresse incríveis o número de obrigações (expor, promover, aquela da moeda, nos jogos de produção de opiniões majoritárias, segundo ‘estar em dia’) que os artistas possuem [...]”.19 Ou seja, “não basta que a a lógica mimética da moda, capazes de produzir confiança e, pois, a ins- tituição monetária. Por um lado, o valor permite fazer a diferença entre a equivalência em valor das transações mercantis e todas as outras formas 16 MammI, Lorenzo. Isto, aquilo e o valor disso. In: O que resta. Arte e crítica de arte. São de apropriação (a dádiva, o roubo, a captura, a redistribuição). Por outro, Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 38. 17 Oiticica, Hélio. Anotações para uma próxima publicação, 1O de setembro de 1971. In: Conglomerado newyorkaises. Op. cit., p. 93. Os nomes são escritos no original de Hélio 14 Oiticica, Hélio. Carta a Waly (janeiro a fevereiro de 1974). In: Oiticica Filho, César sem maiúscula. e Coelho, Frederico (orgs.). Conglomerado newyorkaises. Rio de Janeiro: Azougue, 18 décio Pignatari, citado por Hélio Oiticica. In: Conglomerado newyorkaises. Op. cit. 2013, p. 147. 19 Oiticica, Hélio. Anotações para uma próxima publicação, 1º de setembro de 1971. In: 15 estamos usando as reflexões de André Orléan em L’empire de la valeur. Paris: Seuil, 2011. Conglomerado newyorkaises. Op. cit., p. 95.

86 87 obra seja descolada de certos contextos”, é preciso mesmo sair do âmbito sua primeira condição”. Por meio dessa vivência total, o “espectador” se da arte. Oiticica é claramente inspirado pela revolução cultural situacionista transmuta em “participador” e isso, diz Hélio Oiticica, por meio da “insti- e suas “Directives” para o “dépassement de l’art”.20 tuição e reconhecimento de um espaço intercorporal, criado pela obra ao Hélio usa uma citação totalmente nietzschiana de Yoko Ono para ex- ser desdobrada”.24 O vestir se contrapõe assim ao assistir na produção de plicitar o desafio: “creating is not the job of the artists. the job of the artists uma obra-ambiente, de um sistema ambiental. A subjetividade que Hélio is to change the value of things”.21 propõe é quase animista, como diria René Schérer uma “proliferação de A antiarte é uma arte ambiental que não cria “obras” que possam servir agenciamentos maquínicos e territórios existenciais em formação”.25 de lastro e substância ao sistema de valor, mas situações que transformem Oras, José Gil lembra que “os corpos são mais livres que as imposições os valores. A arte ambiental implica a vida como obra de arte e as duas são, de signos” e a mudança no regime dos signos – e da relação desses ao então, vias de fuga que se articulam com uma política dos corpos. Dito com corpo – se reflete – justamente – na dança. Nas sociedades arcaicas a José Gil: “o operador da tradução dos signos no ritual é o corpo” porque dança – individual ou coletiva – embora sempre ligada a um simbolismo o que se encontra entre as forças e os signos é exatamente o corpo e isso (a um rito) não implica na submissão rigorosa aos imperativos da signifi- nos faz “entender porque o primitivo não precisa interpretar a significação cação. A energia do dançarino, seu élan, sua singularidade e seu próprio inconsciente dos signos e dos atos simbólicos: ele os porta em seu corpo”.22 investimento dão vida aos símbolos dançados. No limite, o símbolo é apenas Qual seria, então, a moeda produzida por um tipo de símbolos que não um pretexto para a dança.26 Trata-se, pois, de um tipo de “infralíngua ao se separam em totem e bandeiras e continuam, como a dança, imanentes estado puro”. O dançarino que reproduz um ou mais símbolos pelo corpo, à sua produção democrática? É aqui que encontramos novamente Hélio e “ele decompõe os movimentos, quebra os ritmos, refaz os conjuntos. Eis sua atualidade urgente, com a afirmação que museu é o mundo: o território porque essa dança é ela mesma, sem ter que obedecer ao um sentido de- que produz e mantém vivo o fermento é aquele que nos faz ser no mundo, terminado, tão ‘libertadora’”.27 Ao passo que algumas danças visam alcançar que faz do corpo uma obra de arte, um elo de significações. A proposta um caráter absoluto descolando-se dos constrangimentos corporais, redu- de Oiticica é, pois, aquela da arte ambiental, o Parangolé: “[...] o ‘achar’ zindo o corpo a um signo ou a uma máquina a produzir signos, as danças na paisagem do mundo urbano, rural etc. elementos Parangolés”. Assim, africanas descodificam o corpo “enraizando-o ainda mais no mundo, em na arquitetura das favelas “está implícito um caráter do Parangolé, tal a suas energias e ritmos”, totalmente “libertada do peso dos símbolos”.28 organicidade estrutural entre os elementos que a constituem e a circulação Os ritmos criam o espaço e o tempo que somente existem porque “mate- interna e o desmembramento externo dessas construções”. Com efeito, rializados num envelope rítmico”. A dança, a música, o teatro, os ritmos “todos esses recantos e construções populares, geralmente improvisadas, de todas as situações sociais não são algo primitivo ou periférico, mas o que vemos todos os dias” são na realidade obras cuja “unidade estrutural próprio terreno de construção da imaginação e de suas significações, ou (é baseada) na estrutura-ação”. Hélio organiza uma situação e uma circu- seja, “de projeção sobre a realidade de uma luz que esclarece humanamen- lação: é mesmo na circulação que se faz o verdadeiro.23 te o desdobramento simplesmente zoológico das situações humanas”.29 A estrutura, o território, é uma ação, uma “obra requer aí a participação Podemos, então, pensar o horizonte de uma crítica do valor e de uma corporal direta; além de revestir o corpo, pede que este se movimente, apropriação comum da moeda como uma política dos corpos? A única que que dance [...] O próprio ‘ato de vestir’ a obra implica uma transmutação seria capaz de manter os símbolos e os signos imanentes aos processos expressivo-corporal do espectador, característica primordial da dança,

24 Oiticica, Hélio. A dança na minha experiência. In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p. 73. Grifos do autor. 20 Lütticken, Sven. Guy Debord and the Cultural Revolution. Grey Room. Special Issue: Guy Debord Cinema, n. 52, p.112. MIT Press, Cambridge, MA, Summer 2013. 25 Schérer, René. Subjectivité hors sujet. Chimères / Guattari, n. 21, hiver, Paris, 1994. 21 oiticica faz a tradução: “Criar não é a tarefa do artista. sua tarefa é a de mudar os va- 26 Gil, José. Métamorphose du corps. Op. cit., p.162. lores das coisas. No manuscrito ele não usa maiúsculas. 27 ibid., p. 163. 22 GIL, José. Métamorphose du corps. Paris: La Différence, p. 80. [E O ANO?] 28 ibid., p. 165. 23 stéphane Breton, intervenção no debate sobre autenticidade. FABRE, Daniel. “De com- 29 Leroi-Gourhan, André. Le geste et la parole, tomo II: La memoire et les rythmes. bien de manières un objet peut-il être authentique?” Op. cit., p. 343. Paris: Albin Michel, 1964, p. 136.

88 89 e aos ritmos de sua produção. John Dewey lembrava que a economia é uma maneira que ninguém consegue fazer (em termos analíticos) e ainda uma filosofia moral (“bem” como objeto ainda contém um sem-número menos resolver (em termos políticos) e colocar a arte no âmbito da ex- de significações, assim como “preço” e “precificar” significam avaliar e periência estética em que vivem os pobres: leiamos o que dizia, ainda em “caro” significa precioso, custoso, mas também “querido”). Por sua vez, 1934, John Dewey em suas conferências em Harvard: “As artes que hoje em “interesse” vem do latim inter e esse, quer dizer o que está entre os seres: dia têm a maior vitalidade para o homem comum são coisas que ele não uma interação entre uma pessoa e o meio ambiente e entre as pessoas: considera como formas de arte: por exemplo, cinema, jazz, quadrinhos e uma dança dos corpos. Os “interesses” (os “juros” em português) aparecem [...] os artigos da imprensa sobre as proezas cometidas por bandidos”.33 em precisos contextos existenciais e, da mesma maneira, os “valores” são A política dos pobres – e não apenas no Brasil – está totalmente tomada, negociados, resultados de conflitos e as diferenças sobre as “valorações”, paralisada e esvaziada nessa ambivalência. resolvidos pela força e pela produção de sistemas de símbolos: as guerras Há hoje uma vastíssima literatura acadêmica sobre “favelas”.34 Contudo, e/ou as lutas de classes e a produção de símbolos: bandeiras e totem. no meio desse grande volume de produção e de abordagens, podemos apon- A afirmação que museu é o mundo assume que a obra é o fermento tar para um “grande eixo” em torno do qual se articula boa parte de toda a quando é ação e luta. O fermento que a ação e a luta produzem é o amor: a literatura sobre o fenômeno das favelas. Esse grande eixo é o da marginali- relação na qual a riqueza se cria e amplifica no saque e na dádiva e institui dade, quer dizer, do contraste que fixa os territórios onde se concentra esse uma moeda verdadeira. O corpo como obra de arte é um nó de relações tipo de construção e autoconstrução da moradia “popular” nas margens do vivas capazes de criar novas institucionalidades. Mas, então, para quem tecido social e urbano “formal”. As favelas estão estruturalmente associadas e quando, em qual situação o corpo e o sentido ficam juntos? Quando a às linhas sinuosas, mas onipresentes, de segregação e exclusão espacial política implica, como dizia Pier Paolo Pasolini, inspirado na luta dos negros dos pobres. Linhas que modulam espacialmente as modulações sociais e norte-americanos, “jogar seu corpo na luta” e isso acontece no corpo dos étnicas de uma sociedade e de uma cidade profundamente marcada pelo pobres. Podemos, assim, perguntar novamente: cadê o corpo do Amarildo?30 período da escravidão, as condições de sua abolição e seus impactos nos Temos duas respostas a essa questão: a primeira é aquela do Brasil, país processos migratórios internos (e também externos). Terreno das margens rico e sem pobreza que faz desaparecer os corpos dos pobres, dos índios, e da marginalidade, as favelas abrigavam os pobres e esses constituíam a dos negros e falsifica a moeda: na pedalada fiscal bem como no crédito versão brasileira das “classes perigosas”.35 A partir da década de 1960, o consignado. A segunda é a do corpo de Amarildo transfigurado em pão fenômeno da favela passou por duas inflexões importantes. Essas se deram compartilhado e fermento da comunidade: “Amar é, a Maré, Amarildo”.31 em âmbitos totalmente diferenciados, mas podemos dizer que se alimenta- ram reciprocamente. As migrações internas foram se acelerando por meio do violento processo de êxodo rural que faria das favelas um fenômeno “Seja marginal, seja herói”: a verdade do mito32 “marginal” totalmente paradoxal pelos efeitos de escala que passará a caracterizá-lo no Rio de Janeiro:36 a margem se tornou, em termos de tama- Voltemos à bandeira de Hélio Oiticica, ao interesse e ao incômodo que ela ainda cria: entre aqueles que dizem que nada tem a ver com o “projeto” dele e os que a atribuem a um período determinado quando a ditadura 33 Dewey, John. The collected works of John Dewey. Op. cit., p. 24. justificava certa glamourização da marginalidade. Nessa ambivalência, 34 mas, as obras, trabalhos e pesquisas que falam de favelas, inclusive as obras literárias e artísticas em geral, são muito mais numerosas, até o ponto que dificilmente é pos- nós pensamos que há algo mais e ainda dramaticamente atual: a obra de sível quantificar. Por exemplo, a meticulosa bibliografia analítica elaborada por Lícia Oiticica tem a potência de falar do enigma da resistência dos pobres de Valladares e Lídia Medeiros (Pensando as favelas do Rio de Janeiro, 1906-2000, uma bibliografia analítica. Rio de Janeiro: Faperj-Relume Dumará, 2003). 35 Guimarães, Alberto Passos. As classes perigosas: banditismo urbano e rural (1982). 30 Ver Gerardo Silva, “Um boi com a cara de cavalo”, neste livro, p. XXX. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. 31 Szaniecki, Barbara. Maré Amarildo: amor e arte. In: Cava, Bruno e Cocco, Giuseppe. 36 lembremos alguns dados básicos. Os dados dos recenseamentos gerais indicam que, Amanhã vai ser maior. Op. cit. em 1950, havia 58 favelas no Rio de Janeiro para um total de 169.305 favelados. Em 32 retomo aqui parte do que argumentei em Cocco, Giuseppe. KorpoBraz. Por uma polí- 1980, o número de favelas tinha passado para 192 (ou seja, tinha sido multiplicado por tica dos corpos. Rio de Janeiro: Mauad, 2014. 3,3 vezes) e os favelados eram 628.170 (multiplicado 3,7 vezes) ao passo que a popula-

90 91 nho, a grande maioria. Ao mesmo tempo, toda uma geração de sociólogos podemos concluir que então ele deve estar integrado nesse sentido”.41 e antropólogos (brasileiros e norte-americanos) irá se formando no estudo Os favelados não são marginais, mas integrados. Ao mesmo tempo essa das favelas e particularmente na crítica da marginalidade, que passa a ser integração acontece de maneira desfavorável e até humilhante. chamada de “mito”, um mito a ser desconstruído. A tese de doutorado da Contudo, o desmonte da dimensão negativa do “mito da marginalidade” norte-americana Janice Perlman se tornou a referência clássica dessa nova não desemboca automaticamente numa dimensão positiva das favelas e geração.37 Apesar da sua originalidade ser contestada por Lícia Valladares, dos pobres como atores políticos revolucionários. Os chamados “marginais” o trabalho de Perlman se constituiu na primeira grande desconstrução do não são “nem apáticos nem radicais”. Não há “sinais de ideologia radical, regime discursivo hegemônico sobre o fenômeno das favelas.38 ou inclinação à ação revolucionária (e) os favelados em geral apoiam o Perlman pretendia ultrapassar o mito da marginalidade seja em sua sistema e acham que o governo não é mau”. Em síntese, Perlman conclui vertente “negativa”, seja naquela que pretendia ser uma vertente “positiva”: nesses termos: “(e)m português e espanhol, a simples palavra marginal tem conotações profundamente negativas. Um marginal, ou um elemento marginal significa O paradigma da marginalidade baseia-se num modelo equilibrado ou um vagabundo indolente e perigoso, em geral ligado ao submundo do crime, integrado de sociedade. Não apenas os mitos são falsos, mas o modelo da violência, das drogas e da prostituição”.39 Contra isso, Perlman afirma: também não é válido. A teoria da marginalidade supõe que num sistema “os ‘enclaves isolados’ de que fala a teoria da marginalidade simplesmente em funcionamento as interconexões entre segmentos tendem a ser mutu- não existem”.40 “O favelado não pode ser considerado como marginal social, amente satisfatórias e benéficas para todos. É possível, todavia, haver um quer quanto ao critério de coesão interna como de uso da cidade exterior, sistema estável cujo equilíbrio beneficie a alguns precisamente graças à exploração explicita ou implícita de outros. Os grupos assim explorados não são assim marginais, mas integrados em larga medida no sistema, ção tinha “apenas” dobrado. Em 30 anos, o ritmo de “favelização” era duas vezes maior funcionando como uma parte vital do mesmo. Em resumo, integração nem do que o ritmo de crescimento da cidade e passando assim de 7,1% a 12,3% da popu- 42 lação total. Em 2000, a população favelada alcançou 1.092.958, passando a constituir sempre implica reciprocidade. 18,7%. Segundo o Censo de 2010, os números passaram a ser: 1.393.314 pessoas nas 763 favelas do Rio ou 22,03% dos 6.323.037 moradores do Rio. Se comparados com os No prefácio à edição brasileira do livro de Janice, Fernando Henrique números do Censo 2000 do IBGE (quando havia 1.092.283 moradores de favelas no Rio, ou 18,65% dos habitantes do município), o crescimento da população em aglomerados Cardoso retoma essas conclusões, mas de uma maneira um pouco mais sutil: subnormais em 10 anos foi de 27,65%, enquanto a cidade regular, excetuando os mo- radores das favelas, cresceu a um ritmo oito vezes menor, apenas 3,4%, passando de As populações faveladas não são “marginais” [...] subsiste o fato de que 4.765.621 para 4.929.723 nesses dez anos. a falta de recursos econômicos, culturais e políticos é real. Não devemos 37 Perlman, Janice E. O mito da marginalidade. Favelas e política no Rio de Janeiro. Rio nos preocupar com a situação de carência dos “marginais” [...] mas com de Janeiro: Paz e Terra, 1977 (inicialmente publicado nos Estados Unidos). a pobreza, a exploração e a repressão sistemática que, se bem incidam 38 “É preciso ressaltar que a sua (de Perlman) crítica da teoria da marginalidade nem sobre toda a pirâmide social, se tornam mais diretamente visíveis e per- era original, nem pioneira, quer nos Estados Unidos quer no Brasil”, escreveu Lícia do Prado Valladares em A invenção da favela. Do mito de origem a favela.com (Rio de ceptíveis nas favelas e tugúrios. O passo seguinte, metodologicamente, Janeiro: FGV, 2005, p.129). Contudo, é preciso ver e lembrar que a crítica do “mito da seria reconstituir a história desta exploração e estabelecer os mecanismos marginalidade” desenvolvida por Janice está fortemente marcada pela disputa política pelos quais, de modo diferente mas persistente, são recriados os modos em torno do controle e/ou conquista das favelas por projetos alternativos da sociedade de exploração e de repressão pelas condições estruturais que caracteri- na era da guerra fria. O Partido Comunista Brasileiro tinha ensaiado bons resultados 43 eleitorais nas favelas do Rio antes de voltar a ser declarado ilegal e os pesquisadores zam a formação e as etapas iniciais da acumulação capitalista [...]. norte-americanos chegavam ao Brasil ao mesmo tempo em que os acordos entre o governador Carlos Lacerda e o Usaid através da Aliança para o Progresso: as remoções Ou seja, Fernando Henrique Cardoso diz que o mito pode bem ser “falso”, levavam os favelados para longínquos conjuntos habitacionais cujas “denominações mas ele participa da máquina que integra e ao mesmo tempo explora os não foram escolhidas por acaso”, com elas o governador antifavela, Carlos Lacerda, decidiu homenagear ao mesmo tempo “o presidente americano e o programa de finan- ciamento internacional”: eis a Vila Kennedy e a Vila Aliança. 41 ibid., p. 176. 39 Perlman, Janice E. O mito da marginalidade. Favelas e política no Rio de Janeiro. Op. 42 ibid., p. 288. cit., p. 124. Grifos do autor. 43 Cardoso, Fernando Henrique. Prefácio. In: Perlman, Janice E. O mito da marginalidade. 40 ibid., p. 174. Favelas e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.15. Grifos nossos.

92 93 favelados segundo determinadas modalidades de exclusão e segregação Lampião, um Cara de Cavalo, e a favor dos que os destruíram”. Em outro espacial e racial. Não se trata de descobrir a “verdade” atrás do mito, mas momento ele escreveu que o que o interessava era a a verdade do mito, ou seja, nas palavras do Fernando Henrique Cardoso, “a estrutura do mito”,44 como ele funciona, qual é sua força. A força do mito vivência [...] do ídolo anti-herói, ou seja, a do anti-herói anônimo, aquele da marginalidade está nas políticas de regulação dos pobres. que, ao contrário de Cara de Cavalo, morre guardando no anonimato o Assim como sobre favelas, há também uma gigantesca literatura so- silêncio terrível dos seus problemas, a sua experiência, seus recalques, ciológica, antropológica, política, urbanística e de ficção sobre violência. sua frustração (claro que herói anti-herói, ou anônimo anti-herói, são, Grosso modo, a leitura, mesmo rápida, dessa vasta literatura sobre fave- fundamentalmente, a mesma coisa: essas definições são a forma com que las, marginalidade e violência nos leva sistematicamente para o mesmo seus casos aparecem no contexto social, como uma resultante) – o seu impasse ao qual nos leva a crítica da marginalidade. Em geral, entre o exemplo, o seu sacrifício, tudo cai no esquecimento como um feto parido. tráfico encastelado nas favelas e a polícia não há hesitação: é essa última Numa outra obra (Bólide-caixa no 21 – B44 – 1966/67), quis eu, através de que sempre constituiu e ainda constitui a principal ameaça à “segurança da imagens plásticas e verbais, exprimir essa vivência da tragédia do ano- vida” dos pobres que ali moram. Mas sempre aparece a necessidade moral nimato, ou melhor, da incomunicabilidade daquele que, no fundo, quer de se distanciar da “paralisia política” que essa constatação determina e comunicar-se (o caso me levou à vivência foi o do marginal Alcir Figueira implica. Isso numa situação material em que é preciso desfazer certezas, da Silva, que ao se sentir alcançado pela polícia depois de assaltar um ou seja, “desfazer muitas ideias preconcebidas sobre crime e juventude”. banco, ao meio-dia, jogou fora o roubo e suicidou-se).48 E isso porque há “uma surpreendente continuidade entre os dois mundos, o legal (da família e do emprego) e o ilegal (do tráfico), sem negar as dife- Hélio escreveu ainda: renças profundas entre as consequências de estar ou não estar envolvido no crime”.45 O geógrafo da UFRJ, Marcelo Lopes de Souza, com base em A liberdade moral não é uma nova moral, mas uma espécie de antimoral, ampla pesquisa de campo, diz a mesma coisa em outros termos: “Entre ser baseada na experiência de cada um [...] e está acima do bem, do mal ‘gerente’ ou mesmo ‘dono’ de uma ‘boca de fumo’ e ser um trabalhador de etc. Deste modo estão como que justificadas todas as revoltas individuais salário mínimo, que tenta apenas fazer de tudo para não ser molestados contra valores e padrões estabelecidos: desde as mais socialmente orga- pelos ‘bandidos’, há muito mais situações possíveis e reais do que as vãs nizadas (revoluções, por exemplo) até as mais viscerais e individuais (a do filosofias reducionistas e maniqueístas querem fazer crer”.46 marginal, como é chamado aquele que se revolta, rouba e mata).49 Com efeito, na obra de Hélio não há nenhuma glamourização da mar- ginalidade, mas a expressão potente e trágica de sua ambiguidade e de Oiticica sabia que o trabalho de artista não é de produzir objetos, mas de sua potência: “Eu acho – declara Oiticica a Paulo Francis – que o trabalho criar valor. Ele sabia também que com essa radicalização ele simplesmente criador propõe uma nova sociedade. É exatamente aí que eu acho que mergulhava a produção de um “outro valor” na materialidade trágica (e todo esforço criador tem um lado marginal, um lado marginalizado [...]”.47 heroica ao mesmo tempo) da situação social e da violência generalizada Oiticica sabe muito bem que dizer isso é “perigoso”, que pode levar (como que caracteriza a regulação biopolítica dos pobres no Brasil e em toda a levou e leva a maioria dos “marginais”) à “autodestruição”: “Sei que isto América Latina. Não por acaso, ele dizia logo em seguida: “Daí é fácil de- é uma afirmação perigosa, que é uma faca de dois gumes, mas que vale a duzir o que não estará por acontecer no mundo e nas comunidades – ou pena. Só um mau-caráter poderia ser contra um Antônio Conselheiro, um tudo muda (e há que mudar!), ou continuamos a guerra. Não sou pela paz [...] – como pode haver paz ou se prender a ela, enquanto houver senhor

44 ibid., p.13. 45 Soares, Luiz Eduardo. Desfazendo certezas. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objeti- va, 2005, p. 235. 48 oiticica, Hélio. O herói anti-herói e o anti-herói anônimo (1968). Disponível em http:// 46 Souza, Marcelo Lopes de. O desafio metropolitano. Um estudo sobre a problemática culturaebarbarie.org/sopro/arquivo/heroioiticica.html. sócio-espacial nas metrópoles brasileiras. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 61. 49 oiticica, Hélio. Julho de 1966, posição ética. In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é o 47 ibid., p. 69. mundo. Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p. 84. Grifos nosso.

94 95 e escravo!”50 Hélio dizia com lucidez singular: “ou tudo muda, ou a guerra como coisas nossas, neutralizando assim o colonialismo cultural a que nos continua” e isso em 1966: 50 anos depois, podemos dizer que ele tinha querem permanentemente submeter [...]”.54 Hélio fala, nesse momento, da razão, que apenas apontava para o horizonte de um futuro de violência repressão cultural que a renovação tropicalista da antropofagia oswaldiana generalizada e, embora não o fizesse desde o ponto de vista de uma nova está sofrendo da esquerda brasileira, ortodoxa e não ortodoxa. Mas, é curio- moral e de uma “bela consciência”, ele tampouco o fazia de um ponto de so: há hoje outra maneira não mais de “reprimir” a antropofagia artística, vista cínico: por isso, seu ponto de vista era o do “marginal”. mas de esvaziar suas dimensões políticas: de fazer de sua ambivalência Aqui, “marginal” é sinônimo de conhecimento: atravessar fronteiras, uma ambiguidade miserável. Esse movimento vem por dentro e replica no inventar, bem próximo do conhecimento nômade do pragmatismo de Brasil o que outros fazem lá fora. William James.51 Não ficar no limiar, mas fazer dele o terreno do êxodo, da Por exemplo, em sua introdução a um conjunto de escritos de Mao, produção de um novo horizonte ético no cerne do qual só pode haver uma Slavoj Zizek consegue ver os limites não do socialismo real, mas da filosofia política dos corpos que reconheça a potência dos pobres. Algo que hoje da diferença: “O conceito de máquina articulado por Deleuze e Guattari, é renovado nas formas de uma centralidade paradoxal dos pobres, entre longe de ser simplesmente ‘subversivo’, também concerta o modo de operar o devir-pobre do trabalho nas economias centrais e o devir-trabalhador (militar, econômico e politico-ideológico) do capitalismo contemporâneo”.55 dos pobres no Brasil. Assim, Sabeth Buchmann e Max Cruz terminam seu livro sobre Cosmococa Nessa centralidade paradoxal dos pobres como multidão, (re)encon- “aceitando as observações de (Suely) Rolnik”. Trata-se do que Rolnik es- tramos o trabalho dos pobres e o corpo do trabalhador e tudo isso como creveu em “Geopolítica da cafetinagem”, onde ela diz: devir-Brasil do mundo e devir-mundo do Brasil, ou seja, com possível transmutação de todos os valores: construção e êxodo de um novo povo e Esta mesma singularidade que tanto fortalecera os movimentos contracul- de uma nova terra. A centralidade dos pobres é um devir-sul da política, turais no Brasil, agravou por outro lado os efeitos da clonagem dos mesmos um devir-Brasil do Sul e um devir-Sul do Brasil. Recorremos ainda a Oiticica: operada pelo neoliberalismo. O know how antropofágico dá aos brasileiros “SOU EU – É VOCÊ – É AMÉRICA LATINA – SUL – SUB [...] subterrânia do um jogo de cintura especial para adaptar-se aos novos tempos. Neste país, mundo para o Brasil [...], subterrânia é a glorificação do sub – atividade – ficamos embevecidos por sermos tão contemporâneos, tão à vontade na homem – mundo – manifestação – : não como detrimento da glori-condição cena internacional das novas subjetividades pós-identitárias, de tão bem à sim : como consciência para vencer a super – paranoia – repressão – im- aparelhados que somos para viver essa flexibilidade pós-fordista. potência – negligência do viver – crítica – criativa – ativa [...]”.52 “O capitalismo também é tupinambá”56 escreveu Rolnik em outro texto. Seria, então, o “capitalismo (que) faze-se [seria faz-se?] antropófago”, A política dos corpos: capitalismo e antropofagia53 devorando a própria antropofagia e suavizando sua radicalidade e caráter emancipatório. Seguindo mais ou menos essas reflexões, as organizadoras Em defesa da Tropicália em 1968, Hélio Oiticica escreveu: “[...] quem do seminário sobre antropoemia no Instituto de Arte da Uerj problemati- pretender criar uma cultura de exportação [...], única maneira de engolir, zaram: diante de um sistema que “tudo devora e que a tudo se adapta”, deglutir o que nos é bombardeado de fora é devolver em criação válida pergunta-se: “não seria o momento de rever a ideia de antropoemia como uma prática de resistência face a um capitalismo antropófago”? Enfim,

50 idem. Grifos nossos. 51 James, William. The meaning of truth. Harvard University Pressi, VI, p. 247. Apud 54 Oiticica, Hélio. A trama da terra que treme. In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é Dewey, Cit. [falta ano] [não entendi o por que do Apud. A referência do pragmatismo o mundo. Op. cit., p. 152. de J William não está em livro de sua autoria? Por que apud Dewey?] 55 Zizek, Slavoj. Introduction. Slavoj Zizek presents Mao on practice and contradictions. 52 oiticica, Hélio. “Subterrânia”. In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é o mundo. Op. London-New York: Verso, 2007, p. 27 cit., p. 145. O poema é abertamente antropofágico, justamente, pela transformação de 56 Em O Brasil da virada, da coleção Panorama Histórico Brasileiro (Itaú Cultural). Dispo- Underground em Subterrânia. nível em http://www.youtube.com/watch?v=NDkGVPmYjh0&list=PL2CCF74F3B149F96D 53 parte desse parágrafo foi publicada em Cocco, Giuseppe. KorpoBraz. Op. cit. &index=14&feature=plpp_video, devo a Amanda Bonam a indicação.

96 97 “diante da devoração generalizada a que somos constantemente subme- tinção entre “antropofagia ativa” e “reativa”. Resumindo ao máximo essas tidos – e do qual a institucionalização da arte é um sintoma – qual o lugar distinções para dentro de nossa abordagem, diremos – com as próprias do vômito, da excreção, do não?”57 palavras de Rolnik – que a antropofagia “alta” ou “ativa” seria aquela capaz Na realidade, o capitalismo contemporâneo não é antropofágico, mas de “criação a partir do mergulho no caos” ao passo que a “baixa e reativa” parasitário. A relação entre antropofagia e antropoemia não é dialética, seria a antropofagia como “denegação do caos e recusa de nele mergulhar” sendo que uma, diremos em termos um pouco esquemáticos mais eficazes e, pois, como “mero consumo de mundos disponíveis no mercado das ideias para a ruptura que queremos afirmar, é uma política da vida (uma biopo- e das imagens”. Contudo, essa não nos parece uma “solução” adequada lítica) e a outra, um poder sobre a vida (um biopoder).58 a uma perspectiva crítica. O problema não está na antropofagia política, Dito de outra maneira, apreender hoje como funcionam as formas mas nas dimensões ambíguas (e não ambivalentes) da crítica que volta a antropofágicas e antropoêmicas significa apreender como funciona o ca- fazer da arte um terreno de segregação dos valores. O que não funciona pitalismo contemporâneo. Nessa direção, a relação entre antropofagia (as e é ambíguo é o terreno que Suely Rolnik indica como saída: os coletivos formas de relação social que absorvem a alteridade que são “inclusivas”) de artistas que, segundo ela, teriam “optado por distanciar-se do terreno e antropoemia (as formas de relação social que expulsam o “outro” para (do circuito internacional da arte)”, em que o “governo dessas derivas [...] fora do corpo social, que são excludentes) está hoje em uma modulação não é abandonar a arte, mas exiliar-se de seu ‘sistema’”.60 Assim, no meio que mistura continuamente a exclusão e a inclusão. dessa ambiguidade de uma crítica do sistema da arte que na realidade é Como já vimos, a relação entre antropofagia (inclusão) e antropoemia apenas a tentativa de propor uma doxa outra mas sempre interna à segre- (exclusão) não é dialética, no sentido que não se desenvolve de maneira gação da arte, todos os coletivos brasileiros (de São Paulo) que Suely cita binária e não tem nenhuma síntese necessária. Aliás, o que caracteriza o foram parar – dez anos mais tarde – em uma vergonhosa exposição sobre capitalismo contemporâneo é mesmo o fato de essas duas dimensões, essas movimento dos sem-teto na inauguração de um dos maiores dispositivos duas modalidades, se articularem hoje não mais por separação, mas por de gentrificação do centro do Rio de Janeiro (o MAR)61 sem que nenhum modulação, uma modulação típica do hibridismo brasileiro. É dentro dessa dos “novos críticos” se pronunciasse diante disso. modulação (e não nas duas pontas) que precisamos procurar respostas Longe de fugir das armadilhas do capitalismo flexível e das modulações e algumas pistas para a crítica das relações de poder. Ao mesmo tempo, da sociedade de controle, a separação do conceito de “antropofagia” em essa modulação de inclusão e exclusão funciona como uma armadilha, dois termos opostos (antropofagia alta e baixa, criativa e reativa) apenas exatamente nos termos em que o fôlder do evento desenvolve: o capita- serve para enfraquecê-lo e reduzi-lo a elemento interno do determinismo do lismo contemporâneo é tão inclusivo até o ponto de parecer antropofágico capital e de suas mediações que, como veremos, tornam-se “necessárias”. e, ao mesmo tempo, a resistência parece fixar-se nas margens do “não”, da Uma das razões disso é o fato de se manter a dicotomia caos versus ordem, recusa do outro, da antropoemia. quando na realidade, como Oiticica já escreveu, no caos não apenas há um Suely Rolnik, que usou a antropofagia política e poética de Oswald em ritmo, mas ele é a condição de todo ritmo, de toda ordem: é mergulhando na termos de “subjetividade antropofágica” desde a primeira metade da dé- dança (no samba), diz ele, que encontramos o ritmo de uma “força individual cada de 1990,59 percebeu essa armadilha e se propôs a resolvê-la abrindo e coletiva” na qual esses dois termos são inseparáveis. A procura de “um ‘ato o conceito de antropofagia a duas dimensões opostas: inicialmente, ela total de vida’, irreversível” é para Oiticica a procura por um “desequilíbrio” falou de antropofagia “baixa” e antropofagia “alta” e em seguida fez a dis- como base do “equilíbrio do ser”.62 É a mesma coisa que diz Althusser em sua

57 ibid., grifos das autoras. 60 Rolnik, Suely. Lygia Clark recomenda: evite falsos problemas. Em Borjas-Villel, Ma- 58 Pelbart, Peter Pál. Poder sobre a vida, potências da vida. Vida capital, ensaios de nuel (org.). 10.000 francos de recompensa, cit. p. 73. [Confirme esta nota, por favor. biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. Seriam os Anais do Congresso?] 59 o texto de referência é a palestra realizada no Encontro Internacional Rio de Janeiro- 61 rolnik cita os coletivos na nota 28 da p. 73. [Em que publicação e edição está esta São Paulo, 10 a 14 de junho de 1996. Rolnik, Suely. Schizoanalyse et anthropophagie. nota e a p. 73?] In: Alliez, Eric. Gilles Deleuze, une vie philosophique. Paris: Synthélabo, 1998, p .463- 62 Oiticica, Hélio. A dança na minha experiência. (1965). In: Oiticica Filho, César 476. (Les Empêcheurs de Tourner en Rond). (org.). Museu é o mundo. Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p.75-77.

98 99 “filosofia do encontro”, quando nos fala da chuva de átomos e dos encontros numa obra que é ação: o “vestir” que se contrapõe e articula ao “assistir”.68 (clinâmen) aleatórios: é na materialidade do caos e no acaso que a ordem Mas, será que sabemos o que são as lutas ou o que significa hoje lu- se constitui. A origem está no desvio e não na razão e, ao mesmo tempo, é tar? Quais são as lutas que nos permitem ir para além da modulação e do preciso que ela alcance a duração, ou seja, uma ordem.63 controle? Se é a luta que define a clivagem entre brasilianização do mundo Dizer que o capitalismo flexível é um “zumbi antropofágico” ou “tu- (inclusão modulada dos pobres na qualidade de pobres, pela fragmentação pinambá” acaba assumindo sua capacidade de modulação como um es- de todo o mundo e de todo o tempo sob o regime de acumulação capitalista, vaziamento dos conflitos, exatamente como Suely Rolnik acaba fazendo subsunção real) e devir-Brasil do mundo (recomposição dos fragmentos no mesmo artigo, afirmando como “necessárias (a) negociação entre os como singularidades que constituem “um novo povo e uma nova terra”, interesses da economia capitalista e as exigências poéticas da criação uma multidão), podemos reformular esse conflito como sendo aquele que artística”.64 Necessário seria então que os coletivos de artistas que apoia- atravessa a figura do “pobre” e que Oswald de Andrade definia como a luta ram os sem-teto de São Paulo aceitem ir ao museu (o MAR) fazendo com que opunha os “bárbaros tecnizados” e os “novos trogloditas”.69 que os sem-teto tenham sido apenas o ponto de apoio para eles entrarem no sistema da arte. Ao contrário, parece-nos que o interesse do conceito oswaldiano de Brasilianização contra Mundobraz “antropofagia” política está mesmo, por um lado, na dimensão afirmativa de uma alteridade radical diante do capitalismo e, por outro, na conexão Uma maneira para escapar dessas armadilhas é reformular essa oposição, que ele opera entre essa radicalidade não moderna brasileira (do Sul) e as nos termos da alternativa entre duas diferentes dimensões do tempo e tudo alternativas da modernidade europeia. Ou seja, Oswald – contrariamente isso dialogando com Oswald. Encontramos essa possibilidade na crítica a esses usos – assume, por meio da antropofagia, o ponto de vista de uma deleuziana do tempo, assim como é apresentada e enriquecida por Peter alteridade ameríndia que lhe permite romper radicalmente com o Ocidente Pál Pelbart, ou seja, como um “tempo que bifurca continuamente rumo a (e em particular com o positivismo e o iluminismo do marxismo ortodoxo um sem-número de futuros”.70 Assim, numa “rede crescente e vertiginosa do Partido Comunista) e ao mesmo tempo continuar trocando os pontos de tempos divergentes, convergentes e paralelos”,71 trata-se de optar pela de vista com a alter-modernidade europeia, aquela das lutas e do poder alternativa entre o tempo linear do progresso eurocêntrico e antropocên- constituinte, aquela que está também na resistência de Stalingrado contra o trico e outra dimensão do tempo, antropofágica: não mais Chronos, mas o racismo nazista.65 Precisamos, pois, manter a díade que Claude Lévi-Strauss devir. “A arvore não é verde, ela verdeja”,72 o sentido não está no atributo propôs entre “antropofagia” e “antropoemia” e para isso precisamos relati- mas no verbo, na ação. É da mesma maneira que escreve João Guimarães vizar e rever não o conceito de antropofagia, mas aquele de antropoemia. Rosa quando diz: “Então, eu viro uma onça mesmo, hã. [...] De repente, Não há arte sem resistência. “Só derrubando furiosamente poderemos eh, eu oncei...”73 erguer algo válido e palpável: nossa realidade”, diz Hélio Oiticica.66 Jean-Luc Chronos é o tempo do “negócio”, ou seja, da negação do ócio (como Nancy vai na mesma direção: “não há ser sem dobra, não há nada antes da dizia Oswald) pela disciplina e pelo controle do trabalho, da maldição do dobra”. A criação continuada é aquela da luta e da resistência. “O sentido está no caminho e nunca se separa dele”.67 Com Oiticica a “dobra” se desdobra 68 Oiticica, Hélio. Bases fundamentais para uma definição do Parangolé (1964). In: Oiti- cica Filho, César (org.). Museu é o mundo. Op. cit., p. 74. 69 sobre a figura do “bárbaro tecnizado” e a polêmica índioversus pobre, ver o belo ver- 63 Althusser, Louis. Le courant souterrain di matérialisme de la reencontre. Écrits phi- bete “General Intellect”. Global/Brasil, n.16. Disponível em: http://www.revistaglobal- losophiques et politiques, Tome II (Textes rénunis et presentés para François Math- brasil.com.br/?p=1236. eron). Paris: Stock/Imec, 1994, p. 554. 70 Pelbart, Peter Pál. Le temps non-réconcilié. In: Alliez, Eric. Gilles Deleuze, une vie phi- 64 Rolnik, Suely. Políticas da criação na deriva transnacional. Cadernos de Subjetivida- losophique. Op. cit., p. 90. Para uma apresentação mais ampla ver Pelbart, Peter Pál. O de. [QUAL É O VOL E O Nº DO PERIÓDICO?] São Paulo, 2010, pp. 14-21. tempo não reconciliado. Imagens do tempo em Deleuze. São Paulo: Perspectiva, 2007. 65 um livro fundamental de referência: Negri, Antonio. Poder constituinte. As alternati- 71 Pelbart, Peter Pál. Le temps non-réconcilié. In: Alliez, Eric. Gilles Deleuze, une vie vas da modernidade. Trad. de Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DPA, 2002. philosophique. Op. cit., p. 91. 66 Oiticica, Hélio. Posição e Programa (1966). In: Oiticica Filho, César (org.). Museu é 72 GIL, José. Métamorphose du corps. Op. cit., p. 71. o mundo. Op. cit., p. 85. 73 citado por Haroldo de Campos, “A linguagem do Iauaretê”. In: Rosa, João Guimarães. 67 Jean-Luc Nancy em Alliez, Eric. Gilles Deleuze, une vie philosophique. Op. cit., p. 121. Ficção completa, vol. I. Cotia, SP: Nova Aguilar, 1994, p. CCXLI.

100 101 trabalho. É o tempo do índio que sai da floresta para o campo e para a cida- pois, de novos direitos, dentro e contra o capitalismo. Aqui, a “inclusão” de e vira camponês ou proletário ou constituindo os grandes contingentes é constituinte e capaz de descentralizar, a partir de uma troca de pers- da “pobreza brasileira” e de seus “excedentes relativos da população”.74 É pectiva, o eurocentrismo e sua racionalidade instrumental e totalitária (a tempo da periferia que vai para o centro, indo do subdesenvolvimento para racionalidade do capital). o desenvolvimento ou para a população excedente. É o tempo do “Brasil, Na realidade, “brasilianização” do mundo e “Mundobraz” estão juntos, país do futuro”: seu caminho já está desenhado e não há nenhuma escolha na mesma modulação. O que faz a diferença? Onde encontramos o clinâ- a fazer, apenas “acelerar [...] o crescimento” nesse rumo predefinido e men, a clivagem ética? Onde está a verdade? Sabemos que Michel Foucault determinista. Oras, referindo-nos ao contexto atual da globalização ca- dizia que a resposta estava do lado da “coragem da verdade”, nas lutas. pitalista, chamamos esse tempo de “brasilianização” do mundo e [...] do Assim, falando da tônica geral das análises marxistas, ele dizia: “(o que Brasil. O futuro se tornou Brasil. Indo para o “centro”, modernizando-se, chama minha atenção é que sempre se fala de ‘luta de classes’, mas há uma industrializando-se, o Brasil se dirige rapidamente rumo àquelas condições palavra dessa expressão à qual se presta menos atenção, a ‘luta’”.78 Numa de precariedade do trabalho, fragmentação social e violência civil que outra entrevista, Foucault enfatiza: “É tão somente na própria luta que as caracterizam cada vez mais as economias centrais em função de modo de condições positivas se desenham”.79 Em um debate com Noam Chomsky, funcionamento do regime de acumulação do capitalismo contemporâneo. quando este define a luta como uma procura de justiça (ou seja, como Aqui, como dissemos e lembraremos, acontece a inclusão dos excluídos afirmação de uma verdade que seria independente do processo de sua como tais, segundo uma modulação que parece antropofagia (“baixa” ou procura), Foucault disse que, ao contrário, precisamos pensar a justiça “reativa”) mas na realidade é uma antropoemia, pois essa “inclusão” modula como sendo essa luta.80 Como dissemos, em suas últimas aulas, a “verdade” a exclusão para dentro da sociedade de controle: entre subordinação do está atrelada à “coragem”, ou seja, a uma vida (bios) entendida como mise trabalho e nova escravidão, nas linhas flexíveis da precariedade. Diante e à l’épreuve de soi-même e “combate nesse mundo e contra o mundo”.81 Em para além dessa linearidade cronológica do “progresso”, podemos pensar termos parecidos, Gilles Deleuze dizia que sem resistência não há criação um tempo enredado, misturado, mestiçado, antropófago: “mais terra do e, “fugindo”, precisamos “pegar uma arma”. É nesses mesmos termos que que rio, massa mais do que fluxo, coexistência mais do que sucessão [...] Oswald de Andrade se referia à mestiçagem universal a partir daquela que variação infinita mais do que ordem”.75 É o tempo do devir, da multiplicidade ele definiu como a S“ talingrado jagunça de Canudos”.82 dos agenciamentos homem-instrumento-animal, cultura-natureza. Esse tempo é aquele que Oswald definia como sendo tempo do ócio e que nós diremos ser o tempo da recusa, da recusa do trabalho e de sua disciplina. Fabrício Toledo escreve: “Fugir, desviar, mentir, recusar, silenciar, paralisar, ceder, esconder, esquivar. Toda uma série de gestos que diríamos negati- vos, que nos parecem mais um recuo do movimento do que propriamente uma ação”.76 Chamamos essa outra dimensão do tempo de “Mundobraz”,77 devir-Brasil do mundo e devir-mundo do Brasil, ou seja, de uma inclusão que é ao mesmo tempo êxodo (recusa) e autovalorização (transmutação dos valores), ou seja, um duplo processo: a produção de novos valores e,

74 Guimarães, Alberto Passos. As classes perigosas. Banditismo urbano e rural (1982). 78 Foucault, Michel. Dits et écrits, 1976-1988 (II). Paris: Gallimard, 2001, p. 268. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, p. 32. 79 ibid., p. 349. 75 ibid., p. 95. 80 Foucault, Michel. Dits et écrits III. Paris: Gallimard, 2001, p. 471-512. 76 Toledo, Fabrício. Recusar. Global/Brasil, n. 16, 2012. Disponível em: http://www.revis- 81 Foucault, Michel. Le courage de la vérité. Le gouvernement de soi et des autres II. taglobalbrasil.com.br/?p=1263 Cours au Collège de France, 1983-1984. Paris: Gallimard, Seuil, EHESS, 2009, p. 310. 77 permito me indicar aqui. Cocco, Giuseppe. Mundobraz: o devir-Brasil do mundo e o 82 “Atualidade dos Sertões”, em Oswald de Andrade, Feira das Sextas, São Paulo, 2000, devir-mundo do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 110. Ver também Giuseppe Cocco, Mundobraz, Capítulo 4, cit.

102 103 sessão 2 A ambivalência da arte depois do mito da pureza Luis Camillo Osorio Tropicália. Tenho visto, acompanhado, com muita aflição, às vezes muito susto [...] mas, num segundo momento, eu me sinto aliviado por ver esta insurgência popular. Me dá indicação de que a transformação, o tempo-rei continua Rei. Tudo transformando, transcorrendo, as coisas mudando, novas interrogações, novas questões, novas A pureza é um mito. dificuldades analíticas. Eu estava vendo os protestos na TV ontem e pensando: o que é isso? Essa manifestação junta a rave com o arrastão. São as duas coisas ao mesmo tempo. É a rave-arrastão. Pronto, é um verso, um condensado poético. As novas palavras de ordem juntam ao mesmo tempo a oração e a praga. Gilberto Gil (junho de 2013)

Este pequeno texto que se segue é o desdobramento de minha participação como debatedor neste seminário. Incorporei nele coisas além daquelas faladas no calor da hora, apropriando-me de outras discussões, de outras mesas, mas também podendo fazer uma leitura mais cuidadosa do texto de Celso Favaretto ali apresentado, que não tinha tido oportunidade de fazê-lo àquela altura. Muito se tem discutido ultimamente sobre Hélio Oiticica, predomi- nantemente do ponto de vista da história da arte e da cultura brasileira. Queiramos ou não, ele entrou para o cânone da história da arte ocidental. Neste seminário foram tentadas outras leituras: mais políticas, mais errá- ticas, menos previsíveis. Não que a previsibilidade seja um problema, mas carece de páthos e de risco. A apropriação de artistas de vanguarda pelo museu causa sempre alguma Como apontou Favaretto, no texto apresentado no seminário e aqui inquietação. Essa apropriação remete ao próprio esvaziamento da noção de publicado, vanguarda. Como devolver à vanguarda algum desafio? O questionamento do sistema da arte, das categorias tradicionais, do que se almejava como as estratégias visando compor um trabalho de inovação artística e de re- (outro) lugar da arte no escopo maior da cultura, sua tarefa crítica e trans- sistência à ditadura eram marcadas pela ambivalência, proveniente da formadora, tudo isso era inerente ao fazer experimental das vanguardas, articulação por justaposição de materiais de proveniência diversas, sin- implicando novas maneiras de ser para o artista, a obra e o público. A arte créticos, mobilizando nas composições uma atitude de fuga das polariza- era pensada como atrito, exigindo respostas diferentes por parte de quem ções, estéticas e ideológicas, para enfrentar as indeterminações do que dela se aproximava. O risco de aniquilamento do incômodo é imenso quando Hélio Oiticica chamou de “Brasil diarreia” e Décio Pignatari e depois Gil e esse tipo de “artista/obra” entra e se adequa às instituições – ao museu e à Torquato, “Geleia geral brasileira”. história. Isso traz consigo desafios inadiáveis nos obrigando a deslocar os contextos, repensar as instituições, atualizar o incômodo. Não se trata de O desafio aqui é positivar a ambivalência, como superação das polari- recusar o museu. Caberia entrar sem se acomodar? Tarefa ingrata. zações sem fugir dos conflitos e sem cair na convi-conivência que seria a A frase de Hélio Oiticica estampada no interior do penetrável tropicá- facilitação (ética) da ambivalência (estética). O conflito sem polarização é lia – “A pureza é um mito” – é uma síntese do seu programa ético-estético a própria potência do poético (ato) e do estético (afeto) sem a mediação iniciado com os parangolés em 1964. A idealização do fora é uma forma de do possível mimético e/ou ideológico – com os riscos, aí implícitos, de não pureza. Mesmo sendo barrado do MAM-Rio em 1965, Oiticica permaneceu ter o endereçamento e o efeito previstos. O “vocês não estão entendendo ali, frequentou o bar e as exposições e propôs a curadoria da “Nova obje- nada” dito por Caetano em um dos festivais da canção da época resume o tividade brasileira”, em 1967 (exposição que nos interessa sobremaneira conflito que transcende a polarização. Já a polarização sem conflito seria aqui). Enfrentar o mito da pureza trazia um sentido ético, pois carregava a arte engajada do CPC – com todo respeito à luta deles. uma espécie de imperativo existencial saído da relação necessária do Toda a questão da ambivalência aponta para o que podemos esperar indivíduo com a alteridade, com as diferenças inerentes ao coletivo. Ex- como efeito político do fazer artístico. Em que medida a indeterminação plicitava também um compromisso estético ao apostar em uma sensibili- desse efeito é a condição ambivalente de experimentar o experimental, de dade e uma poética marcadas pela contaminação com o que se mantinha apostar na invenção sem amarras ideológicas (ou sem lugar de fala)? Outra excluído das normas do bom gosto. Essas contaminações indicavam um vez Favaretto: “da maior importância foi a atitude de deslocar os modos deixar-se afetar e uma produção de afetos e efeitos que só interessariam vigentes de interesse pelo coletivo, de expressão do inconformismo social se transformassem os saberes e as identidades instituídas. Nesse aspecto, na experimentação artística, pelo ultrapassamento do mero interesse pelas a arte experimental que se fazia no Brasil naquele limbo pós-golpe não se mitologias, valores e formas de expressão das experiências populares”. O encaixava nos lugares de fala estabelecidos, pelo contrário: buscava pro- projeto ético-estético dos parangolés foi o condensado poético de Oiticica, duzir outros lugares (e formas de vida e possibilidades de mundo) a partir sua possibilidade de produzir ali uma rave-arrastão. Sem caber no museu, de falas que não tinham lugar. ela entrou na história da arte, sendo, acima de tudo, signo político do Entre os parangolés serem barrados na exposição Opinião 65 e o pe- tempo-rei, que transformou (e segue transformando) os modos de ser da netrável tropicália aparecer na exposição “Nova objetividade brasileira”, arte e da cultura brasileira. Transformação ambivalente que muda e não formou-se não só na obra de Oiticica, mas em parte significativa da produção muda o Brasil-diarreia. cultural brasileira de vanguarda, uma certeza de que resistir à ditadura seria, mais que tudo, um exercício experimental de liberdade. Frase-conceito de Mário Pedrosa que nunca pode ficar de fora quando se fala desse momento, Luis Camillo Osorio Professor na PUC-Rio. mesmo sabendo-se que a repetição cansa. Exercitava-se a experimentação em nome da liberdade, uma experimentação que pretendia ser, simulta- neamente, artística e política.

106 107 Penetrável Rio de Janeiro: seja gari, seja herói* Barbara Szaniecki Designer, professora adjunta e pesquisadora da Esdi/Uerj A pureza é um mito. A inscrição dentro do penetrável Tropicália é o ponto de articulação dessas reflexões e virá sob os holofotes dos megaeventos e na companhia dos garis em luta do Rio de Janeiro. De certa forma, es- sas reflexões articulam o luxo e o lixo da cidade a partir de duas imagens emblemáticas: a do gari Sorriso fazendo propaganda da cidade do Rio de Janeiro nas Olímpiadas de Londres em 2012 e a greve dos garis em pleno carnaval carioca de 2014. Naquela ocasião, as toneladas de lixo espalhadas por toda a cidade geraram um gari-site-specific. *tEXTO ESCRITO COM Talita Tibola, Entre o primeiro e o segundo evento – e suas respectivas imagens Pós-doutoranda na Esdi/UERJ emblemáticas – estouraram as manifestações de junho de 2013 com suas reivindicações por transporte, saúde e educação pública de qualidade. Os meses se passaram e as manifestações multitudinárias foram aos poucos se reduzindo. Contudo, no início de 2014 assistimos a um fenômeno novo. Ao sair da fábrica e se estender por todo o espaço urbano, a greve dos garis no Rio de Janeiro se fez “greve metropolitana”1 e, nesse movimento, ganhou uma visibilidade incomum. O cuidado com o lixo é, de fato, fundamental para a vida nas cidades, mas esse cuidado é tão invisível que somente o não cuidado pôde torná-lo visível. O gari-site-specific alcançou essa visibilidade. Ele revelou a cidade lixo por trás ou por baixo da cidade luxo dos circuitos globais, incorporada pelo gari Sorriso no fechamento das Olimpíadas de Londres. Revelou o verso do cartão-postal, o avesso da fantasia de carnaval.

1 neGRI, Antônio. Dispositivo metrópole. Disponível em: http://bit.ly/1fPoh2U

109 A essas duas primeiras imagens acrescentamos aqui uma terceira: a Parangolé Gari e a questão da participação: corpo e dança bandeira Seja marginal, seja herói de Hélio Oiticica. Para além da mera homenagem a alguém que ele conhecera, ela afirma a marginalidade de Para Hélio Oiticica, os parangolés são estandartes e capas, sobretudo certos modos de vida como resistências assim como a própria posição de capas. Mais do que ser carregado, o parangolé deve ser vestido. E, uma vez HO às margens do sistema da arte. Com efeito, em entrevistas, ele dizia vestido, por sua estrutura em camadas multicoloridas, o próprio parangolé se sentir mais à vontade com moradores da Mangueira ou com pessoas na “pede” ao corpo para se movimentar. Em suas “anotações sobre paran- rua do que com artistas e outras figuras do meio artístico. golé” (1965), HO fala do próprio como obra inseparável do corpo, como Uma posição às margens não apenas pelo fato de HO ter se deslocado estrutura inseparável da ação: é uma “estrutura-ação” mas, sobretudo, até as margens da cidade e de ter convivido com aqueles tidos por boa parte “uma estrutura ambiental”. da sociedade como “marginais” – os que vivem fora da lei, mas também moradores de favelas que eram considerados como tais – mas por ele ter O Parangolé revela então o seu caráter fundamental de “estrutura am- se colocado às margens do sistema artístico de diferentes modos. biental”, possuindo um núcleo principal: o participador-obra, que se des- HO era marginal porque não centralizava a autoria e sim estimula- membra em “participador” quando assiste e “obra” quando assistida de va a participação; marginal porque não produzia obra e sim ambientes fora nesse espaço-tempo ambiental. Esses núcleos participador-obra ao e programas; marginal porque não diluía, não repetia, não retomava, se relacionarem num ambiente determinado (numa exposição, por exem- não voltava às origens; marginal porque experimentava. Existiriam nessa plo) criam um “sistema ambiental” Parangolé, que por sua vez poderia ser “marginalidade” de HO, na maneira singular como ele colava a sua arte ao “assistido” por outros participadores de fora.2 seu modo de vida, elementos para pensar uma política em que a crítica aos governos, à representação e à corrupção não fosse entendida como Ao vestir o parangolé, o espectador se torna ao mesmo tempo parte da demanda de uma pureza essencial? Existiriam elementos para pensar uma obra, participante (participador, segundo HO) e até mesmo coautor ou co- política marginal no sentido de uma política experimental em tempos tão programador da obra porque, mais do que obras, HO elaborava programas. fechados à experimentação? E, mais precisamente, programas ambientais com base na participação. Depois de um ciclo intenso de protestos em 2013, vivemos em 2014 Vemos então que a “participação” é chave na mudança da relação entre uma Copa do Mundo e eleições presidenciais. E desde 2015, estamos vi- o artista e o seu público e, possivelmente, também entre representantes vendo mais do que uma recessão. Vivemos uma ressaca generalizada com políticos e nós, cidadãos. Essa demanda de participação que HO formulava criminalização de ativistas, cooptação de movimentos, manipulação não na arte nos anos 60 e 70, foi formalizada como “participação popular” na apenas da grande mídia como também das redes sociais e mistificação Constituição de 1988, foi revitalizada nos Fóruns Sociais Mundiais – o pri- de representantes políticos e partidos. Perguntemos a HO: como seguir meiro aconteceu em Porto Alegre em 2001, cidade pioneira no orçamento experimentando? Para além das mobilizações para defender a política ins- participativo3 – mas hoje na qualidade de cidadãos somos chamados a tituída e para além do imobilismo de alguns movimentos em luto por junho participar apenas para legitimar decisões já tomadas. de 2013, nasceram algumas iniciativas autônomas como a dos Círculos de O desafio do nosso momento é realizar uma política com menos repre- Cidadania e, em particular o Círculo Laranja, uma iniciativa dos garis em sentação e mais participação ou mesmo coprogramação das campanhas, luta do Rio de Janeiro. dos programas dos partidos, das obras a serem realizadas, dos projetos A pureza é mesmo um mito. Uma política experimental não deve fazer e processos de cidade por parte das pessoas. HO não desejava uma “arte concessões nem a mitos nem a mistificações. E por isso aqui pretendemos experimental” como categoria e sim assumir o experimental. De forma se- aproximar algumas questões artísticas de HO e questões políticas de nos- melhante, desde junho de 2013, ruas e redes reivindicam mais do que uma so momento, entre elas as reivindicações dos garis do Rio de Janeiro em dois pontos que não exaurem outras possibilidades de aproximação: em primeiro lugar, o parangolé Gari e a questão da participação e, em seguida, 2 oiticica, Hélio. Anotações sobre o parangolé (1965). In: OITICICA FILHO, Cesar (org.). Hélio Oiticica. Museu é o Mundo. Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p. 73 e 74. o penetrável Gari-cidade e o Programa Ambiental. 3 obrigada a Alexandre Mendes que fez uma ótima reconstituição do tema da participa- ção em recente seminário da Universidade Nômade.

110 111 “política participativa”. Assumir o participativo significa ir além de simples transformação do “espectador” num “participador e até mesmo num co- consultas pontuais com fins de legitimar o poder. Como estender a “política” programador” do “programa ambiental”? E HO insistia bastante nessa ideia proposta por HO não apenas no campo da arte e seus movimentos, como de programas, program in process, ou seja, estruturas abertas à invenção, também a partir das lutas concretas nas e das cidades? Como articular os à participação. experimentos-parangolé de HO e as lutas dos garis? O que HO procurava romper por meio das suas vivências-parangolés e A cor surge como sensível articuladora. E de fato, os parangolés são sistemas ambientais era a própria sociedade do espetáculo com sua relação amarelo-laranja-vermelho. E laranja são os uniformes dos garis. O parangolé- passiva do consumir objetos, do assistir espetáculo, do contemplar obra -estandarte de HO e a vassoura dos garis também dialogam por meio de ou, se passamos à política numa aproximação livre, do eleger candidatos sua estrutura semelhante. A forte relação formal dos parangolés-capas de e do referendar programas prontos. Talvez a superação da crise da repre- HO com as vestimentas dos garis, dos parangolés-estandartes de HO com sentação que vivemos hoje, em parte devida à falta de participação dos as vassouras dos garis faz com que ao avistar um gari varrendo as ruas, cidadãos nos processos de decisão – o que leva à corrupção da própria apesar da dureza do trabalho, não seja possível não pensar nos passistas democracia – passe por outra arte-política com base nas cidades. sambando na Mangueira. A potência do corpo e do movimento os une. Hoje assistimos não apenas a uma obra ou a um espetáculo na cidade. Tudo isso tem impacto estético mas não parece suficiente para afirmar a Hoje assistimos a nossa própria cidade sendo vendida como imagem e relação política que parece unir o programa ambiental de HO ao dos garis. paisagem além de consumida como espetáculo urbano total que, sempre Retomemos aqui a greve dos garis de 2014. Depois da greve, garis foram mais, circunscreve a experiência urbana. Nos passos de HO, levantemos demitidos e substituídos por máquinas. Após muitas rodas de conversa, como hipótese a programação de uma cidade de ambientes como resistência chegaram à conclusão que não faria sentido reivindicar um tipo de trabalho a uma cidade de megaeventos. Nela, os garis teriam um importante papel realizável por máquinas. Ora, garis não são máquinas, são humanos apesar a desempenhar. Para além dos parangolés, quem sabe os penetráveis nos de suas condições de trabalho serem próximas às da escravidão.4 Hoje, eles indiquem caminhos... lutam para saírem desse embate com as máquinas e serem reconhecidos como “agente de saúde ambiental”. Como assim? Com efeito, os garis já são responsáveis pela coleta de lixo, pela varrição Sistemas ambientais, penetrável Magic square de ruas, pela limpeza de bueiros e, eventualmente, pela poda de árvores. e o penetrável Gari-cidade #RJ2016 Todo esse trabalho é de proteção ambiental. Ele evita a contaminação das coleções hídricas dos solos, controla vetores e pragas, evita inundações. Ou Quando se fala em penetrável, pensa-se de imediato em Tropicália composta seja, esse trabalho garante a salubridade das habitações e dos territórios.5 de dois penetráveis: PN2 (1966) – Pureza é um mito e PN3 (1966-1967) – Para realizá-lo, os garis precisam ser qualificados e se tornam, por Imagético, ambos articulados em torno de plantas, areia, araras, poemas- sua vez, qualificadores dos cidadãos. Eles têm um importante trabalho de -objetos, capas de Parangolé e um aparelho de televisão. Uma década educação a ser realizado com a população. Podem estimular a participação depois, HO se dedica ao penetrável Magic square. Pensado para a Bienal na coleta seletiva, por exemplo, mas não apenas isso. Sua presença e ação de São Paulo de 1977, ele permaneceu sob a forma de texto, planta baixa, cotidiana nos espaços urbanos podem ativar as relações entre moradores, desenho técnico, amostras e uma gravação (videoteipe) até ser montado transeuntes e poderes públicos. Com essa participação, reaproximamos em Inhotim.6 E marca a investida de Hélio Oiticica no espaço público. novamente os garis de HO. Mas ainda é pouco. O que HO desejava com Numa entrevista a Lygia Pape em 1978,7 HO fala dessa investida que a transformação do “assistir” num “vestir” a obra e, dessa maneira, na diferencia Magic square dos penetráveis realizados anteriormente:

4 Fui demitido porque saí da senzala. Disponível em http://outraspalavras.net/ blog/2015/05/04/fui-demitido-sai-da-senzala/ 6 disponível em http://www.inhotim.org.br/inhotim/arte-contemporanea/obras/inven- 5 Ver artigo Garis: trabalhadores da saúde de Viviane Tavares (EPSJV/Fiocruz). Disponível cao-da-cor-penetravel-magic-square-5-de-luxe/. em http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/garis-trabalhadores-da-saude. 7 coHN, Sergio; OITICICA FILHO, César; VIEIRA, Ingrid (org.). Encontros. Hélio Oiticica. Acessado em 23/06/2016. Rio de Janeiro: Azougue, 2009, p. 181.

112 113 novamente ouço falar em retomada. Vou falar em primeiro lugar em ter- psicogeografia. Mas não é em Paris e sim em Nova York que ele contrapõe, mos gerais para situar o problema da chamada retomada. Essa maquete, numa entrevista concedida a Aracy de Amaral em 1977, a sua proposta de que estou preparando para ser realizada aqui, ela não tem nada de reto- participação às práticas artísticas americanas que permanecem ligadas mada. Essas propostas não têm nada de voltar atrás. Por exemplo, uma à representação: Eu não quero fazer coisas que as pessoas vejam como delas era a descoberta do espaço urbano, e somente nesse caso seria uma se fosse uma exposição, mesmo que seja do lado de fora. Eu acho que os retomada pois teria partido da maquete Cães de caça,8 que ainda seria americanos fizeram isso, aquelas cortinas do Christo, não sei o quê, você uma coisa isolada do urbano, um projeto ideal, como se fosse aquilo que vai para a natureza para ver uma exposição.11 Mário Pedrosa chamava de Invitation au voyage baudelairiana, no urbano. Aracy menciona que a grande contribuição da década de 1960 foi mesmo Aquilo era para ser feito no espaço urbano, é claro, mas era uma coisa a participação. E HO responde: Isso [a participação] eu acho que é muito isolada, como se fosse uma Invitation au voyage. Nestas outras obras não difícil de entender aqui porque tudo em Nova York, mesmo o espaço urbano ocorre isso, é como se fosse a descoberta do espaço urbano mesmo, ou é show, é show-espaço-urbano. Nunca há essa coisa de participação. [...] do espaço público. Mesmo que seja feito em um parque, pois parque ain- É tudo cenográfico, a própria rua, você entende, se você faz uma coisa na da é um espaço urbano. Eu uso o nome de Penetrável ainda, inclusive eles rua já não tem participação, as pessoas começaram a racionalizar como não têm nada a ver com a Tropicália. se fosse um evento [...]”.

É como se HO desejasse uma experiência urbana mais concreta, mais pé no chão da cidade, no cinza ainda que tensionado pelo verde. Square pode Do show-espaço-urbano ao programa ambiental ser traduzido não apenas como “quadrado” mas também como “praça”9 que, neste caso, se concretizava como uma área de 25 x 25 m2 rodeada por Da Nova York da década de 1970, voltamos ao Rio de Janeiro do ano de grama. Alguns críticos associaram o penetrável aos “quadrados” de Klee 2016. Quais são as possibilidades de participação num Rio de Janeiro de e Mondrian, mas HO insistiu de que se tratava de um quadrado-praça- megaeventos, isto é, no show-espaço-urbano que se tornou a nossa ci- -mágica.10 A livre interpretação como quadrados por parte dos críticos dade? Como SUBverter a exposição de obras e espetacularização total da nos incita a livremente insistir na experimentação do espaço urbano. O cidade num programa ambiental? Num potente penetrável RJ 2016? HO que menos interessa no quadrado-praça-mágica é a sua forma, no caso, abriu caminhos subterrâneos que nos interessa percorrer também. Per- quadrada. O que mais interessa no quadrado é o circular. Gerar circulação corremos a sua trajetória de um Programa Ambiental: dos parangolés aos na praça requer algo da (des)ordem da magia. penetráveis (Tropicália e Magic square). E apresentamos a demanda dos Sabemos que HO é um leitor dos situacionistas e, em particular, de Guy garis de transformação da força de trabalho braçal, facilmente substituível Debord. Conhecia bem as críticas à sociedade do espetáculo assim como por máquinas, em “agente de saúde ambiental”. as propostas de construção de situações e de ambiências por meio da É preciso sempre lembrar que a participação que HO reivindicava para a arte é centrada na descoberta do corpo, corpo em movimento de 8 Cães de caça é composto de cinco penetráveis, o “Poema enterrado”, de Ferreira dança. Também é por meio do corpo em movimento, no caminhar e cuidar Gullar, e o Teatro Integral, de Reynaldo Jardim. da cidade, que os garis não apenas reivindicam participação na política 9 “É difícil fazer uma descrição sem ver. Chama-se Magic square. O nome tem de ser em como agenciam participação de cidadãos. Ao enfrentar um sindicato que inglês porque square quer dizer ao mesmo tempo quadrado e praça.” COHN, Sergio; não os representa mais, fazer greve e formular novas pautas, ao informar OITICICA FILHO, César; VIEIRA, Ingrid (org.). Encontros. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: sobre a importância da coleta seletiva dentre outras informações de cunho Azougue, 2009, p. 185. ambiental em sentido específico mas, sobretudo, ao cuidar das relações 10 “Continuando a descrição, rodeando essa área de 25x25 metros quadrados colocaria grama. Seria o espaço mesmo da praça e por isso daria o nome de Magic square. na cidade num sentido ambiental muito mais amplo, aquele evocado por Imediatamente, associaram meu projeto como influenciado pelos “quadrados” de Klee Félix Guattari com suas três ecologias: mental, social e ambiental. E aqui, ou Mondrian. Acho ótimo que associem, talvez façam parte de uma mesma linhagem, acrescentamos outras: as ecologias estética e política. A ação dos garis mas minha ideia não é quadrado mágico, o nome do meu projeto é Quadrado-Praça- Mágica.” COHN, Sergio; OITICICA FILHO, César; VIEIRA, Ingrid (org.). Encontros. Hélio Oiticica. Op. cit., p. 186. 11 idem, p. 144 e 145.

114 115 na cidade tem uma dimensão estético-política. Nela existe de fato uma percebem a potência da sua caminhada por toda a cidade para além das demanda de visibilização dos invisíveis e de participação na pólis por parte carreatas tradicionais. Têm medo da natureza intrinsecamente política do dos sem parte. Ela constitui, nos termos de Jacques Rancière, uma partilha seu trabalho e da natureza intrinsecamente participativa do seu progra- do sensível que o sistema político e também o sistema artístico insistem ma ambiental. Hoje, num Rio de Janeiro de megaeventos, um programa em ignorar ou reduzir, em suma, marginalizar. ambiental no sentido que HO atribuía ao termo, isto é, um programa em Ao escrevermos estas linhas, deparamo-nos com a notícia da parceria que a relação entre o ator e o espectador assim como a relação entre o entre o artista Carlos Vergara, o designer Zanini de Zanine e o coletivo de representante político e o cidadão eleitor é reconfigurada por meio da agricultura urbana Organicidade na realização de um jardim-labirinto de participação, ganha corpo num penetrável Gari-Cidade. plantas comestíveis e medicinais no meio do espelho d’água da Cidade das Artes, um dos símbolos da cidade de megaeventos na qual o Rio de Janeiro se transformou. Não poderia a presença dos garis demitidos trazer Agenciamentos pelo caminho.... uma experiência que abrangesse não apenas a contemplação, a qual os autores generosamente nos convidam, mas também o cuidado cotidiano Cerca de dois meses atrás, Célio Viana, entre outros garis do Rio de Ja- e o conflito necessário à democratização do espaço urbano? A pureza é neiro, organizou um dia inteiro de atividades para festejar o Dia do Gari e um mito, nos diz HO. E, acrescentamos, a mistura é ainda uma miragem. planejar suas reivindicações. Junto com Clorisval Pereira Jr. e Bruno Tarin Flâneries, derivas, delírios ambulatórios são potentes experiências pensamos em fazer uma proposta para a ocasião especial. Clorisval propôs corpóreas de cidade vindas do campo da arte, da arquitetura e urbanismo. a realização de uma Barraca dos Desejos dos garis. A nós se juntou Renata HO – que se sentia mais à vontade na comunidade da Mangueira e com as Richard e lá fomos para o Parque Madureira montar a barraca cujas estacas pessoas nas ruas do que no meio artístico12 e mais à vontade nos mundos usamos para criar uma estrutura de barbantes. Propusemos aos garis que subterrâneos do que nas museificações superbrilhantes – certamente con- escrevessem seus desejos em cartões laranjas e verdes e, uma vez escri- cordaria que potentes experiências corpóreas podem vir também das lutas tos, os penduramos nos barbantes. Ao longo do dia, a barraca se tornou na e da cidade tais como: as lutas pela moradia, das favelas às ocupações; estrutura multicolorida. Um mês depois, já em meio aos preparos para o as lutas pela descriminalização da maconha e das drogas; as lutas dos seminário internacional Hélio Oiticica para além dos mitos,13 deparamo-nos garis pelo seu reconhecimento como “agente de saúde ambiental”. “Luta” com essas reflexões de HO: aqui não deve ser enquadrada como “militância” e sim apreendida como “proposta estética de uma experiência de cidade”. É mesmo difícil pensar Eu descobri na rua a palavra Parangolé. Tinha um negócio armado que pa- fora do quadro da arte ou do campo acadêmico. Fazer o quadrado circular. recia muito com uma tenda que eu estava fazendo. Sabe como? Na área, no Garis têm de fato uma intensa experiência de cidade. Eles percorrem caminho para a Mangueira, uma área da Praça da Bandeira, tinha um ter- quilômetros em condições extremamente difíceis, a pé, correndo atrás reno baldio, assim, junto da parede do trem da Central. Tinha um negócio ou pendurados no caminhão de lixo, sem acesso a água ou a banheiro. E armado que era assim: quatro estacas de madeira fazendo a coisa, e o cara sofrem repressão e demissão por reivindicar novas formas de sindicato e era um mendigo, ele fez assim, fios de barbante ligando uma estaca a outra novas formas de partido, em suma, por querer criar uma nova política. Os inteira. Fazendo uma parede toda de barbantes.”[…] E dentro tinha assim podres poderes – as empresas, os sindicatos, os partidos e tudo isso junto uma aniagem e estava escrito: ‘Esse é o Parangolé… não sei de quê, a única e misturado – têm medo deles porque percebem a potência do seu corpo palavra que eu entendi era parangolé, aí eu disse: ‘Aí, a palavra mágica!’.14 a corpo com os moradores para além das conversas ocasionais, porque A barraca dos desejos que montamos para os garis do Rio de Janeiro 12 em entrevista à Aracy do Amaral, NY, 1977: “[…] aliás é isso que é todo o destino do se fez parangolé. Parangolé de Hélio, parangolé de Célio. A partir dos car- meu trabalho, acho que sempre foi esse. Tanto é que já começou com a quebra [?] para a Mangueira em vez de ir a reuniões artísticas. Todo mundo pensa, ninguém entende que eu nunca tava, não ia a exposição alguma, não ia a reunião artística nenhuma. Eu 13 disponível em http://www.hoparaalemdosmitos.com.br/site/. ia todo dia para a Mangueira. Já começa por aí”. COHN, Sergio; OITICICA FILHO, César; 14 coHN, Sergio; OITICICA FILHO, César; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Encontros. Hélio Oiticica. VIEIRA, Ingrid (orgs.). Encontros. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 153. Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 153.

116 117 tões dos desejos, Clorisval realizou uma cartografia em que classificou os sem qualquer pretensão de fazer exegese. Não retornemos às suas “obras” desejos dos garis quanto aos atores (garis 40%, sociedade 23,8%, agente em separado e sim ao seu programa ambiental. Ele abala os alicerces de saúde ambiental 19%, Comlurb 11,4%, políticos 5,7%) e aos temas dos que constituem a racionalidade da cidade moderna e, por que não, pode desejos (direitos 49,5%, sonhos 43,8% oportunidades 12,3% e mobilização vir a abalar a hegemonia de certos modos de vida urbana hoje.Com HO, 7,6%). Em seguida, todos os materiais obtidos – cartões dos garis, fotos o trabalho, por exemplo, se faz arte e participação. De certa forma, ele da barraca, textos de todos nós, cartografia de Clorisval foram reunidos se inspira nas formas de trabalho que emergiram das lutas dos anos 60 num GariZine – fanzine dos garis – realizado no Colaboratório, junto com e 70. Delas surgiu um trabalho mais flexível e móvel que autores como Roberta Guizan e André Aranha. Antonio Negri, Giuseppe Cocco, Maurizio Lazzarato e Paolo Virno chamam de “trabalho imaterial” ou “trabalho biopolítico”. Este último carrega uma forte ambiguidade. Ele pode ser mero efeito do poder sobre a vida (um Considerações finais: cidade de ambientes inteiros, biopoder) ou pode ser expressão de uma potência da vida (biopolítico), se cidade do comum quisermos chamar Michel Foucault para a discussão. O “trabalho da arte” de HO antecipa parte da problemática do trabalho contemporâneo que é um Em Dispositivo metrópole,15 ao pensar Nova York a partir da análise que trabalho que se emancipou da fábrica mas, flexível e móvel na metrópole, Rem Koolhaas faz dela, Antonio Negri afirma que a metrópole é mais forte encontra uma contínua e cruel precarização que é a forma como o capital que o urbano. A hibridez ou mestiçagem da metrópole é mais forte que produz marginalização. Marginalização por que o trabalho não encontra a pureza do planejamento urbano. Em outro texto, na resenha que faz do formas justas de remuneração e de proteção social e, menos ainda, formas livro Junkspace de Rem Koolhaas,16 Negri afirma: adequadas de representação. Com HO, a moradia se transforma em penetráveis e em ninhos. De certa Eu quase rio quando meus companheiros mais próximos me falam, toman- forma, aqui também HO está falando das demandas de moradias outras do-as como indicações de alternativas, de comunas habitacionais, de jar- que emergiram das lutas dos anos 60 e 70 mas não apenas. No caso do dins e hortos autogeridos, de casas ocupadas multifuncionais, de ateliês Rio de Janeiro, são os quilombos de outrora, são as favelas que HO co- culturais e políticos, de empresas de uma Bildung [NT: cultura formativa] nhecera tão bem, são as resistências às formas de moradia disciplinadas comum. O realismo cínico pós-moderno mereceu a minha crítica, mas é e controladas. Na casa do condomínio, no apartamento do Minha Casa justo partir de seu realismo e não se alimentarem mais ilusões sobre o fato Minha Vida, o barraco da favela simplesmente não cabe. Não é que não que a cidade e a metrópole estejam consignadas ao exercício do biopoder; caiba a geladeira, não cabe o modo de vida. Não se trata de uma crítica é justamente a partir desse reconhecimento consciente que me pergunto: partidária, trata-se de uma questão ontológica. E é significativo como a o que quer dizer restituir a metrópole à produção biopolítica? Na dimen- incompreensão de outras maneiras de produzir ecoa na incompreensão são da Bigness, não do artesanato, mas do General Intellect, talvez nós de outras maneiras de habitar e ecoa, por sua vez, na incompreensão de precisemos voltar a falar em democracia e comunismo. outras maneiras de criar. Com HO, o lazer se transforma em Crelazer. De certa forma, com seus Negri fala com certa ironia dessa Bildung comum. Mas é preciso re- parangolés e penetráveis, HO formula uma forma de lazer que não é aquela conhecer que essa Bildung comum abrange uma pluralidade de teorias que se opõe ao trabalho, isto é, mero descanso para recompor as forças e práticas, abrange desde as comunidades criativas nos termos de Ezio do trabalho. Ele rompe a relação trabalho versus lazer que constitui a base Manzini até as comunidades sensíveis de Jacques Rancière, e certamente produtiva capitalista. O Crelazer é criativo. O Crelazer cria mundos para muitas outras ainda. Para responder a essa provocação a pensar as múl- além do consumo e do espetáculo, mundos de usos e de afetos. tiplas formas de coprodução na contemporaneidade, retornemos a HO Com HO, o transporte – o deslocamento de um ponto a outro da cidade, o deslocamento que nos leva de casa ao trabalho e do trabalho até em casa ao longo da semana e, nos fins de semana, de casa ao lazer e do lazer 15 neGRI, Antonio. Dispositivo metrópole. Disponível em: http://bit.ly/1fPoh2U a casa – faz-se deambulação, deriva, desvio. Hoje, a mobilidade urbana 16 In Radical philosophy, no 154, 2009. (Tradução: Universidade Nômade Brasil). Disponí- vel em http://uninomade.net/tenda/rem-koolhaas-junkspace-e-metropole-biopolitica/ não corresponde exatamente à racionalidade da circulação funcionalista.

118 119 Ela se desdobra numa vertente subserviente à flexibilidade do trabalho Referências contemporâneo – a precariedade também denominada empregabilidade exige uma circulação constante pela cidade entre diversos empregos – e COHN, Sergio; OITICICA FILHO, César; VIEIRA, Ingrid (orgs.). Encontros. numa vertente desejosa de trânsitos por todos os territórios e tempos da Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009. metrópole que, não nos esqueçamos, estava na origem do estopim de junho de 2013. Do quadrado-praça-mágica de HO estendido ao máximo NEGRI, Antonio. Dispositivo metrópole. A multidão e a metrópole. até alcançar a dimensão mega de nossas metrópoles, o que importa é o http://bit.ly/1fPoh2U circular SUBvertendo magicamente a lógica produtiva. ______. Rem Koolhaas – junkspace e metrópole biopolítica. Radical philosophy, HO provoca toda a concepção funcionalista de cidade baseada no traba- n. 154, 2009. Disponível em: http://bit.ly/29AbOFk. lho na moradia, no lazer e no transporte. HO provoca toda a racionalidade do planejamento urbano que, embora baseado em utopias, acabou ser- OITICICA FILHO, Cesar (org.). Hélio Oiticica. Museu é o Mundo. Rio de Janeiro: vindo ao capitalismo moderno e produzindo hierarquias e marginalidades. Azougue, 2011. E ainda acrescenta, como que antecipando naquele momento o que hoje estamos vivendo, o ambiental. O ambiental em sentido complexo. Se em Félix Guattari ele é relativo ao meio ambiente, ao social e ao mental, em HO e, como mostramos, nos garis, o ambiental é também estético e político. Hoje, num país em plena crise de representação e crise de tudo, num Rio de Janeiro de megaeventos, num Rio de Janeiro subordinado ao pla- nejamento estratégico de um capitalismo esquizofrênico, precisamos da potência de HO. Não para retomar alguma coisa – não há nada a retomar dizia HO, nem pintura nem escultura, nem coisa alguma do campo da arte; e podemos dizer o mesmo do campo da política – e sim pôr em experimen- tação um penetrável Gari-cidade #RJ2016, isto é, um programa ambiental que resista à espetacularização e especulação da cidade. Sejamos garis, sejamos heróis.

120 121 E se Hélio fosse hoje? Ou, como a favela chega ao museu

Este texto comenta algumas das proposições estéticas e teóricas de Hélio Cíntia Guedes Oiticica. Escrevo atenta aos debates sobre raça, e como mulher negra. Os interesses do texto giram, portanto, em torno de questões éticas e políti- Doutoranda em cas dos escritos e do gesto artístico do artista em relação ao tempo atual, comunicação pela ECO/UFRJ tendo em vista que sua obra é referência para uma série de experiências de arte contemporânea, em influências mais ou menos diretas no que são consideradas as intersecções entre arte e vida na produção artística, especialmente aquelas que se localizam no paradigma da micropolítica. Aproximo, para tanto, duas situações bastante distintas. A primeira é a proibição do Parangolé em 1965 no MAM, na abertura da exposição Opinião-65, que tinha por objetivo conjurar os jovens artistas mais inte- ressantes do Brasil e da Europa. Nesta primeira parte do texto, avanço um pouco em direção à observação do que foi realizado pelo artista em Tropicália, obra de 1967. O contexto de ambas, realizadas pouco tempo depois do golpe militar de 64, era de uma ditadura que ainda ia ganhar sua faceta mais repressora, enquanto no âmbito internacional, como aponta o artista e professor Carlos Zílio (2009), havia motivos para crer que a utopia revolucionária era realizável:

Havia a crença na construção de um novo homem e de uma nova socie- dade. A guerra no Sudeste Asiático demonstrava a capacidade de um país pobre enfrentar a máquina de guerra imperialista. Na China, a Revolu- ção Cultural parecia provar a possibilidade de o marxismo se revigorar internamente; na América Latina, a Revolução Cubana abria novas pers- pectivas e a figura de Che Guevara sintetizava todas as esperanças. (Zilio, 2009, p. 129)

123 O segundo acontecimento tratado nestas reflexões é a abertura do Museu É importante, contudo, desde já atentar que a retórica da “descoberta” de Arte do Rio, em 2013. O Brasil seguiu o curso de uma frágil democracia é paralela à crítica que o artista faz da situação colonial na arte brasileira profundamente marcada pelo capital, em um país integrado à economia de seu tempo, a qual o mesmo se contrapunha através do gesto antropo- capitalista global, às vésperas de uma série de manifestações multitudi- fágico. A colonialidade, todavia, era definida por ele exclusivamente pela nárias que marcaram junho de 2013, e que fizeram retornar, de maneiras relação Brasil-mundo: diversas, a vitalidade de pautas minoritárias como as dos feminismos e das lutas contra o racismo. A antropofagia seria a defesa que possuímos contra tal domínio exterior, e Diante desses dois acontecimentos, o texto busca acenar para algumas a principal arma criativa, essa vontade construtiva, o que não impediu de questões que a visita recente aos escritos de Hélio Oiticica e de seus con- todo uma espécie de colonialismo cultural, que de modo objetivo quere- temporâneos suscitou-me. Não pretendo, entretanto, apresentá-las aqui mos hoje abolir, absorvendo-o definitivamente numa superantropofagia. em caráter conclusivo, mas introduzir o debate. Escrevo mobilizada pelas (Oiticica, 2006, p. 155) problemáticas contemporâneas da micropolítica na arte, cada vez mais interessada nas dinâmicas da produção de subjetividade, e em relação Na perspectiva de HO, era importante que artistas brasileiros se lan- ao cenário macropolítico contextual, para nos enlaces realizados pelo çassem na aventura de descobrir a arte do Brasil, ou no vocabulário da artista entre arte e vida na favela, apontar o que suas proposições dizem micropolítica, de devir-brasil na arte, e não apenas assimilar os ismos dos ao presente. movimentos internacionais, considerados dogmáticos pelo artista. Contudo, É recorrente encontrar em comentários sobre trabalho de Oiticica a re- como espero que fique explícito ao longo destas reflexões, acredito que tórica da “descoberta”. Em seus textos, a ideia é mais frequente no âmbito uma perspectiva contemporânea sobre a colonialidade deve atentar tam- subjetivo, do participador que descobre e completa a obra, ou dos objetos bém para as relações Brasil-Brasil, nas quais os corpos são territórios em “achados” nos percursos cotidianos do artista. Em Esquema geral da nova disputa, e as fronteiras que importam são tanto as da nação quanto as da objetividade brasileira (2006), entretanto, ele descreve que a tendência cidade, marcada pelas relações raciais, de classe e de gênero, dentre outras. à coletividade, sua e de seus contemporâneos do neoconcretismo, foi Hélio Oiticica segue, assim, experimentando novos possíveis para lin- influenciada por algo que “determinou de certo modo essa intensificação guagem do que seria a arte brasileira: não a mais autêntica, mas aquela para proposição de uma arte coletiva total: a descoberta de manifesta- capaz de se defender pelo gesto antropofágico, que em tudo difere do ções populares organizadas (escolas de samba, ranchos, frevos, festas de gesto de instaurador de uma “verdadeira tradição brasileira” ou da busca toda ordem, futebol, feiras) e as espontâneas ou ‘acasos’ (artes das ruas por uma arte brasileira mais original. ou antiarte seguida de acaso)” (Oiticica, 2006, p. 166). Tal perspectiva se Para ele, não se tratava de, por isolamento, encontrar a pureza na desdobra em uma não rara associação entre o trabalho de HO e a “des- linguagem-Brasil, mas de constituí-la na relação com os movimentos ar- coberta da favela”. tísticos da vanguarda europeia, e de posicioná-la como universal desde Elaborada com mais atenção em seus escritos, a abordagem da “apro- esta relação crítica. Nesse sentido, os problemas “locais” o interessam priação” dos objetos é um método descrito por HO como resultante de menos do que os “globais”: uma potente relação criativa do artista com o seu entorno, retornarei a essa questão mais adiante no texto. Por hora, gostaria apenas de pontuar A pressa em criar (dar uma posição) num contexto universal a esta lingua- que tanto a retórica da “descoberta” quanto da “apropriação” faz parte de gem-Brasil, é a vontade de situar um problema que se alienaria, fosse ele um vocabulário que se tornou obsoleto para aqueles atentos aos debates “local” (problemas locais não significam nada se se fragmentam quando sobre as questões raciais. Não se trata de dizer aqui o que Hélio poderia expostos a uma problemática universal; são irrelevantes se situados so- ou não ter feito ou dito, tampouco se trata de enumerar quem pode falar mente em relação a interesses locais, o que não quer dizer que os exclua, sobre o quê, e como o próprio HO já assinalava, fazer política na arte não pelo contrário) – a urgência dessa “colocação de valores” num contexto significa assimilar por completo o vocabulário da militância, embora ele universal, é o que deve preocupar realmente àqueles que procuram uma estivesse bastante atento ao vocabulário da esquerda e tivesse tido uma “saída” para o problema brasileiro. (Oiticica, 1970, p. 147) formação anarquista por intermédio do avô paterno.

124 125 Nos últimos anos, seguindo os rastros de Oiticica, multiplicam-se as mativo do museu (e da Zona Sul carioca em geral), é um bom exemplo para relações entre artistas (e instituições artísticas) com o território das favelas, entender como essa busca pela arte brasileira passava pela experimentação seus moradores e moradoras. Certamente, a relação dar-se-ia independen- das diferenças constitutivas dos territórios da cidade, e dessa maneira, temente da existência do trabalho de HO, e não há dúvidas que as criações como as vivências da favela foram desdobradas em elemento constitutivo e reflexões do artista resultaram, já no momento de sua produção, numa do trabalho de Hélio Oiticica. É a vivência que borra as fronteiras entre aproximação menos folclorizante deste território. a singularidade da experiência que só ele viveu e sentiu e a partilha da – Mas e se Hélio fosse hoje? coletividade na vida no morro. Não é à toa que HO acredita que a vivência Para seguir escrevendo, permito-me tocar algumas das margens dessa seria aquilo de que os “canalhas” e “burgueses” não poderiam se apropriar questão, ciente de que não poderei respondê-la de todo. Apenas entrevejo (Oiticica, 1986, p. 109). e tento apontar alguns caminhos através de pistas deixadas pelo próprio O gesto artístico de HO inaugura a possibilidade de tomar a vivência Hélio. O exercício consiste em olhar o passado a partir do presente, depois cotidiana na Mangueira como experiência criativa capaz de habitar a ins- olhar para o presente de novo. Noto como alguns atores do passado retor- tituição de arte. Remontando a arquitetura da favela e ao mesmo tempo nam nos acontecimentos do presente, e como alguns gestos que outrora deslocando objetos comuns para o museu, o artista executa o que chama foram de força podem ser repetidos sem nenhuma vitalidade. de arte ambiental, e de antiarte: A observação é paradigmática e contextual: quais seriam os novos Antiarte seria uma completação da necessidade coletiva de uma ativi- sonhos de Hélio Oiticica? dade criadora latente, que seria motivada de um determinado modo pelo artista: ficam portanto invalidadas as posições metafísica, intelectualista e esteticista […]. Não existe pois o problema de saber se arte é isto ou Sonhos passados aquilo ou deixa de ser. Na minha experiência tenho um programa e já iniciei o que chamo de “apropriações”: acho um “objeto” ou um “conjunto objeto” 1965. Passistas da Estação Primeira de Mangueira são impedidos de en- formado de partes ou não, e dele tomo posse como algo que possui para trar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, onde participariam da mim um significado qualquer, isto é, transformo-o em obra [...] (Oiticica, exposição Opinião-65 junto com Hélio Oiticica. 1986, p. 71) Recupero, através das notas apresentadas por Hermano Vianna (2001), Em Anotações sobre o Parangolé (1986), Oiticica segue explicando sobre registros que remontam a memória dessa ocasião, e imagino a dimensão do a profusão de significados que se acrescentam dia a dia aos objetos apro- acontecimento para os presentes: “Parangolé impedido no MAM”, publicou o priados, a partir da participação de cada visitante. A antiarte não pretende Diário Carioca, “É o mito. Hélio Oiticica, Flash Gordon nacional, não voa nos ser antes do encontro, e o sentido de cada obra está condicionado à ação espaços siderais. Voa através das camadas sociais” afirmou Jean Boghici, criadora dos participantes. um dos idealizadores da exposição, para O Globo, em agosto de 65. Em Algumas apropriações resultam em conjunto de objetos, outras em meio a público e crítica, os jornalistas que presenciaram o acontecimento obras como o Bólide Lata, apropriação 2, consumitivo (1966), uma lata em estavam convencidos de que aquela era a primeira vez que moradores de chamas que serve cotidianamente para sinalização de estradas escuras. favela iam ao museu, e não restavam dúvidas do caráter inovador e potente Em todos os casos, tais objetos articulam memórias que ultrapassam o do trabalho de HO, que promovia ali o encontro entre dois mundos. espaço do museu. Sobre o Bólide Lata, por exemplo, HO afirma que “quem O Parangolé voltava ao MAM já em 66. Dessa vez não precisariam se viu a lata-fogo isolada como uma obra, não poderá deixar de lembrar que é “apresentar” nos jardins, seriam devidamente expostos no interior do uma “obra” ao ver, na calada da noite, outras espalhadas como que sinais museu. O incômodo inicial da instituição é superado pelo interesse em cósmicos, simbólicos, pela cidade: juro de mãos atadas que nada existe caminhar com o artista em busca de uma face-brasil da arte. A “imagem de mais emocionante que essas latas sós, iluminando a noite” (Oiticica, obviamente brasileira” já se anunciava com o Parangolé, e tal chamado tem ibid, p. 80). sua apoteose um ano mais tarde com a obra Tropicália (1967). A aposta do artista é na possibilidade de reposicionar o participador O espaço criado em Tropicália, que conjura objetos que remetem à em relação às coisas do mundo, afinal, “o museu é o mundo”. Mas na re- brasilidade com a arquitetura da favela, posto em relação ao espaço nor- lação entre o museu e o mundo, a memória também percorre o caminho

126 127 inverso. Ao dispor de objetos ordinários em uma ambiência que remete europeia e americana terá de ser absorvida, antropologicamente, pela à arquitetura das favelas, HO imprime no museu uma memória coletiva negra e índia da nossa terra, que na verdade são as únicas significativas. que atravessa os investimentos subjetivos pelos quais tais ambiências são (Oiticica, 1986, p. 108) percebidas pelos participantes. Como atenta Zilio (2009), sobre os quadros de influências do artista, A afirmação a pureza é um mito, como nome de um dos penetráveis da em certa medida Hélio trata as coisas das quais se apropriava como se obra (o PN2, o PN3 chamava-se imagético), atualiza a relação Brasil-mundo: fossem o urinol de Duchamp. Os objetos de HO são como ready-mades na a propõe como gesto antropofágico, comer o outro, o estrangeiro, com o medida em que o ready-made é definido pelo gesto do artista de retirá- qual a arte brasileira deveria manter a relação crítica, apreender apenas -lo das da vivência ordinária e dá-los a ver/sentir/cheirar no espaço de o que interessa para construir uma linguagem-Brasil nas artes, e descar- privilégio do museu. tar o que não servia para essa tarefa. Embora não pareça tão urgente no Contudo, é importante acenar que os ready-mades, não tendo sido contexto da produção de Hélio, é importante perceber que tal provocação retirados da vivência ordinária, uma vez que são referências da cultura diz respeito também a uma relação Brasil-Brasil, que permanece latente industrial, e não tendo sido postos em composição com arquiteturas quando o artista reivindica um trânsito capaz de apropriar objetos, e uma ou ambiências específicas de determinados territórios, não articulam experiência capaz de comungar raças e classes: pertencimento. Portanto, se o urinol de Duchamp acompanha o gesto de apropriação de Oiticica de um lado, os objetos expostos em nossos museus A derrubada de preconceitos sociais, das barreiras de grupos e classes etc.; de antropologia pairam a sua espreita, e o que se distingue no trabalho de seria inevitável e essencial na realização dessa experiência vital. Descobri aí Hélio em relação a ambos é que certa memória surge na articulação dos a expressão entre o coletivo e a expressão individual – o passo mais impor- objetos com a estrutura arquitetônica das favelas. Dito de outro modo, é tante para tal […] o condicionamento burguês a que eu estava submetido quando uma memória da favela é acionada em Tropicália, por exemplo, desde que nasci, desfez-se como por encanto. (Oiticica, 1986, p. 73) que se efetiva a aproximação entre espaços até então irreconciliáveis da cidade, como a favela e o museu. A “descoberta” seguida da apropriação da favela se dá na relação de Em Tropicália, Oiticica compõe o espaço do museu com um ambiente estranhamento e fascinação de seu corpo burguês em relação ao movimento suprassensorial, um conjunto de dois penetráveis agregados a muitos do corpo do outro, o favelado nas especificidades daquele território.A ntes elementos reconhecíveis da brasilidade: o cheiro do capim-limão, o som do pensamento, da consciência ou da representação, uma comunidade da televisão, a chita, e ainda elementos constitutivos da arquitetura da se atualiza no corpo, nas memórias que nossos movimentos imprimem favela, num ambiente labiríntico que exige o pé na terra. Tal gesto de apro- no espaço-tempo que habitamos: “A Mangueira, que eu conheço melhor ximação entre favela e museu dá a ver uma série de dinâmicas que dizem que qualquer parte do mundo, é um lugar muito especial, porque é de lá respeito aos modos como determinados territórios (geográficos, afetivos um dos melhores músicos de todos os tempos. E tem a forma peculiar de e identitários) e seus habitantes são autorizados ou não a adentrar a arte andar, que se adquire andando no morro. Como quem busca caminhos no e suas instituições. coração da terra...” Em Tropicália, os objetos apropriados remontavam às imagens óbvias É encanto que permeia a vivência de Hélio na favela. É o legítimo en- da brasilidade, mobilizadas pelo artista como aspiração de criar o que ele gajamento do artista com a própria vida, mas não é por encanto que é chama de imagem brasileira total: permitido que ele habite os espaços da cidade que não lhe pertenciam desde sempre, assim como não é por encanto que a favela chega ao mu- […] quis eu com a Tropicália criar o mito da miscigenação – somos negros, seu. É evidente que os passistas barrados no MAM não possuíam o mesmo índios, brancos, tudo ao mesmo tempo – nossa cultura nada tem a ver privilégio, a favela não era, e continua não sendo, uma “condição” possível com a europeia. Só o índio e o negro não capitularam a ela. Quem não tiver de se dissolver por encanto, ou por completo. Talvez apenas um pouco, consciência disto caia fora. Para criação de uma verdadeira cultura bra- de vez em quando, não em coletivo, quando muito individualmente ou em sileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita, grupos controlados, de preferência quando convidada, mantendo alguns silêncios e esquecimentos.

128 129 O trânsito de HO em relação ao trânsito dos passistas no museu evidencia contra o anacronismo que o prefeito argumenta os violentos processos de o paradigma da branquitude no qual Hélio se encontra, mas não no qual ele remoção e modernização da Zona Portuária e da cidade em geral. Para o se encerra. É importante notar que branquitude não diz respeito à brancura prefeito, o MAR faz parte de um processo de recriação da cidade. Em uma da pele de alguém, sendo um termo-chave para racializar a experiência versão colonial da história da arquitetura, ele afirma: do corpo branco no mundo, compreendida hegemonicamente a partir de uma não marcação, que coloca a pessoa branca em posição privilegiada a história das cidades mostra que sempre foi assim: basílicas, igrejas, em relação às qualidades do que entendemos por humano. mercados, parlamentos e centros culturais pertencem à mesma linhagem Pelo olhar de mulher negra submetida aos esquemas de vigilância e de centros de gravidade urbana, pelo simples fato de as cidades serem, controle da cidade contemporânea, que me põe em situação de vigília primordialmente, complexos, vastos e intrigantes ambientes culturais que maior do que o fazem com pessoas brancas, observo as reflexões de HO necessitam ter seus marcos, pelo simples fato de existirem, de se reco- sobre a interseção arte e vida do lado da vida, e logo entendo que somente nhecerem e de precisarem ser reconhecidas. Uma face que possa ser lida. o paradigma da branquitude permite a ele que o trajeto entre mundos seja (Paes, 2003, p. 8) formulado como um fluxo contínuo, o que não é o mesmo que dizer que a experiência dele na favela não teve episódios conflituosos. Suponho que O MAR é o monumento conciliatório desta cidade segundo Paes, e, na precisamos refazer os antigos sonhos de Hélio, rever as relações museu- sua abertura, a exposição “O abrigo e o terreno – Arte de sociedade no Brasil -favela não apenas nos vislumbres pelos quais o asfalto descobriria certa I”, com curadoria de Clarissa Diniz, garante que a favela tome “a parte que ginga que a favela com muita disposição ensinaria. O sonho de trânsito lhe cabe” desta instituição. As disputas pelo espaço urbano, as remoções, total, de integração consensual, desemboca em abismos reais, dos quais a favela e os trabalhos oriundos do encontro de diversos coletivos artísticos nem a arte nem a cidade se beneficiam. com a ocupação Prestes Maia (São Paulo) foram destaques na circulação de notícias sobre a exposição. Além dela, alguns dos Penetráveis de Hélio e trabalhos de Lygia Clark foram expostos, e a ocasião contou ainda com a Sonhos presentes exposição “Vontade construtiva na coleção Fadel” para que não restassem dúvidas sobre a referência do neoconcretismo no novo museu da cidade. 2013. O Museu de Arte do Rio (MAR) abria pela primeira vez suas portas, Mas pode o museu operar o voo entre territórios? É possível remeter- sendo o primeiro de três empreendimentos culturais resultantes da parceria -se à “vontade construtiva” num gesto de assimilação ao projeto de uma da Prefeitura do Rio com a família Marinho. O MAR e o novíssimo Museu do nação integrada ao capitalismo internacional? Ou de outro modo: é pos- Amanhã ficam na Zona Portuária da cidade e fazem parte do projeto Porto sível aproximar a favela e o museu sem reorganizar o problema da arte no Maravilha, que promoveu uma série de desapropriações e construiu os mo- campo da política? numentos conciliatórios no território que já foi o maior porto de chegadas A história do povo negro é soterrada pelo MAR, material e simbolicamen- de negros escravizados do mundo. O terceiro empreendimento é a nova te. Como afirma o prefeito, o apagamento é um gesto monumental, afinal, sede do Museu da Imagem e do Som a ser inaugurada em Copacabana. a memória do corpo negro que compõe aquela terra deve ser devidamente Havia chegado o momento das instituições artísticas seguirem o modelo pacificada e substituída “por algo que possa ser lido”, nas palavras do parceria público-privada, já dominante em outros setores do governo e que alcaide. Nesse gesto, resta uma memória esvaziada das camadas de dor acaba de ganhar papel mais central como política do Governo Federal atra- e sofrimento, apenas assim elas podem figurar bem na história colonial e vés do Programa de Parceria de Investimento – PPI, instituído no primeiro conciliatória, na qual tudo “sempre foi assim”, e quem ousa contestar está dia do governo interino (leia-se golpista) de Michel Temer na Presidência indo contra o progresso. da República em 2016. Foi o barulho dos pandeiros e frigideiras que atormentou os diretores A instituição sabe-se em território de disputa. De um lado, os sonhos do do MAM em 65. No MAR em 2013, dezenas de pessoas, artistas e militan- prefeito Eduardo Paes, uma cidade ao modelo Bilbao, a revitalização urbana tes, batiam latas em sinal de protesto. Não falo dos que chegaram lá para a qualquer custo, e “na qual um dado território é habilitado por um ícone participar da festa, mas dos que queriam acabar com ela. Sobre os relatos de interesse global, em geral de arquitetura virtuosa” (Paes, 2013, p. 10). É desse protesto, que deixava um rastro do que viria a acontecer nas grandes

130 131 manifestações de junho do mesmo ano, registro as impressões do artista maneira imprevista, o barulho que fizeram ecoou no salão onde foram feitos e pesquisador urbano Raphi Soifer: os discursos na ocasião. A proibição do Parangolé e o protesto na abertura do MAR são episódios Do lado de fora, se sonhava com a tentativa de articular memórias que de natureza bastante distinta, mas ambos possibilitam enxergar as forças foram por debaixo daquele mesmo asfalto, ou então que ficavam fragmen- que levam a favela para dentro dos museus. A primeira, construtiva, a se- tadas e dispersas numa poeira que não teria mais a firmeza do elemento gunda, monumental. Tanto ontem como hoje, é desde o que resta da porta terra em si, mas que seria dele uma lembrança. Esta poeira é matéria- para fora que podemos acenar para as fissuras das imagens conciliatórias -prima da memória que não se encontra no museu, com qual o museu faz produzidas por gestos artísticos ou, no caso do MAR, institucionais, que de tudo para acabar e cuja persistência articula outros sonhos da cidade. tomam a relação museu-favela de modo indiferenciado. (Soifer, 2015, p.17) O trabalho de HO serve de referência para muito da produção con- temporânea. De modo geral, a arte segue sua apropriação dos fluxos de Na bateção de latas, foi possível convocar o passado e demonstrar sua precariedade em seus processos criativos. Estão longe de se esgotarem ligação com o presente da violência cotidiana pela qual passam pessoas as novas e potentes possibilidades de vivenciar os territórios das favelas que habitam o morro da Providência, outras favelas, ocupações e periferias (assim como o território da vivência dos corpos em situação de precarie- da cidade. A abertura do MAR segue a cadeia de sucessivos soterramentos dade) como campo de possibilidades criativas para as artes, mas parece pelos quais o racismo se atualiza em processos de captura da história das ser necessário perceber que a favela também se recria independente e na populações massacradas, e de apagamento da dor daqueles que seguem relação com a arte, e nesse movimento, não é mais somente observada, resistindo. O Cais de Valongo que está situado nesse mesmo território, por mas observa atenta o movimento das artes em seus territórios. exemplo, depois de ter sido duas vezes soterrado fisicamente – em 1843, A arte não pode mais se eximir da responsabilidade de pensar que, uma para que o Rio parecesse mais “civilizado” aos olhos de uma Europa não vez fundada a relação favela-museu, ela jamais parou, institucionalizou-se mais interessada na escravidão de negros africanos, e depois durante as e, muitas das vezes, aparece apenas para argumentar em favor da redenção higienizações de Pereira Passos –, sofre hoje um “sepultamento malfeito”, de instituições e artistas, como é o caso do MAR. que deixa seus rastros e faz barulho. Nos anos 10, o policial fortemente armado não é mero detalhe na A tentativa oficial de levar a favela ao museu na ocasião de abertura paisagem das favelas. Em algumas delas, barricadas e tanques obrigam do MAR também é um gesto que diz ligar passado e presente, mas além moradores a refazerem seus trajetos. A ocupação militar dos territórios de de forjar a relação entre territórios distintos da cidade, tais relações são boa parte das favelas do Rio de Janeiro não é mais ocasional, é frequente e, erguidas sobre esquecimentos, pois precisam demonstrar relações de con- em alguns casos, tida como permanente. A despeito do suntuoso fracasso tinuidade e coerência, e o fato é que ao retomar a relação passado-presente dos programas de “pacificação” (as UPPs), eles seguem relatados como e favela-museu em movimentos de conciliação, o museu precisa novamente exemplos de política de segurança pública para outros estados, numa excluir a presença daqueles que demonstram as incongruências desses retórica capaz de justificar a aliança do poder público com a iniciativa movimentos, as pessoas não pacificadas, não conformes e não educadas... privada para garantir a sua continuidade, diante da falência financeira e A aproximação entre favela e museu nas obras expostas nessa ocasião, da crise de representatividade que constituem o cenário político nacional. mesmo aquelas oriundas de processos coletivos e de vivências engajadas, Nesse cenário, experienciar a favela ou se apropriar de seus objetos e sofre uma diminuição de potência de sua face vital quando toma parte de imagens se mostra mais complexo. Ao que me parece, as proposições da um processo de soterramento de memórias. Uma vez que não são mais “vontade construtiva” formulada por HO, como a “tendência para coleti- capazes de instaurar qualquer crise no museu, as obras servem para efeito vidade”, a “participação corpórea, sensório e semântica do público”, e a de pacificação ou de uma autocrítica reformista. As vozes não “pacificadas” expectativa da “vivência” como lugar exclusivo do artista engajado, são muito restaram do lado de fora, tentando fazer emergir as memórias que habi- boas para criar obras que rompem com o paradigma da representação da tam aquele território, tanto as antigas, do período escravagista, quanto favela, entretanto, não parecem mais suficientes para fazer o movimento as recentes, que ligam a existência do MAR às políticas de “pacificação” da arte sobre si mesma, nem de anunciar os novos paradigmas da relação empreendidas no morro da Providência e no restante de seu entorno. De entre esses dois espaços. Observar a posição do artista torna-se cada vez

132 133 mais fundamental para que se possa apreender a vitalidade de sua vivên- modular a criatividade dos fluxos precários, e em fazer uma comunidade sem cia, uma vez que essas duas experiências não estão mais inequivocamente dissenso a partir das vivências mais genuínas. Afinal, nos antigos sonhos de associadas, como tentei expor com o exemplo do MAR. HO, produzir o novo na arte nunca se tratou da capacidade de anunciar os O trabalho de HO excedeu o suporte, o quadro avançou pelo espaço problemas certos numa linguagem aceitável, mas de fazer da vivência uma galeria e, de maneira fundamental, instaurou a importância do participador força vital, capaz de refazer tudo, experimentar linguagem e efetivamente como sujeito não mais passivo nem contemplativo. Esse é o gesto do novo assumir os riscos. Disputar assim os diferentes sonhos de cidade. a seu tempo: “a forma toma sentido” e não “o sentido toma a forma” (Zilio, As obras de HO estavam dentro do MAR naquela noite, mas seus sonhos 2009, p. 139). É pela participação que o tempo nos trabalhos de HO aqui resistiam no barulho das latas. citados é uma medida subjetiva, unidade que varia de acordo com presença do espectador em relação com o objeto e o ambiente. Entretanto, ao lugar do artista, HO lança uma proposição apenas parcial para o tempo presente. Ele propõe que o artista se desloque do lugar de criador original, co- locando-se como simples organizador de eventos. Ainda assim, seu lugar de artista branco resiste, como se a vivência engajada pudesse apagar as marcas que carregamos. As proposições de HO resultam naquele momento na recolocação da relação entre territórios antagônicos da cidade, mas hoje, são precisamente as marcas de onde se fala que podem nos ajudar a encontrar as fissuras dessas comunidades estéreis entre favela e museu. Referências É importante atentar que alguns dos gestos que levam a favela ao mu- seu atualmente são previstos e organizados nos registros do que é valor OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro: Rocco, 1986. na arte, e não para questioná-lo. Assim, só é preciso que as instituições esquadrinhem as tais vivências e as mantenha sob controle. Não é outro ______. Esquema geral da nova objetividade. In: FERREIRA, G.; COTRIM, C. artista se não o próprio HO que antecipa tais recuperações esvaziadas Escrito de artistas: anos 60 e 70. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006 politicamente, geradoras de convivências estéreis: [1967]. ______. Brasil Diarreia. [Manuscrito, 1970]. Disponível em: http://icaadocs.mfah. uma posição crítica implica em inevitáveis ambivalências; estar apto a jul- org/icaadocs/THEARCHIVE/FullRecord/tabid/88/doc/1090409/language/en- gar, julgar-se, optar, criar, é estar aberto às ambivalências, já que valores US/Default.aspx absolutos tendem a castrar quaisquer dessas liberdades; direi mesmo: pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente; – envelhe- PAES, Eduardo. Carta. In: Relatório de Gestão do MAR, 2013. Disponível em: cer fatalmente; conduzir-se a uma posição conservadora (conformismos; www.museudeartedorio.org.br/sites/default/files/relatorio_mar.pd paternalismos; etc.); [...] Assumir ambivalências não significa aceitar con- SOIFER, Raphael. “Olha eu aqui de novo!”: Sonhos, assombramentos e jogos de formisticamente todo esse estado de coisas; ao contrário, aspira-se então memória nas ruas do Rio de Janeiro. Qualificação de doutorado. IPPUR-UFRJ, a colocá-lo em questão. Eis a questão: o que mais dilui hoje no contexto 2015. (não publicado). brasileiro é justamente essa falta de coerência crítica que gera a tal convi- -convivência; a reação cultural, que tende a estagnar e se tornar “oficial” VIANNA, Hermano. Não quero que a vida me faça de otário: Hélio Oiticica como (mais do que burocrática, essa coisa oficial existe como reação efetiva), é mediador cultural entre asfalto e morro. In: VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, a que predomina nesse estado atual. (Oiticica, 1970, s/p) Karina. Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano em 2001. ZILIO, Carlos. Da antropofagia à tropicália. In: O Nacional e o Popular na Cultura Se Oiticica fosse hoje, ele já haveria percebido que além da pureza ser Brasileira, Revista Arte & Ensaios, ano XVI, n° 18, p. 114-147, Rio de Janeiro, um mito, a miscigenação também o é. Os novos sonhos de HO devem, por- 2009 (publicado originalmente em O Nacional e o Popular na cultura tanto, atentar para o fato de que o museu anda fortemente interessado em Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982).

134 135 Hélio Oiticica e o under- underground Gonzalo Aguilar Professor de Literatura Brasileira da Universidade de Buenos Aires Em junho de 1970, Oiticica chegou em Nova York com uma bolsa Gugge- nheim para participar da Information, mostra do Museu de Arte Moderna (MoMA) com curadoria do trinitário-tobagense Kynaston McShine. Dada a proveniência de Kynaston McShine de uma colônia ou sua condição de afrodescendente, ou ainda a sua formação estética, Information represen- tava uma rara avis em meio às exposições realizadas até então no MoMA — situação que continuaria inalterada por muito tempo após a mostra. Não apenas devido ao fato de se tratar da primeira exposição de arte conceitual em uma instituição de tanto relevo, mas sobretudo pelo grupo de artistas apresentados — algo realmente raro — com diversos latino-americanos, entre artistas de outras nacionalidades: Hans Haacke, Vito Acconci, Robert Smithson, Joseph Beuys dividiam espaço com Artur Barrio e Hélio Oiticica, bem como os argentinos David Lamelas, Marta Minujín, Alejandro Puente e Jorge Carballa. Os artistas latino-americanos não eram colocados como um grupo à parte ou relegados à condição de exóticos; eles gozavam, ao contrário, da premissa da igualdade. De fato, em seu texto para o catálogo, Hélio começa afirmando que “eu não estou aqui representando o Brasil; ou representando o que quer que seja”.1 Para Hélio Oiticica, a categorização sob o rótulo do conceitualismo parecia menos relevante que o marco fir- mado em Whitechapel, em Londres, ao passo que sua inclusão na mostra o colocava numa situação ideal para consolidar-se como artista plástico num momento em que o movimento do conceitualismo começava a ser aceito no mercado, adentrando o cenário nova-iorquino com a intenção de ali firmar seu espaço ainda por alguns anos. No entanto, Oiticica foi acometido por um desconforto (“um vazio terrível, como se estivesse morrendo”, afirmara Bressane, em uma de suas heliotapes) e Information não foi apenas o início,

1 http://54.232.114.233/extranet/enciclopedia/ho/detalhe/docs/dsp_imagem. cfm?name=Normal/0324.70 - 151.JPG

137 mas sobretudo o prenúncio do final: Oiticica abandonou as exposições Desinteressado pelo circuito dos museus e galerias, Oiticica parece para continuar com seu projeto subterrânia. Ele não era, outrossim, o voltar-se à atuação no underground nova-iorquino, embora alguns acon- único participante que manifestava suas dúvidas com relação ao mundo tecimentos demarcassem uma fronteira entre a metrópole e a periferia, o artístico e que considerava a Information uma mostra que descambava em que, paradoxalmente, não havia em Information. Na mostra, Warhol podia aporias insolúveis no que tange à arte contemporânea. O artista argentino estar ao lado de Carballa, mas o atentado que havia sofrido recentemente Jorge Carballa, que havia participado de Experiencias 68, no Instituto Di (em junho de 1968) o fazia fugir de contatos fora de seu círculo. Outros Tella, um ano depois da lendária Tucumán arde, expôs sua obra “Noche artistas também eram de difícil acesso e, em alguns casos, mal-entendidos de tigres, noche de panteras. América llora”, de pungente teor político. se instauravam, que davam conta do pouco interesse que os ativistas do Carballa define assim a sua experiência em Information: underground sentiam pela periferia. Em todo caso, e isso é particularmente notável no caso do Brasil, o interesse era maior pelas representações do Minha obra estava disposta ao lado da obra de Andy Warhol, que era o brasileiro durante as décadas de 1940 e 1950, e seu impacto no público único que me interessava ali. No dia da abertura, havia muita decadência norte-americano, sobretudo pela formação de uma sensibilidade camp de e uma opulência assombrosa, que me causaram asco. Mulheres com o que se tornou emblemática a performance de Carmen Miranda de “The Lady colo desnudo coberto de joias. Tinha ido com minha esposa à época. Ela In The Tutti Frutti Hat”, no musical The Gang’s All Here, de Busby Berkeley. foi ao toalete e, quando retornou, não encontrou nem mais a mim, nem a Esse interesse nos ícones latinos do passado — além de Carmen Miranda, minha obra. Eu a tinha arrancado e levado comigo para a rua. Ela foi me Lupe Vélez e María Montez — não se repetia com a investigação da arte achar na calçada, abraçado aos restos e chorando. Tinha a sensação de contemporânea latino-americana. que nenhuma emoção poderia ser despertada naquelas pessoas. Alguém Um dos exemplos mais contundentes é o cineasta underground Jack poderia cortar a própria carne na tentativa de se comunicar (o que efeti- Smith (1932-1989). Smith não era alheio à cultura brasileira e latina. Mais vamente ocorreu); e isto seria apenas parte da arte. Minha obra ia estar do que isso, é possível afirmar que desempenha um papel fundamental melhor no dia seguinte, quando chegassem os lixeiros, do que ali, entre em seus filmes: em 1966, produziu um filme no Rio de Janeiro e, em di- aquela gente.2 versas de suas películas, incorporou a música latina. Oiticica não hesitou em dizer que o que Smith “imprimiu no cinema e teatro underground é Em 1970, Carballa (um dos artistas mais promissores do panorama um tipo de pop-tropicália” (p. 29). No loft do Soho, Oiticica participou de argentino até então) abandonou a arte para dedicar-se à militância políti- uma performance com Smith. Segundo Juan Suárez: “A pedido de Smith, ca. A arte comprometida, segundo o seu raciocínio, não levava à ação e à Oiticica se ofereceu para participar da performance e sentou-se em cima mudança, significava apenas o narcisismo de uma arte à mercê da lógica da mesa ao lado de Smith, que, em vestes árabes, o entrevistou. No relato de mercado. Este não era o caso de Oiticica, que nunca abandonou a arte, de Oiticica, Smith o procurou avidamente após a entrevista para pedir que e dentre os motivos, um dos mais importantes é que, em 1970, enquanto estrelasse noutra produção, e que estava prestes a colocar um anúncio no a política na Argentina apresentava um futuro promissor, no Brasil, o ciclo jornal para encontrá-lo, quando um amigo em comum encontrou Oiticica de mudanças havia sido drasticamente interrompido. No entanto, em am- numa “festa doida” e contou-lhe a respeito do interesse de Smith. Oiticica bos percebe-se um mal-estar quanto ao ingresso no establishment e no retornou ao loft de Smith para descobrir que o interesse não era apenas cânone do underground, sem contar no terreno da arte política e ativista artístico, mas também sexual, “como se poderia supor’”.4 O encontro entre através do conceitualismo.3 Carballa se afugenta na militância, e Oiticica, o cineasta underground e o artista brasileiro é definido por Juan A. Suárez no underground nova-iorquino. em sua cuidadosa reconstrução da relação como “um diálogo um tanto desarticulado” [“slightly disjointed dialogue”].5 É que, nas distribuições simbólicas, se Smith era underground, Oiticica, em Nova York, como outros 2 testemunho dado pelo artista na p. 333. artistas latino-americanos, era under-underground. 3 1970: Uma abrangente retrospectiva da obra de Warhol excursiona os EUA e a Europa, e é exibida na Galeria Tate, em Londres. Uma lata de sopa Campbell pintada à mão é lei- loada por $ 60.000, estabelecendo um recorde para um artista americano ainda vivo. 4 suárez op.cit. http://www.tate.org.uk/whats-on/tate-modern/exhibition/warhol/warhol-timeline 5 “Jack Smith, Hélio Oiticica, Tropicalism”, de Juan A. Suárez

138 139 Sem formar um grupo e com uma história que ainda não foi documen- Rico, em 1935, viveu em Nova York desde os 8 anos. Possivelmente, Mario tada, os latino-americanos na Nova York dos anos 1970 só eventualmente Montez seria menos conhecido se não tivesse trabalhado em Flaming participavam da cena do underground, um universo em que era de difícil creatures, de Jack Smith, ou em várias produções de Andy Warhol, como pertencimento e participação em igualdade de condições. Como vaga-lumes Mario Banana ou Harlot, mas essa é a pólvora prateada que, ao passar que emitiam o seu próprio brilho na noite nova-iorquina, mas que nunca se pelo under-underground, se converte num “rastro de fuligem” e une Hélio associaram num grupo, os artistas latino-americanos mais vanguardistas Oiticica a Leandro Katz e José Rodríguez Soltero. Em 1966, José Rodríguez prosseguiram com suas atividades, em obras que muitas vezes permane- Soltero filmaLife, Death and Assumption of Lupe Vélez. Um ano antes, ciam clandestinas, ou que circulavam por grupos muito restritos, adotando Warhol havia produzido sua Lupe, contando com a atuação de uma de uma estética underground, mas fora do underground canônico. Eles for- suas modelos preferidas, Edie Sedgwick. Rodríguez Soltero, por seu turno, maram o que se denominou under-underground, um subsolo do subsolo, recorre a Mario Montez numa homenagem às atrizes latinas nos Estados uma clandestinidade invisível e uma cultura que estava — recorrendo às Unidos, como María Montez ou a própria Lupe Vélez. palavras de Décio Pignatari — “na margem da margem”. Os argentinos Poucos anos depois, Charles Ludlam encenou Gran Tarot, também com Leandro Katz e Jaime Davidovich, o porto-riquenho José Rodríguez Soltero, Mario Montez; e o artista argentino Leandro Katz foi encarregado de regis- o chileno Juan Downey, o venezuelano Rolando Peña, os brasileiros que trar a obra fotograficamente num filme que realizou muitos anos depois, visitaram Hélio Oiticica em seu ninho nova-iorquino — desde os cineastas em 1988: Reel Six, Charles Ludlam’s Grand Tarot. Ivan Cardoso e Júlio Bressane aos poetas de Noigandres, Andreas Valentin É curioso que em sua pormenorizada resenha sobre os filmes de Mario e Carlos Vergara — e Neville D’Almeida, seu colaborador nas Cosmococas. Montez, Hélio Oiticica não mencione La Lupe de Rodríguez Soltero, nem Em 1967, Rolando Peña criou, juntamente com o artista de videoarte de faça qualquer menção ao trabalho no Teatro do Ridículo, de Leandro Katz, origem chilena Juan Downey, o cineasta Jaime Barrios e o pintor cubano que era vizinho e amigo de Hélio. Uma prova a mais de que se tratava de Waldo Díaz Balart, “The Foundation for the Totality, o primeiro grupo latino- um underground disperso e que jamais chegou a conformar uma comu- -americano de vanguarda fundado na Cidade de Nova York”.6 De toda forma, nidade latina. o under-underground não constitui um grupo e nem se refere a artistas que Em 1971, Oiticica conheceu, numa festa de Ira Cohen, Mario Montez, tiveram contato entre si (ainda que houvesse amizades e relações afetivas uma “espécie de califa do underground”, que já era uma celebridade na entre alguns deles), tampouco quer dizer que todos estiverem na cidade no cena artística nova-iorquina. Isso certamente causou impacto em Hélio mesmo momento, pelo contrário, parecem ter sucedido uns aos outros de Oiticica, que escreveu um texto sobre a estrela intitulado “Mario Montez maneira descontínua e com surgimentos inesperados e dispersos. O que Tropicamp”7 e o convidou a participar de seu filme inacabado Agripina é houve foi uma série de atos, não raro, clandestinos, rarefeitos ou de pouca Roma-Manhattan (1972) juntamente com o artista plástico Antonio Dias, repercussão que foram tecendo a história não documentada de um under- com quem combina um jogo de dados nas ruas nova-iorquinas. O título ground nova-iorquino que foi mais subterrâneo que todos os conhecidos. de Agripina é Roma-Manhattan foi tirado do poema O Guesa errante de Ou como afirmou Décio Pignatari, em “Hélio e arte do agora”: “Nova York, Sousândrade (1833-1902), poeta brasileiro que morou em Nova York entre quando a pólvora prateada do sonho já virara rastro de fuligem”. Como seguir 1871 e 1885, e foi outro under-underground. Em 1972, começa a filmagem esse “rastro de fuligem” que se perde no tempo, em atos não registrados, de Agripina é Roma-Manhattan nas ruas da cidade com um roteiro muito em obras inconclusas que ainda hão de ser recuperadas, em realizações simples, que consistia em aproveitar os lugares mencionados em “O Inferno bem-sucedidas ou mais ou menos bem-sucedidas que devem ser revistas. de Wall Street”, tal como Haroldo e alcunharam esse Assim, por onde começar, para seguir este rastro que, por vezes, se es- episódio. Em um de seus textos datados de abril de 1972, Hélio destaca os vai, para depois reaparecer de súbito? Qual é o fio de Ariadna que, embora lugares retirados do “livro H/A CAMPOS”: não nos faça sair, pelo menos nos guie por este labirinto subterrâneo? Um fio possível, um dos “rastros de fuligem” reside na figura do ator transfor- a) fotos como em super 8 de curtas na trinity church mista René Rivera, mais conhecido como Mario Montez. Nascido em Porto b) fragmentos da bolsa de valores de nova york

6 http://performancelogia.blogspot.com.ar/2007/05/vida-pasin-y-resurreccin-de-la.html 7 12/15 de outubro de 1971.

140 141 c) tomadas em battery park superamérica”. Carmen Miranda, na época tropicalista, havia se tornado o […] h. campos e companhia fazendo uma expedição pela wall st emblema que lhes serviu de ferramenta de intervenção na cultura local. Nas g) cemitério da Trinity Church : aumentar foto da palavra body mostran- palavras de Caetano Veloso: “O fato de ela ter se tornado, com o sucesso do bod (excluir o “y” no impresso) em Hollywood, uma figura caricata de que a gente crescera sentindo um pouco de vergonha, fazia da mera menção de seu nome uma bomba de que A analogia entre Roma antiga e a Nova York de meados do século XIX já é os guerrilheiros tropicalistas fatalmente lançariam mão. Mas o lançar-se prenunciada em “O Inferno de Wall Street” no parágrafo 71: “Roma começou tal bomba significava igualmente a decretação da morte dessa vergonha pelo roubo; / New York, rouba a nunca acabar”. Mas é no parágrafo 129 que pela aceitação desafiadora tanto da cultura de massas americana (portanto Sousândrade cria essa sobreposição entre a ilha e a metrópole imperial da de Hollywood onde Carmen brilhara) quanto da imagem estereotipada de Antiguidade que inspiraria o título do filme inacabado de Hélio, além de um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal (que era a versão um de seus poemas visuais: que Carmen levava ao extremo)”.8 A “aceitação desafiadora” transfigura-se num uso mais agressivo, porque já não é a imagem de Carmen Miranda, 129 (Outros alagados salvando-se na coluna 666 do templo de Kun:) mas sim o corpo de um homem (Mario Montez) que se faz passar por ela. Dessa forma, significa a passagem da cultura de massa para a cultura Agripina é Roma-Manhattan underground; da imagem estereotipada do Brasil para uma imagem camp Em rum e em petróleo a inundar da ambiguidade sexual e da explosão trash-pop. Herald-o-Nero aceso facho O exotismo cosmopolita dos artistas do under-underground se estende e borracho, a uma operação que tem por finalidade traçar um percurso que pretende Mãe-pátria ensinando a nadar!... fazer explodir a sociedade capitalista em decadência (“Agripina é Roma- -Manhattan”) a partir de certas margens, que se revelam tanto atualíssimas Mario Montez sintetiza várias das preocupações de Oiticica: como tro- quanto anacrônicas e intempestivas. É o percurso que vai do centro da picalizar o underground nova-iorquino, como transformar o corpo numa América Latina até a grande metrópole: dos índios muíscas de Sousândrade máquina sensorial de invenção permanente, como inventar o tropicamp ao corpo transformista do ator porto-riquenho. A celebração da cocaína para deslocar as vanguardas metropolitanas (nesse caso, a nova-iorquina). de Manco Capac e da cultura inca num departamento do Village. Percurso Mas, com sua projeção, veio constelar o under-underground, e tornou-se por que também passa a imagem de Che Guevara, desde a selva boliviana algo ainda maior, posto que dois conceitos centrais podem ser refletidos até a cidade dos arranha-céus, na obra Diálogos con el Che, de Rodríguez a partir dele: o exotismo cosmopolita e o glam latino. Soltero e El día que me quieras, de Leandro Katz (na verdade, o próprio E os filmes de Jack Smith mostraram que a sensibilidade de diversos Katz chega em Nova York depois de percorrer toda a América Latina).9 E, artistas do underground havia sido influenciada por uma cultura latina sobretudo, o projeto Video Trans Americas (1973–1977), de Juan Downey, hollywoodiana que transitava entre o estereótipo e a exuberância senti- em que realiza uma viagem dos Estados Unidos até o Chile e no qual per- mental. Da perspectiva da metrópole, apropriava-se dos motes das culturas manece oito meses no território Yanomani ao sul da Venezuela junto com periféricas para traçar novas economias do desejo, das identidades de gê- sua esposa e sua enteada, e onde produz desenhos e vídeos.10 A ampliação nero e das classificações estéticas. Foi com esse sentido que Mario Montez universal do cosmopolitismo já não mais acontece como nas vanguardas entrou no repertório de Warhol e Smith como expressão de um olhar camp. históricas, ao sublinhar os processos de modernização da periferia, mas Mas o under-underground promoveu outra operação: a partir da periferia, sim pela introdução do exotismo, que extrapola os limites da contempo- apropriou-se do que havia de marginal na metrópole. Transformou o uso raneidade metropolitana. dos artistas consagrados da grande cidade, assim como havia acontecido alguns anos antes com o Tropicalismo, no Brasil. Carmen Miranda deixou 8 Verdade tropical, p.268 de ser “poesia de exportação” para se converter — nas palavras de Oi- 9 e, num filme de Katz, aparece uma imagem de um parangolé de Oiticica. ticica — num “clichê latino-americano, na sua incidência no contexto da 10 “Aftereffects: Mapping the experimental ethnography of Juan Downey in The Invisible Architect” de Amalia Cordova.

142 143 E vai além disso, uma vez que o intrincado texto escrito por Hélio Oiticica sobre Mario Montez, intitulado “Tropicamp”, foi escrito para ser publicado no Brasil, e ilustrado por fotos de Carlos Vergara e uma foto de Carmen Miranda que havia sido resgatada por Andy Warhol em sua revista Interview. Qual sentido teria a publicação desse texto no Brasil, tendo como base filmes que alguns poucos — ou talvez ninguém – conhecia? Oiticica utiliza duas fontes: Underground film, a critical history, Nova York, Grove Press, 1969 e An introduction to the American Underground Film, de Sheldon Renan, sem saber, por certo, que o livro havia sido traduzido no Brasil, em 1970.11 Esse texto deve ser entendido como uma releitura e uma reorientação do tropicalismo. Oiticica lança seus conceitos-projéteis: Mario Montez é uma “estrêla tropi-hollywood”, um “clichê tropi-pop” da “pop-tropicália”; Mario Montez e Carmen Miranda são “duas das precursoras do que chamarei aqui de TROPICAMP” e “TROPICAMP é parte do que chamo TROPICÁLIA-SUBTER- RÂNIA”. Há uma busca sensorial, uma construção de papéis sexuais e uma afirmação do underground (fora da grande mídia) que, tomando por base o tropicalismo, adentra novas searas: seria interessante abarcar todos os fenômenos dos quais Oiticica figura como um dos expoentes, como o glam latino, na medida em que promove o cruzamento entre a identidade como performance e o uso da maquiagem e ambivalência sexual como modos de questionamento do poder ditatorial e das normas da sociedade repressora. Em sintonia com sua máquina sensorial, Oiticica capta perfeitamente o que está sendo gestado no Brasil e haveria de se confirmar se , Secos & Molhados ou , que surgiram pouco tempo depois, não seriam mais que um prolongamento do Tropicamp que Hélio havia lançado, a partir do under-underground.

11 tradução de Sérgio Maracajá.

144 145 Tropicália Brasília: a pureza é um mito Paola Berenstein Jacques professora PPG-AU/FAUFBA e pesquisadora CNPq

O penetrável chave da minha nova conceituação da “obra”, do significado da “arte”, do conceito de antiarte, é o que possui, no seu interior, a inscrição A PUREZA É UM MITO. Hélio Oiticica

Nasceu de um gesto primário de quem assinala um lugar ou dela toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz. Lúcio Costa

Brasília nasceu de um gesto primário. Dois eixos cruzando. Ou seja: o próprio sinal da cruz. Como quem pede benção ou perdão. Nicolas Behr

No texto manuscrito de 16/4/1967, “Tropicália (planos para construção)”, Hélio Oiticica contrapõe seu novo trabalho, Tropicália, ao que “era idealista, em certo sentido neoclássico, no outro, no que se aparentaria, o Cães de O presente texto é uma versão de minha fala em 5 de julho de 2016 (que foi acompanhada de caça [seu trabalho anterior], ao evento de construção de Brasília na época.” imagens projetadas por Dilton Lopes de seu Atlas Maracangalha Brasília) no Seminário Hélio Oiticica: Para Além dos Mitos, que integrou as comemorações dos 20 anos do Centro Municipal de Ele diz: “seria a quebra com todo o passado idealizante e foi concebido em Arte Hélio Oiticica. Algumas ideias do texto foram inicialmente esboçadas no capítulo 3 “Derivas: 1966. A palavra – referindo-se à inscrição A PUREZA É UM MITO – toma um participação e jogo” do livro: Elogio aos errantes (Salvador: EDUFBA, 2012). sentido importante, não só poético, mas dialético”.

147 Como sabemos, o movimento moderno nas artes se constituiu no Brasil defendidos por Le Corbusier, em particular a separação de funções no por uma tensão entre duas características a princípio contraditórias: o espaço – circulação, habitação, trabalho, lazer – da chamada Carta de internacionalismo moderno e um profundo nacionalismo. O paradoxo re- Atenas, resultado do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna sidia no fato de que os artistas queriam atualizar a arte, afrontando-a com (Ciam) de 1933.2 a nova realidade moderna da industrialização e, ao mesmo tempo, dar a Os princípios funcionalistas defendidos por Le Corbusier, expostos ela um caráter nacional que, no caso do Brasil, era inevitavelmente verná- como doutrina na Carta de Atenas, já vinham massivamente nortean- culo ou popular. As favelas, por exemplo, que poderiam ser consideradas do construções na Europa do pós-guerra, principalmente sob a forma a própria antítese de tudo o que poderia ser tido por moderno, passaram de enormes conjuntos habitacionais que já eram alvo de críticas tanto a ser expressão de certa modernidade glorificada por artistas modernos dos próprios jovens arquitetos modernos do próprio Ciam, reunidos no brasileiros e estrangeiros. Artistas estrangeiros, como Cendrars e Marinetti, grupo conhecido como Team X, quanto de outros pensadores e artistas e arquitetos urbanistas convidados, como Agache e Le Corbusier, visitaram como os letristas (futuros situacionistas). Para eles, esses conjuntos o Morro da Favella no Rio (hoje Providência). Essa tensão moderno/popular, monótonos, repetitivos e, sobretudo, a separação de funções proposta presente já no manifesto “Pau-brasil” (1924) – «A poesia existe nos fatos. por Le Corbusier – que virou ponto de doutrina na Carta – provocavam Os casebres de açafrão e ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, a passividade e a alienação da sociedade diante da monotonia da vida são fatos estéticos” –, configurou-se como a grande ambiguidade moderna cotidiana moderna. Desde os primeiros números de Potlatch, boletim nacional e encontrou a sua mais engenhosa formulação em 1928 com o da Internacional Letrista (IL), de 1954, Le Corbusier passa a ser um dos “Manifesto antropófago” de Oswald de Andrade, publicado no 1o número maiores alvos de suas críticas irônicas: ele é citado como “o protestante da Revista de Antropofagia. ‘Modulor’, Le Corbusier-Sing-Sing”, suas obras são vistas como “estilo caserna militar”, o urbanismo moderno seria “sempre inspirado pelas Nunca fomos catechisados. Vivemos através de um direito sonambulo. Fi- diretrizes da polícia” ou ainda que “hoje a prisão passa a ser a habitação zemos Christo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admiti- modelo”. Le Corbusier é criticado como o Barão Haussmann já tinha sido mos o nascimento da lógica entre nós. (Oswald de Andrade, 1928) alvo em sua época pelas críticas de Baudelaire, dos dadaístas e surrea- listas, que mostravam que Haussmann só teria feito seus bulevares para A relação entre a tropicália (o movimento) e a antropofagia é nítida, deixar passar os canhões. Brasília, cidade tida como burocrática,3 também mas para a nova geração tropicalista a mistura entre a vanguarda artísti- ca e a cultura popular tinha de passar ainda mais pela vivência direta. A Paulo, Cosac Naify, 2010). Também sobre o concurso com outros projetos anteriores situação política e econômica do país, nesses dois momentos, era bem ver: Tavares, Jeferson. Projetos para Brasília 1927-1957 (Brasília: Iphan, 2014). diferente: nos anos 1960 já se estava longe de uma visão utópica dos anos 2 a Carta de Atenas se refere às discussões acerca da “cidade funcional” travadas duran- 1920 e começava-se a duvidar do sonho brasileiro, sobretudo do milagre te o Ciam IV a bordo do Patris II em uma travessia Marselha-Atenas em 1933. A Carta econômico dos anos 1950. No entanto, é exatamente em 1960 que Brasília, só foi publicada dez anos depois pelo próprio Le Corbusier (sem a sua assinatura), talvez a imagem mais forte da afirmação nacional moderna, é inaugurada. durante a ocupação alemã de Paris. Outra versão dos debates é publicada logo depois por J-L Sert, arquiteto moderno catalão exilado nos Estados Unidos; o texto referente Brasília passa a ser vista como o maior símbolo, o grande ícone, o maior ao Ciam IV é muito semelhante, mas o livro de Sert Can our cities survive? é ilustrado mito, da modernização nacional. O traçado de seu plano-piloto, do pro- e mostra fotografias das cidades norte-americanas na década de 1940, que já anteci- jeto de Lúcio Costa de 1956,1 trazia os princípios funcionalistas e puristas pam, de certa forma, os princípios propostos pela Carta. Vistas hoje, essas fotografias podem até parecer o anúncio do esgotamento das ideias urbanas modernas e do início do fim do próprio movimento moderno em arquitetura e urbanismo (e dos Ciams, o que 1 Vencedor do polêmico Concurso Nacional do Plano-Piloto da Nova Capital do Brasil, ocorre em 1959). que ocorreu entre setembro de 1956 e março de 1957 e teve Oscar Niemeyer, na época 3 “o governo não criou uma cidade de burocratas [...] ele criou uma cidade para buro- diretor da Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital), como seu principal cratas que eram uma minoria com acesso privilegiado a um âmbito público que excluía articulador, o plano-piloto de Lúcio Costa segue a separação de funções da Carta de a vasta maioria. Assim, mesmo antes de sua inauguração, Brasília era uma cidade es- Atenas, os principais princípios corbusianos e, em particular, a pureza estética moder- tratificada, onde a incorporação diferencial era condição fundamental de sua organiza- na, mas também dialoga com outras ideias urbanísticas, como das cidades-jardins in- ção social” (James Holston). As críticas ao plano de Brasília são numerosas e variadas; glesas, por exemplo. Sobre o concurso ver: Braga, Milton. O concurso de Brasília (São o interessante a notar é como a modernidade nacional está atrelada, desde o início,

148 149 é criticada, no seu primeiro aniversário, pelos situacionistas: (ou do chamado tropicalismo6): a contestação do mito da pureza na arte; a incorporação das experiências mais populares, como a arquitetura e a Em Brasília, a arquitetura funcional revela o pleno desenvolvimento da forma de vida comunitária das favelas; e aquilo que será também a maior arquitetura para funcionários, o instrumento e o microcosmo da Weltans- ambiguidade tropicalista: simultaneamente, a incorporação da cultura de chuung burocrática. Pode-se constatar que, onde o capitalismo buro- massa – como pode ser vista a questão da TV, da profusão de imagens – e crático e planificador já construiu seu cenário, o condicionamento é tão uma postura ao mesmo tempo crítica e apologética. Oiticica visava com aperfeiçoado, a margem de escolha dos indivíduos é tão reduzida, que Tropicália fazer a “obra mais antropofágica da arte brasileira”, com sua am- uma prática tão essencial para ele, como é a publicidade, que correspon- biência tropical exagerada, atualizar a antropofagia do final dos anos 1920, deu a um estágio mais anárquico da concorrência, tende a desaparecer propondo, como ele dizia, uma “superantropofagia”, que buscaria impedir na maioria de suas formas e suportes. É possível que o urbanismo seja o colonialismo cultural ainda existente na geração de artistas modernistas, capaz de fundir todas as antigas publicidades numa única publicidade do propondo uma vivência mais próxima dos morros, da arquitetura das favelas urbanismo.4 cariocas, das construções espontâneas, anônimas, nos grandes centros urbanos – a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios... Da mesma forma que Brasília passa a ser o mito urbano da pureza moderna, a “publicidade do urbanismo”, o grande ícone internacional da Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma cidade funcional e da estética purista moderna, a Tropicália5 de Oiticica imagem obviamente “brasileira” ao contexto atual da vanguarda e das ma- também passa a ser vista como uma síntese do movimento tropicalista nifestações em geral da arte nacional. Tudo começou com a formação do Parangolé em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a à precariedade da vida dos candangos que a construíram e coexiste com essa preca- descoberta dos morros, da arquitetura orgânica das favelas cariocas (e riedade. Essa ambiguidade fundamental da cidade transparece em alguns trabalhos consequentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principal- etnográficos: um dos mais conhecidos é a etnografia crítica do movimento moderno, mente das construções espontâneas, anônimas, nos grandes centros ur- de James Holston, citado acima, que, em 1989, publicou The modernist city, an anthro- banos – a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios etc.7 pological critique of Brasília; um livro mais recente é o do sociólogo Brasilmar Nunes de 2004, falecido recentemente: Brasília: a fantasia corporificada; nessa mesma linha destaco também a montagem de Dilton Lopes, Atlas Brasília Maracangalha, mestrado 6 como sabemos, os “ismos” já trazem consigo uma diluição massificada e são usados em curso, PPG-AU/FAUFBA, Salvador, 2016, exibido no Seminário Hélio Oiticica além pelos opositores dos movimentos, como disse o poeta concreto Haroldo de Campos em dos mitos. conversa com Hélio Oiticica em 1971 (nas famosas Héliotapes): “Essa coisa de ‘ismo’ 4 Jacques, Paola Berenstein (org.). Internacional situacionista. Apologia da deriva. Es- se passa sempre. Os críticos mais conservadores, os artistas que não têm o mesmo critos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 136. empenho em fazer uma contínua invenção, eles procuram acrescentar a palavra ‘ismo’ 5 “Tropicália é um ambiente constituído de dois Penetráveis – A pureza é um mito e Ima- toda vez que se faz alguma coisa nova dentro do campo da arte, porque é uma maneira gética –, dispostos em um cenário tropical, com plantas e araras; no chão, caminhos de etiquetar e transformar essa coisa em objeto de museu e permitir que não se fale de areia, de cascalho e de terra, que meio-escondem poemas-objetos (de Roberta Oi- mais no assunto [...] O tropicalismo é uma etiqueta que não tem nada a ver com a ideia ticica). O primeiro Penetrável é muito simples: uma cabine de madeira, com a inscrição de tropicália, que é uma espécie de neoantropofagia, neocanibalismo oswaldiano, uma interior – ‘A pureza é um mito’. O sentido é evidente, toda a fase purista de seu trabalho devoração crítica do museu brasileiro. Isso é que é a tropicália, em termos ativos, e neoconcretista se desmancha depois da descoberta da favela, da vida dos morros, não passivos.” Frederico Coelho na nota editorial do livro Tropicália busca entender onde a ‘pureza formal’ efetivamente inexiste. O segundo Penetrável é bem complexo: “um evento múltiplo como o Tropicalismo [...] não como um movimento cultural, como trata-se de um verdadeiro labirinto no interior de uma estrutura de madeira, tecidos, a historiografia sempre nos apresentou, mas sim como uma movimentação cultural tela e outros materiais precários, com apenas uma entrada/saída. Penetrar nesse la- [...] O Tropicalismo, se definido como essa movimentação, foi, de fato, muito mais a birinto lembra o caminhar numa favela. Na extremidade do percurso, encontra-se uma reunião criativa de contradições do que a confluência plácida de consensos”. Tropicá- televisão permanentemente ligada que justifica o título da obra: Imagética. Essa obra lia seria então esse “tropicalismo” sem ser “ismo”, como movimentação cultural dis- é, na verdade, um condensado e imagens, de ‘representações’, a partir da decoração sensual e contraditória. Nas definições situacionistas também podemos ler, por exem- tropical externa, passando pela alusão direta à ambiência das favelas com o percurso plo, a seguinte definição para situacionismo: “Vocábulo sem sentido [...] Não existe labiríntico e os materiais escolhidos, até chegar à imagem da imagem na tela da televi- situacionismo, o que significaria uma doutrina de interpretação dos fatos existentes. são, que funciona como um espelho no fundo do labirinto.” Ver capítulo 2, “Labirinto”, A noção de situacionismo foi evidentemente elaborada por antissituacionistas”. (Jac- do livro, Estética da ginga, a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica ques, Paola Berenstein (org.). Internacional situacionista. Op. cit., p. 11). (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001). 7 Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Figueiredo, Luciano; Pape, Lygia; Salo-

150 151 A antropofagia seria a defesa que possuímos contra tal domínio exterior, Tudo depende efetivamente do nível em que se ousa formular o problema: e a principal arma criativa, essa vontade construtiva, o que não impediu como vivemos? Como ficamos satisfeitos? Insatisfeitos? Isso sem deixar- de todo uma espécie de colonialismo cultural, que de modo objetivo que- mos nunca intimidar pelas diversas formas de publicidade que visam per- remos hoje abolir, absorvendo-o diretamente numa superantropofagia.8 suadir que o homem pode ser feliz por causa da existência de Deus, ou do dentifrício Colgate, ou do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa da França).10 No lugar do mito primitivo dos índios antropófagos, temos agora o mito popular das ruas e favelas. Em vez de devorar, Oiticica propõe incorporar Em Geleia geral, expressão que se consolidou como uma síntese da pró- e exagerar ao extremo essa imagem tropical para buscar ir além dela, para pria tropicália, Gilberto Gil e Torquato Neto reúnem o vernáculo/passado e tentar ir além dos mitos. A antropofagia moderna precisava ser desmiti- o moderno/futuro e retomam o manifesto antropófago: “A alegria é a prova ficada. Também como uma resposta à pop art norte-americana, no lugar dos nove [...] Pindorama, país do futuro [...] Pego um jato/viajo/arrebento do Stars and stripes, de Marylin Monroe ou da sopa Campbell’s, Oiticica [...] Voz do morro, pilão de concreto/Tropicália, bananas ao vento”. propunha bananeiras, araras e favelas. Além do exagero cenográfico, o que Em Enquanto seu lobo não vem, Caetano Veloso faz na letra da canção continuava sendo proposto era de fato “a arte das ruas”, das favelas, a arte exatamente o que Oiticica chamava de delírio concreto: a canção é uma anônima realizada pelo Outro, pelos vários outros urbanos. errância imaginária, muito próxima das narrativas surrealistas. O mais curioso A principal tensão tropicalista, herança antropofágica – entre moderno é que o que foi imaginado se tornará possível vários anos depois, com a e vernáculo, entre progresso e atraso, entre cultura de massa e cultura abertura do metrô na av. Presidente Vargas. Oiticica faz alguns trabalhos popular – surge em várias faixas do disco-manifesto Tropicália ou panis sobre o tema em 1978: “experiência do mito-desmitificado – Avenida Pre- e circensis. As canções eram, como dizia Oiticica, “delírios concretos”, sidente Vargas-Kyoto-Gaudi” e “Manhattan Brutalista – objet semi mágico montagens quase cinematográficas, como o quase-cinema de Oiticica, trouvé” e diz, em 1968, que “durante a Passeata dos Cem Mil, vinha-me a que dialoga com a ideia de détournement (desvio ou apropriação) situa- todo momento, e também a amigos meus que conheciam a música, o ritmo cionista, sobretudo dos filmes de Guy Debord. A colagem das diferentes e as frases de Enquanto seu lobo não vem”: “Vamos passear pela floreta imagens das canções – sempre “representações” do país misturadas com escondida, meu amor/ Vamos passear na avenida [...] A Estação Primeira da vivências pessoais – fazia surgir uma temporalidade diferente, não linear, Mangueira passa em ruas largas/ Passa por debaixo da Avenida Presidente embriagante. Talvez a ambiguidade tropicalista – a crítica e, ao mesmo Vargas/ Presidente Vargas, Presidente Vargas, Presidente Vargas/ Vamos tempo, fascinação pelas cidades em transformação; a nova vida urbana das passear nos Estados Unidos do Brasil/ Vamos passear escondidos/ Vamos grandes cidades, e sua ironia alegre, mas por vezes corrosiva – apareça de desfilar pela rua onde Mangueira passou/ Vamos por debaixo das ruas.” forma mais clara em Parque industrial de Tom Zé. O “sorriso engarrafado” nos remete diretamente à promessa de felicidade das propagandas capi- Então eu pego pedaços de asfalto da avenida Presidente Vargas, antes de talistas, reproduzidas ironicamente nas revistas situacionistas, e à crítica taparem o buraco do metrô, todos os pedaços de asfalto que tinham sido a essas promessas, a essa “sociedade do espetáculo”, captada por Debord levantados. Quando eu apanhei esses pedaços de asfalto, me lembrei que e situacionistas. Debord diz na conferência “Perspectivas de modificações Caetano uma vez fez uma música (disse até que pensou em mim depois conscientes na vida cotidiana”, realizada por meio de um gravador em 17 que fez) que falava o negócio da “Estação Primeira de Mangueira passa de maio de 1961 no CNRS, para o grupo de pesquisa de Henri Lefebvre:9 em ruas largas, passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas”. Aí eu pensei, esses pedaços de asfalto, soltos, que eu peguei como fragmentos mão, Waly (org.). Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 106. e levei para casa, agora, aquela avenida estava esburacada por baixo, e 8 Oiticica, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. In: Ferreira, Glória; Cotrim, Cecília (orgs.). Escrito de artistas – anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 155. 9 o contato entre os situacionistas e o sociólogo e filósofo Henri Lefebvre (1901-1991) importante e conceituado pensador marxista, publicou muitos livros sobre a questão foi em um primeiro momento extremamente cordial, mas depois trouxe vários de- urbana, e talvez o mais importante deles, no auge de Maio de 68, O direito à cidade. sentendimentos, principalmente com Guy Debord, que não aceitava as implicações Sobre a relação entre situacionistas e Lefebvre ver: “Lefebvre on the Situationnists: an institucionais de Lefebvre (tanto com o partido comunista quanto com o CNRS e as interview”, in October nº 79, MIT Press, Winter 1997. universidades), e a dissociação entre sua vida e seu pensamento teórico. Lefebvre, 10 Debord, Guy. Internacional Situacionista, n. 6, agosto de 1961.

152 153 na realidade, a Estação Primeira da Mangueira vai passar por debaixo da que não?/ por que não?”) e a canção, também intitulada Tropicália,13 que Avenida Presidente Vargas. Uma coisa que era virtual quando Caetano fez começa: “Sobre a cabeça os aviões/ sob os meus pés os caminhões/ aponta a música, de repente, se transformou num delírio concreto. O delírio am- contra os chapadões/ meu nariz / eu organizo o movimento/ eu oriento o bulatório é um delírio concreto.11 carnaval/ eu inauguro o monumento/ no planalto central do país.” A letra da canção, cheia de imagens e referências contraditórias, gira Talvez a canção que melhor sintetize essa complexa ambiguidade tropica- também em torno dessa tensão antropofágica/tropicalista entre o moderno lista, suas diferentes superposições de imagens e de significados diferentes e o popular. A “canção-monumento”, como disse o próprio Caetano Veloso,14 – em particular dessa coexistência de opostos no contexto nacional: saberes ao mesmo tempo em que denota essa vontade construtiva evocada por e fazeres ancestrais, cultura e indústria de massa – seja a canção concreta Oiticica no texto manifesto “Nova objetividade brasileira” de 1967 – “eu Batmakumba (“Batmakumbayêyê batmakumbaibá”) de Caetano Veloso e inauguro o monumento” – também faz uma ressalva, “o monumento é de Gilberto Gil, que o próprio Augusto de Campos chamou de “batmakumba papel crepom e prata”. Não podemos deixar de perceber novamente a alusão para futuristas”, em oposição ao que Oswald de Andrade criticava: a “ma- à nova capital federal, o monumento moderno no planalto central do país, cumba para turistas”. Como diz Antônio Risério, “Batmakumba é exemplar, Brasília, símbolo da arquitetura e urbanismo modernos, da modernização no campo dessa tematização estética da multiplicidade da vida brasileira”, nacional e, também, nesse momento, sede da mais rígida ditadura militar.15 multiplicidade essa que, em outra passagem, ele chama de “o Brasil de O Brasil de Tropicália e de Brasília e, também, de tropicálias em brasílias. Maracangalha e Brasília – e de maracangalhas em brasílias”. Brasília surge mais uma vez para mostrar essa coexistência de opostos e toda a ambi- guidade, ou a ambivalência crítica para citar Hélio Oiticica, tropicalista. Nesse mesmo ano mítico de 1968, em âmbito tanto nacional (AI-5) quanto internacional, seria impossível separar os cenários interno e ex- 13 caetano Veloso ainda não conhecia Hélio Oiticica nem seu trabalho quando compôs terno, complexos e contraditórios. Os jovens do mundo todo estavam se Tropicália. Foi um amigo em comum, Luís Carlos Barreto (então fotógrafo de Terra rebelando contra as regras impostas: no EUA com os hippies; na Inglaterra em transe, filme de Glauber Rocha) que propôs o nome quando escutou a canção e se lembrou imediatamente da obra de Oiticica exposta no MAM do Rio. Barreto tinha com a swinging London; na França com o Maio de 68. Enquanto na Fran- razão: as duas obras tinham relações claras e seus autores depois se tornaram amigos, ça, os situacionistas distribuem panfletos, muitas vezes em quadrinhos, sobretudo no exílio de ambos em Londres. e escrevem frases nos muros das universidades e da cidade (Ne travaillez 14 no livro Verdade tropical, Caetano Veloso escreve: “A ideia de Brasília fez meu coração jamais ou Sous les pavés, la plage), incitando os jovens e estudantes à disparar por provar-se eficaz nesse sentido. Brasília, a capital-monumento, o sonho revolução da vida cotidiana, que resulta no Maio de 1968,12 no Brasil, a mágico transformado em experimento moderno – e, quase desde o princípio, o centro do poder abominável dos ditadores militares. Decidi-me: Brasília, sem ser nomeada, ditadura militar se reforçava com o AI-5. Caetano Veloso lança em disco, seria o centro da canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa com capa também tropicalista de Rogério Duarte, Alegria, alegria (“por delícia e ao nosso ridículo”. Pode-se relacionar essa ideia com o curta sobre Brasília de Joaquim Pedro de Andrade, de 1967, Brasília, contradições de uma cidade nova. Esse curta é anterior ao seu filme mais tropicalista, Macunaíma, baseado no livro homônimo 11 Hélio Oiticica em “Hélio Oiticica, entrevista a Ivan Cardoso”. Folha de S. Paulo, 16 de antropofágico de Mário de Andrade, com no papel do herói sem caráter. novembro de 1985. 15 “Fala-se sempre da ruptura de 1964 como o momento em que a violência se instala. 12 os situacionistas não só instigaram o Maio de 1968 na França, como participaram ati- Mas é preciso não esquecer que essa violência já estava nos canteiros de Brasília. O vamente das ocupações. Eles criaram um grupo ampliado ao atuar nas ocupações, o fortalecimento da dimensão autoritária favoreceu, na arquitetura, o desenvolvimento comitê Enragées-IS. René Viénet relatou essa experiência: “O insólito se tornava coti- do risco, mas num outro sentido, do traço, da mão que comanda, da arbitrariedade diano na mistura em que o cotidiano se abria a surpreendentes possiblidades de mu- mesma do seu movimento que, por força de vontade, quer impor aquilo que já na dança... No espaço de uma semana, milhões de pessoas tinham rompido com o peso realidade começa a esmaecer. Essa necessidade do polo autoritário, a meu ver, foi o das condições alienantes, com a rotina da sobrevivência, com o mundo invertido do que levou a que a violência ainda disfarçável de Brasília passasse a não poder mais espetáculo. [...] A desaparição do trabalho forçado coincidia necessariamente com o ser escondida a partir da ditadura.” (Sérgio Ferro) Sobre a violência dos canteiros na livre curso da criatividade em todos os domínios: inscrição, linguagem, comportamen- construção da capital federal (contestada por Lúcio Costa até sua morte que dizia to, tática, técnicas de combate, agitação, canções, cartazes e quadrinhos.” Sobre os desconhecer as precárias condições de trabalho que resultaram na morte de muitos escritos situacionistas sobre a cidade ver o livro: Apologia da deriva (Rio de Janeiro, operários) ver os filmes de VladimirC arvalho sobre Brasília, em particular, Conterrâne- Casa da palavra, 2003). os velhos de guerra, de 1992, com entrevista com Lúcio Costa logo no início.

154 155 Segundo Carlos Basualdo, “poderia afirmar-se que Brasília é o dado real, Assim, a nossa participação nesta Trienal devendo ser econômica – por efetivo, ao qual se contrapõe seu duplo mítico, Tropicália.”16 Poderíamos força das circunstâncias – poderá também resultar atraente e útil para o nos questionar também sobre uma possível crítica ao mito da pureza do público de um modo geral por sua singularidade. Bastará apresentarmos projeto moderno e racionalista de Lúcio Costa. O traçado purista de seu ali um ambiente de estar “mobiliado” apenas com redes – cerca de 14 – plano-piloto em forma de cruz ou avião pode ser visto como o exato avesso e alguns violões dos mais singelos, ambiente este destinado a acolher o da complexidade formal das favelas brasileiras, ou da própria periferia mais inevitável cansaço dos visitantes da exposição, e que, por sua índole, des- pobre de Brasília, no entorno do plano-piloto. Cidades-satélite (como uma pertará fatalmente a curiosidade de todos. [...] as redes de algodão, da das mais conhecidas, Ceilândia, a cidade da antiga CEI – Cia de Erradicação fábrica Filomeno, serão brancas, verdes, azuis, amarelas, cor de abóbora, de Invasões/Favelas do DF17) onde mora, ainda hoje, boa parte dos antigos roxas e vermelhas (tal como são vendidas no Ceará).19 candangos (operários que vieram de várias áreas do país e moravam em favelas improvisadas na época da construção da cidade, como a Cidade Lúcio Costa, apesar desse fugaz diálogo indireto, que só confirma toda Livre, oficialmente nomeada de Núcleo Bandeirante) que construíram Bra- a ambiguidade moderna brasileira – uma complexa relação ou tensão com sília com as próprias mãos, mas que depois de sua inauguração, em 1960, a cultura popular e/ou vernácula que o próprio Costa já mostrava tanto em foram removidos e expulsos para a periferia do Plano-Piloto projetado por seu início de carreira com seus projetos neocoloniais quanto a partir de Lúcio Costa somente para os funcionários da capital federal. toda sua participação na formulação e desenvolvimento do Sphan (hoje Em 1964, Lúcio Costa foi o responsável pelo pavilhão brasileiro na XII Iphan) de 1937 até 197220 – não participa, obviamente, do movimento Trienal de Milão e, curiosamente, ou talvez, tropicalisticamente, projetou tropicalista. Com relação ao campo da arquitetura, o único nome citado um espaço para o ócio, o que poderíamos chamar, a partir de Oiticica, de como “tropicalista”, entre alguns autores e curadores21 (mas não por ela), um “penetrável”: Riposatevi (repouse ou relaxe). Trata-se de um espaço é o de , que trabalhou intensamente sobre a cultura popular tropical com várias redes, violões e diferentes imagens (com fotografias de brasileira e, em particular, a nordestina. Enquanto Lúcio Costa busca levar Marcel Gautherot) do país: jangadas, praias e, como não poderia deixar de uma imagem “tropical” do Brasil para Itália, Lina Bo Bardi veio da Itália ser, as superquadras de Brasília, o Congresso Nacional, a praça dos Três procurar o Brasil no seu interior e, em particular, no sertão nordestino. Poderes e, o que poderia ser visto como a síntese de tudo isso, a região Na exposição “Nordeste”, em Salvador, em 1963, que inaugura o Museu de mais popular do plano-piloto de Lúcio Costa: a rodoviária de Brasília. Arte Popular do Solar do Unhão – por ela reformado, hoje MAM-BA, que Eduardo Rossetti chegou a chamar Riposatevi de “a Tropicália de Lúcio na época recebia vários jovens artistas (futuros tropicalistas) em suas Costa”18, a semelhança é de fato impressionante, Riposatevi de certa forma atividades –, Lina Bo Bardi também mostra uma série objetos populares também antecipa, como uma forma de “instalação” com várias redes, as Cosmococas de Oiticica. 19 Costa, Lúcio. Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995. 20 é importante notar que na época do projeto e da construção de Brasília, Lúcio Costa ainda é vinculado ao Sphan, talvez o texto que mostre melhor seu posicionamento seja o artigo “Documentação necessária” publicado (com croquis do autor) no 1o número da Revista do Sphan, em 1938. Diferentemente das vanguardas europeias, que buscavam se distinguir de tudo que poderia ser considerado “passadista”, a tensão (mesmo que por 16 catálogo “Tropicália, uma revolução na cultura brasileira 1967-1972”, organizado por muitas vezes pacificada) entre tradição e modernidade é uma característica singular do Carlos Basualdo. projeto moderno nacional, o que pode ser visto na prática institucional do Sphan desde 17 sobre o tema ver os fantásticos filmes deA dirley Queiroz, em particular, A cidade é sua criação, uma vez que o próprio serviço do patrimônio nacional no país foi idealizado uma só, de 2011. pelos pensadores e arquitetos modernos (como Mário de Andrade e Lúcio Costa), que 18 Rossetti, Eduardo P. Riposatevi, a tropicália de Lúcio Costa: o Brasil na XIII Trienal de ao mesmo tempo, também de forma ambígua ou ambivalente, constroem tanto a tradi- Milão. Arquitextos, São Paulo, jan. 2006. O mesmo autor apresentou dissertação de ção vernácula (sobretudo da arquitetura colonial) quanto a moderna (o tombamento de mestrado sobre a relação entre Lina Bo Bardi e a cultura popular: “Tensão moderno Brasília é um bom exemplo). Sobre o tema ver Rubino, Silvana. Lúcio Costa e o patrimô- popular em Lina Bo Bardi – nexos de arquitetura” (PPG-AU, UFBA, Salvador, 2002). Em nio histórico e artístico nacional. In: Revista USP n. 53, São Paulo, 2002. 2010 durante as comemorações do cinquentenário de Brasília, Riposatevi foi “remon- 21 como na grande exposição que circulou entre 2006 e 2007 – em Chicago, Londres, tada”, em Brasília, na exposição “Lúcio Costa – arquiteto”. Essa mesma remontagem foi Berlim, Nova Iorque e Rio de Janeiro – e seu catálogo, “Tropicália, uma revolução na exposta/instalada na Bienal de Veneza em 2013. cultura brasileira 1967-1972”, organizado por Basualdo.

156 157 e cotidianos coletados pela arquiteta em feiras e mercados populares do contemporâneos. Além das zonas opacas das cidades periféricas, ou das nordeste do país: carrancas, jangadas, pilões, lamparinas, redes etc. Ela periferias das grandes cidades globalizadas, a opacidade urbana não se explica sua proposta no catálogo: restringe aos espaços opacos mais delimitados de nossas cidades, como as favelas, mas se infiltram também nos seus espaços mais luminosos, Esta exposição que inaugura o Museu de Arte Popular do Unhão deveria através de uma série de atores – vendedores ambulantes, moradores de chamar-se Civilização do Nordeste. Civilização. Procurando tirar da pa- rua, catadores de lixo, prostitutas etc. – aqueles que, não por acaso, são lavra o sentido áulico-retórico que a acompanha. Civilização é o aspecto os primeiros alvos da assepsia promovida pela maioria dos projetos ur- prático da cultura, é a vida dos homens em todos os instantes. Esta ex- banos pacificadores, em particular nas cidades que não foram projetadas posição procura apresentar uma civilização pensada em todos os deta- ex-nihilo, e segregadas desde seu plano, como Brasília. lhes, estudada tecnicamente (mesmo se a palavra “técnico” define aqui Apesar da aparente oposição binária entre Tropicália e Brasília, ao um trabalho primitivo), desde a iluminação até as colheres de cozinha, as olharmos a cidade de Brasília com atenção como, por exemplo, nas foto- colchas, as roupas, bules, brinquedos, móveis, armas. [...] Matéria-prima: grafias históricas deM arcel Gautherot22 da construção da cidade, podemos o lixo. Lâmpadas queimadas, recortes de tecido, latas de lubrificantes, ver que “o espírito de Tropicália” – para falar como James Holston que caixas velhas, jornais. (Lina Bo Bardi, 1963) no aniversário de 50 anos da cidade clamava por libertar o “espírito de Brasília”, um espírito experimental que teria sido congelado com seu tom- As experiências mais populares e cotidianas, além, portanto, do mito bamento patrimonial – sempre esteve presente, mesmo que à revelia, em da pureza desses dois arquitetos modernos – Lúcio Costa, com Riposatevi, Brasília. Mesmo no plano-piloto – projetado para ser regular, uniformizado e Lina Bo Bardi, com a proposta do Museu de Arte Popular – explicitam e segregado socialmente – podemos encontrar traços de Tropicália nos essa ambiguidade moderna brasileira, uma coexistência tensa e dissensual numerosos rastros dos pedestres que criam caminhos sinuosos improvi- entre moderno e popular, que pode ser diretamente relacionada a zonas sados nos amplos gramados da cidade ou ainda nas poucas vilas/favelas urbanas dissensuais de todas as grandes cidades brasileiras, indicando-nos que conseguiram resistir e permanecer e, assim, desviam de seu traçado um liminar interessante, zonas de indecibilidade ou “zonas de tensão” – regular, como a Vila Planalto.23 liminaridades sempre trabalhadas de forma consciente por Hélio Oiticica, em particular a partir da ideia de ambivalência crítica, uma coexistência conflituosa de opostos contra qualquer polarização dicotômica simplista ou totalizante – para pensarmos de forma menos pura ou mitificada (e 22 imagens disponíveis no livro que comemorava os 50 anos de Brasília e os 100 anos de portanto menos polarizada ou dicotômica) tanto a arte quanto a cidade: nascimento do fotógrafo. Marcel Gautherot, Brasília. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles (IMS), 2010. Na orelha do livro os professores Sylvia Ficher e Andrey Schelle entre público e privado, entre informalidade e formalidade, entre gam- explicam: “Um canteiro de obras se metamorfoseando em capital. Uma arquitetura biarra e regulamentação, entre transgressão e institucionalização, entre em estado bruto, de madeira, de ferro, de concreto. Formas e “fôrmas” com as marcas desordem e ordem, entre experimental e oficial, entre popular e moderno, das mãos de seus trabalhadores sempre anônimos. Uma arquitetura de severinos. De entre prática e projeto, entre opaco e luminoso, entre Tropicália e Brasília. ‘[...] muitos severinos,/iguais em tudo e na sina:/a de abrandar estas pedras/ suando- -se muito em cima’, como disse João Cabral de Melo Neto. Mas esses protagonistas Essa tensão moderno/popular que é tão presente na arte brasileira tanto não citados na saga brasiliense, individualmente, também estão no foco da câmera de no período da antropofagia modernista quanto no da superantropofagia Gautherot, surpreendidos no improvisado cotidiano do seu improvido habitat – de lona tropicalista, está visível também no próprio espaço público da maioria das e de saco e de poeira.” Algumas dessas fotografias históricas de Gautherot da constru- nossas grandes cidades brasileiras. Essa tensão conflituosa e dissensual, ção de Brasília estão expostas atualmente na exposição “Modernidades fotográficas”, no IMS do Rio de Janeiro, com catálogo homônimo. entre o novo e o antigo, entre o moderno e o vernáculo, entre o erudito e 23 Várias vilas/favelas da capital, habitadas pelos migrantes (em sua maioria operários e o popular, entre aquilo que o geógrafo chamava de zonas suas famílias), foram removidas após a inauguração pela CEI – Cia de Erradicação de luminosas e de zonas opacas, ou seja, a tensão entre os novos espaços Invasões do Distrito Federal. Uma delas, a Vila Amaury foi alagada e ainda existe hoje, espetaculares e os antigos espaços populares, é precisamente o que os submersa, no lago Paranoá. Sobre favelas e cidades-satélites de Brasília ver: Holston, projetos urbanos contemporâneos ainda visam hoje ocultar ao buscar James. A cidade modernista, uma crítica de Brasília e sua utopia. Cia das Letras, 1993 (2a edição comemorativa dos 50 anos de Brasília de 2010, com novo prefácio “Libertem a eliminação dos conflitos e a pacificação dos nossos espaços urbanos o espírito de Brasília”).

158 159 As fotos históricas de Gautherot, os vários textos críticos sobre a cidade desde o fim dos anos 1950 – como dos intelectuais que visitaram a cidade ainda em obras no Congresso de Crítcos de Arte em 1959 – ou ainda, um simples passeio pela movimentada e popular rodoviária da capital federal, mostram que essas “zonas de tensão”, esses limiares de indecibilidade, não só permanecem presentes ainda hoje em Brasília como existem desde antes de sua inauguração, desde sua construção no meio do Cerrado. Construção moderna bastante rudimentar e arcaica, extremamente peri- gosa, nesse gigantesco canteiro de obras no planalto central do país, que formou uma enorme população de milhares de operários, migrantes de vários estados. Para além, ou na fusão, dos mitos – tanto de Tropicália, transformada em mito fundador pelo movimento tropicalista, quanto de Brasília, já projetada como mito (funerário?) moderno – ao procurarmos o que haveria de Tropicália em Brasília, encontraremos aquilo que o próprio Oicicica chamou antes de “gênio anônimo coletivo”,24 ou seja, chegamos aos próprios construtores dessa nova cidade moderna, os anônimos candangos sobreviventes – sabemos quantos morreram para que a cidade pudesse ser construída em tempo recorde, como mostrou Vladimir Carvalho em seus filmes – ou seus descendentes, que ainda moram na cidade ou no seu entorno e podem ser encontrados ainda hoje no grande melting pot da rodoviária dessa “capital aérea e rodoviária”, como disse Lúcio Costa no relatório do plano-piloto para o concurso. Os candangos se aproximam do “gênio anônimo” de Hélio Oiticica assim como daqueles que Milton Santos chamava de “homens lentos” e Ana Clara Torres Ribeiro, de “sujeitos corpo- rificados”, sem dúvida alguma eles ainda carregam “o espírito de Tropicália” em seus corpos, incorporando assim, e sempre, Tropicálias em Brasílias.

24 “Quero fazer voltar o Parangolé ao gênio anônimo coletivo de onde surgiu, e com isso jogar fora os probleminhas de estética que ainda assolam nossa vanguarda em sua maioria, transformando a pequenez desses problemas em algo maior [...] nas Escolas de Samba ninguém sabe quem fez isso ou aquilo; o importante é o todo onde cada um dá tudo o que tem. Minha experiência como passista da Mangueira é fundamental para que eu me lembre disto: cada qual cria seu samba com improviso, segundo seu modo e não seguindo modelos; os que o fazem seguindo modelos não sabem o que seja o samba ou sambar” Entrevista para Mário Barata, “Hélio Oiticica: A vanguarda deve jogar fora o esteticismo”. In: Jornal do Commercio, 16/7/1967.

160 161 Tropicália: objetivação de uma imagem brasileira

Celso Favaretto Doutor em filosofia e professor de pós-graduação na USP

Há duas entradas obrigatórias para se apreender a ideia que comanda Tropicália: uma, a artística, centrada no ambiente de Hélio Oiticica situado no horizonte de suas proposições, como uma formulação que vinha da sua teoria-parangolé, fincada ao seu “sentido de construção” – uma passa- gem em que a expressão “a pureza é um mito” indica uma “superação do abstrato-conceitual”, ou seja, da configuração das relações entre estrutura e cor, que presidiu à invenção dos metaesquemas aos bólides, transfigura- das com a emergência do parangolé; outra, de crítica da cultura, efetuada por uma estratégia, coincidente com a dos tropicalistas: um procedimento teórico-crítico cuja singularidade e eficácia se distinguiram sobremaneira das posições então correntes que debatiam aspectos da modernização e da modernidade no Brasil. Em Tropicália, a desmitificação do primado da estrutura-cor, da pureza da arte e das mistificações culturais que a envolvem se fazia por uma moda- lidade específica de pensamento da arte que ele designou como “jogo com a ambivalência” – uma estratégia de pensamento resistente ao princípio de contradição, voltada para a afirmação da sua posição ético-estética na evidenciação do “Brasil diarreia”, especialmente como crítica das imagens fixadas como brasileiras.

163 Tropicália apareceu com destaque em um momento em que uma ampla aparece por pura necessidade dos seus desenvolvimentos à medida que circulação de ideias e realizações artísticas de vanguarda processavam o trabalho exigia. Oiticica é um desses pensadores que avançam sempre; uma rearticulação da reflexão e práticas políticas depois de 64. Na mos- desde o início, quando dispara o seu programa com o parangolé, a pulsão tra “Nova objetividade brasileira”, em 1967, cujo texto base é de Oiticica, que conduz os seus desenvolvimentos é sempre de avanço, sem titubear. a manifestação ambiental se situou com destaque ao lado de uma ampla Propondo, inventando proposições, o pensamento de Oiticica se desen- e variada produção de vanguarda. O trabalho de Oiticica foi sempre con- volveu aparentemente em linha reta, na verdade afirmando o devir como textualizado: quer dizer, diante das transformações nas experimentações movimento da obra. artísticas contemporâneas disparadas pela “morte da arte”, pela abertura O seu programa in progress definiu uma posição propriamente estética das circunscrições tradicionais do trabalho artístico, tanto da atividade dos e uma prática artística que, enquanto criticava as idealizações que ainda artistas como da vida histórica das artes, das circunscrições institucionais, recobriam o domínio artístico e o cultural, abria uma pletora de interven- a sua obra sempre esteve relacionada a situações de arte e de cultura. ções singularizadas que destoavam da mesmice e do conformismo artístico, Entenda-se: arte de intervenção, arte participativa, arte urbana, etc., das cultural e político que dava a tônica ao que denominou a diarreia brasileira. décadas de 1960 e 1970 ou atuais, sempre implicaram e ainda implicam A crítica à concepção imperante de obra, à mistificação do artista e ao as circunstâncias que envolvem as ações, pondo em relação a obra e a sistema da arte, enfim, à descentralização da arte, “pelo deslocamento do realidade, a situação e os acontecimentos. que se designa como arte, do campo intelectual racional para o da propo- Naquele tempo das promessas, tratava-se de propor a arte como moda- sição criativa vivencial”,1 levou-o, através de proposições em sequência, lidade de intervenção na realidade como um todo, especificada em alguns à passagem da posição “de querer criar um mundo estético, mundo-arte, de seus aspectos – no sistema de produção cultural e de comunicação, superposição de uma estrutura sobre o cotidiano, para descobrir os ele- como nas práticas tropicalistas, por exemplo. Tratava-se de fazer a crítica mentos desse cotidiano, do comportamento humano, e transformá-lo por dos lugares institucionalizados de evidenciação e de circulação da arte. suas próprias leis, com proposições abertas, não condicionadas, único Uma arte da ação, de convite, exigência ou imposição de participação, que meio possível como ponto de partida para isso”. E ainda: seria irrecuperável pelo princípio da representação, concebia experiências que implicavam o coletivo, no modo de se apresentar e na significação, Está claro que a “ideação” anterior substitui a “fenomenação” de hoje. O visando quase sempre a uma eficácia, senão imediata, simbólica. Essas artista não é então o que declancha os tipos acabados, mesmo que al- experiências configuravam novos modos de sentir, de relacionar-se, de agir tamente universais, mas sim propõe estruturas abertas diretamente ao socialmente, com que pretendiam induzir novas formas de subjetividade comportamento, inclusive propõe propor, o que é mais importante como política, pelo entendimento que faziam da fusão da arte com a vida no consequência. A obra antiga, peça única, microcosmo, a totalidade de tempo das ilusões revolucionárias, das mudanças dos comportamentos, uma ideia-estrutura, transformou-se, com o conceito de objeto, também das promessas de emancipação. numa proposição para o comportamento [...]: estruturas palpáveis exis- Assim, a Tropicália de Hélio Oiticica é uma proposição artística situ- tem para propor, como abrigos aos significados, não uma “visão” para um ada no cerne dessa discussão artística e das reflexões estéticas daquele mundo, mas a proposição para a construção do “seu mundo”, com os ele- tempo, em todo lugar mas com referência específica ao que ele dominava mentos da sua subjetividade, que encontram aí razões para se manifestar: vanguarda brasileira e ao mesmo tempo elaboração de uma posição crítica são levados a isso.2 sobre os discursos ético-estéticos correntes que vinham se formulando desde o modernismo, centrados na constituição de imagens de Brasil; Contudo, a passagem do “mundo das imagens do abstrato conceitu- mais proximamente, focalizavam as relações entre arte e sociedade, te- al” para o comportamento não implicava para ele a simples diluição das matizadas pelo menos desde meados dos anos de 1950. Tropicália é tam- estruturas – pois “o que importa, ainda, é a estrutura interna das proposi- bém uma singular experiência de pensamento na arte; ou, parafraseando Mário Pedrosa, “um exercício experimental do pensamento” na arte, em 1 oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. FIGUEIREDO, Luciano; PAPE, Lygia e SALO- que os efeitos da invenção de conceitos e produção de sentido, são con- MÃO, Waly (orgs.). Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 111. tingentes, autorrefenciais, implicando uma nomeação toda original que 2 id. ib., p. 120.

164 165 ções, sua objetividade”3 – mas que “a preocupação estrutural se dissolve que implica a suplantação da imaginação pessoal em favor de um imagi- no “desinteresse das estruturas” que se tornam receptáculos abertos às nativo coletivo – e não pelos simbolismos da arte. O requisito para que significações”;4 a passagem da unidade da obra, da coerência,5 à multipli- isso se cumpra é que as atividades, as ações, devem supor uma adequada cidade das células-comportamento, à expansão celular em que não cabem perspectiva crítica para a identificação das práticas culturais com efetivo a ideia de forma e estrutura: “o passado de ‘necessidade estrutural’ cresce poder de transgressão – o que, por sua vez, provém da confrontação dos para o agora de ‘existência ou não’: algo espreita a possibilidade de se ma- participantes com as situações. nifestar e aguarda – ultraguarda”.6 Em 1969, no momento da exposição em Nessa direção, Oiticica se situou de modo específico nos debates que Londres, na Whitechapel Experience, afirmou que tinha chegado ao limite efetuavam a radicalização do social e do político nas artes do CPC. aos do que vinha sendo proposto como uma nova fundação da arte, com o seu tropicalistas só para se ter uma ideia do que é preciso pensar quanto às programa parangolé. Em carta a Lygia Clark declarou: “encerrei a minha variadas estratégias que provinham da interseção do estético com o político, época de fundar coisas, para entrar nessa bem mais complexa de expandir basta relembrar produções mais significativas que apareceram no incrível energias, como uma forma de conhecimento ‘além da arte’; expansão vital, ano de 1967: Terra em transe de Glauber Rocha, a encenação de O rei da sem preconceito ou sem querer ‘fazer história’, etc.”7 Vem daí a intrigante vela pelo de José Celso, de Arena conta Tiradentes no Teatro afirmação, feita em 1978 de que tudo o que tinha feito antes tinha sido um de Arena de , o Tropicalismo do grupo baiano, a exposição prelúdio ao que tinha que vir, ao que estava vindo, de modo que estava “Nova objetividade brasileira”, os livros Panamérica de José Agrippino de apenas começando.8 Paula, Quarup de Antônio Callado, Pessach: a travessia de Carlos Heitor Mas, a sua proposição de antiarte ambiental – que além de conceito Cony. Nessas obras, desdobravam-se proposições que articulavam, em mobilizador para conjugar a reversão artística, a superação da arte, a re- suas particularidades, os signos que vinham se disseminando nas temati- novação da sensibilidade e a participação, implicava o redimensionamento zações que fixavam perspectivas emblemáticas para fazer face à situação cultural dos protagonistas das ações, o imbricamento das dimensões ética complexa e tensa em que se compunham a resistência aos cálculos do e estética – desde o início visava a liberar as atividades do ilusionismo, isto regime militar, o resgate das culturas populares, a assimilação de todo é, já implicava o além da arte. Como ele dizia, não visava com a antiarte tipo de modelos e processos da indústria cultural, cujo desenvolvimento à criação de um “mundo estético”, pela aplicação de novas estruturas ar- disparava, com penetração nunca vista no país em todas as camadas so- tísticas ao cotidiano; nem simplesmente diluir as estruturas no cotidiano, ciais, manifestando poder e informação e simultaneamente de diluição e mas, acima de tudo, transformar os participantes “proporcionando-lhes mistura de referências culturais fixadas e de técnicas modernizadoras com proposições abertas ao seu exercício imaginativo”, de modo a torná-lo que se respondia ao desejo crescente de superação ou apagamento das “objetivo em seu comportamento ético-social”.9 Tratava-se, portanto, de marcas do subdesenvolvimento. outra inscrição do estético: o artista como motivador da criação; a arte Dentre as proposições que mais exploraram a convivência dos elementos como intervenção cultural. O imaginário que conduzia o experimental de culturais e artísticos disparatados, sem dúvida foi a atividade tropicalista Oiticica é aquele que se interessa pela função simbólica das atividades – o a que mais eficientemente propôs uma via que tinha a ver com o desejo de modernização, com a realização do imperativo moderno, de realizar a condenação ao moderno, de tratar a desigualdade, a dependência, os 3 id. ib., p. 103 desajustes, as contradições de um modo cuja criticidade alterava os termos 4 id. ib., p. 114 em que estavam postas as discussões desde os anos 50, reativando e re- 5 oiticica, Hélio. O q faço é música. In: OITICICA FILHO, César (org.). Museu é o mundo. pensando indicações da antropofagia oswaldiana. Daí o interesse imediato Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p. 180. que despertou em Oiticica, especialmente pelo “jogo com a ambivalência” 6 id. ib., p. 117. que se articulava em suas composições e atitudes. 7 carta de 23/12/69. In: FIGUEIREDO, Luciano (org.). Lygia Clark-Hélio Oiticica: cartas, 1964-74. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998. As estratégias visando a compor um trabalho de inovação artística e de resistência à ditadura eram marcadas pela ambivalência, proveniente 8 cf. texto em Daisy Peccinini (org.). Objeto na arte: Brasil anos 60. São Paulo: FAAP, 1978, p. 190. da articulação por justaposição de materiais de proveniência diversas, 9 oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 77. sincréticos, mobilizando nas composições uma atitude de fuga das pola-

166 167 rizações, estéticas e ideológicas para enfrentar as indeterminações do que Essa “posição crítica” é estendida em “Experimentar o experimental”, ao Hélio Oiticica chamou de “brasil diarreia”, e Décio Pignatari e depois Gil explicitar a relação entre atividades críticas de vanguarda e o consumo: “o e Torquato, “geleia geral brasileira”. A rememoração dessa atitude crítica experimental assume o consumo sem ser consumismo”, pois para ele “fugir produzida nas canções e outras ações tropicalistas e o procedimento crítico ao consumo” não é “uma posição objetiva [...] mais certo é sem dúvida que faz da ambivalência uma técnica estético-política estão expostos de consumir o consumo como parte dessa linguagem”.11 Proposição polêmi- modo incisivo em alguns textos de Hélio Oiticica: em “A trama da terra que ca, que esteve na base das críticas mais acerbas feitas aos tropicalistas. treme: o sentido de vanguarda do grupo baiano” (1968), “Brasil Diarreia” O acento na ambivalência como modalidade crítica visava a dar conta do (1970) e “Experimentar o experimental” (1972). procedimento de justaposição dos materiais arcaicos e modernos, cultos e populares, experimentais e da cultura de massa, constantes da experiência “É preciso entender que uma posição crítica implica inevitáveis ambiva- brasileira que, por efeitos de humor, paródia e alegorização, são desloca- lências”, pois “pensar em termos absolutos é cair em erro constantemente dos, assim criticados. A frase de Oiticica, em sua concisa concentração – envelhecer fatalmente: conduzir-se a uma posição conservadora (con- conceitual, indicava a relação tensa entre vanguarda e comunicação, formismos; paternalismos, etc.); o que não significa que não se deva optar vanguarda e mercado, não uma composição oportunista e conformista, com firmeza: a dificuldade de uma opção forte é sempre a de assumir as como o acentuado em algumas críticas. Tratava-se de um descentramento ambivalências e destrinchar pedaço por pedaço cada problema” [...] “en- das questões em debate nas atividades artísticas e críticas, fazendo uma tender e assumir todo esse fenômeno, que nada deva excluir dessa “pos- reavaliação dos fracassos ou das inadequações dos projetos e estratégias ta em questão”: a multivalência dos elementos “culturais” imediatos [...] culturais que visavam à politização das ações. Uma reavaliação dos efeitos e reconhecer que para se superar uma condição provinciana estagnatória, eficácia política dessas ações implicava inevitavelmente o questionamento esses termos devem ser colocados universalmente, isto é, devem propor dos modos de expressão artística e do papel sócio-histórico da arte. Da questões essenciais ao fenômeno construtivo do Brasil como um todo, no maior importância foi a atitude de deslocar os modos vigentes de interesse mundo [...] Nossos movimentos positivos parecem definir-se como, para pelo coletivo, de expressão do inconformismo social na experimentação que se construam, uma cultura de exportação: anular a condição colo- artística, pelo ultrapassamento do mero interesse pelas mitologias, valores nialista é assumir e deglutir os valores positivos dados por essa condi- e formas de expressão das experiências populares. ção e não evitá-los como se fossem uma miragem [...] assumir e deglutir O interesse de Oiticica por práticas populares não implicava recurso a superficialidade e a mobilidade dessa “cultura”, é dar um passo bem à valorização, dada naquele momento, à cultura popular com ênfase na grande – construir – ao contrário de uma posição conformista, que se ba- mitologização das raízes populares. Mas o destaque dado à Mangueira, seie sempre em valores gerais absolutos: essa posição construtiva surge ao samba, à construtividade popular deriva da sua concepção de antiarte de uma ambivalência crítica [...] A formação brasileira [...] é de falta de ambiental; da sua experiência da marginalidade. Mantendo-se afastado caráter incrível: diarreica; quem quiser construir [...] tem que ver isso e dos projetos culturais que figuravam o conceito compósito de “realidade dissecar as tripas dessa diarreia – mergulhar na merda [...] a condição nacional”, tomado como um dado, como etapa da ação política que reagia brasileira, mais do que simplesmente marginal dentro do mundo, é sub- à dominação do imperialismo e do regime militar, Oiticica respondeu à sua terrânea, isto é, tende e deve erguer-se como algo específico ainda em maneira aos apelos dessa posição. A sua marginalidade foi vivida, pois é formação [...]: assume toda a condição de subdesenvolvimento, mas não o ponto em que se desfaz a contradição do inconformismo estético e do como uma “conservação desse subdesenvolvimento”, e sim como uma... inconformismo social. Para ele, a arte tem sempre função política, con- “consciência para vencer a super paranoia, repressão, impotência...” bra- tanto que isso não seja um “alvo especial”, mas sim “um elemento”, pois, sileiras; o que mais dilui hoje no contexto brasileiro é justamente essa fal- “se a atividade é não repressiva será política automaticamente”.12 Arte e ta de coerência crítica que gera a tal convi-conivência; a reação cultural, que tende a estagnar e se tornar oficial.10 11 oiticica, Hélio. “Experimentar o experimental”. In: TORQUATO NETO e SALOMÃO, Waly (orgs.). Navilouca. Rio de Janeiro: Gernasa, 1974, p. 6. 10 oiticica, Hélio. “Brasil diarreia”. In: GULLAR, Ferreira. Arte brasileira hoje. Rio de Ja- 12 entrevista. AYALA, Walmir. A criação plástica em questão. Petrópolis: Vozes, 1970, neiro: Paz e terra, 1973, p. 150-151. p.166.

168 169 política são práticas convergentes, mas que não se confundem, sob pena É nessa direção que Oiticica destaca a importância da produção do de se promover a estetização da política. Grupo Baiano, identificando-a com as propostas e com a linguagem de Na Tropicália, a “objetivação de uma imagem brasileira” não se faz seu programa ambiental. Para ele, ambas articulam o experimentalismo pela figuração de uma realidade como totalidade sem fissuras, mas pela construtivista e o comportamental; nelas a participação é constitutiva da devoração das imagens conflitantes que encenam uma cultura brasileira. produção, e a crítica, efeito da abertura estrutural. Para ele, o caráter re- Essa devoração se atribui aos participantes: apropriando-se dos elementos volucionário implícito nas suas criações e posições se deve à não distinção disparatados, justapostos, que formam uma “síntese imagética” – na ver- entre experimentalismo e crítica da cultura; à ausência de privilégios entre dade uma mistura de imagens, linguagens e referências –, os participantes posições discrepantes, quando se trata de “constatar um estado geral agem nesse sistema conjuntivo e ambivalente, produzindo a evidenciação cultural” e nele intervir; e, finalmente, à não distinção entre a repressão do processo de constituição das contradições enunciadas. O objetivo é da ditadura e a setores da crítica e do público de esquerda.15 provocar a explosão do óbvio por efeito da participação, com que tudo Oiticica identifica nos músicos a mesma tônica de suas manifestações o que é traço cultural é ressignificado; alheia ao exclusivismo da experi- ambientais: a renovação de comportamentos, de critérios de juízo e a eficácia mentação ou da expressão de conteúdos do nacional-popular, Tropicália crítica passam pelo modo de produção, em que se aliam conceitualismo, conjuga experimentalismo e crítica, de modo que as imagens “não podem construtividade e vivência. Ambas as produções originam conjuntos hete- ser consumidas, não podem ser apropriadas, diluídas ou usadas para róclitos, em que processos artísticos e culturais diversos são justapostos e, intenções comerciais ou chauvinistas”.13 Ou seja: a Tropicália define uma efeito da devoração, reduzidos a signos que agenciam ambivalência crítica linguagem de resistência à diluição: assumir uma posição crítica, diz Oiti- e exploram a indeterminação do sentido, propondo-se, assim, como ações cica, é enfrentar a “convi-conivência”, essa doença tipicamente brasileira, que exigem dos participantes a produção de significados. Ambas fazem parte misto de conservação, diluição e culpabilidade, que concentra os “hábitos do projeto crítico que assume a ambivalência como modo de significar a inerentes à sociedade brasileira”: cinismo, hipocrisia e ignorância14. Essa diarreia brasileira. Os tropicalistas, ele diz, “modificam estruturas, criam “posição crítica universal permanente”, patente no que denominou “o ex- novas estruturas”. Um simples cotejo entre a estrutura das duas tropicá- perimental”, possibilitou-lhe interferir na vanguarda brasileira, enquanto lias, o labirinto de Oiticica e a canção de mesmo nome de Caetano Veloso, nela encontrou condições para desenvolver projetos coletivos implícitos evidencia o caráter ambiental e o construtivismo que lhes é comum, ou em seu programa-Parangolé. seja, a coincidência dos modos de operar o experimentalismo conjugado O alcance crítico que Oiticica atribui à sua posição provém da atitude à crítica cultural. A convergência dessas produções pode ser assinalada, de desestabilização do experimentalismo e das interpretações culturais por exemplo, na mudança radical da recepção: a transformação do ouvin- hegemônicas. Ao insistir na “urgência da colocação de valores num con- te e do espectador em protagonistas de ações, que tanto se referem às texto universal”, para “superar uma condição provinciana estagnatória”, intervenções implícitas na própria estrutura das obras-acontecimentos, rompe com os debates que monopolizavam as práticas artísticas e cultu- quanto às alusões a outros modos de categorizar e contextualizar as ações. rais, radicalizando-os. Com Tropicália, o projeto e a teorização, Oiticica, O jogo com a ambivalência difere de outros procedimentos críticos juntamente com as demais produções identificadas como “tropicalistas”, surgidos naquele momento que, incidindo sobre a ambiguidade das prá- evidenciou o conflito das interpretações do Brasil sem apresentar um pro- ticas artísticas de vanguarda, entendiam que o tropicalismo positivava jeto definido de superação dos antagonismos. Expondo a indeterminação uma combinação entre progresso técnico, experimentalismo de vanguar- da história e das linguagens, devorando-as, todas ressituaram os mitos da e imobilismo social e político dada a sua prática de tomar o mercado da cultura urbano-industrial, misturando elementos arcaicos e modernos, como integrante do processo de produção. Como se sabe, os tropicalistas explícitos ou recalcados, ressaltando os limites das polarizações ideológicas não elidiam essa discussão, tanto no implícito das canções como nas no debate cultural em curso. declarações e atitudes; acima de tudo na materialidade da linguagem,

15 cf. “A trama da terra que treme – o sentido de vanguarda do grupo baiano”. Correio da 13 oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., encarte. Manhã, Rio de Janeiro, 24/11/68. Reproduzido em Museu é o mundo. Rio de Janeiro: 14 oiticica, Hélio. “Brasil diarreia”. Op. cit., p. 148-149. Beco do Azougue, 2011, p. 117.

170 171 do processo construtivo. A colocação do aspecto estético e do aspecto modernização da sociedade, tal como estão explicitados nas interpreta- mercadoria no mesmo plano, essa ambivalência, fazia parte da estratégia ções vigentes no sistema artístico-cultural. As canções, individualmente que problematizava o sistema da arte. Essa estratégia substituía as formas ou em conjunto, quando assim consideradas, configuram, na fulguração consagradas de participação – em que frequentemente o político das ações de suas imagens, uma situação histórica impossível de ser concretizada era reduzido pela ênfase no primado dos efeitos imediatos e, em grande com nitidez e que irrompe sob a forma de retorno do recalcado. Assim, as parte, emotivos, do poder da denúncia e da exortação – pelo processo de canções geram significações conflitantes com os significados designados composição que articulava estrutura e comportamento, construtividade e como identificadores de uma entidade abstrata, a realidade brasileira, vivência na elaboração crítica que, pela justaposição de elementos discor- emblematizada em signos que indiciam “as relíquias do Brasil”, como as dantes, evidenciava o processo de constituição mesma das contradições enunciadas na canção “Geleia geral” de Torquato Neto e Gilberto Gil. Os enunciadas. Em vez da crença na eficácia imediata da figuração da realidade fatos culturais designados, as formações históricas, os estilos artísticos, brasileira, propunha um deslocamento que pela devoração das imagens usos e costumes são desapropriados de seus valores já fixados como tradi- encenava aspectos emblemáticos da realidade brasileira – como se pode ção, como identitários, e são transfigurados pela paródia, pelo humor, pela ver, por exemplo, nas canções Tropicália, Geleia geral, Parque industrial, sátira, pelos procedimentos grotescos, pela carnavalização da linguagem, Marginália II, Enquanto seu lobo não vem e na manifestação ambiental evidenciando sintomas de uma história malformada e que talvez nunca Tropicália de Oiticica: um processo conjuntivo e ambivalente, corrosivo, tenha chegado verdadeiramente a ser. que vinha da transformação do receptor em ativo decifrador de signos, A composição de paródia e alegoria, efetivada nas canções tropicalistas com que se articula em outro nível de consciência. e na Tropicália de Oiticica radicaliza um processo extremamente importante, Nas canções tropicalistas o jogo com a ambivalência, por proceder algumas vezes antes ensaiado na arte brasileira mas nunca tão contunden- como processo construtivo, acentua a indeterminação como índice de te: trabalho corrosivo de crítica da arte e da cultura instituídas, em seus criticidade que opõe resistência ao consumo das imagens que se situam diversos matizes, desde o mito das raízes populares até as mitologias da numa zona de indiscernibilidade, efeito da corrosão efetivada pelo paro- cultura de mercado. Mas, ressalta Oiticica, tudo é feito segundo uma ati- diar das referências e pela alegorização. Daí a radicalidade das músicas tude experimental que redimensiona o que estava em curso na atividade tropicalistas e da antiarte de Oiticica quando pensam a simultaneidade de artística, mesmo de vanguarda: uma atitude experimental centrada no crítica e inserção no mercado. A indistinção entre estética e mercadoria faz “atuar sobre o comportamento diretamente, não num puro processo de parte da sua estratégia dessacralização para enfrentar a “convi-conivência”. relaxamento dessublimatório, mas no de estruturação criativa, convocação O consumo era visto como uma das categorias transformadoras, como a transformações e não submissão conformista. É como uma trama que se modo de enfrentar e dissolver as dualidades erigidas como oposições, faz e cresce etapa por etapa: a trama-vivência”.16 pela exploração da ambivalência, saindo das oposições – bom gosto e mau gosto, nacional e internacional, cultura superior, cultura de massa e cultura popular, vanguarda e comunicação; crítica e conformismo. A desmistifi- cação das relações entre criação e consumo destoava de posições que à esquerda e à direita condenavam o envolvimento comercial das artes, da arte como simples submissão às modas. Para os tropicalistas, e Oiticica, contudo, não parecia possível apropriar-se desses recursos e ao mesmo tempo preservar uma suposta neutralidade da arte. Assumir a ambivalência era o modo eficaz, ética e esteticamente, de enfrentar a diarreia brasileira. As canções tropicalistas resultam de um processo construtivo em que as imagens resultam da justaposição de materiais de procedência diversa, de elementos díspares, provocando um efeito de obscuridade e estranhe- za. Cenas alusivas, fragmentárias, compostas como alegorias do Brasil, 16 “A trama da terra que treme – o sentido de vanguarda do grupo baiano”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24/11/68. Reproduzido em Museu é o mundo. Rio de Janeiro: aludiam à persistência dos arcaísmos, das deformações no processo de Beco do Azougue, 2011, p. 122.

172 173 sessão 3 Área aberta ao mito. O mito da criação.

Mito, vida e a frágil arquitetura do sujeito

Tania Rivera

É importante afirmar, hoje, a importância de Hélio Oiticica como teórico, como pensador. Sua reflexão se dá em uma proximidade total com a obra artística, dissolvendo as fronteiras entre objeto de arte e pensamento, de modo a realizar uma verdadeira antiteoria que corresponde à antiarte por ele defendida. Nela, a noção de “mito” tem um papel surpreendente. O próprio conceito de Parangolé é a ela vinculado: esse seria, nas palavras de Oiticica, capaz de levar a uma “verdadeira retomada” da “estrutura mítica primordial da arte” que se teria obscurecido a partir do Renascimento mas emergido novamente na arte moderna.1 A aproximação do Parangolé com a dança, “mítica por excelência”, e a criação de “lugares privilegiados” seriam, en- tre outros, elementos que interferem no comportamento do espectador, contribuindo com a “vontade de um novo mito”.2

1 oiticica, Hélio. Bases fundamentais para uma definição do Parangolé (1964). Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 68. 2 ibid., p. 69. Tal vontade de mito se associa, assim, ao abandono do objeto de arte […] Não há “proposição” aqui – estar-se nu diante do fora-dentro, do va- em seu sentido tradicional e à ideia de criação que lhe é correlata, como zio, é estar-se no estado de “fundar” o que não existe ainda, de se auto- explicita Oiticica em uma entrevista de 1965 sobre os Bólides: fundar.8

Não se trata pois da “arte” como objeto supremo, intocável, mas de uma O artista chega, assim, ao ponto em que nem sequer cria proposições, criação para a vida que seria como que uma volta ao mito, que passa aqui mas apenas dedica-se a construir certa arquitetura – que proponho nomear a ocupar um lugar proeminente nessa totalidade.3 como arquitetura do sujeito.9 Ela agencia uma situação, uma ambientação ou “recinto-proposição” que é precário, é “pobrecinto”, para trazer mais uma A volta ao mito está, portanto, intimamente ligada a uma expansão expressão de Oiticica. Não se trata aí de uma arquitetura para um indivíduo do campo da arte em prol de “um estado, uma predisposição às vivências já constituído, de uma segura morada do eu, mas de uma arquitetura sutil criativas, um incentivo à vida”.4 Nessas elaborações transparece uma cer- na qual o sujeito surge como aquilo que deve ainda se “autofundar” – em teira influência de Nietszche – de quem o artista era leitor assíduo – em sua implicação ética com o outro. sua retomada do mito trágico, no qual o dionisíaco, em especial, traça a Em tempos de surgimento da noção de “lugar de fala” como posição via pela qual o filósofo pretende reexaminar “a arte pela ótica da vida”.5 O identitária fixa e inquestionável, a reflexão de Oiticica me parece apontar mito de Dionísio assinala, no júbilo estético assim como na vivência ritual, para a arte como incitação a uma fundação aberta de si mesmo, sempre com sua música e sua dança, algo como uma embriaguez, que Nietzsche em fluxo com o outro, em uma espécie de mito que é de todos e deve ser compreende como dilaceração de toda individualidade em um “sentimento apropriado, singularmente, por de cada um de nós – sem jamais ser pro- místico de unidade”.6 priedade exclusiva de ninguém. Já em Hélio Oiticica, a quebra da “individualidade” – que não deixa de envolver, diga-se de passagem, o uso de drogas – nada tem de “mística”. Ela se imbui de um projeto de coletividade que vai além da mera “participação Tania Rivera Psicanalista e professora do Departamento de Arte da Universidade do espectador” na obra de arte para afirmar a arte como práxis política. Federal Fluminense (UFF). Nesse projeto, o mito toma lugar na arte por nomear algo de saída coletivo ao qual se trataria de voltar. Toda essa reflexão se concretiza na Área aberta ao mito – um dos “nú- cleos de lazer” que fazem parte da ambientação Éden (1969), ao lado dos Ninhos, com um cercado circular vazio, delimitado por uma treliça – na qual se trata da “proposição do mito em nossas vidas, o cressonho consciente de si mesmo”.7 A arquitetura é aqui “abertura” para um mito que, vindo de fora, do coletivo, é a base para a criação onírica de si mesmo. A partir da dessubjetivação dionisíaca ressaltada por Nietzsche, trata-se para Oiticica, na arte, de nada menos do que fundar o si mesmo:

3 oiticica, Hélio. Sobre os Bólides (1965). Encontros. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 37. Eu sublinho. 4 oiticica, Hélio. Sobre os Bólides (1965). Encontros. Hélio Oiticica. Op. cit. [tem o nº da página?] 5 nietZSCHE. La naissance de la tragédie. Paris: Gallimard (Folio/Essais), 1977, p. 13. Eu traduzo os trechos citados. 6 ibid., p. 32. 8 oiticica, Hélio. Crelazer. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 115-116. 7 oiticica, H. Eden. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996, p. 13. 9 riVERA, Tania. Hélio Oiticica e a arquitetura do sujeito. Niterói: Eduff, 2012.

176 177 Involuções sobre escrita, corpos e cadernos

Ana Kiffer Eu já falei muito da escrita. Não sei o que ela é. Professora do Programa de Pós- Marguerite Duras, La vie matérielle Graduação em Literatura Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio Rio de Janeiro, 26 de maio de 2016. Está difícil como poucas vezes antes escrever um texto-artigo. Sobretudo se a escrita de um artigo pressupõe distanciamento espaçotemporal sobre o objeto tratado. Com definições salvaguardadas. Sem que processos como contágio, identificação, afecções deixem seu rastro sobre a coisa escrita. Dou-me conta que sob o ponto de vista estrito dessa perspectiva o meu aparato reflexivo avariou. Talvez através de um longo processo, que certamente já se perdeu na história das minhas leituras. Ou que aqui não vem ao caso. No entanto, e isso importa, ele vem sofrendo impactos constantes ao longo dos últimos meses. O estreitamento do que considerávamos estado democrático acabou também o atordoando. O dia de hoje, que vocês já esqueceram, e sobre o qual volto para espezinhar foi especialmente duro. O estupro de uma jovem de 17 anos por 33 homens me deixou acometida pelo pior: um misto entre a impossibilidade de falar e a exigência em não deixar de dizer. Um afeto político que talvez nunca tenha experimentado nessa intensidade. Afinal, ainda estava na barriga de minha mãe. Sim em dezembro de 1968. Talvez muitos conheçam esse algo entre a afasia e o empuxo. Uma palavra ali estrangulada.

179 Quando recebi o convite, feito por Barbara e Giuseppe, a quem agra- Desse modo, se entendo que tal marco tem consequências, o início da deço sinceramente, além de parabenizá-los, e também a Isabela Pucu, minha fala, estrangulada entre o empuxo dos acontecimentos e a afasia pela iniciativa, assim como a todos que colaboraram pela realização desse que eles despertam, tem aqui o seu assento. Entendendo que esse filho evento, agora livro, mas quando recebi o convite me foi pedido que falasse bastardo do texto que a cultura na qualidade de performance (para tantos da escrita. Não como especialista da obra de Hélio, que não sou. Mas a de nós ainda sentida como falsa ou superficial) interroga é frontalmente partir da minha – hoje já extensa – pesquisa sobre as relações entre o corpo aos nossos corpos e aos seus espaços no mundo. Colocando em relação e a escrita. Pois, então, pensava, inicialmente, que poderia começar esse aquilo que antes não necessariamente estava interligado pelo texto. Posto trabalho a partir de um marco teórico e dele extrair algumas reviravoltas que o texto conseguia, até então, separar estratos bem definidos. Já aqui que me interessam. E que acredito que interesse também em um gesto até mesmo o subjetivo é parte dessa cultura performada, que engendra que busque de um ou outro modo atualizar questões postas pela obra de desde a construção dos gêneros até as escolhas ministeriais. Não numa Hélio Oiticica, como pressuposto nesse encontro. De todo modo, havia imensa leitura de causas e consequências mas, ao contrário, numa rede de decidido escrever um texto eminentemente teórico-crítico. Interessado ressonância que desestabiliza o que outrora aprendemos estável e estável em afrontar hipóteses que até hoje havia aqui e ali intuído, mas nunca porque isolável, por exemplo: a estabilidade da natureza do meu gênero diretamente sobre elas escrito. O marco teórico figuraria aqui como uma sexual que garante a estabilidade da função social da maternidade. espécie de ficção de origem.N a verdade, ele é apenas um deflagrador da A saída da origem, da causa, de todas essas noções constelares à noção discussão. Poderia ser de fato outro. Notem que se trata já de uma origem de texto, em proveito dessa caixa de ressonâncias, assim como a saída da ficcionalizada e bastarda. Nesse ambiente os pais são facilmente falseados noção de influência, de verticalidade hierárquica (também noções caras à e também falseadores. noção de texto) em proveito dessa espécie de contaminação entre termos Escolhi, então, a hipótese da alemã Fischer-Lichte (2011), especifi- heterogêneos, vão desmontando um determinado esquema de cultura camente quando situa historicamente nos anos sessenta do século XX e nos deixando muitas vezes a descoberto, nessa sensação de risco que a guinada que fez com que a cultura deixasse de ser tomada (ao menos pode nos incitar o desejo de que algo mais limpo, mais próprio e mais es- exclusivamente) enquanto texto – texto esse que pode e deve ser lido e tável volte a determinar nossas vidas. Desejo para o qual devemos estar interpretado, em proveito de uma noção de cultura que passa a ser vivida seriamente atentos. Desejo de higienização que certamente retorna nas e tomada enquanto performance – como algo que age e se efetua mate- situações em que o texto mostra a sua falência. Será justo esse desejo que rialmente sobre os corpos. a noção de escrita e de escrita de cadernos que trarei para vocês, mesmo Desse marco, que empunho aqui sem apego ou fé, decido, no entanto, sem querer, interroga. retirar algumas das suas consequências radicais. Do mesmo modo como um Tal noção, da qual derivo a construção de minha pesquisa atual sobre dia cremos ter ingressado na cultura da escrita, escrita ali entendida como escrita de cadernos, já vem sendo, mesmo que minoritariamente, determi- esse grande texto da lei, anônimo e englobante, concernindo quem escreve nante de inúmeras experiências do pensamento e da arte desde a segunda e quem lê em seus direitos e deveres, e apartando-nos definitivamente das metade do século XX. vozes e dos suplícios dos corpos, em proveito de uma sociedade moderna, Pois então proponho aqui apontar três direções que busquem oferecer igualitária e livre, entendemos que numa cultura performativa não se trata um esboço da questão: 1) delimitar o conceito material de escrita a partir mais de um texto a priori escrito, certo ou errado, mas de uma inscrição de algumas contribuições seminais que ocorreram na segunda metade do constante e reivindicativa de novas “escritas” performadas no texto, sim e século XX, (2) explicitar a noção de caderno que venho repensando e até ainda, mas também nos corpos, na cidade, nos grupos, nas redes, em am- certo ponto redesenhando – a partir de determinadas experiências teórico- bientes severamente materiais – como o odor das comunidades periféricas -práticas para, finalmente, recolocar, ao final, (3) o tema dessa mesa, qual sem saneamento básico, ou severamente imateriais, como as hashtags hoje seja: o mito da criação. abundantes e que, vez por outra, conseguem até mesmo ativar camadas discursivas inesperadas no seio da experiência de uma dita cultura.1 mitindo a eclosão (e não apenas a reunião) de um conjunto de depoimentos que ence- nava uma verdadeira vinda à luz do dia, da hora, do comum, do partilhável um número 1 Faço menção aqui, por exemplo, a hashtag do meu primeiro assédio que acabou per- e uma densidade afetiva expressiva da violência sofrida pela mulher no Brasil.

180 181 É verdade que não me senti convocada a explicitar aqui uma reflexão debruçar de forma mais premente sobre um conjunto de conceitos que sobre a obra de Hélio Oiticica. No entanto, gostaria de abrir essa nota, encenam novos gestos, ou diferentes inflexões diante desse “arquigesto” posto que venho entendendo que Oiticica abraça de modo contundente que é a escrita para as sociedades ocidentais. Com intuito não tanto de dois vértices fundamentais da discussão que aqui engendro. No primeiro engendrar uma reflexão puramente teórica (já disse que esse aparato anda deles, Hélio torna-se um artista fundamental, diria mesmo paradigmático, em mim avariado), mas de esboçar os acoplamentos entre os conceitos e para explicitar a mudança de postura dessa saída do texto em proveito de essa mudança sensorial, sensível, que as experiências estéticas, sobretudo uma escrita banhada por essa cultura – que já era por ele entendida – como a partir da segunda metade do século XX nos deixaram como plataforma performance. Noto, de modo singelo, a relação intrínseca à sua vivência e desafio.A té porque nota-se que se a arte continuou desafiando-se e na Mangueira com essa guinada espacial e performática da Tropicália e do exigindo-se novos comportamentos sensíveis, afinal ninguém aqui ficou parangolé. Antes de serem obras, esses acontecimentos poético-políticos copiando Hélio, Clark, Artaud e outros, o pensamento – que é bem verdade, desejavam incidir e atuar sobre a cidade na qual vivemos. Mas de uma funciona noutra temporalidade – anda por um lado pedindo novas formas forma bastante particular. Esses acontecimentos vinham na construção de existência e por outro resenhando-se a ele mesmo. do projeto de Hélio deslocados da noção de engajamento político que E é nesse sentido que entendo que a saída do mito originário do tex- se esperava – ali ainda – quando a arte se voltava para os modos de vida to – do textocentrismo – terá efeitos absolutamente fundamentais para comum e, sobretudo, para as comunidades carentes e pobres. Mas não germinação de novos modos ou comportamentos do pensamento crítico, foi essa a experiência poético-política proposta por Hélio. Sem encetar ou mesmo daquilo que entendemos ser o pensamento contemporâneo. esse discurso mais claro, que lhe era ofertado, do que significava uma Roland Barthes é, sob esse aspecto, exemplar. Isso porque ele, que iniciou arte engajada, tampouco, por isso, ele ancorou ou deixou que ancorassem sua trajetória intelectual aos trinta e poucos anos, já ali questionando a suas iniciativas no contexto encastelado de piruetas formalistas. Naquele supremacia do pensamento de Jean Paul Sartre através de uma nova noção momento ainda em suspensão, e talvez sem saber, ele abria um conjunto de escrita (no livro O grau zero da escrita3), retoma, na sua maturidade de experiências estético-políticas que operavam essa saída do centralismo crítica, reler a sua visada primeira da questão: do texto, e das noções que o texto sustenta, em proveito dessa escrita do e no mundo, onde as coisas participam inscrevendo-se transitoriamente O primeiro objeto que deparei em um trabalho passado foi a escrita: mas como arte em potencial, mas não necessariamente em obra. entendia então essa palavra em sentido metafórico: para mim, era uma No segundo vértice seria preciso sublinhar a força escriturária pre- variedade do estilo literário, sua versão [...] coletiva, o conjunto dos tra- sente em toda a construção dos projetos artísticos de Hélio. Essa força ços da linguagem por meio dos quais um escritor assume a responsabili- escriturária que perpassa desde a importância da correspondência até a dade histórica de sua forma e se vincula, com seu trabalho verbal, a certa máquina arquivística por ele inventada esboça, muitas vezes, entre um e ideologia da linguagem. (BARTHES, 2004, p. 204-205) outro polo, a sensação de que em proveito do projeto a obra foi abortada. Sobrevivendo num espaço heterotópico, às vezes inacessível, outras vezes Essa “escrita em seu caráter metafórico” e as consequentes análises da impossível como defendeu Frederico Coelho na leitura que fez do livro linguagem que daí derivam será abandonada em proveito, eu diria, de uma existente-inexistente de Oiticica em Nova York.2 vida material da escrita. Mas o que efetivamente estou tentando dizer por Ousaria dizer que seus cadernos, dotados desse fluxo ininterrupto – da vida material da escrita? Ela indica, entre outras, para a potencialidade de própria vida – e ao mesmo tempo de um desejo de organização compulsivo, uma escrita que já não mais se oponha à oralidade. Retirando a linha evolutiva arquivístico, acabam também eles encenando essa espécie de dobra ou que banhava o “aprendizado da escrita” e a subalternização das culturas passagem, esse tempo interrompido entre algo que já não é mais e alguma orais. E ela adensa, em seu caráter material, a sua força gestual e corpórea. coisa que ainda não aconteceu. Rancière, vinte anos depois de Barthes, desenvolve esse mesmo tema, De todo modo, Hélio, assim como Artaud, e outros artistas que serão no já famoso livro Políticas da escrita (1993). Mas o próprio Barthes não aqui mencionados figuram na base dessa reflexão que, por ora, decide se deixa de tirar algumas consequências dessa nova potencialidade: “[...] não

2 coelho, Frederico. Livro ou livro-me. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010. 3 Barthes, R. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

182 183 é necessário fazer a escrita descender da fala (segundo o mito científico foi sendo consolidada do cristianismo à modernidade, para constituição da ‘transcrição’) para nela distinguir as duas coordenadas da linguagem; de epistemes ferozes no que tange à consolidação da escrita como prática o paradigma e o sintagma. A clivagem está alhures: [...] onde se pode de controle do que porventura do corpo desregularia uma assepsia do eu. opor sintagmas lineares (escritas e falas) e sintagmas radiantes [eu diria É nesse sentido, como formulou Artières que “o ato gráfico [passa a ter] rizomáticos] (nas figurações murais, nas da pintura e nas dos quadrinhos)” muitas dimensões no dispositivo disciplinar. Ele é de um lado entendido (BARTHES, 2004, p. 204-205). Eu acrescentaria: em algumas escritas con- como prática, de outro como ferramenta e enfim como produção” (ARTI- temporâneas como veremos mais a frente. ÉRES, p. 320). E assim, “a escrita é elevada ao mesmo nível da marcha; Veja como essa noção de escrita a faz proliferar num curioso paradoxo se faz de sua prática um meio de controle do corpo” (ARTIÉRES, p. 321). que a arrasta num “para fora da linguagem”. Algo dessa vida material e Fica claro que nesse contexto a escrita e, sobretudo, a escrita de cader- “radiante”, como alude Barthes, opõe uma escrita linear (logocêntrica) a nos (nesse dispositivo tanto um quanto outro figuram como ferramentas uma escrita que já não depende da noção de texto e, por conseguinte, não de disciplina do corpo na exigência do aprendizado da língua correta que se opõe mais à oralidade, permitindo um desarranjo anacrônico na leitura é a língua escrita) não poderia ser mais, nesse regime de produção de da história que poderá pensar sob um mesmo plano a pintura nas cavernas, “alunos” e “soldados”, esse registro exterior e heterogêneo que eram os a história em quadrinhos e porque não um conjunto de inscrições sobre os hypomnemata. Ao tornar-se o suporte, por excelência, do adestramento muros das cidades, ou em páginas soltas de um caderno? disciplinar, a começar pela caligrafia, o caderno foi figurando como matéria- Notem desde já que eu não poderei chegar a uma revisão da noção de -prima da disseminação dessa grande marcha que resultou no aprendizado caderno, no que tange a um conjunto de práticas escriturárias contemporâ- do gesto gráfico. neas, sem passar por essa liberação da escrita em relação ao texto. E tudo No entanto, o que venho propondo pensar é que por isso mesmo esse que com ela advém, como, por exemplo, o rompimento com a linearidade, lugar turvo e límbico da matéria primeira foi fazendo com que o caderno tanto narrativa quanto escriturária. Se por um lado esse rompimento apro- deixasse a infância e sobrevivesse às interrogações e dúvidas do adulto xima tais escritas de uma fragmentação de sentido e também da própria escritor, artista, pesquisador, figuras que operaram de modo privilegiado, palavra, ele a aproximará de modo contundente à palavra do desenho, à mas não exclusivo, a permanência dos cadernos entre nós. Em muitos casos letra do traço, à cor do afeto, criando mapas, linhas ou conjuntos antes notamos que os cadernos, em vez de terem deixado a infância figuram de inesperados numa análise em que a primazia do texto salvaguardava de algum modo como esse resíduo resistente, essa infância indomável, aquela modo exclusivo e excludente até mesmo o movimento dos olhos da esquerda que não foi de todo docilizada ou adestrada, uma infância do pensamento para a direita, e a supremacia do sentido intelectivo sobre quaisquer outros e da escrita ainda em nós. sentidos atuantes no corpo receptor ou ledor. Sob esse aspecto, é verdade que valeria notar que apesar de Foucault, É bem verdade que para entendermos a potência geradora dessa revolta na esteira de Blanchot, investir em uma noção sem obra de literatura, no da escrita na cultura ocidental deveremos compreender como ela foi consa- seu caso quando questiona a prática da escrita para a constituição de um grada como ferramenta primordial do adestramento dos corpos nas socie- modo de vida, através da estética da existência ou quando investe em dades ocidentais. É preciso passar pela contribuição de Foucault, e como um conjunto anticanônico de autores literários (Bataille, Sade, Artaud, ele mostrou os cadernos, para além da cultura clássica, consolidando-se Nietzsche), que puseram eles mesmos a literatura e a obra em questão, como dispositivos de constituição de subjetividades, elevados ao patamar não será, no entanto, esse mesmo Foucault quem irá radicalizar em sua da docilização dos corpos, através da educação do ato gráfico da escrita prática escriturária o conjunto de conceitos e saídas que ele vê e aponta e da caligrafia. como um exterior possível do pensamento. Pelo menos até que vejamos Foucault nos fez observar que na passagem dos hypomnemata na cul- nós mesmos os seus cadernos temos de afirmar que a escrita de Foucault tura clássica (“esses cadernos que no sentido técnico [...] [são] livros de continua obedecendo às diretrizes ferozes dessa produção secular de alunos. conta, de registros públicos, ou cadernos individuais servindo à memória Nada contra isso, apenas o traço dessa sintomatologia escriturária, que ... [e que] constituíam uma espécie de memória material das coisas lidas, efetivamente indica a necessidade de saída dessa arborescência textual ouvidas ou pensadas.” (FOUCAULT, D.E. IV, p. 418)) à correspondência ín- e ao mesmo tempo a dificuldade intrínseca, ao menos ao pensamento tima, o que estava em jogo era uma empreitada suficientemente forte, que ocidental, para executá-la. Talvez, se tivermos a chance de ver o conjunto

184 185 inútil, indomável, residual e fragmentário dos seus traços nos seus cader- sobrevivendo em alguma superioridade, mesmo que seja a superioridade nos, das notas do que o seu pensamento não conseguiu desenvolver ou do menor ou a da literatura americana. Mesmo que se entenda que em “pensar” propriamente, dos impasses acerca do que ele mesmo escrevia, sua força de assertiva política tal superioridade é posta pelo filósofo como enfim essa matéria viva da escrita, talvez, aí, reconsideremos o que agora necessidade de destronar a literatura europeia e, em especial, a tradição precisamos ainda aqui afirmar. Que a escrita de Foucault se mantém até beletrista francesa, hoje descontextualizada, continua ela assim sozinha certo ponto intacta aos seus conceitos. investindo no nosso desejo de criação de mitos, assim como nos mitos da Foi preciso, sob esse aspecto, aguardar a radicalização dessa experi- criação. Mesmo que eu possa quiçá ousar dizer que esse ar rarefeito, que ência escriturária do pensamento que aconteceu no encontro de Deleuze salvaguarda certo espaço sagrado do literário, seja uma espécie de afeto e Guattari, sobretudo em Mille-Plateaux. Essa escrita feita de blocos de indomável que cutuca no filósofo o seu desejo de escrita. Da sua própria sensação, ela mesmo uma espécie de prática e de pensamento, nesse escrita. Ele está ali. E nós deveríamos a ele estar atentos. Esse amor à li- esforço por si só radiante, tomado de um furor dionisíaco, que dissipa a teratura, confesso ou não, se por um lado é a força subversiva da filosofia estabilidade de um e outro, aproximando, nesse caso, o pensamento de sua de Deleuze, e de Deleuze-Guattari, é também o elemento conservador, ou vocação propriamente aventureira e poética. No caso específico do campo melhor, conservante das formas literárias, mesmo quando minoradas, que literário, diria que com esses autores, um conjunto estranho de conceitos ali se mantêm. Essa dupla vertente, subversiva e conservante da forma não vai desenhando novo mapa: do menor, da deriva, do devir e das linhas de deve ser vista como erva boa e daninha, mas como indicadores de limites fuga, entre outros. Conceitos práticos que operam como um convite para que ainda pedem para serem explicitados e quiçá expandidos, alargados. sairmos do núcleo: do eu, do si mesmo, da língua, do vivido, do autor em Como já havia observado Artaud, a cultura do livro serve para mantê-los prol dessas zonas do impessoal, do rizoma, do corpo sem órgãos. como sepulcros. Essa caixa fechada que ou deve ser enterrada ou então No entanto, e mesmo aqui, seria preciso também fazer uma inflexão. aberta. Esse gesto, um tanto insolente, que se alastrou seguramente como Isso porque venho entendendo que mesmo em Deleuze e Guattari a radi- gesto escriturário de Deleuze-Guattari merece ainda ser tomado em sua calidade dessa experiência escriturária e conceitual não tenha tido talvez potência de insubordinação, e incluso a eles. tempo (Deleuze disse que não conseguiu escrever o livro que queria com a Um pouco desse gesto e algo dessa hipótese traçaram, mesmo quando literatura) para alterar o estatuto, para modificar a figura mesma do literá- não sabia, a minha retomada da pesquisa sobre cadernos que hoje divido rio. Se a fuga da própria escrita, que juntos eles põem em cena, desesta- em duas linhas. Em uma delas retomo a pesquisa sobre cadernos de artistas biliza o horizonte receptivo dos tradicionais textos ou tratados filosóficos, e escritores que havia iniciado ainda em 1998 quando pesquisei na França a reflexão que empreendem do literário, e nota-se que em muitos casos os cadernos asilares de Antonin Artaud. E sobre essa linha de pesquisa empreende sozinho o próprio Deleuze, mesmo que porte algo dessa litera- venho observando que os cadernos vivem numa espécie de duplicidade, tura em fuga dela mesmo, ainda guarda esses mitos criadores. Altera-se a de espaço entre escrita e corpo, traço e letra, literatura e não literatura, “superioridade” europeia mas se mantém intacto o crivo da superioridade cotidiano e epifania, dentro e fora. Como se os cadernos, que serviram a para a literatura. Os nomes autorais continuam vigorando, não mais como Artaud para sujar a noção edificada de obra ou, como disse o poeta, serviram experiências motoras da escrita literária (avessa, quase que sintomatica- para escrever constantemente “a angústia e a sufocação do pesquisador mente, a qualquer matéria do vivido), mas ali continuam como núcleos no meio e em torno à sua ideia como partes da obra feita” (ARTAUD, 1945), olímpicos, superiores, que engendram, é verdade, a recriação de novas sobrevivessem ainda hoje, e incluso os cadernos dos pesquisadores – e não séries, anticanônicas, mas certamente e ainda produtoras de novos cânones. apenas os dos artistas ou escritores – dessa espécie de gesto que desinte- Como a série do julgamento, a da gagueira, a do comum ou do fraterno, lectualiza a atividade crítica, assim como desidentifica os mitos artísticos: reunidas todas em torno dessas figuras seculares e malditas, ao mesmo a obra, o artista, a arte, deixando-os existir deserdados deles mesmos. tempo. Esse delicado problema tem muitas vezes um efeito extremante Os cadernos nos colocam, nesse sentido, diante de um pensamento perverso na manutenção, no seio do literário, justamente daquilo que os gráfico, um fluxo sem acabamento, sem fim e sem finalidade, e em muitos conceitos por eles forjados buscavam desfazer ou fazer fugir. Um ar rarefeito casos de um fim que vai se cumprir ou se realizar no próprio corpo.4 Apon- em torno dos livros que podem ser considerados literários. Às vezes tão rarefeitos que se tornam impossíveis. Heroicos. Até certo ponto intactos, 4 Faço aqui uma menção às observações da ialorixá Wanda Araújo que aponta para a preg-

186 187 tando para sua vocação performativa, essa escrita um tanto desmembrada do livro é justo aquele que reside nos seus elementos processuais e nos dos cadernos guarda algo de sua proximidade aos corpos que sobre ele seus impasses de construção do pensamento e da obra tanto do artista, desenham ou escrevem. Desde Artaud o interesse da pesquisa recai justo do escritor ou do pesquisador. A tal angústia do pesquisador para falar sobre essas zonas de indeterminação por que passa o texto quando exposto nos termos artaudianos. a esses suportes mais móveis e plásticos. Zonas essas em que muitas vezes Impasses e processos esses que, se vistos a posteriori, podem muitas se observa a passagem veloz entre a visualidade e a plasticidade do traço vezes questionar alguns resultados das obras realizadas, reabrindo-as a ao seu componente propriamente sígnico, outras vezes salta essa potência novas potências inauditas. Por outro lado, se vistos como gesto conco- sonora da letra resistindo à formação de sentido, mas também essa zona mitante e aberto de cada um de nós podem efetivamente transformar o límbica entre o registro íntimo e o impessoal, quase que efetuando uma modo mesmo de construção do nosso pensamento, deslocando aquilo que exposição desses processos de subjetivação e dessubjetivação que muitas ainda a cultura do literário, do autor e do célebre insiste em manter como vezes são escondidos pelos diários, quando os mesmos decidem apenas sendo da égide do segredinho sujo para um lugar diferente de partilha evocar as zonas mais seguras (mesmo quando secretas) de uma constitui- das vulnerabilidades. Partilhar o vulnerável como vetor de força, indepen- ção de si mesmo. Certamente os cadernos de Hélio Oiticica, como os 327 dentemente dos segredos que o forjam, é sim um modo de construção de cadernos de Ricardo Piglia ou os Cadernos de África de Miquel Barcelò, ou outro espaço do comum. Essa é a segunda linha de minha pesquisa sobre os livros-ação de Anselm Kieffer,5 todos muito diferentes em sua natureza, os cadernos. Aquela que busca atualizar esse conjunto de interrogações agregam todos eles esse gesto de uma escrita insubordinada ao texto, históricas e estéticas, como as que vimos até aqui explanando, acerca da criadora de novas zonas e derivas que acabam por nos fazer questionar escrita, da saída do texto, da prática da escrita de caderno como criação dois grandes assentos constelares à cultura do livro-sepulcro, como diria de zonas de exterioridade ao literário, que podem efetivamente ajudar a Artaud, são eles: o arquivo e o publicável. pensar relações micropolíticas do contemporâneo. Que nuance as deter- Do arquivo, os cadernos questionam a sua natureza inacessível e privada, minações já caquéticas ou mesmo noções extremamente domadas pelas obrigando aos experimentadores de escritas e pesquisadores contemporâ- garras do bipoder nas sociedades contemporâneas6 com as quais vimos neos a tarefa de forjarem a produção de novos arquivos e ao mesmo tempo dividindo o mundo. Vejam que essa partilha – que pode se dar pelo limite de resistirem a todo e qualquer movimento de sua decifração (falarei sobre do que é ou não publicável – acaba tendo efeitos sobre os assentos que isso quando em seguida abordar a segunda linha dessa pesquisa). Nesse delimitam o que é subjetivo e o que não é. Isso acaba operando sobre sentido, vale de novo dizer, a importância do gesto de Hélio, à época um essa linha tênue que desvaloriza o subjetivo em prol de um objetivo tal e tanto exótica, mas que figura hoje como criação dessa ficção arquivística, qual, ou apenas permite o subjetivo como reino dos segredos e revelações. ou mesmo desse arquivo como ficção que me parece ainda salutar para Fruto podre das sociedades de controle. Sorria você está sendo filmado. ser retomado, e sobretudo no Brasil. Da publicação, a existência dos ca- O que estou dizendo é um pouco diferente. E nos obriga justo a rever os dernos vem questionar, por um lado, os conceitos que tentaram domar os modos de partilha que estão determinando essas zonas, assim como os cadernos quando eles passavam dos regimes “privados” dos arquivos para comportamentos que lhes estão sendo atribuídos. o regime público das publicações. Isso diz respeito sobretudo aos concei- Por isso mesmo, para essa segunda linha da pesquisa se torna impor- tos de diário no campo literário e de livro de artista no campo das artes tante buscar nuances que diferenciem o caderno do livro de artista (essa plásticas e visuais. Tais conceitos acabam por rasurar ou borrar aquilo que mesma uma noção complexa e instável), tanto quanto da forma diário, pela residiria como resto primordial da experiência de escrita de cadernos. Isso necessidade de deflagrar um conjunto singular que delimite e construa porque o deslocamento radical que impõe o caderno da matéria acabada esse objeto, permitindo um olhar que assegure a possibilidade de novas leituras e, por conseguinte, de novas edições. É importante notar que o conceito de livro de artista (que por um lado amplia ou torna rara a forma nância da escrita dos cadernos como prática ancestral no candomblé, mantendo ali, livro, através de procedimentos que fazem dele um objeto, uma escultura entre muitas outras questões, a presença dessa escrita performativa do canto, das ervas e mesmo do oráculo que só se efetua quando se cumpre sobre o corpo do consultante. 5 todos esses autores vêm sendo contemplados na minha pesquisa atual sobre cader- 6 tais como sucesso como competição indiscriminada, afeto como franqueza, e aneste- nos. Sobre eles venho escrevendo em textos ainda inéditos ou em produção gráfica. sia como força.

188 189 ou uma artesania sofisticada de edição numerada) depende do conceito coisas: 1) não separar tanto a minha prática crítica da minha escrita de poe- não ampliado de livro ou mesmo de obra, enquanto que o caderno pode mas, ficções e outras coisas; 2) não consolidar o curso como espaço apenas questioná-los – por exemplo, quando pergunta sobre o conceito de escrita de leitura e apresentação de textos, deixando que algo outro ali também no Ocidente (desde código, natureza, norma, forma, função e uso), ou pudesse se passar; 3) que eu não apartasse a minha formação clínica (há quando, fazendo sair a escrita de si mesma, exige que ela se perfaça em sua tantos anos abandonada como prática) da minha escuta crítica. Tudo isso força de endereçamento ou de presença que, por sua vez, dilui a noção de um tanto gerado no seio de uma crise consistente com a universidade e obra. Se o caderno formula essas perguntas iniciais, esse bê-á-bá na sua suas práticas, e também com a consciência de um tanto que me foi tolhido, relação corpórea com a escrita, é porque ele retém em sua materialidade por mim e alguns outros, ao longo da construção de minha séria trajetória a necessidade de relação com o mundo e com o próprio corpo de quem acadêmica. Era óbvio que com esses ingredientes algo em meio ao meu “escreve”. Essa relação com o corpo e o mundo é, por um lado, uma maneira exercício crítico pedia passagem e ar. Decidi, portanto, nesse curso, efetuar de apropriação dos meios de produção e veiculação das escritas. Vejam um pequeno conjunto heterogêneo de ações, tais como falas-performances por aí como proliferam grupos, coletivos de escrita conjunta e em muitos minhas em lugar de aulas, conversas com artistas e escritores sobre seus deles feituras de cadernos artesanais, fichários e outras formas alternativas projetos não realizados ou ainda em processo, e feitura de cadernos de de registro e de “publicação”. Há algo nesse sentido que dá ao caderno pesquisa, que foram sendo vistos por mim e pela turma ao longo do curso, uma feição muito atual e distante do velho manuscrito do escritor solitário. em vez da entrega da monografia final. Esses cadernos hoje entendem o nosso precário e atuam sobre ele, Desse curso resultou a exposição e o seminário Cadernos do Corpo criando modos de resistência, obviamente efêmeras, na circulação da cultura no CCJF, e essa cartografia de linhas de força (anexo) com as quais venho contemporânea. Em um país como o Brasil, onde o monopólio midiático é trabalhando e que recolocaram um conjunto de novas questões à pesquisa instituído e ao mesmo tempo é muito simbólico, dada a aldeia global em sobre alguns cadernos de autores que venho consultando. Nesse mapa que vivemos, essa produção e circulação outra é um fato relevante. estão todos, vivos ou mortos, conhecidos ou desconhecidos, publicados Também essa relação com o mundo que propõe o caderno, e nesse ou inéditos. Esse gesto vem obviamente pedindo passagem para um desejo sentido ele ainda porta algo de sua “antiguidade”, diz respeito à artesania de abertura e democratização dos meios de produção e não somente de que o envolve e que, como sabemos, alude à materialidade da escrita, à recepção e acesso à cultura, como muito se pensou até agora. Tudo isso escrita como um modo de fazer e não apenas de dizer. No entanto, e essa muito singelo e frágil. Larvar e transitório. Tal como vimos entendendo que é a atualidade que aqui sublinho, essa artesania hoje vem permitindo que a escrita é, quando aberto o sepulcro fechado do livro. algumas experiências com cadernos não digam mais respeito à forma clássica É bem verdade que com esse caminho tortuoso, aparentemente, não (ela mesma determinada e determinante da forma livro) e destinem-se à sua voltei ao mito da criação. Sublinho apenas que a literatura, reino do texto, é saída do papel, à experimentação material da escrita, que pode assumir em desterritorializada pela escrita que, por sua vez, é desterritorializada pelos muitos desses casos a materialidade do próprio corpo, fazendo com que a suportes, esses mesmos já não tão passivos, e incluso quando anacrônicos noção de escrita apareça já banhada por esse universo pós-performativo como mostram ser os cadernos, acabam por deslocar o mito da criação de de que falei no início. toda e qualquer origem e centro para essas práticas e experimentações Todas essas indicações só se tornaram mais palpáveis porque decidi descentradas, que atuam como gestos inconclusos ou até mesmo involu- – o que acabou deflagrando a segunda linha dessa pesquisa atual sobre tivos, arrastando-nos para algo às vezes um tanto selvagem, mas também cadernos – olhar para os meus próprios cadernos e, ao mesmo tempo, tático, local, comum e aberto, quiçá por vir. Ou como disse Sophia de Mello construir uma estratégia para fabricar experiências de escritas e pesquisas Breyner Andersen: com cadernos. Não no seu sentido artesanal, mas em sua potência escri- Estilo manuelino turária, como suporte a ser pensado em sua forma e percurso. Não a nave romântica onde a regra Esse vértice da pesquisa se deu inicialmente como acontecimento, com Da semente sobe da terra sua dose própria de inesperado, mas também de inevitabilidade. Em 2015, Nem o fuste de espiga ofereci na pós-graduação, onde leciono há onze anos, de Literatura Cultura Da coluna grega e Contemporaneidade da PUC-Rio um curso no qual havia decidido algumas Mas a flor dos encontros que a errância Em sua deriva agrega.

190 191 Anexo Referências

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194 195 Hélio’cubrações em torno do diagrama André Vallias Poeta, designer gráfico e produtor de mídia interativa

Tem-se inversões de palavras na oração. Porém maior e bem mais eficaz deverá ser a inversão mesma das orações. A colocação lógica das orações, onde a causa (da oração principal) é sucedida pela ação, a ação pelo fim, o fim pelo objetivo, e onde as orações subordinadas vão se encadeando à principal a qual imediatamente se referem — é certamente ao poeta de quase ou nenhuma utilidade. Hölderlin

onde se lê hagoromo, leia-se parangolé Haroldo de Campos

singultâneo Hélio Oiticica

196 197 198 199 200 201 31

202 203 Éden é o mundo. Só têm razão de existir os inventores Rafael Zacca Não vestirei o falso parangolé das palavras agradáveis e confortáveis que Poeta, crítico e mestre nos fariam ter aqui qualquer sensação de união em torno de um símbolo-pai em filosofia pela UFF comum. Se não posso ter os panos agora e dançar, não vou fingir. Gostaria apenas de ter comigo um dos princípios do parangolé, que foi definido por Hélio Oiticica, em 1972 (está lá no conglomerado new yorkaises), como “programa do circunstancial”. Programa do circunstancial. E, para um moleque do Méier, que transitou sua infância e adolescência entre os bairros de Madureira, Vila Valqueire, Cascadura, Sulacap, Realengo, Bangu, Senador Camará, Engenho Novo, Engenho de Dentro, Água Santa, para esse garoto só seria possível acessar e conversar com o Hélio e o tema da criação a partir de uma desorientação fundamental. E é sempre alguém que está desorientado. Vamos falar de Hélio Oiticica, alguém para quem, desde os primeiros escritos de que temos notícia, a cor foi uma questão central. Tento voltar às obras com o Grupo Frente, aos Metaesquemas, aos Bólides... Não é fácil, realmente, não é nem um pouco conveniente ter apenas os meus olhos daltônicos para levar adiante minha tarefa. Programa do circunstancial. Poderia então elencar algumas definições clássicas e contemporâneas acerca do tema da criação. Uma vez que sou ligado à atividade poética, poderia recorrer a sentenças de poetas e escritores do nosso maior interes- se. À de Sophia de Mello Breyner, por exemplo, que disse: “Como Antígona a poesia do nosso tempo diz: ‘Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres’”. À de um personagem de Miguel de Cervantes, Periandro, por exemplo, que afirmou que “o ano que é farto em poesia costuma ser o mesmo em fome.” Ou ainda à célebre definição de Oswald, por exemplo:

205 “Aprendi com meu filho de 10 anos que poesia é o descobrimento das coi- tidos, conhecidos pela inteligência, para que ela esteja pura como ação, sas que nunca vira antes.” Com essas assertivas, poderia depois recorrer metafísica mesmo. Estranha metafísica, a do jovem Hélio, que se “ativa” aos escritos de Hélio sobre o novo, seus diálogos diretos ou indiretos com de dentro para fora! Lygia, com Pound, com os irmãos Campos. Seria talvez um caminho mais Para um daltônico, a temporalidade aberta por Oiticica no centro da direto, correto, ou algo que o valha. cor, revelando alguma coisa além de seu pigmento, além de suas ondas, É outra coisa, no entanto, que me chama a atenção. Leio o que Mário inaugura uma possibilidade. Uma nova imanência, uma nova circunstância. Pedrosa escreve em 1965, a propósito de uma estranha simbiose do extremo A cor pode ser alguma outra coisa ou cor. Isto é, surge aqui a chance de que em Hélio: de um “inconformismo estético, pecado luciferiano” e de um “in- a cor seja sempre nova. Nesse sentido, todos são daltônicos, colorblind – conformismo social, pecado individual”. Para o crítico, essa fusão de beleza, ou não existe daltônico algum. A cor, de todo modo, não está mais dada, pecado e revolta resulta em uma espécie de “inconformismo absoluto”. não é mais um fato consumado. Ela se converte em tarefa. Um poema de Heyk Pimenta: Programa do circunstancial. Um ano depois, Hélio anotaria: “Quanto mais não objetiva é a arte, mais Todas as pessoas que conheço tende à negação do mundo para a afirmação de outro mundo. [...] O que querem é preciso é que o mundo seja um mundo do homem e não um mundo do ou vão querer mundo.” Inconformismo absoluto. “Se querem antecedentes, talvez este ser seja um”, disse Mário Pedrosa, “Hélio é neto de anarquista”. incendiárias O desinteresse pelo que está dado, e o crescente interesse pelas pos- sibilidades levam Hélio a se distanciar do objeto estático (que nunca foi Mesmo as que só querem realmente estático diante de seus olhos temporais) e a se aproximar cada queimar o vizinho vez mais do corpo. Não do seu próprio, nem de seus espectadores; mas de têm como ninguém um corpo qualquer, um corpo que ele ansiava emergir experimentalmente um plano ideal de suas proposições. para o mundo Com a montagem de Éden, uma década depois da concepção da cor- -tempo, surge o conceito de “crelazer” que deu a imagem desse corpo sei de quem junte dinheiro iminente sob o signo do lazer-prazer-fazer. O Éden, de 1969, era composto e estoque querosene em casa por: penetráveis que convidavam à experiência sensorial com a água, a areia, as folhas, as pedras, a música; bólides preenchidos por pessoas Conhecemos as insatisfações mais aparentes de Hélio: sua vontade (não mais por cores); um palco para a performance coletiva de uma vida de recolocação do problema do marginal na sociedade (uma vontade de experimental; e um conjunto de ninhos, convidando ao ócio. Um projeto justiça); seu protesto contra a caretice do cenário artístico nacional; sua para novas convivências. Segundo Hélio, ao fim de sua própria descrição revisitação constante às próprias produções; sua acumulação de textos e de Éden, erguiam-se ali “bolhas de possibilidade – o sonho de uma nova áudios que parecem ressoar as palavras de Murilo Mendes sobre a inter- vida, que se pode alternar entre o autofundar [...] e o supraformar [...], venção que realizou nos próprios poemas em sua poesia reunida: “não sou onde a ideia de Crelazer promete erguer um mundo onde eu, você, nós, meu sobrevivente, mas sim meu contemporâneo.” Waly Salomão ressaltou cada qual é a célula-mater.” esse páthos convertido em éthos em Hélio Oiticica com as palavras que Programa do circunstancial. podemos ler no parangolé p15 capa11: “incorporo a revolta”. Todos esses Que é o artista em Hélio Oiticica? Não é tanto aquele que ergue uma são exemplos posteriores a 1960. obra, quanto aquele que possibilita uma abertura nas coisas, naquilo que Gostaria de voltar a 1959. Leio Hélio escrever (está lá no Aspiro ao está dado como certo, acabado. É, no fundo, alguma coisa muito mais grande labirinto): A cor Metafísica (cor-tempo) é essencialmente ativa no modesta, e um tanto mais ousada, que o criador: um possibilitador. O que sentido de dentro pra fora, é temporal, por excelência. [...] Quando reúno, ele possibilita é não o novo em si, mas a emergência do criador em cada portanto, a cor na luz não é para abstraí-la e sim para despi-la dos sen- um dos envolvidos. Mais que a mera substituição da figura do espectador

206 207 pela do participador, as ações de Hélio engendram a figura do operador, O que estou propondo agora é que aquilo que desde o início foi funda- localizado no centro da própria obra. Ora, enquanto o participador toma mental nas obras de Hélio e que nos trouxe até aqui, hoje, para conversar, parte no processo artístico proposto, o operador penetra a máquina com a isto é, que o seu inconformismo, convertido em pedagogia, em seus últimos qual convive. Pensemos no parangolé: não apenas se participa da dança; trabalhos, nos sugere que a radicalização de suas proposições exige a socia- veste-se o parangolé. O que se dá é a chance de um aprendizado. lização dos meios de produção artísticos, que talvez se tornem, gradualmen- Chamemos isso de uma pedagogia do inconformismo. A recusa do que te, mais importantes do que as poucas obras que terminemos por deixar. está acabado e a procura da “bolha de possibilidades” como promessa das Haroldo de Campos sonhava com um laboratório de textos. Penso em delícias do Éden. “Só têm razão de existir os inventores”, nos disse Hélio. fábricas geridas pelos trabalhadores, penso na reforma agrária, na ex- Estamos agora em nova posição para compreender essa sentença. Ela diz propriação dos meios de produção, e na sua socialização. Penso em tudo respeito não apenas a uma avaliação de Oiticica acerca do valor da vida isso analogicamente, claro, mas não apenas. Vamos falar, por enquanto, como imitação versus vida como criação. Trata-se de algo maior: a própria de relações artísticas de produção. Uma amiga, em uma das oficinas que razão da existência é colocada em função da possibilidade de criação que ministrei aqui no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, travou a mão, nos foi dada a cada um. O artista como propositor; o espectador como parecia não querer ou poder tentar o poema. De tudo, guardou a sentença: operador – só têm razão de existir os inventores. “não me faltam ideias, me faltam palavras”. Desde então temos pensado Penso no que disse Walter Benjamin na década de 1930: muito na presença do material. Falta o material a muita gente. Mas não apenas: faltam as forças produtivas, de onde pode, realmente, emergir o Um escritor que não ensina outros escritores não ensina ninguém. O cará- páthos criador em cada um. ter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve O campo experimental da arte, no formato das oficinas, por exemplo, orientar outros produtores em sua produção e, em segundo lugar, precisa tem a chance de se tornar um laboratório para novas vivências. colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. Esse aparelho é Programa do circunstancial. tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera da produção, ou Penso na última oficina que ministramos aqui no centro. Envolvia a seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores busca por novas corporalidades, a partir de uma discussão acerca dos os leitores ou espectadores. animais e de um possível embichamento. Os operadores e as operadoras terminaram a aula tendo de resolver pequenas missões, como: “você é O primeiro livro a que tive acesso, depois da Bíblia (os livros da escola um pássaro de olhos furados, você ouve a gaiola abrir, se vira”; “você é não contam, eu sempre colei nas provas de literatura), foi O livro de ouro uma formiga e conspira comer Madureira, se vira”; “você é um boi, você da mitologia. Por causa dos Cavaleiros do zodíaco. Do livro roubei meu é mais forte que o boiadeiro, mas a burocracia não tarda, se vira”; “você primeiro poema; uma cópia para impressionar a namorada, também exilada é um cachorro rebocado na parede, é lua cheia, se vira”. Menos do que das estantes. Não me lembro de sua reação ao ver seu nome figurar ao lado os produtos em si, importam aí as bolhas de possibilidade abertas pelas de epítetos greco-romanos. Alguns anos depois, li biografias que contavam proposições e pelas soluções encontradas. sobre como poetas liam Rimbaud aos 13 anos, e filósofos participavam de No entanto, falar em programa do circunstancial, para mim, é também grupos de estudo de Kant aos 14. Ubiratan, ex-aluno meu no Estado do Rio falar nessa redistribuição dos meios para as zonas que estão afastadas do de Janeiro, em Irajá, afeito ao grotesco e à profusão dos detalhes, teria, modo de produção artístico, como muitos dos bairros chamados Jardim do uma vez dada a oportunidade, gostado do Inferno de Dante? Das algara- Éden pelo Brasil. A sentença “só tem razão de existir os inventores” é possível vias de Waly Salomão? Teria concordado com Auerbach sobre o legado com uma pedagogia da autonomia também no campo artístico e, para falar realista do cristianismo? E Geise, negra, lésbica, forte, e extremamente com , isso virá menos de uma transmissão de conhecimentos sentimental, teria lido Sapho com entusiasmo? Teria gostado das traduções que de uma facilitação por parte de artistas, educadores, editores, e toda experimentais para o inglês e para a linguagem dos subterrâneos da autora a sorte de entidades da prática criativa. Para isso, o ambiente precisa ser grega feitas por Anne Carson? criado de maneira análoga (com relação não tanto a sua aparência, mas a seu motor) a programas de artistas como Hélio Oiticica.

208 209 Éden é o mundo, e o ensinamento de Hélio talvez seja que o jardim das delícias vem com a criação de autonomia, onde possam surgir não apenas a “bolha de possibilidades”, mas o campo experimental. E é por isso que agora estamos aptos a agradecer de verdade à produção deste seminário, Bárbara, Giuseppe, Izabela, Lucas, Rodrigo, ao pessoal geralmente anô- nimo da fotografia, da limpeza, das tarefas técnicas de som e iluminação, da segurança, da portaria, e tudo o mais, que possibilitam algum grau de abertura nisso tudo. E contra a Prefeitura, dentro da qual este seminário e eu, de alguma forma, contraditoriamente, falamos – contra a política de remoções, contra a gentrificação galopante, contra os incontáveis crimes de Estado e contra a impossibilidade da vida e do novo que tem rolado pelo Rio de Janeiro, o mínimo que posso fazer é responder com mais um trecho do poema de Heyk Pimenta, que nos lembra de que só tem razão de existir os incendiários:

Todas as pessoas que conheço querem ou vão querer ser incendiárias

a maioria quer nisso um jeito de quebrar os relógios

210 211 Hélio Oiticica: exercícios de autoconstrução de si como artista É fundamental que se compreenda a vida de um artista como plural – não apenas no sentido em que a cada minuto somos sempre muitos, sob o impacto dos afazeres diários, quando para cada novo papel desenvolvemos Ricardo Basbaum personagens variados (para o trabalho, a família, a relação amorosa, o Artista e professor-pesquisador Estado, etc.), cada qual em sua performance – mas que, a partir da intensi- do Instituto de Artes da Uerj dade de uma vida de invenções incessantes, ou seja, sob o jogo de afinar as vibrações do desejo com os malabarismos de uma fina recepção, as avenidas que se abrem, incessantemente, seriam aquelas de uma contínua reinven- ção de si, a reorganizar-se continuamente sob pressão, em fuga de uma localização estável e impermeável ao entorno. Para o personagem artista, é fundamental o contato com aquele campo social de afetos e forças que legitimam seus gestos, oferecendo-os à negociação coletiva da produção de sentido. Talvez, um nome emblemático para se pensar tal conjunto de questões seja Hélio Oiticica, homenageado neste evento (sem esquecer da epígrafe cravada por seu grande amigo Waly Salomão, citando Maurice Merleau-Ponty: […] toute commémoration est aussi trahison […]1), artista que todos admiramos e celebramos, mas que por circunstâncias trágicas se foi muito jovem, sem que tenha tido oportunidade de se defrontar com o mundo do final do século XX, que iria adorá-lo e amplificá-lo, mas também – por que não? – traí-lo, instrumentalizá-lo. Sua obra-problema, fascinante, está em nossas mãos – de todos nós, aventureiros-intérpretes- -vocalizadores-escritores, usuários de sua caixa de ferramentas. “Como ativá-lo, hoje?” – é a questão que percorre qualquer um em contato com sua obra. Pois que a vida de HO está marcada por um incessante processo de reinvenção de si, tecido em paralelo com os avanços e desdobramen-

1 salomão, Waly. Hommage. In: Hélio Oiticica. Paris: Jeu de Paume, 1992, p. 240-245.

213 tos de sua pesquisa. Diferentes Hélios se reorganizam a cada período de O forte desejo e ambição de HO de intervir nos rumos do debate artísti- mutação do trabalho, não apenas indicando as reestruturações que o avanço co, político e cultural de sua época, deixando sua marca por onde passou, da pesquisa produz em seu corpo – todo artista sabe que é preciso estar nunca recuou frente a esse duplo desafio – produzir a obra e produzir-se a na escala correta para assimilar cada nova transformação do trabalho –, si próprio, colocar-se no mesmo furacão dos problemas produzidos, deixar- mas também sinalizando mutações no quadro geral em que sua produção -se atravessar pelas forças da tarefa coletiva da transfiguração dos valores se situava a cada momento, isto é, negociando diferentes posições diante de uma comunidade –; não é simples a tarefa generosa de se colocar sob de sua comunidade de recepção e interlocução, seja o círculo de atuação, tal disponibilidade. Não se trata de ver em Oiticica um iconoclasta maior, seja o circuito de arte em estruturações variadas, em diferentes geografias em potência elevada (como, por exemplo, Marcel Duchamp percebia a econômicas e culturais. Não se pode esquecer que o caminho para tal in- si próprio, através de um dos índices de sentido do período moderno, vestigação é aquele das exterioridades – não interessa aqui qualquer viés enquanto fidelidade à liberdade interior do indivíduo livre), mas perceber de análise psicológico-interiorizante (a patética imagem de HO no divã); o em sua aventura de vida uma espécie de exteriorização absoluta, em grau interessante será perceber também, de modo invertido, como HO é constru- quase máximo (tão perto do sol quanto foi possível ali, naquele momento ído pelas forças de um ambiente diante do qual se esforça por se integrar, e circunstância), levando-o a reconfigurar-se em linha com a margem de mesmo se em suas linhas de fuga, linhas-limite indicadoras das bordas de fuga dos acontecimentos do presente máximo de seu tempo, na ânsia de um circuito artístico-cultural no qual – que fique claro – se quer intervir e não apenas acompanhar a dinâmica dos fatos mas estar – em tremendo não permanecer como partícula predeterminada, estável e já composta. esforço contínuo de superação – sempre convincentemente à frente. Que Afinal, podemos considerar (lembrando de O anti-Édipo, publicado em fique claro: não no pelotão de combate típico da vanguarda histórica, 1972, quando HO está em sua temporada nova-iorquina) que mas nas camadas mais ativas e sensíveis de uma pele coletiva aguçada, lançando-se corajosamente ao entorno – é ali que esse agente hiperintenso o sujeito [é] produzido como resíduo ao lado da máquina, apêndice ou buscava se posicionar. Hélio Oiticica como o artista prototípico de uma peça adjacente à máquina [...]. Ele não está no centro, ocupado pela má- prática radical de manobras coletivas, em que sua pele hipertrofiada se quina, mas na borda, sem identidade fixa, sempre descentrado, concluído confunde com – de fato compõe com – as áreas mais sensíveis do tecido a partir dos estados pelos quais passa [...] o sujeito nasce de cada estado coletivo sociopolítico. A imagem aqui poderia se aproximar do Divisor (1968) da série, [...] todos esses estados [...] o fazem nascer e renascer (o estado de Lygia Pape, mas de figuração menos homogeneizante, eventualmente vivido é primeiro em relação ao sujeito que o vive).2 utilizando múltiplos tecidos, materiais e texturas, como os parangolés: rede coletiva compondo imensa superfície ou pele (“o mais profundo…”), Nessa configuração, há órgão coletivo hipersensível: esse era HO, um indivíduo como pura estesia e êxtase, isto é, aguçamento que aciona o gatilho da ação conjunta ao a dupla tarefa de construção de uma obra e, junto a ela, a autoprodução mínimo ativamento. Supra. de um autor, como forma residual contingente, resultante da encenação A tarefa de uma “hermenêutica do artista”4 (em direta paráfrase da da prática artística, componente de sua estratégia. [...] No sistema de expressão foucaultiana “hermenêutica do sujeito”) seria aquela da inves- funcionamento característico da arte contemporânea, vemos que a fun- tigação do processo de construir-se a si mesmo como tal agente peculiar ção-autor só pode legitimar-se a partir de uma identidade processual, que de intervenção político-social, ao mesmo tempo entidade autoral singular incorpore o efeito da obra também sobre si, num caminho aberto de auto- e polo de enunciação coletivo – alguém que “experimenta e administra um diferenciação permanente.3 ‘intervalo’ entre a ‘construção de si’ e a ‘construção de si como artista’” e compreende sua prática como modo de percorrer a linha-limite entre “a produção de um sujeito coletivo [e] em deixar-se ser constituído através 2 deleuZE, Gilles e GUATTARI, Félix O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de de uma alteridade social e seus jogos de legitimação da figura do artista”, Janeiro: Imago, 1976, p. 36-37. Grifo nosso. 3 BASBAUM, Ricardo. Performance: a questão da autoria. In: TEIXEIRA, João Gabriel (org.). Performáticos, performance e sociedade, Brasília: Universidade de Brasília, 4 ricardo Basbaum. “Hermenêutica do artista”, curso de pós-graduação, PPGARTES, Ins- 1996, p. 47-51. tituto de Artes, Uerj. 2014. Esta e as próximas passagens.

214 215 isto é, reconhecendo o conflito entre o artista “que se é ou se quer ser” No percurso da intensa e falsamente breve vida de Hélio Oiticica (que e aquele formalizado e constituído pelos mecanismos de regulação so- não se veja aqui o desenvolvimentismo de JK – 50 anos em 5 – ocorrido nos cial comprometidos com a governabilidade e normatização das práticas tempos do seminal período concreto-neoconcreto como paradigmático do artístico-culturais – é claro que HO permanentemente aprofundou e ten- esforço produtivo do artista: este foi muito mais intenso, veloz e múltiplo), sionou as convergências e divergências entre essas demandas, elaborando suas muitas vidas configuram interessantes percursos: em uma rápida uma imagem do artista sempre a explorar os limites da territorialidade visada pode-se perceber ao menos quatro Hélios: (1) HO neoconcreto, disponível. Deve ser notada a precisão de Deleuze e Guattari na elabora- forjado em ambiente de intenso debate cultural e confronto teórico, sob a ção dessa questão (e aqui o “escritor” dos autores franceses se torna o perspectiva histórica do artista de vanguarda como parte do cânon euro- “artista”), quando afirmam que – quando politizamos e desnaturalizamos peu moderno de superar historicamente o movimento anterior – trata-se tais práticas produtivas enunciativas e sensorializantes – “as condições de artista universalista, que acredita em uma racionalidade técnica e um de uma enunciação individual” não podem ser separadas “da enunciação idealismo da forma, que se organiza com um futuro aberto e emancipador; coletiva”, uma vez que “tudo toma valor coletivo”, pois (2) HO pós-Mangueira, buscando a diferença cultural, politizado a partir da desigualdade social, enfrentando os limites de seu próprio círculo social, o que o [artista] diz sozinho já constitui uma ação comum, e o que ele que busca romper e ampliar, recartografando a geografia de seu fazer e diz ou faz é necessariamente político, mesmo que os outros não estejam existir, articulando outra rede de relações afetivo-intelectuais e operando de acordo. O campo político contaminou todo o enunciado. [...] [S]e o uma teoria da marginalidade que lhe permite ativar as bordas de contato [artista] está à margem ou apartado de sua comunidade frágil, essa situa- entre áreas de profundo contraste e desidealizando, desse modo, suas ção o coloca ainda mais em condição de exprimir uma outra comunidade questões teóricas que agora são trazidas para a escala do corpo e da cidade, potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra das ações de relacionamento e de vivência comunitária; (3) HO pós-White- sensibilidade.5 chapel, percebendo-se em proximidade das ferramentas de comunicação que o tornam cidadão do mundo, ciente da internacionalização de suas Ou seja, “Não há sujeitos, há apenas agenciamentos coletivos de questões, que agora derivam em escala continental-planetária, fortemente enunciação”6 – quer dizer, interessa-nos perceber que HOs emergem em desidealizadas mas intensamente políticas, no embalo dos problemas de suas múltiplas formações, consideradas para além da simples individuação uma sensorialidade corporal urbana não regional; (4) HO em Nova York, iconoclasta, em direção às singularidades transindividuais que o artista se em proximidade ao núcleo de poder econômico do planeta, embora se permite compor em sua errância coletiva, seja junto a sua comunidade de posicionando de modo consciente nas bordas de um circuito de arte cujos amigos e afetos interlocutores, seja em suas articulações com o sistema jogos de legitimação rejeita, a favor de uma vida de intensificação afetiva de arte e seus agentes (ainda que, como veremos, não é exatamente em e sensorial, com ativação de uma (complexa) política da sexualidade e da torno de um circuito de arte formalizado que HO se move, mesmo que economia da droga, em meio a uma forte produção literária, com desdobra- esse lá esteja hiperpresente em suas irradiações). Reconhecer o desejo e mentos fotográficos, cinematográficos e arquitetônicos. É claro que HO 1, a tarefa de reconstruir-se, reinventar-se, seria, de fato, atentar para um 2, 3 e 4 não são excludentes7 nem se organizam de forma linear e evolutiva, processo coletivo em que sujeitos e corpos se lançam uns contra os outros, mas constituem etapas na complexa construção de si e desenvolvimento uns com os outros, em desejo de tocar-se em involuntária e involucrada como artista e intelectual que nunca abriu mão de um estar no mundo em coreografia coletiva – e é significativa a compreensão de que a obra de friccionamento permanente contra o anestesiamento e o hábito, atento arte (materializada, desmaterializada, formal, informe, etc.) atua de modo a um produtivo re-des-construir-se incessante – ser conforme um desejo decisivo como deflagradora e mediadora de tal processo. de produção; que mais pode se querer de um artista, de um intelectual?

5 deleuZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é uma literatura menor? In: Kafka: por uma 7 “Na minha opinião, quem não sabe relacionar as Cosmococas com a fase neoconcreta literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 37-38. de Oiticica não entendeu nem uma, nem outra”. CRUZ, Max Jorge Hinderer. A prima 6 deleuZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é uma literatura menor? Op. cit., p. 38. Grifo do Hélio, a pemba da marginália, o pó da boemia: anotações – inside the Héliocopter. dos autores. Tatuí 13, Recife, julho 2012, p. 96.

216 217 Na tríplice apresentação do livro Aspiro ao grande labirinto,8 ocupando ativada pela presença aparentemente atravessada de uma “modernidade introdução, texto histórico de apresentação e orelhas, Luciano Figueiredo, ‘fora de lugar’ na medida em que o modernismo ocorre no Brasil sem Mário Pedrosa e Frederico Morais trazem HO como “teórico”, “pensador modernização”:14 ativista”9 (Figueiredo), “adolescente aristocrático” que (ao integrar-se à Mangueira) “deixa sua torre de marfim” e cujo “radical refinamento esté- No Brasil, bem como na Argentina ou no México, o modernismo não foi, tico” em simbiose com um “extremo radicalismo psíquico” construiu uma como na Europa, um desenvolvimento simbólico forjado sobre as mesmas posição de “inconformismo absoluto” (Pedrosa);10 “teórico brilhante”, “um e variadas mudanças perceptivas e materiais de uma sociedade em que dos maiores inventores do mundo”, realizador através da obra da “teoria as noções de tempo e espaço, bem como as noções sociais de divisão de de uma marginalidade radical” (Morais).11 HO desenvolveu uma máquina trabalho, alteravam-se conforme o avanço do moderno capitalismo indus- de guerra “contra toda forma de opressão, fosse ela intelectual, estética, trial europeu e, portanto, conforme a respectiva formação de um público metafísica e principalmente social”,12 combatente que poderia ter sido burguês específico. O exemplo cultural do modernismo brasileiro e latino- identificado por Michel Foucault como aquele engajado pelo “banimento de -americano, para o azar de certas teorias, não pode ser avaliado como todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos envolvem e mero reflexo de nossas condições socioeconômicas.15 nos esmagam, até as formas miúdas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas”, trazendo o combate de uma vida inteira do artista para Não se trata de uma luta pessoal de HO, o esforço em situar suas o campo dos embates ético-políticos, por “um estilo de vida, um modo de pesquisas avançadas dos anos 1950 em terreno local consistente, fugindo pensamento e de vida”, combinando ars erotica, ars theoretica e ars politica de certo mal-estar aristocrático: é nessa mesma direção que caminha- como modos de “[introdução] do desejo no pensamento, no discurso, na ram as manifestações concretas e neoconcretas, buscando demarcar ação” intensificando o “processo de reversão da ordem estabelecida”.13 local desviante próprio para suas ações, mas ainda dentro da genealogia Assim, como eixo principal do esforço de complexificação constante, em modernista eurocêntrica – os agentes tanto de um lado quanto do outro fabuloso trabalho incessante de manter-se aberto e em disponibilidade dessa luxuosa contenda foram incrivelmente bem-sucedidos (se mirarmos para a vida e suas lutas cotidianas, brilha Hélio Oiticica como incansável retrospectivamente essa história já a partir do século XXI) ao deixar mar- combatente pela intensidade na construção das relações afetivas, no jogo cas de suas práticas no alto repertório da arte moderna, disponibilizando com os objetos, nas aventuras por espaços de exteriorização do comum, ferramentas para os embates das décadas seguintes (que nos trouxeram coletivo e compartilhado. a amarga combinação experimentalismo + ditadura) – sendo, entretanto, De fato, a leitura dos textos escritos até 1963/64 mostra um eixo ar- imperativo reconhecer os abismos culturais e descompassos entre tais gumentativo, núcleos de referência e metodologia de trabalho bastante práticas e a sociedade em geral. O artista HO1, que conquista lugar nos entremeados de um horizonte teórico idealizante/metafísico que permeou debates concretos-neoconcretos logo após sua iniciação intelectual em certo acesso ao pensamento moderno, não apenas no Brasil como em ou- proximidade com o campo da ciência (trabalhando junto ao pai entomolo- tros países latino-americanos – essa é uma discussão bastante conhecida, gista), exterioriza sua pesquisa de modo a articular o discurso objetivo de

8 oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. FIGUEIREDO, Luciano; PAPE, Lygia e SALO- 14 ortiZ, Renato. Moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 31. Citado MÃO, Waly (orgs.). Rio de Janeiro: Rocco, 1986. por FREITAS, Artur. Autonomia social da arte no caso brasileiro: os limites históricos de 9 FIGUEIREDO, Luciano, Introdução. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. um conceito. ArtCultura, Uberlândia, v. 7, n. 11, jul-dez 2005, p. 202. cit., p. 5-7. 15 FREITAS, Artur. Autonomia social da arte no caso brasileiro: ... Op. cit., p. 202. Aqui en- 10 pedrosa, Mário. Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica. In: OITICICA, Hélio. contramos ainda uma citação precisa e esclarecedora, de Saul Yurkievich: Praticamos Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 9-13. [na América Latina] todas essas tendências na mesma sucessão em que as praticaram 11 morais, Frederico. Orelha. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit. na Europa, quase sem termos entrado no “reino mecânico” dos futuristas, sem termos chegado a nenhum apogeu industrial, sem termos ingressado plenamente na socieda- 12 Idem. de de consumo, sem termos sido invadidos pela produção em série, nem limitados por 13 FOUCAULT, Michel. O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. Cadernos de Sub- um excesso de funcionalismo; tivemos angústia existencial sem Varsóvia nem Hiroshi- jetividade. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos ma. Em El arte de uma sociedad en transformación. In: BAYÓN, Damion et al. América Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, v. 1, n. 1, São Paulo, 1993, p.197-200. Latina en suas artes. México: Unesco/Siglo XXI, 1974, p. 179.

218 219 afirmação disciplinar (que se somando ao esforço coletivo de construção Por que ser pessimista, como o fazem muitos, diante dos testemunhos da autonomia da obra) com veemente consciência da arte objetiva, con- desses artistas? Não são eles somente representantes da grande arte des- creta, fortemente material em seus limites, que ambiciona o embate com te século, ou grandes individualistas, mas abrem os caminhos mais posi- o mundo real, recusando o conforto idealista. Tal conflito é assim expresso tivos e variados a que aspira toda a sensibilidade do homem moderno, ou pelo artista, por volta de 1962, em uma modalidade de escrita a ser em seja, os de transformar a própria vivência existencial, o próprio cotidia- breve para sempre abandonada: no, em expressão, uma aspiração que se poderia chamar de mágica tal a transmutação que visa operar no modo de ser humano, e da qual estão Que é então o mundo para o artista criador? Como estabelecer relações por certo afastadas quaisquer teorias de ordem naturalista.17 com ele? Duas posições bem definidas aparecem na resolução deste pro- blema: aquela na qual o artista para criar mergulha no mundo, na sua É um forte mérito de HO colocar-se disponível para abandonar sua microestrutura, e a sua realidade é determinada pelo movimento divina- “torre de marfim” (palavras deM ário Pedrosa), onde tinha acesso parcial e tório microcósmico da sua intuição dentro desse mundo; a outra na qual limitado ao corpo, para “incorporar a dança na [sua] experiência” a partir do o artista não deseja diluir-se e entrar em cópula com o mundo, mas quer que chamou de “necessidade vital de desintelectualização, de desinibição criar esse mundo, e a sua realidade seria uma super-realidade baseada no intelectual, da necessidade de uma livre expressão”, confessando sentir-se conceito de absoluto, que não exclui também um movimento divinatório, ameaçado por “uma excessiva intelectualização”18 – pode se perceber aí que aqui já possui um caráter macrocósmico. Tanto numa quanto noutra um movimento terapêutico em direção a si próprio, um gesto de cuidado há a tendência em superar a “alternância” entre aparência e ideia, que se de si que não seria estranho às linhas gerais do trânsito através do qual se colocam aqui como níveis de um mesmo processo dentro da realidade. gerou o ambiente abstracionista no Brasil: em 1949, Mário Pedrosa escreve […] [A] arte moderna tende a ser uma apresentação. Forma é então uma que “a atividade criadora repete, inconscientemente, a incessante recria- síntese de elementos tais como espaço e tempo, estrutura e cor, que se ção do milagre da vida no organismo”.19 Entretanto, gostaria de ressaltar o mobilizam reciprocamente.16 agudo reviramento de Hélio, que, em um mesmo lance e gesto, equaciona os problemas do idealismo teórico distanciado de um modernismo brasi- O artista HO neoconcreto é um intelectual que se debate com extenso leiro fora do lugar e de sua própria corporeidade sentida como incipiente e material teórico, em busca do melhor caminho para operar a intervenção insuficiente – operando um corte político agudo e sofisticado, quando em que deseja e busca – ciente da decisiva manobra concreta-neoconcreta que movimento contrário ao populismo CPCista desloca-se para a comunida- traz para o contexto cultural brasileiro o debate das vanguardas europeias, de da Estação Primeira de Mangueira para estabelecer ali seu laboratório da qual tira proveito, permitindo que se coloque, desde o início de seu per- afetivo e artístico. É interessante como o texto “Bólides” – pelo qual tenho curso, com uma autoridade de ação no mesmo plano de fala que artistas e particular apreço –, já em suas primeiras linhas, articula a palavra “corpo” críticos para ele referenciais, tais como Mondrian, Malevitch, Mário Pedrosa, ao passo teórico necessário naquele momento… Herbert Read e outros. Tal desenvoltura só se torna possível a partir do terreno preparado pelos debates da cultura brasileira na década de 1950, Poderia chamar as minhas últimas obras, os Bólides, de “transobjetos”. transpondo o problema geral proposto pela Antropofagia (de devoração Na verdade, a necessidade de dar à cor uma nova estrutura, de dar-lhe vitoriosa das matrizes culturais) para um horizonte de enfrentamento real, “corpo”, levou-me às mais inesperadas consequências, assim como o de- presente nos interstícios do debate do período. Ainda que enfrentando senvolvimento dos Bólides opacos aos transparentes, onde a cor não só as questões com brilho, objetividade e lucidez admiráveis, HO1 transmite inquietação e incômodo que necessitarão ser ainda resolvidos – quando 17 ibid., p. 63. conclui o ensaio referido acima com a seguinte indagação: 18 oiticica, Hélio. A dança na minha experiência. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 72. 19 pedrosa, Mário. Arte, necessidade vital. In: MAMMÌ, Lorenzo (org.). Mário Pedrosa, arte, ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p.64. Pedrosa cita a educadora Maria Pe- 16 oiticica, Hélio. A transposição da cor do quadro para o espaço e o sentido de cons- trie, para quem “luz, cor, peso, ritmo, forma, movimento, proporção” seriam “vitami- trutividade. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 61. nas da alma”.

220 221 se apresenta nas técnicas a óleo e cola, mas no seu estado pigmentar, tal qual tecido rizomático coletivo hipersensível, capaz de deflagrar efeitos contida na própria estrutura Bólide.20 e reações ao mínimo toque, em pura intensidade receptiva. Conforme irá indicar mais tarde, entregar-se a tal deslocamento seria ao mesmo tempo …permitindo que se cruzem desde logo as determinantes do cuidado um gesto de “togethernassão”, “singultâneo”22 (afiados neovocábulos da de si, do jogo conceitual, da intervenção política e – de modo interessan- safra HO). Ao mesmo tempo, a fórmula “vontade construtiva geral” nos te – um diálogo com questões dos artistas Jasper Johns e Robert Raus- parece precisa, ao articular as noções aparentemente incompatíveis de chenberg que faz aportar, também, uma consciência do papel do artista “racionalidade e construção” com as “energias e forças que produzem frente aos mecanismos da comunicação de massa e da indústria cultural, corpo, desejo, vontade” – para um campo de conhecimento comprometido fundamentais para HO em seu futuro encontro com músicos populares, com a disciplinaridade moderna, essa imagem estaria associada, talvez, cineastas e demais personagens que surgem na superposição dos circuitos ao “encontro fortuito entre um guarda-chuva e uma máquina de costu- da arte com aqueles do mundo da (como se dizia então) cultura de massa ra sobre uma mesa de dissecção”, fórmula proposta por Lautreamont e (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rolling Stones, Ivan Cardoso, etc.), da qual adotada por dada e surrealismo, evocadora de uma pura negatividade, irá se alimentar em Nova York. A partir de então, HO é já uma figura trans sem qualquer relação com o mundo positivo das coisas e processos e seu – podemos implicar esse corte transversal de muitos modos, na operação compromisso de transformação social. A aparente naturalidade com que HO sobre HO – e é significativo que o gesto conceitual preciso abranja HO criva essa proposição seria indicativa da virtuosidade da manobra simultaneamente as matérias da invenção artística e o próprio corpo, em efetuada, colocando em cena a proposta de uma “nova subjetividade” uma lúcida inversão (diagrama que atravessa este texto) da precedência das costurada pelo polo concreto-neoconcreto em complementação de duas matérias, construindo obras-dispositivos para exteriorização e instauração tradições, reconhecendo a composição sujeito-máquina e sujeito-desejante de um coletivo. O turbilhão ativado por HO2 o conduzirá até a Whitechapel – caminho desenvolvido com êxito em (entre outros) O Anti-Édipo.23 HO2, Experience – e às mutações de HO3 – através de ações fundamentais que 3 e 4 souberam tirar proveito da fórmula, quando consolidam uma prática definem uma teoria da marginalidade e uma “nova subjetividade brasileira”,21 exteriorizante, hiperintensa e hiper(supra)sensorial – esse é um artista que realocam o artista em dimensão internacional e viabilizam obras como as não recusa proximidade (amizade, afeto, linhas de contato) ou dinâmicas séries de Bólides e Parangolés, assim como o bólide caixa Homenagem a comunicacionais (mídias de distribuição planetária, estratégias coletivas Cara de Cavalo e o penetrável Tropicália, entre outras. de encenação); a droga é incorporada como ativadora do trânsito entre O trânsito de HO2 a HO3 é de grande complexidade e irá estabelecer a os dois polos, em sua materialidade intensificadora de lucidez extática. imagem do artista com a qual é mais diretamente identificado ainda hoje, Finalmente, sob o impacto da importante exposição apresentada na Whi- reconhecendo-se aí os traços do artista inventor-escritor em permanente techapel Gallery, Londres (1969), ocorre que as questões trabalhadas até enfrentamento de seu presente sociopolítico, ativando seu trânsito através então ganham uma expansão de escala geográfico-comunicativa, na me- de uma ars erotica, ars theoretica e ars politica – eixos que se recombinam dida em que os problemas se internacionalizam – estar ao mesmo tempo à medida que HO se desloca. Gostaria de enfatizar que o aspecto mais pro- em Londres, Mangueira, Rio de Janeiro, Brasil e América Latina produz dutivo da teoria da marginalidade de Oiticica seria aquele voltado para uma impacto, no sentido que é preciso readequar a abrangência desse corpo topologia das bordas e regiões de fronteira, isto é, em contínua negociação em nova subjetividade que se percebe em outro trânsito, mais amplo, do entre exterioridade, interioridade e contato: marginal seria o personagem cuja pele, na qualidade de órgão máximo do corpo, estende-se ao redor 22 FAVARETTO, Celso. Prefácio. In: BRAGA, Paula. Oiticica, singularidade, multiplicidade. São Paulo: Perspectiva, Fapesp, 2013, p. 18, 52-53. 20 oiticica, Hélio. “Bólides”. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 63. 23 assim como, é claro, os demais herdeiros das mutações da cibernética e da teoria dos 21 expressão desenvolvida por Rafa Éis em sua pesquisa de mestrado “Deslocamentos sistemas dos anos 1950 que transformam a crítica à representação em uma diagramá- antropoéticos: exercícios de devoração de si. Encontros antropofágicos: exercícios de tica e eliminam as distinções entre máquina, animal e homem, liquidando a dicotomia invenção de si”, PPGARTES/Uerj, 2014-2016. Refere-se diretamente ao texto “Esquema vitalismo/mecanicismo e trazendo para o plano da política os problemas da regula- geral da nova objetividade brasileira”, publicado no catálogo do evento “Nova objetivi- ção e do controle. Cf. BASBAUM, Ricardo. Relationality. In: CHOI, Binna; LIND, Maria; dade brasileira”, ocorrido no MAM-RJ em 1967. Para o texto, Cf. OITICICA, Hélio. Aspiro PETHICK, Emily; PETREŠIN-BACHELEZ, Nataša (eds.). Dialectionary. Berlin: Sternberg ao grande labirinto. Op. cit., p. 84-98. Press and Cluster, 2014, p.207-213.

222 223 artista planetário: “depois da Whitechapel […] depois de Paris […] depois ali, seu apartamento-laboratório sempre aberto serviu de base para um de Los Angeles […] depois de Nova York […] estou again em Londres E NÃO último conjunto de manobras em vida, a partir principalmente (mas não TENHO LUGAR NO MUNDO”.24 A condição de exilado é recusada e o artista apenas) de sua produção textual – HO4 manifesta um “desejo de livro […] positiva o que seria um estado potente permanente, apto a implementar por meio da escrita de si, da escrita para e sobre o outro”,28 concretizado as mutações em seus protocolos de trabalho: será preciso perceber o no projeto conglomerado-newyorkaises,29 nunca concluído. impacto que a aldeia global, como território de comunicação e afetos, irá Reconstruir Oiticica a partir de seus escritos tem sido o principal eixo impor na revisão das propostas realizadas até ali (processo que ocorrerá de condução deste texto, sobretudo por ser possível localizar ali, no enun- em Nova York, de certa maneira) – mais do que isso até, uma vez que os ciado autoral – como vimos, já um processo de coletivização –, os timbres espaços se ampliam em ritmo rápido: “eu sou o astronauta o Brasil é a Lua e ritmos indicativos das marcas que HO1, 2, 3 e 4 buscavam imprimir em cuja poeira mostrar-se-á ao mundo sublixo.”25 (nossos) corpos receptores: cada vocábulo, pontuação utilizada, organização Não se pode dizer que exista um último Hélio Oiticica, como ponto de no espaço da página, recurso de linguagem gráfica adotado, vem consti- chegada, completude ou estação final de percurso – enfim, tantos revira- tuir qualitativamente o arquivo e contribuir para a distribuição da carga mentos (Waly Salomão escreve: “Um dos passos que o Miro ensinou ao Hélio mnemônica deixada pelo autor – auxiliando a tornar presentes as linhas foi o PARAFUSO, que consiste em o corpo saltar do plano do chão e rodopiar do complexo diagrama HO que, afinal, constitui e constrói HO: produzir-se qual um parafuso no ar e voltar de novo ao solo num giro alucinante”26) como artista-inventor-escritor não é tarefa em curto prazo e demanda a e tanta intensidade investida produziram um corpo de obra de intricada compreensão de um estado de coisas sobre o qual intervir; uma atenção arquitetura que vai se entregando aos poucos, parecendo inesgotável. aos trânsitos e camadas afetivas no contato com humanos, não humanos Talvez, de modo homólogo a Marcel Duchamp que, com o Grande vidro, e objetos; o reconhecimento de pertencimento a construções coletivas, teria, segundo Octávio Paz, produzido o “mito da crítica”27 – ou seja, uma grupos ou outras articulações comunitárias; o domínio das proposições obra paradigmática da condição moderna da arte cujas possibilidades de conceituais em jogo, assim como os trânsitos históricos e transtemporais interpretação seriam inesgotáveis, abrindo-se de modo generoso para cada implicados; a compreensão das metodologias em andamento em suas per- novo intérprete, a partir de sua trama visual-verbal, ativando em seu limite formatividades próprias; e, principalmente, a economia em jogo nos termos a referência do retângulo-janela e a crise da linguagem representativa –, da produção de uma imagem do artista, ao construir-se e ser construído HO tenha demarcado uma territorialidade igualmente precisa e de qua- em público30 – imagem cuja distribuição é imediata, direta, a demarcar lidade epistemológica correlata, ao sinalizar um mergulho do corpo nas uma territorialidade com força singular. Afinal, filigranas das intensidades do afeto e da palavra, em suas relações com a arquitetura e os objetos, de modo a fortalecer as relações entre sujeito, não devemos nos contentar nem com biografia nem com bibliografia, é coletividade, corpo e entorno, espaço de vida e espaço de produção. preciso atingir um ponto secreto em que a mesma coisa é anedota da Seria possível indicar em Hélio Oiticica um percurso instaurador de outro vida e aforismo do pensamento. […] Há aí dimensões, horas e lugares, paradigma, atento às micropercepções e seu papel enquanto produção zonas glaciais ou tórridas, nunca moderadas, toda a geografia exótica que de intensidades e limiares de transformação…? Atenção: não se trata de caracteriza um modo de pensar, mas também um estilo de vida.31 construir um “Hélio-modelo”, referencial, mas de ter em sua obra a chave de uma passagem para um estado de vida em que viver não seria possível sem que se ative a sensorialidade de modo radical. É nessa direção que percebo as linhas de força de HO4, em sua temporada em NYC (1971-1978): 28 oiticica, Hélio. “Oiticica liaescrevia constantemente, assim como ouviaescrevia e via- escrevia.” In: COELHO, Frederico. Livro ou livro-me: os escritos babilônicos de Hélio Oiticica (1971-1978). Rio de Janeiro: Eduerj, 2010, p. 17, 21. 24 oiticica, Hélio. Londucmento. OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 123. 29 F. Coelho, op. cit. é a principal referência. 25 oiticica, Hélio. Subterrânia. OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 30 tópicos por mim desenvolvidos em “Hermenêutica do artista”. V. nota 4. 125. 31 deleuZE, Gilles. Décima oitava série: das três imagens de filósofos. In: Lógica do sen- 26 salomão, Waly. Hommage. In: Hélio Oiticica. Paris: Jeu de Paume, 1992, p. 240. tido. São Paulo: Perspectiva, 1988, p.132. O autor faz nessa passagem referência a Niet- 27 paZ, Octávio. O castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 1978. zsche.

224 225 Tendo como referência a primeira versão estabelecida do que seria o trução coletivizante, exterior e compartilhado. Em uma concisa citação projeto conglomerado-newyorkaises,32 torna-se possível trazer à superfície de John Cage,38 HO produz uma interessante apropriação conceitual, ao um desenho dinâmico das mutações que se processam em HO4 – que po- identificar experimentalismo (a partir da música) com o processo de se deria ser caracterizado, de modo resumido e compacto, a partir de algumas construir como “ouvinte”, fazendo um elogio à escuta: a aventura de vida linhas principais. Há, inicialmente, a revisão de projetos anteriores (espe- e produção na qual está decisivamente mergulhado não se desdobraria cialmente o Parangolé), com o abandono de um tempo histórico mítico, de modo consistente sem que fosse ativada uma atenção em relação a produtor do novo, para mergulhar em uma esfera de produção voltada para si mesmo e ao outro, com exercícios de mútuo reconhecimento e senso- “programas do circunstancial”, com “unidades exploráveis sem produção rialização do contato – ou seja, é fundamental um incremento da escuta, pensada”; é necessária a “desmitificação do parangolé” que agora é “nada sem o qual não haveria experimentalismo possível. É preciso “nega[r] a mais que clímax corporal”; “vestir capa é concreção”.33 Afinal, a arte estaria concentração voltada para si”39 de modo fechado, exclusivo, autocentrado. esgotada e agora “estamos interessados na vida! Devemos distribuir nossas É interessante, ainda, perceber a fidelidade de HO a suas referências, que forças sobre as formas de vida. Isso o verdadeiro progresso”.34 Trata-se de ganham camadas interpretativas e reforçam as questões que estão sendo um evidente corte afirmativo em prol do aqui e agora da experiência, em mobilizadas no momento: é notável a repotencialização do branco sobre sua radicalidade existencial – processo já em curso, mas a chave de tem- branco malevitchiano, presente desde os tempos neoconcretos, mas que ali poralidade de certo modo se compacta ao “jogo livre do clímax-corpo”,35 na pulsação das descobertas em NY reforça questões do corpo e recepção passando-se “a uma condição de experimentar em aberto”. Especial atenção como comportamento: “BRANCO NO BRANCO […] premonição da desco- é deslocada para o corpo – já elemento central para as manobras de HO 1, berta do CORPO, primeira aparição de COMPORTAMENTO como elemento 2 e 3, também aqui re-acessado –, agora um “CORPO QUE SE REAMBIENTIZA maior”.40 Vale dizer que o termo “comportamento” atravessa muitos dos PELO TATO REINCORPORANDO-SE”, um “CORPO-TATO q vive no momento escritos do período, indicando o que parece ser um desenvolvimento da manipulado”. Abre-se um diálogo direto com Lygia Clark, em que se evoca compreensão dos processos de produção de novas subjetividades a par- a força da intensidade sensorial (mobilizada por esta nas proposições em tir da cifra “vontade construtiva”, isto é, um forte interesse pelo aspecto torno da Nostalgia do corpo) que, para HO, reveste-se também de seu es- absolutamente exterior do movimento dos corpos, em contato com as forço político de máxima sensorialização do corpo no dia a dia, em contato pesquisas da área da comunicação e da indústria cultural, em que passa com a rua, os meios de comunicação e atividades coletivas do ambiente a reconhecer padrões dominantes e repetitivos (próprios da sociedade do urbano e da indústria do entretenimento. “MUNDO-ABRIGO” é um conceito espetáculo) que seria necessário evitar, desconstruir: “MUNDO-SHELTER é que anuncia “a chegada gradativa a uma experimentação coletiva, o dia o MUNDO tomado como PLAYGROUND e onde o comportamento individual a dia experimentalizado […] abrigo-proteção coletivo”, que reconhece “o (-coletivo) não se quer adaptar a patterns gerais de trabalho-lazer mas a urbano como experimentalmente mais apto a experiências-grupo”36 – mas experimentações de comportamento, mesmo q essas nasçam fragmentadas deve ficar claro que “a autoperformance de cada um seria a tarefa-goal e isoladas (o q deve acontecer)”.41 Enfim, em uma tentativa de expressar o que liga tudo”,37 ou seja, não há conflito entre indivíduo e grupo, uma vez tom geral daquele período de investigação, vivenciado de forma supraintensa que a produção de subjetividade é tomada sempre como gesto de cons- e objeto de imersão total nas questões que se apresentavam e no cultivo de relações com interlocutores, com os quais dialogava de modo regular (como se sabe, os irmãos Campos, Waly Salomão, Carlos Vergara, entre 32 oiticica, Hélio. Conglomerado-newyorkaises. Cesar Oiticica Filho e Frederico Coelho (orgs.). Rio de Janeiro: Azougue, 2013. As citações que se seguem provêm dessa fonte. 33 oiticica, Hélio. Parangolé-síntese. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 18-22. 38 oiticica, Hélio. Excertos do caderno de notas CTAL PK. Aspiro ao grande labirinto. Op. 34 oiticica, Hélio. Hafers – Mondrian – FK, Lloyde Weber – Rosselini. Aspiro ao grande cit., p. 92-99. labirinto. Op. cit., p.104-108. 39 oiticica, Hélio. Hafers – Mondrian – FK, Lloyde Weber – Rosselini. Aspiro ao grande 35 oiticica, Hélio. Bodywise. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p.24-33. labirinto. Op. cit., p. 104-108. 36 oiticica, Hélio. Mundo-abrigo. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 34-47. 40 oiticica, Hélio. Branco sobre branco / White on white. Aspiro ao grande labirinto. Op. 37 oiticica, Hélio. Anotações para uma próxima publicação. Aspiro ao grande labirinto. cit., p. 68-72. Op. cit., p. 86-91. 41 oiticica, Hélio. Mundo-abrigo. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 34-47.

226 227 outros), HO escreve que sua “atividade criativa” então se configuraria como exposição, prática, como se sabe, pouco explorada em vida. Justo, é claro, “desaguadouro (melhor q a saturada ‘síntese’): do q gerei como AMBIENTAL para uma produção que acumulou de modo concentrado tanta energia, PARTICIPAÇÃO SUPRASENSORIAL: desaguadouro-meta: JOYFUL desaguar: ser lançada à possibilidade de encontros variados e ricos, construindo sem ‘buscas’: e compreender”.42 Assim: as conquistas e construções acu- novas interlocuções, revelando tramas históricas em novas narrativas e muladas em HO1, 2 e 3 estruturam as buscas e experimentações de HO4 proporcionando a formação de outros territórios de prática. Mas não se – artista-inventor-intelectual-escritor dedicado à aventura de produção de trata, com HO, de um percurso qualquer – ao se construir a superposição um corpo coletivo, em contato com a territorialidade da indústria cultural de quatro diferentes Oiticicas, demarcados pelas mutações que o artista e da comunicação, no manuseio de ferramentas conceituais e plásticas de deflagrou em sucessivos momentos de sua vida, em consequência da ultra-ativação sensorial, mobilizando a pele sensível ao toque deflagrador de movimentação incessante e dinâmica do trabalho, ficam claras algumas processos de produção e construção de si. Seria ainda pertinente localizar determinantes que inevitavelmente se esvaziam a partir do processo de a teoria da marginalidade – tão importante em HO2 e 3 e articulada em institucionalização da obra: intensidade de um campo afetivo em desen- lances fundamentais de sua prática – novamente em relação direta com as volvimento; teoria da marginalidade; recusa em movimentar a economia ações de intensificação sensorial que deflagra, e em expansão rizomática da obra em um mercado de arte; processo teórico-crítico incessante; etc. pelas bordas do território que o artista coloca em movimento: mais uma De modo que, nesse caso, emerge a construção de mais outro artista em vez, parece ser a intensidade ali produzida e a cuidadosa articulação das modulação, HO5 – produzido pelo corpo da obra do artista no confronto fronteiras dessa territorialidade que efetivamente deslocam o artista para com o circuito de arte transnacional que se desenvolve no novo século. De as áreas descentradas dos circuitos dominantes. Ao mesmo tempo, estar modo breve, a obra parece apontar para três considerações mais imediatas: no centro dos acontecimentos e em suas regiões de borda. Para quem, como eu, começa a desenvolver uma prática como artista 1) A inegável importância do legado de HO, que o posiciona enquanto a partir dos anos 1980, há uma sombra da ausência de HO: a partir do fim artista emblemático da segunda metade do século XX, tem impulsionado da ditadura, desenvolve-se um ambiente da arte em circuito dominado de o deslocamento de sua obra pelo planeta, estando algumas peças já modo crescente pela racionalidade neoliberal, sendo marcado pela quase definitivamente fixadas em algumas das mais importantes coleções, inexistência de embates e pela inclusão positiva de quase todos os espaços permitindo uma leitura estável e continuada dos trabalhos e a produção e agentes, provocando um inicial desaparecimento de espaços e práticas de narrativas crítico-históricas relevantes. Entretanto, a singularidade ditas marginais e alternativas – que iriam retornar, no Brasil, na última de muitas de suas realizações – que implicam protocolos participativos, década do século fundamentados em noções de coletivos independentes ocupações e utilizações variadas – ainda traz dificuldades para que as e de autogestão. O personagem típico do período, o artista identificado proposições sejam apreciadas em sua plenitude. Tal traço é significativo, como “funcionário do galerista”, sempre agenciado pelo seu representante ao apontar para outros padrões e modos de agenciamento museoló- de vendas em seu deslocamento pelo circuito transnacional da arte, seria gico ainda a serem implantados, indicando os limites das instituições um antípoda absoluto daquela territorialidade de práticas “desaguadas” de hoje. É sempre fundamental que as obras pressionem instituições por HO em seu último período de trabalho. Entretanto, quando a produção no sentido do aperfeiçoamento e da mudança, e é importante que se de HO passa a circular novamente, em grande escala, a partir de 1992, a compreenda que há uma plasticidade institucional a ser ativada – traço movimentação desse corpo de obra – seu gigantesco arquivo, em grande que, sem dúvida, é uma das questões fundamentais presentes na obra parte inédito – passa a ser crescente, trazendo à superfície, de modo de HO, principalmente em sua dimensão de articulação comunitária, cada vez mais complexo, suas articulações, tramas, proposições, textos, coletiva. Tanto a partir da obra de Hélio Oiticica como de Lygia Clark, projetos, etc. E o agente-inventor-intelectual ganha uma recepção aberta, é possível pensar em um redesenho de invenção institucional. aparentemente sem limites: bienais, retrospectivas, Documenta, publica- ções e mostras de todos os tipos, a operar HO ostensivamente em modo de 2) Sobretudo nas intricadas tramas das articulações entre texto e obra – e sua trajetória de dedicado escritor –, HO foi bem-sucedido em produzir uma trama plástico-conceitual que densifica sua obra em camadas 42 oiticica, Hélio. Texto para Código-Risério-Bahia. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 160-173. diversas, de várias espessuras, texturas e modos de acesso. Trata-se

228 229 de gestos complicadores, no sentido do florescimento de dobras que em sua voracidade de Capitalismo Mundial Integrado, as experiências de tornam complexa a recepção, fazendo desse encontro um gesto de mo- intensidade afetiva rizomática de Hélio se configurariam como centrais ao bilização, produção e construção significativo – em que não há espaço interesse neoliberal, deixando ansiosos seus principais agentes quanto à para indiferença e se exige engajamento. Talvez aí, em proximidade possibilidade de acessar e normatizar um material tão rico. Pois o artista- com os trabalhos, compreenda-se que ali reside um núcleo libertário -escritor-intelectual estava, a seu modo, experimentando, desconstruindo que deve ser deliberadamente cultivado, no sentido de torná-lo inas- e produzindo ferramentas em torno do núcleo central de interesses do similável pelos espaços de dominação, mantendo seu limiar negativo sistema capitalista avançado contemporâneo. Assim, torna-se urgente de recusa quase absoluta dos agenciamentos de poder institucionais aproximar-se dessa produção para, o quanto antes, fazer dessas ferramentas dominantes. Sabe-se que essa é uma dimensão material da obra de HO materiais de resistência, deslocando-os para as lutas que se fazem mais necessariamente a ser ativada, ao se exteriorizar os trabalhos – não se urgentes – aproximando HO5 de HO1, 2, 3 e 4, ativando a obra através dela trata de tarefa simples e autoevidente, mas de agenciamento que ainda mesma e trazendo-a para o contato das novas coletividades que sempre pulsa, a ser considerado. desejou provocar e mobilizar – recuperando traços de sua política, tão singulares e potentes. Haveria traços de uma pedagogia das vanguardas 3) Como se discute amplamente hoje, há uma racionalidade neoliberal a serem ativados. dominante que deve ser compreendida e problematizada, no sentido de se desenvolver formas políticas de resistência aos interesses do capital, os quais rapidamente se naturalizam nos ritmos cotidianos, impondo determinações próprias que precarizam a vida e o trabalho. A parir de análises recentes, compreende-se que

O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da “modernidade”.43

Não é difícil identificar no parágrafo acima alguns dos principais temas, questões e problemas enfrentados por HO em NY, em momento radical de vida, em intensidade absoluta (modos e formas de vida, produção de subjetividade, cuidado de si, etc.) – ou seja, ali, naquele laboratório de vida ultraprodutivo, desenvolveu-se radical experimentação de inegável valor, mesmo que ao custo de uma recusa das formas de assimilação positiva que se disponibilizavam naquele período. Imagina-se que, diante de uma dinâmica do capital que se propõe cada vez mais em proximidade ao cor- po, reterritorializando pelo planeta dimensões moleculares da existência

43 pierre DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo – ensaio sobre a so- ciedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016, p.16.

230 231 mudar O valor das coisas

Peter Pál Pelbart Professor titular de Filosofia na PUC-SP

Criar não é a tarefa do artista. Sua tarefa é a de mudar o valor das coisas.1

Variação 1 – Nietzsche

Se abrimos a monografia de GillesD eleuze sobre Nietzsche, de 1962, a primeira frase diz de maneira lapidar: “O projeto mais geral de Nietzsche consiste em introduzir na filosofia os conceitos de sentido e de valor”.2 Mas ele logo salienta que uma filosofia dos valores só interessa caso se contra- ponha a um novo conformismo, e funcione como uma verdadeira crítica dos valores, total, feita a “marteladas” – a saber, uma “transvaloração de todos os valores”. Com efeito, em Nietzsche, o valor de algo depende de uma pesagem comparativa, de uma avaliação, de uma hierarquia. É Nietzsche quem diz que o homem é o animal avaliador por excelência, ele pesa, compara, estabelece hierarquias, dá valor a certas coisas em detrimento de outras, instaura, dessa forma, valores supremos, desejáveis, outros inferiores, indesejáveis, repugnantes – vivemos em meio a tal escala de valores assim como respiramos. Por trás de cada atitude, gesto, fenômeno, pensamento, obra, é preciso buscar o valor que o preside.

1 oiticica. Hélio. Museu é o mundo. César Oiticica Filho (org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p. 157. Essa coletânea inspiradora me foi presenteada por Celso Favaretto, a quem devo a inspiração para minhas furtivas incursões no pensamento de Oiticica. Obviamente, não tem ele responsabilidade alguma pelo uso meramente associativo que aqui será feito. 2 deleuZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Rio, 1976.

233 Porém, mais decisivo do que detectar o valor ali presente é identificar linhagem. Por outro lado, há os que traçam a gênese desses valores e, ao a avaliação que lhe deu origem. A avaliação é a operação por excelência fazerem sua genealogia, realizam sua crítica corrosiva, desmontando-os, – avaliar, medir, valorar, dar peso, interpretar é o que fazemos o tempo revirando-os do avesso. todo. Se o primeiro passo na apreciação dos fenômenos, sejam eles morais, Mas não se trata de demolir certos valores para substituí-los por outros. estéticos ou filosóficos, é remetê-los aos valores que os regem, o segundo Exemplo. Exit Deus, viva o Homem. Se o Homem ocupa o lugar que antes passo consiste em remontar às avaliações, ao gesto de avaliação que deu era de Deus, nada muda, substancialmente, já que o lugar do valor su- nascimento a tal ou qual valor. Por exemplo, talvez a moral que prega o premo idealizado é inteiramente preservado, e pior, o Homem, tal como bem como valor supremo seja fruto mais da inveja e do ressentimento do o conhecemos e fabricamos, ressentido, culpado, mutilado, é alçado ao que do altruísmo. Portanto, isso já nos ilumina sobre a natureza do valor estatuto de ideal supremo. Nada pior do que endeusar o homem medíocre chamado “Bem”, completamente dissimulado quando se apresenta como e doentio que conhecemos, projetá-lo como a meta a ser atingida. Por abnegado ou altruísta. isso, a morte de Deus é indissociável da morte do Homem para que algo Mas o terceiro passo é ainda mais crucial. A avaliação que cria o valor realmente seja revertido. Não se trata, portanto, de substituir um valor não provém de um capricho, ela é feita por um ser vivo, e esse ser vivo não por outro, por exemplo, ao invés do Bem, valor supremo que nos vem de é uma entidade abstrata nem um ser alado, está enraizado num corpo, tem Sócrates, colocar o Progresso, ou a Felicidade, ou mesmo a Inventividade, seus interesses e desejos, resulta de certa configuração pulsional, constitui mas pôr em xeque a supremacia do valor supremo, e assim, mais ampla- um tipo de vida – nobre ou escravo, altivo ou submisso, superabundante mente, questionar o valor dos valores. ou carente, ascendente ou declinante. Que tipo de vida ou modo de exis- No fundo disso, o que realmente está em questão é o modo de produção tência precisou criar tal ou qual valor que o expressa e o reitera? Um tipo de novos valores. Como não apenas mexer nos valores, não substituir um ressentido avaliará conforme seu ressentimento, rebaixará tudo em função por outro, não apenas revirar colocando no alto o que antes estava em- dele, forjará os valores que lhe correspondam, e sustentará aqueles valores baixo, mas mexer no modo de produção dos valores, na maneira em que que corroborem o ressentimento que lhe é próprio, tratando de disseminar eles são criados, investidos, idealizados, reificados, para que a criação de esses valores ou esse veneno e assim expandido seu poderio. Não é outro o valores reflita uma relação outra com a instância que os produz. Só, então, caso do cristianismo, exemplificaN ietzsche, com seu desprezo pelo corpo, toda essa série poderia ser remexida, só, então, faz sentido falar de uma a desqualificação dos prazeres, a moral de rebanho, o culto ao sofrimento, transvaloração dos valores. De nada adianta simplesmente criar novos à tristeza, à obediência, à autonegação que por vezes recebe o nome de valores sem inventar novas maneiras de criar valor, uma nova lógica no humildade ou abnegação. engendramento de valores, em suma, uma relação outra entre vida e valor, A crítica aos valores vigentes não equivale a um debate de opiniões, nem entre interpretação e experimentação. Os valores não deveriam espezinhar de doutrinas, mas ao mapeamento dos sintomas que expressam maneiras a vida que os cria, nem doentiamente sobrepor-se a ela, mas expandi-la, de existir, sobretudo as esgotadas, enfermiças, doentias. Daí porque a tocar suas notas mais altas, intensificá-la ou prolongá-la. A frase de Niet- questão dos valores é uma questão de vida, não de especulação, de saúde, zsche é por demais conhecida, mas não custa repeti-la. “Em um são suas não de entendimento. Donde a dupla tarefa de um pensamento que parte lacunas que filosofam, em outro suas riquezas e forças”.3 Será possível de Nietzsche, segundo Deleuze. Referir tudo a valores: qual é o valor que fazer falar as riquezas e forças? Afirmá-las? A filosofia deixaria, então, de está como que por trás de uma atitude, de um fenômeno, de uma obra, ser um “tranquilizante, brandura e bálsamo, para tornar-se transfiguração”. de uma cultura? E qual é o modo de vida que está na origem desse valor? Sem pressupor a leitura encadeada dessa série por Oiticica, podemos Remontar, pois, do valor até a avaliação, e da avaliação até o tipo de vida. deixar no ar a pergunta: será que mudar o valor das coisas, como ele o Mexer nos valores, ou na hierarquia dos valores, é mexer com a vida, com enunciou, equivale a transvalorar todos os valores como quer Nietzsche? os modos de vida, com os estilos de vida. Daí também os inimigos de uma filosofia dos valores nesse sentido radi- cal, segundo Deleuze. Há aqueles que se preocupam apenas em inventariar os valores vigentes, ou em corroborá-los, ou fornecer-lhes fundamentos – e a história da filosofia poderia ser colocada sob o signo dessa vasta 3 nietZSCHE, F. Prólogo. Gaia ciência. [falta local, editora e data]

234 235 Variação 2 – Deleuze conclui, reiterando o leitmotiv que atravessará todo seu livro: “Uma lógica da afirmação múltipla, portanto uma lógica da pura afirmação, e uma ética O que de mais explícito Oiticica parece ter colhido em Nietzsche, no en- da alegria que lhe corresponde, é o sonho antidialético e antirreligioso que tanto, conforme as cartas ou apontamentos disponíveis, é o elogio do atravessa toda a filosofia de Nietzsche”.6 artista trágico. Segundo seu próprio relato, ele o teria descoberto em Em última instância, a vida é inocente, isto é, ela é jogo, o que faz dela meados dos anos 70, através do livro de Deleuze Nietzsche e a filosofia, um fenômeno estético, e não moral ou religioso.7 Se o tempo (Aiôn) é uma que lhe fora recomendado por Silviano Santiago. Ora, nesse livro, ao tratar criança que brinca, é preciso assumir plenamente o lance de dados, o acaso, do trágico nietzschiano, Deleuze tenta livrá-lo de uma interpretação por a combinação a um só tempo fortuita e necessária. “Nietzsche identifica demais dialética e cristã, que nele veria o negativo, com toda a espiral das o acaso ao múltiplo, aos fragmentos, aos membros, ao caos”.8 Donde a antíteses e sínteses, contradições e reconciliações, que teria por fundo citação que Oiticica retém: “O artista trágico não é um pessimista, ele diz uma visão profundamente pessimista do eterno sofrimento, sorvida em sim a tudo o que é problemático e terrível, ele é dionisíaco”. E vem a seguir Schopenhauer. Na contramão dessa visão niilista, Deleuze encontra no a reprodução do que Oiticica qualifica como “apoteose monumental” no trágico de Nietzsche um viés jubilatório, que extrai da dor um prazer, que escrito de Deleuze: faz da metamorfose uma afirmação vital. Sendo a vida inocente, nada há a redimir nem a justificar, muito menos a resolver. Dionísio não interioriza a A mensagem feliz é o pensamento trágico, pois o trágico não está nas dor, como o faria uma consciência infeliz, mas a exterioriza, lançando-a no recriminações do ressentimento, nos conflitos da má consciência, nem jogo do mundo. Eis como o expressa Nietzsche, ao discriminar dois tipos nas contradições de uma vontade que se sente culpada e responsável. de sofrimento e de sofredores: O trágico não está nem mesmo na luta contra o ressentimento, a má consciência ou o niilismo. Nunca se compreendeu, segundo Nietzsche, Aqueles que sofrem de superabundância de vida fazem do sofrimento uma o que era o trágico: trágico=alegre. Outra maneira de colocar a grande afirmação, assim como fazem da embriaguez uma atividade; na laceração equação: querer=criar. Não se compreendeu que o trágico era positivida- de Dionísio eles reconhecem a forma extrema da afirmação, sem possibi- de pura e múltipla, alegria dinâmica. Trágica é a afirmação, porque afirma lidade de subtração, de exceção, nem de escolha. Aqueles que sofrem, ao o acaso e a necessidade do acaso; porque afirma o devir e o ser do devir, contrário, de empobrecimento de vida, fazem da embriaguez uma convul- porque afirma o múltiplo e o um do múltiplo. Trágico é o lance de dados. são ou torpor; fazem do sofrimento um meio de acusar a vida, de contra- Todo o resto é niilismo, páthos dialético e cristão, caricatura do trágico, dizê-la e também um meio de justificar a vida, de resolver a contradição.4 comédia da má consciência.9

Em vez de angústia, a alegria, em vez da existência ressentida, a afirmação Um leitor de Deleuze não pode ficar indiferente ao fato de Oiticica ter múltipla e pluralista, o poder das metamorfoses. “O que define o trágico retido, de Deleuze, uma passagem tão decisiva, que traz embutida o nú- é a alegria do múltiplo, a alegria plural. Esta alegria não é o resultado de cleo de sua interpretação geral sobre Nietzsche. Obviamente, não está a uma sublimação, de uma purgação, de uma compensação, de uma resigna- nosso alcance medir a que ponto tal encontro ressoou com a trajetória já ção, de uma reconciliação: em todas as teorias do trágico Nietzsche pode em curso no artista, e é pouco provável que a tenha infletido. Mas o que denunciar um desconhecimento essencial, o da tragédia como fenômeno sempre interessou Deleuze na relação entre a filosofia e as artes foram os estético. Trágico designa a forma estética da alegria”. O que é trágico é a encontros, não as influências. Assim, a filosofia, a arte e a ciência entram alegria: “O renascimento da tragédia acarreta o renascimento do ouvinte artista cujo lugar no teatro, por um estranho quiproquó, foi ocupado até é a página? Qual é o local, editora e data do livro de Nietzsche? 5 agora pelas pretensões meio morais, meio eruditas, o crítico”. E Deleuze 6 deleuZE, G. Nietzsche e a filosofia, p 14. 7 ibid., p. 19. 4 deleuZE, G. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 13. 8 Z, III, “Antes do nascer do sol”, citado por Deleuze em Nietzsche e a filosofia (p. 21). [a 5 nietZSCHE, F. O nascimento da tragédia, 22, apud DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia, que se refere Z III?] p. 14. [não entendi, o livro de Nietzsche está citado no livro de Deleuze, é isso? 22 9 deleuZE, G. Nietzsche e a filosofia. Op. cit., p. 30.

236 237 em relações de ressonância mútua e em relações de troca, mas a cada E ela comenta: “Fazer do acaso o ingrediente fundamental para uma vez por razões intrínsecas. É em função de sua evolução própria que elas receita exige atitude inventiva de quem recebe um fragmento e um jogador percutem uma na outra. Nesse sentido, é preciso considerar a filosofia, a de dados confiante no acaso, que acredita que seu lance será usado numa arte e a ciência como espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às mistura conseguinte, mas imprevisível”.15 E acrescenta: “Até a tentativa outras e que não cessam de interferir entre si.10 Daí porque não se coloca a que fizemos de aproximar a interpretação de Deleuze a respeito do jogo questão da fidelidade, antes o contrário – a do roubo legítimo, das núpcias de dados Nietzschiano das aparições dos dados e do acaso na obra de contranatura. Diz Deleuze: “Roubei Félix, e espero que ele tenha feito o Oiticica é mera costura de fios soltos, um cozido de fragmentos, pois os mesmo comigo”.11 Ou mais precisamente: “O desejo ignora a troca, ele só conceitos de Nietzsche não são usados por Oiticica pelo que são na obra conhece o roubo e o dom.”12 do filósofo alemão ou de seus comentadores. Como uma cuba de vidro Fiquemos, a título de ilustração, com a carta a Mário e Mary Pedrosa, que passa a integrar um bólide e a formar um todo tão íntegro que perde de 1975, quando Oiticica escreve: sua característica de “cuba” isolada, noções bastante complexas como o “lance de dados” são empregadas por Oiticica como parte que constituirá HENDRIX → INSTAURAÇÃO DO TRÁGICO (q nada tem a ver com RESTAU- um todo a partir da vontade do artista. Mas podemos arriscar a dizer que o RAÇÃO DA TRAGÉDIA q os diluidores ‘explicadores’ de NIETZSCHE tomam acaso que faz um lance de dados cair de volta com uma combinação vito- como algo NIETZSCHIANO e não é!: NIETZSCHE foi o anunciador da INS- riosa é uma coincidência muito forte, quase uma necessidade (no sentido TAURAÇÃO DO TRÁGICO q IN-CORPORA comportamento-mundo-vida de inevitável) que, quando ocorre, sugere um encadeamento mágico ou numa só genealogia cujo ápice é a concepção do ARTISTA TRÁGICO no ficcional de eventos, um “delírio concreto”, capaz de embaralhar lugares qual as consequências mais extremas levam a outras que se extremam e e o tempo, como acontece no passeio de Oiticica pelo Rio em 1979, que levam a outras etc. ela cita a seguir:

Ao evocar o texto acima, Lisette Lagnado os relaciona com a questão do [...] eu pego assim pedaços de asfalto na Avenida Presidente Vargas, antes participador, com o questionamento da representação, com a forma esté- de taparem o buraco do metrô, todos os pedaços de asfalto que tinham tica da alegria injetada no ambiental. Hendrix despontava como exemplo sido levantados... Quando eu apanhei esses pedaços de asfalto, eu me do artista trágico nietzschiano, “herói alegre, leve, que dança e joga”, em lembrei que CAETANO uma vez fez uma música, que disse até que pensou contraposição ao cidadão Kane, herói romântico.13 em mim depois que fez a música, que falava o negócio da “escola primeira Paula Braga, por sua vez, ressalta a relação entre acaso e multiplicidade da mangueira passa em ruas largas, passa por debaixo da avenida Pre- tal como aparece na leitura de Deleuze, de quem cita o seguinte trecho: sidente Vargas”. Aí eu pensei assim: esses pedaços de asfalto... soltos, Nietzsche identifica o acaso com o múltiplo, com os fragmentos, com que eu peguei como fragmentos e levei para casa... agora, aquela avenida os membros, com o caos: caos de dados que se chocam e que se lançam. estava esburacada por baixo, e na realidade a estação primeira da man- Nietzsche faz do acaso uma afirmação. O reino de Zaratustra é chamado de gueira vai passar por debaixo da Avenida Presidente Vargas... uma coisa “grande acaso” [...] Saber afirmar o acaso é saber jogar [...] Que o universo que era virtual quando CAETANO fez a música, de repente se transformou não possui nenhum objetivo, que não existe qualquer fim a esperar, assim num delírio concreto. O delírio ambulatório é um delírio concreto...16 como causas a conhecer, é esta a certeza que convém ter para bem jogar.14

10 deleuZE, G. Conversações. São Paulo: 34, 1992, p. 156. Variação 3 – Viver não é sobreviver 11 deleuZE G. e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998, p. 25. 12 deleuZE G. e GUATTARI, F. O anti-Édipo. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: 34, p. 246. No fim dos 60, anos depois de publicado o livro Nietzsche e a filosofia, 13 dWEK, Zizette Lagnado. Hélio Oiticica: m mapa do programa ambiental. Tese de dou- toramento sob orientação de Celso Favaretto, USP, São Paulo, 2003, p. 183 e seguintes. 15 BRAGA, Paula. Oiticica. Singularidade, multiplicidade. São Paulo: Perspectiva, 2013. [é outro nome de Lisette?] 16 oiticica, Hélio. Áudio da entrevista a Ivan Cardoso. Op. cit. [em que nota a obra 14 deleuZE, G. O lance de dados. In: Nietzsche e a filosofia. 2ª ed. Porto: Rés, 2001, p. já foi citada?] 42-43.

238 239 confrontado com a pergunta o que é ser nietzschiano hoje, e em conformi- não podemos explicar, que não podem ser reduzidos a seus antecedentes, dade com o que espocava da rua, Deleuze preferiu situar o nietzschianismo a suas causas, que simplesmente extrapolam nossa capacidade de análise, menos nos livros ou colóquios sobre Nietzsche do que nos gestos políticos de deciframento, de tradução? Não significa que eles não tenham sua lógica, e poéticos que desafiavam os valores e poderes vigentes. Eis um exemplo sim, eles a têm, eles têm seu modo de funcionar ou disfuncionar, eles têm dado por ele: “enunciados particularmente nietzschianos no decorrer de sua maneira de dobrar-se ou desdobrar-se, eles têm sua gênese singular, uma ação, de uma paixão, de uma experiência”, tais como Viver não é so- mas justamente ela é singular, esquizofrênica, desterritorializante, é mais breviver, proferido por um estudante antes de ser ferido pela polícia, em da ordem de um escape que de um porto seguro. Um quadro de Bacon, meio a uma manifestação. Ou então, numa outra direção, certo modo de um texto de Artaud ou de Beckett, um filme de Visconti ou Godard, uma recusar a noção de indivíduo. Diz ele: ciência nômade, o próprio nomadismo na história, máquinas de guerra as forças de repressão sempre tiveram necessidade de Eus atribuíveis, que percorrem a cidade, todos eles têm sua lógica e, no entanto, liberam de indivíduos determinados, sobre os quais elas pudessem se exercer. um movimento aberrante, produzem ao seu redor um abalo, uma ruptura, Quando nos tornamos um pouco líquidos, quando nos furtamos à atribui- uma fissura, um desregramento. Deixam vazar alguma coisa que extrapola ção do Eu, quando não há mais homem sobre o qual Deus possa exercer nossa capacidade de compreender, ou de sentir, ou de pensar, ou de pro- seu rigor, ou pelo qual ele possa ser substituído, então a polícia perde a gramar, levando-nos a um limite. Do que esses movimentos aberrantes dão cabeça. Isso não é algo teórico. O importante é o que ocorre atualmente. testemunho é de uma potência, uma potência de vida que talvez não caiba Não é possível livrar-se das inquietações atuais dos jovens, simplesmente no limite de uma vida, de uma existência definida, de uma sensibilidade dizendo que a juventude passa.17 configurada, de um pensamento possível. Como se essa potência que eles Desde então muita água passou por debaixo da ponte. Mas nada disso liberam extrapolasse nossa vivência ordinária, nossa existência corriqueira, perdeu sua atualidade. Nos movimentos coletivos cujo teor político não se nossa normalidade cotidiana. Pois de fato, isso que irrompe parece grande deixa separar de uma aposta vital, o anonimato é um princípio generalizado, demais até para quem o vive, forte demais para quem o experimenta, terrível que poderíamos classificar de não identitário, antinarcísico, sintônico com demais para quem o sofre, belo demais até para quem o admira. Há aí um a movência multitudinária, na contramão de uma liderança personalista. excesso que já não pode ser domado, domesticado, normalizado, e diante Mas também é um macete tático, na luta contra a polícia e seu esforço em do qual nos sentimos como que impotentes, mas essa impotência não passa individualizar a imputação, no ímpeto de criminalização das manifestações do signo de uma potência superior. Segundo Deleuze, é esse limite que o ou ocupações. É a força do anônimo que testemunhamos em vários movi- pensamento persegue, bem como certa literatura, certo cinema, por que mentos da última década. não certo teatro, certa política? Cito o filósofo no domínio literário: O ato fundador do romance americano, o mesmo que o do romance russo, consistiu em levar o romance para longe da via das razões e dar nascimento Variação 4 – Movimentos aberrantes a esses personagens que estão suspensos no nada, que só sobrevivem no vazio, que conservam seu mistério até o fim e desafiam a lógica e a psico- Num livro recente de David Lapoujade sobre Deleuze, ele sustenta que o logia [...] o que conta para um grande romancista, Melville, Dostoievski, projeto maior do filósofo teria sido detectar os movimentos aberrantes, por Kafka ou Musil, é que as coisas permaneçam enigmáticas e, contudo, não toda parte em que apareçam, seja na natureza, no pensamento, na vida, nas arbitrárias: em suma, uma nova lógica, plenamente uma lógica, mas que artes ou na história.18 Um movimento aberrante não é aquele que parece não nos reconduza à razão e que capte a intimidade da vida e da morte.19 anômalo do ponto de vista de um padrão externo e regular, embora isso Vidas que desafiam as razões, as razões psicológicas, as razões prag- também possa acontecer, mas aquele que não pode ser apreendido racio- máticas e, no entanto, nada aí é arbitrário, há nesses personagens uma nalmente. Quantos movimentos há no pensamento, nas artes, na vida, que necessidade imperiosa, como no caso do Capitão Ahab, do escrevente Bartleby, de O homem do subsolo de Dostoievsky, ou de Stavroguin em Os possessos, ou K. Mas poderíamos citar Riobaldo, Rubião, e tantas persona- 17 deleuZE, G. A ilha deserta. David Lapoujade (org.), trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 178. 18 lapouJADE, David. Deleuze, os movimentos aberrantes. São Paulo: n-1edições, 2015. 19 deleuZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: 34, 1997, p. 13.

240 241 gens de Clarice... São o que Deleuze chama de seres originários. Não neces- ARTISTA TRÁGICO no qual as consequências mais extremas levam a outras sariamente são extraordinários, embora muitas vezes pareçam anômalos, que se extremam e levam a outras etc.” E Lapoujade pergunta: mas o in- mas no geral estão obcecados por uma ideia incompreensível, mordidos vivível na vida, o imemorial na memória ou o impensável no pensamento, por uma inclinação irrefreável, inexplicáveis, tomados por um movimento se eles permanecem inacessíveis, se as faculdades, em seu uso empírico, arrebatador ou por uma imobilidade enigmática. Embora pareçam doentios, não podem atingi-los, para quê serviria isso tudo? Ou melhor: para que na verdade lançam sobre o entorno uma luz lívida através da qual iluminam acompanhar os movimentos aberrantes? as doenças do entorno. Mais do que neuróticos ou psicóticos, são médi- Porque “os movimentos aberrantes nos arrancam de nós mesmos” e cos da civilização, diagnosticam as doenças do entorno, dominado pelo permitem acessar dimensões outras. “Há algo de ‘forte demais’ na vida, homem-branco-ocidental-racional- eurocêntrico-colonialista-machista- intenso demais, que só podemos viver no limite de nós mesmos. É como -heteronormativo, como dizem nossos pós-humanos, ou apenas humano, um risco que faz com que já não nos atenhamos mais à nossa vida no que demasiado humano, como diria Nietzsche. Mas tais experimentos vitais ela tem de pessoal, mas ao impessoal que ela permite atingir, ver, criar, só são possíveis caso impliquem muitas mortes, não dos outros, mas de sentir através dela. A vida só passa a valer na ponta dela própria”, escla- camadas caducas que obstruem a própria vitalidade. É preciso destruir rece Lapoujade.20 E se dermos mais um passo, poderemos perguntar: Que o organismo, dizia Artaud, o que pode ser aplicado a esferas várias, da direitos esses movimentos aberrantes reivindicam? Em prol de que novas dança à política, todo âmbito que se baseia num corpo pensado como um existências testemunham? Que novos seres ou novas existências esses organismo, corpo físico, corpo institucional, corpo social, corpo doutriná- movimentos testemunham, que novos modos de existência, que novas rio, organismo que precisa funcionar direito – mas o que acontece quando maneiras de viver, mas também, mais radicalmente, que novas populações ele é desorganicizado? Certas decomposições abrem seus elementos para afetivas, políticas, sonoras, pictóricas, libidinais, aí se liberam e poderiam outras composições. É preciso fazer morrer, esquizofrenizar, tornar a vida povoar diferentemente o mundo? Daí porque quando Deleuze e Guattari aberrante para livrá-la do que a impede de respirar ou expandir-se, ou fazem um arrastão teórico e passam “pelos nômades, os metalúrgicos, atingir seu ponto máximo... Em outros termos, é preciso atingir algo de os índios, os trabalhadores itinerantes, a geometria arquimediana ou a invivível da vida. Já Foucault dizia que jamais o interessou a experiência música” é porque em todos eles há um combate de vida e morte, mas já vivida, com a qual a fenomenologia se ocupava bem, a saber, o cotidiano, não apenas com aquela morte positiva da autodestruição necessária de “esta mesa”, “este papel”, “este cubo de açúcar” se dissolvendo na água, que falávamos acima, mas contra outra morte, “aquela através da qual “este garçom de café” – mas interessava-o o invivível da vida, esses pontos o capitalismo nos faz passar e que nos transforma em mortos vivos, em em que algo do vivencial se rompe – como na loucura, no crime, na revolta, zumbis sem futuro” e contra a qual “certos movimentos aberrantes estão na sexualidade, temas, aliás, que ele pesquisou a fundo. Para retomar o sempre lutando, molecularmente, minoritariamente”. Nietzsche de Oiticica lido por Deleuze: “O artista trágico não é um pessi- mista, ele diz sim a tudo o que é problemático e terrível, ele é dionisíaco”. Ora, precisamente é a dificuldade maior – ir por uma espécie de ne- Desvio 5 – Ueinzz cessidade até um ponto-limite, inevitável e ao mesmo tempo inacessível. Mas o que é mesmo esse ponto-limite, essa experiência limite? Que limite é Permitam-me fazer uma ponte com a experiência de já 20 anos com a Cia esse? Alguma fronteira de finitude, ou outra coisa muito menos fronteiriça? Teatral Ueinzz, que jamais teve o propósito de fazer teatro com T maiúsculo, O pensamento, quando vai ao seu limite, isto é, vai até sua enésima potên- nem propriamente de fazer algum gênero específico – talvez o melhor nome cia, atinge o impensável; a memória, levada ao seu limite, atinge o fundo ainda seja o de esquizocenia. Não porque é feito por esquizofrênicos, o que do tempo, o imemorial; a sensibilidade quando vai a seu limite atinge a por si só não garante nada – já vi peças feitas por eles e que eram totalmente intensidade; a vida atinge não o vivido, mas o seu invivível que, no entanto, caretas. É que num tal extremo de vida nua como a dos ditos loucos, de só a ela cabe experimentar. Não se trata de nada místico nem religioso nem vida precarizada, desapossada de todos os penduricalhos civilizatórios, esfumaçado, mas de uma passagem ao limite. E o limite aqui não significa submetida a todas as exclusões, violências, esmagamentos, como é que limitação, fronteira, mas potência, ir ao máximo de sua potência, desdo- brar o grau de potência, a enésima potência. Como o escreveu Oiticica: “o 20 lapouJADE, D. Deleuze, os movimentos aberrantes. Op. cit., p 23.

242 243 justo aí, nesse ponto zero social e psíquico, uma subjetividade esquizo, esquizocenia, para reutilizar o vocabulário que evoquei anteriormente, é em vez de obstáculo à criação estética, torna-se precisamente sua fonte trazer à cena certa experiência-limite em prol de existências menores. Ou maior, a matéria-prima por excelência para a produção de alguma coisa modos menores de existir, que não se restringem às minorias concretas que talvez se chame obra, ou acontecimento, ou apenas desobramento? A necessariamente, como os usuários de saúde mental, uma população ex- vida nua revela seu avesso inesperado: maneiras menores de ver, de sentir, cluída e preterida, mas ao devir-minoritário de todos e de cada um – como de pensar, de perceber, de vestir-se, de viver. O que é posto em cena é a dizia Foucault, todos temos um lado de plebe, ou como diria Guattari, todos fronteira onde arte e vida se confundem, uma maneira de representar sem temos virtualmente ao menos um devir-esquizo. Trata-se, com esse grupo representar, de estar no palco e sentir-se em casa simultaneamente, de e talvez em outros experimentos que tive ocasião de cruzar, mas também associar dissociando, de dar a ver o horror a partir de signos de gagueira, na escrita ou no pensamento, de trazer à tona essa dimensão invivível, de extravio, de desmanchamento, mas transmutando-os em acontecimento, impensável, imemorial, a partir de certos gestos, ritmos, lentidões, afetos, talvez passível de ser designado por estético. A partir da vida nua, e de um rupturas de linguagem, devires-menores, gagueiras, que para ganharem corpo que não aguenta mais as coerções e os adestramentos que sobre ele alguma visibilidade precisam escapar aos holofotes do grande mercado de se exercem, não se trata de recorrer a belas formas que compensem ou arte ou de ideias ou de clichês. É preciso apagar os holofotes fascistas ou camuflem o desmanchamento, mas sondar no âmago dessa passividade, espetaculosos para dar a ver a bioluminescência dos vagalumes, como o dessa impotência, uma potência superior. “O artista trágico não é um pes- diz lindamente Didi-Huberman a partir de Pasolini. Para que os vagalumes simista, ele diz sim a tudo o que é problemático e terrível, ele é dionisíaco”. possam aparecer precisamos de um pouco de penumbra, de um pouco de Claro que a partir desse exemplo restrito é toda uma ética que se dese- clandestinidade, de um pouco de lentidão, de um pouco de silêncio, de nha, nas antípodas de qualquer fascismo, seja nas suas versões clássicas desconexões, para que os movimentos aberrantes possam aparecer e com ou pós-modernas e mesmo pós-humanas: ter a força de estar à altura de eles venham à existência populações moleculares que nos cabe sustentar, sua fraqueza, em lugar de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a na medida exata em que são elas que nos sustentam. força... Se eu quisesse me valer do pensamento de Oiticica para justificar o que acabo de evocar, eu diria simplesmente: há uma miscigenação não só das raças que desafia o condicionamento branco, mas outra miscigenação, Variação 6 – A invenção entre razão e desrazão, sanidade e loucura, vida e morte, razão mestiça, dizem uns (Yann Moulier-Boutang), supraestado cannabiano, diria Oiticica, Feitos todos esses desvios, já é hora de voltar a Oiticica. Quando indagado corpo sem órgãos, diria Artaud. Aí, e agora roubo tudo de Oiticica, nessa “O que é invenção?”, ele responde: área aberta do mito, fios soltos do experimental se cruzam, menos para fazer obra do que para mudar o valor das coisas (da razão, da sanidade, Invenção é invenção. Invenção é o que não pode ser diluído e o que não do corpo performático, da linguagem ordenada, ou numa outra ordem, será fatalmente diluído, aliás isso é muito importante dizer, é a primeira do corpo, das assimetrias, da dissonância, da passividade), num contexto vez que eu estou formulando isso desse jeito: antigamente a invenção, em que coexistem singularidades tão heterogêneas, numa temporalidade depois dos inventores viriam os mestres e os diluidores, quer dizer a in- estratigráfica, na qual se sobrepõem várias camadas de tempo, afeto, venção seria fatalmente diluída. Agora não, a invenção é aquilo que está acontecimento, num tempo que também pode ser dito flutuante, quando imune à diluição. A invenção é imune à diluição. A invenção propõe ou- o corpo pesa na sua presença de chumbo ou levita, onde a gestualidade tra invenção, ela é a condição do que o Nietzsche chamava de “o artista primeva, imemorial, pré-humana, ou da aranha, diria Deligny, conjuga-se trágico”. A invenção, ela gera invenção. O “artista trágico” de uma con- com a caricatura de super-heróis. A subjetividade que se desenha aí tem sequência que ele chega, ele gera outra consequência, acima daquela e pouco a ver com nosso padrão eurocêntrico, em que devires vários a tomam diferente daquela; ele nunca volta atrás para repensar uma consequência. de assalto e a reconfiguram. É tudo muito pequeno, diminuto, modesto, Quer dizer, a invenção é a condição do “artista trágico” nietzschiano, isso é vagalume, sub-sub, mas não importa o tamanho, somos moleculares ou muito importante [...] eu não me transformei num artista plástico, eu me subterrâneos, os terremotos sempre começam assim, as revoluções também, transformei num declanchador de estados de invenção.21 os desmoronamentos dos grandes impérios idem. O que caracteriza essa 21 oiticica FILHO, Cesar; COHN; VIEIRA, Sérgio Ingrid (orgs.). Hélio Oiticica. Rio de Ja- neiro: Azougue, 2009, p. ???.

244 245 Ninguém melhor do que Celso Favaretto para colher os vários sentidos dessa formulação: Para Oiticica,

a invenção não se reduz à aplicação de categorias estéticas à vida, o que conduz à mistificação da criatividade. Além da maneira enviesada de reinstalar a arte, tal prática leva frequentemente à complacência moral, pois confunde liberdade de invenção com rituais em que se produzem “catarses psíquicas”. Para Oiticica, o “estado de invenção” é o reencontro com o estado nascente das pesquisas modernas, mas também a liberta- ção da tendência a estetizar a vida.22

Portanto, lembra o autor, é toda uma operação de desmistificação que aí se empreende, inclusive das vivências populares, tão facilmente seques- tradas. É Oiticica que o diz, perguntado se vinha ao Brasil reencontrar as “raízes”, ao que ele responde: Odeio este negócio. Pode botar aí, as raízes já foram arrancadas e queimadas há muito tempo. Em Nova York me per- guntavam: “Não tem saudades da Mangueira? E do Rio?” Eu respondia que não posso ter saudades da Mangueira, porque sou da Mangueira. Não sentia saudades, porque comi a fruta inteira. Saudades só sente quem deu apenas uma dentada. E Favaretto arremata: A desmistificação consiste, pois, em não procurar reativar experiências como se manifestaram um dia, pois o processo de significação é situado. Trata-se, apenas, de repropor ações fora das expectativas que as tornaram passagem necessária no projeto de desconstrução (da arte, do corpo). Depois do processo de desconstrução, fica a experiência concreta do en- contro com as coisas, sem nenhuma busca: “o delírio ambulatório é um delírio concreto”; ele não promete nada, é pura disponibilidade criadora. A busca de uma nova disposição de signos efetiva o “mito de viver”. Oiticica não redescobre as ruas, o morro; reafirma a sua experiência inicial, isento de mito e da utopia.23 Talvez nessa postura resida um dos aspectos mais desafiadores de Oiticica, aí ele ressoa com os fios soltos que fomos tocando nessa traje- tória ziguezagueante. Como preservar a radicalidade da transvaloração, a aposta de mudar o valor das coisas, o modo de engendrar valores, talvez também rastrear as novas formas que toma o “artista trágico” hoje, sem que tal operação fique subordinada a um mito a ser revivido, a uma utopia imperativa, a uma ideia prévia até mesmo do que é o popular ou o povo ou o novo?

22 FAVARETTO, Celso. A invenção de Oiticica. São Paulo: Edusp-Fapesp, [ano????], p. 206. 23 ibid., p 221.

246 247 sessão 4 Museu é o mundo. O mito da instituição Mário Chagas Museu é o mundo. A sugestão de alta potência poética expressa na sentença “museu é o mundo” nos permite, em sintonia com a experiência circense, dar uma cambalhota e compreender que “mundo é o museu”. Dois substantivos separados por um verbo e um artigo constituem a base dessa expressão O mito da instituição. poética que pode nos levar, a partir de uma alteração no tempo verbal, a acionar o lúdico e dizer “museu foi o mundo”, “museu seria o mundo”, “museu será o mundo” e assim por diante. E tudo isso continua em diálogo com as posições e proposições de Hélio Oiticica. Admitindo que “museu é o mundo” e que “mundo é o museu” é possível compreender que mundo e museu estão conectados à experiência coti- diana, à arte “in mundo”, à museologia e ao museu “in mundo”. Nessa perspectiva, ou melhor, nessa dimensão, o esgarçamento das fronteiras entre arte e vida é radical. A compreensão poética e também política de que “museu é o mundo” Luiz Guilherme Vergara trouxe para a cena a mesa-redonda de Santiago e de que “mundo é o museu” nos coloca frente a frente com a possibili- do Chile, de 1972, marco da museologia contemporânea, e colocou em mo- dade de vivenciar o museu processo, o museu como espaço de encontro vimento a sua própria trajetória de vida e o diálogo que ao longo do tempo e convivência, como espaço social de celebração da potência da vida, do vem realizando entre a museologia e a arte, uma conversa entre a arte e a encantamento, da terapêutica social, da criação, da transformação e da vida, uma conversa ancorada na educação e que parte do princípio de que luta. Um museu como pretexto, como meio, como corpo de luta, como tanto a arte, quanto a museologia social estão experimentando formas de máquina de guerra, é disso que estamos falando. Uma museologia “in habitar o mundo, de ser “in mundo”. mundo”, impura, indisciplinada, uma museologia social, uma museologia Max Jorge Hinderer Cruz construiu a sua intervenção em três blocos. do afeto que não tem medo de afetar e ser afetada, que não teme o amor De modo franco examinou a construção do mito, sublinhou de modo crítico e a amizade, é disso que estamos falando. a narrativa construída sobre Hélio Oiticica como “pacificador” e “homem O mito da instituição nos leva a meditar sobre as institucionalizações branco”. Problematizou o discurso de um “exílio voluntário” e colocou em possíveis. Nem todas as iniciativas museais querem se institucionalizar, movimento questões contemporâneas sobre as relações entre o macro e muitas querem permanecer como processos, como movimentos, como o micro, especialmente no que se refere à política. dinâmicas e irradiações potentes. Cada experiência museal precisa ser Jesús Maria Carrillo Castillo e Giuseppe Cocco produziram um debate considerada em sua singularidade “in mundo”. singular e estimulante. Merece registro especial a participação do público Neste bloco temático contamos com a participação de Izabela Pucu, que o tempo todo chamou para si o protagonismo do debate e colocou em Lisette Lagnado, Luiz Guilherme Vergara e Max Jorge Hinderer Cruz, em movimento questões sobre arte, educação, racismo, feminismo e homo- uma mesa-redonda, ocorrida na manhã do dia 7 de julho de 2016, e, tam- fobismo. Esse debate franco, aberto e sem hierarquizações permitiu que bém, com a presença de Jesús Maria Carrillo Castillo e Giuseppe Cocco, entrassem em cena, entre outras, as experiências do Museu das Remoções na condição de conferencista e debatedor, respectivamente, em atividade (na comunidade da Vila Autódromo), do Museu de Favela (nas comunidades que se desenvolveu no mesmo dia, no turno da tarde. do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo), do Museu da Maré (na comunidade da Realizando um delírio deambulatório Izabela Pucu colocou em pauta Maré), do Museu Vivo de São Bento (em Duque de Caxias) e do Museu do o “po-ético”, destacou a potência crítica das instituições frequentemente Samba (na comunidade da Mangueira). As críticas e os questionamentos mal aproveitadas, colocou-se em diálogo com Carlos Zílio e com Mário de duas mulheres negras (uma artista e uma arte educadora) contribuíram Pedrosa e, por esse caminho, chamou para a conversa o Museu da Solida- para que os participantes se reposicionassem fisicamente, emocionalmente riedade, em Santiago do Chile, cujo processo se iniciou nos anos 1970. Ali, e mentalmente no espaço e no mundo (“in mundo”). Oxalá a leitura que naquele museu, estavam inscritas a potência do “museu ato” e do “museu aqui se oferece seja tão estimulante, quanto foi o acontecimento! experimental”. Lá, naquele museu, a doação de obras e projetos realizados pelos artistas era um “gesto revolucionário”. Trazer aquela experiência para o mundo contemporâneo faz todo sentido e aciona o pensamento que nos Mário Chagas Professor da Unirio e coordenador técnico do Museu da República. leva a outro museu, a uma “altermuseologia”. Lisette Lagnado se apresentou em diálogo aberto com Hélio Oiticica, especialmente com o texto “Posição e programa”, sublinhou o planeja- mento das invenções de Hélio, destacou o Parangolé como um “programa ambiental” e examinou de modo crítico a relação entre as instituições e as vanguardas, considerando que as instituições podem ser instrumentos sociais e que a “democratização da arte não aconteceu”. O desafio está posto: como pensar e praticar outras institucionalizações? Seria possível pensar e praticar o “terreno baldio” e o “ponto de ônibus” como museu? Aí estão desafios contemporâneos que podem contribuir para uma potente articulação entre a arte e a museologia social.

250 251 Fazer instituição como crítica Izabela Pucu Pesquisadora e curadora, Doutoranda PPGAV/EBA/UFRJ, Diretora e Curadora do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica

Estamos passando nos últimos meses por mais um acirramento do estado de crise permanente em que vivemos no Brasil. Muitas vezes, em momen- tos como esse, somos tentados a esperar que de alguma parte surja uma resposta emancipatória, até mesmo salvadora e, não raro, esperamos que essa resposta venha do campo cultural ou por meio da arte. No entanto, e pelo contrário talvez, o que não cessa de se mostrar nesse momento é que “‘a arte’ também vacila sobre seu sentido do mesmo modo que o ‘mundo’ sobre sua ordenação ou sobre seu destino”,1 como diria Jean-Luc Nancy, ao recomendar que não percamos tempo com julgamentos passionais ou execrações públicas (presenciais ou virtuais). Em momentos como esse, diria Nancy, nós devemos acompanhar o movimento – “nós devemos saber fazê-lo”.2 Ou seja, saber vacilar sobre nossas convicções, ir até o fundo da crise, reconhecer a falência de certas instituições e modelos enraizados em nosso comportamento parece ser a condição primordial para a invenção de outras institucionalidades e formas de vida hoje, mais do que defender posições aguerridas.

1 Nancy, Jean-Luc. Vestígio da arte. In: Huchet, Stephane (org.). Fragmentos de uma teoria da arte. São Paulo: Edusp, 2012. 2 Idem.

253 Como diria Mário Pedrosa, a crise não é passageira, não está na moda, caracterizavam-se também pela popularização do processo de “seriação é mais profunda. “Está na concepção mesma de arte. Na sua função, na das obras”,8 referindo-se à reprodução de cartazes, bandeiras, serigrafias, sua missão, se quiserem. Está na relação necessária que se estabelece não gravuras entre outros objetos que estabeleceriam regimes de circulação somente entre o artista e a sociedade, mas, sobretudo, na relação entre de outra natureza. Nesse tipo de manifestação, afirmou o artista, não se o artista e o mundo...”.3 Hélio Oiticica, com suas proposições e escritos, trataria mais de introduzir o espectador ingênuo na experiência da arte, também nos fala de uma volta radical ao mundo como algo fundamental mas sim de instaurar um espaço aberto à sua “participação total”.9 à arte, e convoca-nos, como Nancy, a saber-fazer o que ele chamou de Nesse sentido, gostaria de retomar a bela e corajosa contribuição do momento ético, em detrimento do estético, ou melhor do esteticismo, poeta e escritor Rafael Zacca, que tivemos o prazer de ouvir no segundo dia marcado em seu trabalho pela caixa Homenagem a Cara de Cavalo, feita do seminário. Zacca acionou a noção de inconformismo em Hélio Oiticica com imagens do famoso bandido morto violentamente pela polícia em 1964. nos termos de uma pedagogia que, se bem entendi, nos levaria a tomar o Seu corpo morto estirado no chão refletia para Hélio “uma revolta individual inconformismo como algo que pode ser transmitido e a partir do qual se contra todo o tipo de condicionamento social”,4 um inconformismo que ele pode produzir saber-fazer.10 Nessa perspectiva podemos pensar o artístico aprendera com a vida na Mangueira e no submundo, a subterrânea carioca ou o poético como uma zona em que se estabelecem as condições para o e, posteriormente, a nova-iorquina, que marcaria toda a sua poética e a exercício desse inconformismo, ao que parece, decisivo não apenas para sua vida – uma alimentada pela outra – a partir de então. a experiência artística, mas para a nossa atuação na vida social e política, Em 1967, no célebre texto “Esquema geral da nova objetividade brasileira”,5 na vida privada, na vida. É emocionante pensarmos como a possibilidade Oiticica menciona que essa “volta ao mundo” se referia ao “ressurgimento do de uma pedagogia do inconformismo atualiza de forma muito potente a interesse pelas coisas, pelo ambiente, pelos problemas humanos, pela vida ideia de participação do espectador, como apontada pelo neoconcretismo, em última análise”,6 e implicaria a tomada de posição por parte dos artistas para além dos discursos já estabilizados sobre o assunto. em relação a problemas políticos, sociais e éticos. Nesse texto Hélio aponta também a tendência a uma arte coletiva que estaria ligada diretamente ao *** problema da participação do espectador, posto como questão central pelo neoconcretismo. Essa tendência, no entanto, somente a partir de meados Nesse ponto quero trazer algumas referências sobre um acontecimento da década de 1960 se tornaria mais efetiva nas proposições dos artistas que pensei trazer para o debate desde o primeiro dia do seminário, quando e, apenas na década de 1970, também no escopo das instituições.7 Como atuei como debatedora, mas que agora me parece oportuno tomar como prossegue Oiticica, essas manifestações tomaram emprestadas soluções e exemplo. Trata-se de uma dessas proposições “abertas ao mundo”, como formas de organização do acervo brasileiro das festas populares e de rua, escreveu Oiticica, o happening Bandeiras na praça General Osório, ocorrido no dia 18 de fevereiro de 1968, domingo, às vésperas do Carnaval daquele ano. A conhecida praça de Ipanema foi invadida por centenas de pessoas 3 Pedrosa, Mário. A Bienal de cá pra lá. Redigido em 1970. In: Gullar, Ferreira. Arte que dançavam agitando bandeiras, que também flamulavam penduradas brasileira, hoje. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973. Reeditado em Amaral, Aracy (org.) entre postes de luz ou presas às árvores. Embaladas pela recém-fundada Mundo, homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1975 (2ª edição, 2007) e em Arantes, Otília (org.). Política das artes. Mario Pedrosa. Textos escolhidos I. São Pau- Banda de Ipanema, acompanhavam a ginga dos passistas da Mangueira lo: Edusp, 1995. – entre eles Hélio Oiticica, autor do resquício mais célebre daquele acon- 4 Oiticica, Hélio. Cara de Cavalo. In: Hélio Oiticica (catálogo). Rio de Janeiro: Centro de tecimento, a bandeira Seja marginal, seja herói. Essa bandeira, citada e Arte Hélio Oiticica-Rioarte, 1997. Originalmente escrito em inglês, no catálogo da ex- discutida diversas vezes no contexto deste seminário, foi o fio condutor de posição “Hélio Oiticica”, na Whitechapel Gallery, Londres, 1969. In: Reed. [veja se ficou um projeto de pesquisa e curadoria chamado Bandeiras na Praça Tiradentes, certo, do jeito que veio estava muito confuso. Só fiquei sem saber onde entra o Reed] que resgatou a memória desse acontecimento e deu origem à exposição 5 Oiticica, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. Catalogo de exposição. MAM: Rio de janeiro, 1967. 6 Idem. 8 Oiticica, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. Catalogo de exposição. Op. cit. 7 um exemplo bastante representativo disso foram os Domingos da Criação, organizados 9 Idem. por Frederico Morais no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1971. 10 o artigo referente à fala de Rafael Zacca está publicado neste livro.

254 255 homônima que aconteceu no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, no chumbo que já pairava desde 1964. Naquele momento, quando quaisquer Rio de Janeiro, entre 4 de outubro e 29 de novembro de 2014. manifestações coletivas e de rua seriam coibidas, a bandeira figurou entre No processo de pesquisa para a exposição foram descobertos impor- as demais sem grandes sobressaltos, muitas das quais traziam também tantes documentos, dentre os quais, o mais significativo: uma página de mensagens claramente contra a censura e a ditadura militar, como as contato com 36 fotos feitas por Evandro Teixeira, encontradas no Centro bandeiras de Anna Maria Maiolino, em que se lia “alta tensão” ou o Che de Pesquisa e Documentação do Jornal do Brasil, onde ele trabalhava à Guevara pop de Cláudio Tozzi. Alguns meses depois, em outubro de 1968, época. A folha era identificada pelos dizeres “Festa das bandeiras”. Além os Mutantes realizaram um concerto com Caetano e Gil na boate Sucata, de consistirem em um testemunho fundamental, as imagens de Teixeira no Rio de Janeiro. Pendurada no fundo do palco estava a bandeira com a foram importantes instrumentos de identificação dos participantes e de inscrição «Seja marginal, seja herói”. Os militares alegaram que ali havia suas bandeiras, esquecidas inclusive por seus autores. Não deixa de ser conteúdo subversivo e disseram que Caetano teria cantado o Hino Nacional curioso ver esse acontecimento capturado pelas lentes daquele que foi modificando alguns versos com ofensas às Forças Armadas. Isso serviria de o fotógrafo dos momentos mais emblemáticos da luta contra a ditadura pretexto para que suspendessem a apresentação, prendessem Caetano e no Brasil, como em sua foto da Marcha dos Cem Mil em que se lê em uma Gil, que partiram para o exílio na Inglaterra logo após serem soltos. grande bandeira: “Abaixo a ditadura. O povo no poder”. “Outras bandeiras” foram integradas na exposição para colaborar na Podemos dizer que o acontecimento Bandeiras na Praça General Osório construção do discurso curatorial e apontaram para uma genealogia, tem como eixo dois movimentos iniciais. 1) A ação realizada pelos artistas por assim dizer, do que gostaria de chamar de “fazer instituição como Nelson Leirner e Flávio Motta na esquina da av. Brasil com a av. Augusta, em crítica”, proposição que dá nome à minha contribuição neste seminário. São Paulo, em dezembro de 1967. Na ocasião, os artistas exibiram bandeiras A meu ver essa genealogia tem origem primeiro no movimento de saída e flâmulas com elementos impressos em serigrafia, relacionados à cultura dos espaços institucionais tradicionais por parte dos artistas, a realização popular (Leirner trabalhou com imagens ligadas à religião e ao futebol e de feiras e outros acontecimentos pautados no modo de organização das Motta trouxe elementos da literatura de cordel). As bandeiras foram rapida- festas populares, como diria Oiticica na década de 1960, iniciativas de mente apreendidas por fiscais da Prefeitura sob o pretexto da ausência de autoorganização e proposições com ênfase na ida para o espaço público; e um alvará para venda e exposição de “produtos” em logradouros públicos, também no engajamento de artistas e críticos na reelaboração de espaços e os artistas foram proibidos de exibi-las. 2) As feiras de arte realizadas ao institucionais, escolas, museus, universidades, no sentido da constituição longo do ano de 1967 por um grupo de artistas ligados ao MAM/RJ, muitos de outras institucionalidades necessárias ao desenvolvimento do campo deles participantes da exposição “Nova objetividade brasileira”, entre os artístico no Brasil, e pontualmente na cidade do Rio de Janeiro. quais, Carlos Vergara, Rubens Gerchman, Hélio Oiticica, com a participação Em um contexto como o nosso, em que não existem condições necessá- especial de Carlos Scliar que trabalhava com serigrafia e gravura junto com rias para o desenvolvimento das instituições, sejam elas espaços culturais Dionísio Del Santo. Essas feiras aconteceram no Aterro do Flamengo e em públicos ou organismos independentes, somos levados a pensar, salvo raras outras praças do Rio de Janeiro, como a praça Saens Peña, na Tijuca, e exceções, que não há a possibilidade de fazermos “crítica institucional” se alinhavam a outros movimentos de crítica aos modelos institucionais e no sentido estrito, assumido pelo termo na sua acepção mais corrente, autoorganização, diante do esvaziamento cultural provocado pelo Golpe que privilegia os contextos e os paradigmas norte-americano e europeu. Militar de 1964. Na semana seguinte, depois do happening na praça Gene- Isso não quer dizer que não tenhamos episódios, digamos, clássicos, de ral Osório foi realizada uma feira com barracas onde réplicas de algumas crítica institucional no Brasil, nem que não incida sobre as instituições no bandeiras, serigrafias e gravuras sobre papel foram vendidas. Essa feira campo cultural os interesses financeiros e de consumo que regem o mer- deu origem à feira hippie de Ipanema, que até hoje acontece naquele lugar. cado. Mas não é mera coincidência que os exemplos mais evidentes, hoje Do encontro desses dois grupos surgiu a ideia de realizar o aconteci- e historicamente, tenham ocorrido em confronto com a nossa instituição mento Bandeiras na Praça General Osório, uma grande mobilização cole- cultural mais canônica, apesar de todas as suas crises e complexidades: a tiva que assumiu naquele momento um caráter ambivalente, entre festa Bienal Internacional de São Paulo. O boicote internacional à X Bienal de São e manifestação. As pessoas naquela praça não imaginavam que meses Paulo,�11 em 1969, marcado pela redação do documento “Non à la Bienale”, mais tarde seria editado o Ato Institucional n° 5, apesar da atmosfera de 11 Faltou a nota 11?

256 257 que deflagrava atrocidades cometidas pelo regime militar, foi assinado por que vivemos atuam de modo a desfazê-las. Em se fazer ou se refazer insti- centenas de artistas e críticos em todo o mundo e provocou o esvaziamento tuições (organismos ou movimentos) no sentido da constituição de outras completo daquela Bienal. Mais recentemente, em 2006, a recusa do artis- formas de institucionalidade, capazes de conjugar vontades coletivas e ta Cildo Meireles em participar da 27a edição da Bienal, cuja presidência contribuir para o desenvolvimento das sociabilidades, das solidariedades estava elegendo para o seu conselho o ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira, e para a intensificação da democracia. ex-controlador do Banco Santos, condenado em dezembro daquele ano a 21 Mário Pedrosa é, sem dúvida, um referencial importante dessa pers- anos de prisão por crime contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro, pectiva que proponho, em nível nacional e internacional, especialmente crime organizado e formação de quadrilha. Em entrevista para o jornal Folha quando pensamos em projetos como o Museu da Solidariedade, o Museu de S. Paulo, Meireles declarou: “É ridículo imaginar alguém de dentro da das Origens,12 proposto por ocasião da reconstrução do Museu de Arte prisão tomando parte nas decisões de uma instituição tão importante”. A Moderna do Rio, depois do incêndio de 1978, e também o projeto para o repercussão da atitude de Meireles fez com que o Conselho Deliberativo da Museu de Brasília, de 1960, assim como o que Mário pensou para o MAM Fundação Bienal de São Paulo excluísse de sua composição o ex-banqueiro carioca, nunca concretizado. Edemar Cid Ferreira. Mesmo assim, o artista não voltou à Bienal. O Museu da Solidariedade é um museu-ato, mais do que um edifício ou Outro caso importante nesse sentido, não contra uma instituição es- uma coleção. Um gesto instituinte, uma atuação política no sentido grave pecífica, mas contra aqueles que representam visões hegemônicas, insti- da palavra, performado por artistas e críticos de todo o mundo em apoio tucionalizadas no campo da arte, foi a intervenção do coletivo Seis Mãos ao governo popular de Salvador Allende. Implantado por uma comissão integrado pelos artistas Alexandre Dacosta, Barrão e Ricardo Basbaum, na presidida por Mário Pedrosa em seu exílio no Chile, em 1972, o acervo do entrevista com Archile Bonito Oliva. O embate ocorreu em uma palestra museu foi constituído com obras doadas por importantes artistas, como na galeria Saramenha, que funcionava no Shopping da Gávea, da qual Alexander Calder, Frank Stella, Joan Miró, Lygia Clark, Joaquín Torres participou também Frederico Morais, em um contexto em que o mercado García, entre muitos outros. Consciente da missão que havia tomado de arte se aquecia com entusiasmo embalado pela evocação do retorno à para si, Mário apelou a todos os seus amigos e conhecidos que doaram pintura, da gestualidade livre, entre outros estereótipos que se colaram à ou ajudaram a trazer doações para o acervo do Museu, entre os quais se produção da década de 1980. Surgem, então, em cena os artistas do cole- destaca a curadora americana Dore Ashton. Pedrosa fez inúmeras gestões tivo Seis Mãos, Ricardo Basbaum, Barrão e Alexandre Dacosta, vestidos de diplomáticas, escreveu centenas de cartas, como aquela enviada a Pablo garçom, servindo drinks e gravando as reações da audiência, colocando, Picasso em que ele pede que Guernica seja transladada do MoMA de Nova ao mesmo tempo, em evidência, a subserviência dos artistas em relação York, nos Estados Unidos, para o novo museu que se fundava no Chile. A a essa visão hegemônica, às galerias, presumida na universalidade de sinceridade com que Pedrosa se dirige a Picasso nessa carta, mesmo que um movimento que Bonito Oliva resumiu na ideia de transvanguarda. Os a tenha lido tantas vezes, é para mim sempre muito comovente. Sendo um artistas provocaram a ira do crítico italiano, que reagiu duramente, o que documento relativamente desconhecido, gostaria de transcrevê-la aqui: culminou em um confronto físico. Santiago, 19 de julho, 1972. Al compañero Picasso, saludos! Nosotros, ar- *** tistas latino-americanos, tus hermanos, tus admiradores, venimos a pe- dirte una cosa; el translado de GUERNICA, fruto de tu sagrada protesta y Certamente poderíamos elencar outros movimentos e intervenções nesse de tu genio, del Museo de Arte Moderno de Nueva York, donde se encuen- sentido, mas o que gostaria de trazer como provocação para a nossa conversa tra por tu decisión, para el Museo de la Solidaridad de Santiago, Chile. Qué é a ideia de se “fazer instituição como crítica” em contraponto ao conceito es el Museo de la Solidaridad? Es el más nuevo de los museos, formado de “crítica institucional”, algo mais adequado a meu ver à nossa realidade, exclusivamente por donaciones de artistas del mundo solidarios al nuevo aos desafios que enfrentamos cotidianamente. Uma contribuição brasileira para a questão da crítica institucional no campo da arte. Digo isso porque me parece que a possibilidade de crítica institucional entre nós estaria em 12 “O novo MAM terá cinco museus. É a proposta de Mario Pedrosa”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15 de setembro, 1978. Reeditado em ARANTES, Otília (org.). Política das se fazer instituição à revelia das forças que no ambiente sociocultural em artes. Mario Pedrosa. Textos escolhidos I. São Paulo: Edusp, 1995.

258 259 Chile y su pueblo, que contra el imperialismo y la miseria, buscan la li- “Se esquecemos disso”, prosseguiu Pedrosa, “perderemos as perspectivas bertad, la emancipación, el socialismo. Y por qué te lo pedimos? Porque corretas”. Essa passagem para mim é algo memorável, não apenas porque el país adonde está GUERNICA, símbolo eterno del dolor de los pueblos torna claros os objetivos que culminaram na existência desse museu-ato, masacrados del mundo, fue transformado infelizmente en el más grande mas especialmente porque Pedrosa exercita a sua consciência histórica no productor de Guernicas de la historia. El corazón de nuestros pueblos es- sentido da descolonização do pensamento e da ação, exercício que nós, tallará de alegria, al saber que GUERNICA está honrada y decentemente para-europeus como diria Paulo Venâncio filho,16 devemos sempre refazer guardada hasta que, según tu voluntad, pueda retornar a su patria natal e afirmar, até que um dia, quem sabe, isso não seja mais necessário. Como en nuestro Santiago de Chile, hoy esperanza del continente del Che Gue- vimos, nem todos os museus são ou estão fadados a serem máquinas de vara, nuestra patria latino-americana. Acá, multitudes vendrán de todas gentrificação (essa é uma provocação para o Giuseppe Cocco!). partes y seguirán desfilando delante de tu obra, como en dias del pasado Um exemplo importante disso que estou chamando “fazer instituição distante hacían los peregrinos de Europa en busca del otro Santiago, el de como crítica” foi a transformação do Instituto Brasileiro de Arte, escola tu tierra. Nosotros, agradecidos, te besamos, Maestro.13 conservadora ligada ao Estado do Rio de Janeiro, em Escola de Artes Visuais do Parque Lage – EAV, por Rubens Gerchman, seu diretor de 1975 Entre outras dificuldades para colocar em ato o projeto do museu, a 1979. O projeto pedagógico de Gerchman e seus companheiros trazia Pedrosa buscava uma sede para acondicionar as obras que imediatamen- um novo desenho à escola, que promoveu a integração entre as áreas e te começou a receber, quando uma mensagem do crítico e historiador as diversas artes e introduziu entre nós o termo artes visuais, trazido da italiano Giulio Carlo Argan chegou trazida pelo poeta Murilo Mendes. Na escola nova-iorquina que inspirou o desenho da nova Escola, na qual ele mensagem Argan, que Mário havia mobilizado em apoio ao museu, ques- havia estudado. Foi da EAV que partiu a marcha pela reconstrução do MAM tionava a solução de utilizar parte do edifício construído para abrigar a depois do incêndio ocorrido em 8 julho de 1978, um momento trágico na UNCTAD14 para guardar temporariamente o acervo, que necessitaria de história do museu e no contexto cultural brasileiro. Ocorrido durante a condições museológicas adequadas. Em carta Pedrosa simplesmente “dá exposição “Geometria sensível” (curadoria de Roberto Pontual), que incluía uma bronca” no crítico italiano, com a sua polidez e inteligência, em bom uma exposição retrospectiva do artista uruguaio Joaquín Torres García francês. Numa atitude absolutamente descolonizada, Pedrosa reafirma (1874-1949). A maioria das obras em exposição, além de parte do acervo e que a solução seria temporária e que nada tinha a ver com o desconhe- das instalações do museu, foi destruída. Fotografada por Celso Guimaraes, cimento das condições adequadas ao acondicionamento de um acervo, então professor da EAV, a manifestação, organizada por Rubens Gerchman e mas sim com a situação social e política daquele país, que Argan parecia por artistas que frequentavam a Escola, reuniu representantes do Pasquim, desconhecer. Item a item Pedrosa situa o crítico e historiador italiano nos dos artistas plásticos, dos desenhistas, da Esdi, do Salgueiro, dos Museus conflitos da América Latina, nas necessidades que a luta pelo socialismo do Índio e Histórico, além de Joãozinho Trinta, das baianas da Beija Flor impunha àquele e a outros povos. Com firmeza esclarece que o museu era e de uma infinidade de pessoas e representações de grupos culturais da parte do processo revolucionário fabuloso e sem precedentes que tinha cidade para que desejassem um novo MAM. O cineasta Aurélio Michiles lugar no Chile naquele momento. Desculpa-se, mas segue fazendo uma digressão sobre o plano político, pois como afirmaria, “se vamos até o diria a Argan: “Pardonne-moi pour cette digression sur le plan politique. Mais c’est de fundo de nosso pensamento, é deste plano que saiu a ideia do museu”.15 ce plan – si on va jusqu’au bout de notre pensée – que l’idée du Musée est sortie. Si on oublie cela on perd les justes perspectives. Et on ne peut plus saisir dans toute son importance la si belle expérience d’un Musée d’art moderne et expérimental, fondé 13 carta de Mário Pedrosa a Pablo Picasso. Pertencente ao acervo do Museu da Solida- sur la solidarité des artistes et des critiques du monde avec un petit pays qui s’est mis riedade Salvador Allende. Cortesia de sua diretora Claudia Zaldivar, que tive o prazer par vents et marées sur la vois d’un socialisme chérissant les libertés humaines. Le de conhecer nas pesquisas que realizei por ocasião da edição do livro Mario Pedrosa: succès de cette expérience comptera aussi pour le prochain avenir artistique du mon- primary texts (Organização Glória Ferreira e Paulo Herkenhoff, MoMA, 2016). de. Je crois de ma part que l’avenir de l’art est conditionné à l’avenir international de 14 iii United Nations Conference on Trade and Development, realizada em Santiago, Chile, l’expérience socialiste dans le monde, dont le modeste modèle chilien est l’exemple le em 1972. plus récent et certainement le plus chargé de signification”. 15 carta de Mário Pedrosa a Giulio Carlo Argan. Santiago do Chile, 31 de julho de 1972. 16 VENANCIO FILHO, Paulo. História, cultura periférica e a nova civilização da imagem. Acervo Museu da Solidariedade Salvador Allende. No item 9 de sua carta, Pedrosa Revista Arte & Ensaios no 5. RJ: UFRJ, 1998. p. 94.

260 261 idealizou com o coletivo Ur-gente um ato teatral que fazia alusão à obra aprendizado prático com algumas matérias gerais como história da arte, do uruguaio Joaquín Torres García e também críticas à mercantilização da antropologia cultural e seções especializadas: cultura urbana, comunida- arte e aos interesses comercias crescentes no circuito cultural da época. des rurais, comunidades tribais, festas urbanas, Carnaval. Falou ainda da Um debate foi realizado com a presença de Mário Pedrosa, Ferreira Gullar, estrutura administrativa e das estratégias de sustentabilidade do museu, Heloisa Lustosa, entre outras pessoas que lotaram os pilotis do MAM, num em termos que hoje ainda parecem bem atuais: acontecimento raro de participação social que dificilmente se produziria em prol de um museu nos dias de hoje. Os desdobramentos do caso e as A fundação deve ser pública ou de natureza mista para assegurar sua tentativas de se aproveitar da tragédia para refazer o museu sobre outras permanência e solidez, sobretudo quanto a recursos, mas dispor de uma bases, administrativas e conceituais, estão relatados em uma série de estrutura organizatória autônoma a fim de assegurar uma orientação cul- textos publicados pelo jornalista, poeta e crítico Roberto Pontual no Jornal tural e artística não só coerente e homogênea, mas não sujeita a variações do Brasil, entre eles o texto “MAM, mãos à obra”, em que Pontual afirma de orientação e administração, consequência de intervenções políticas com clareza: extemporâneas e burocráticas não de todo aconselháveis [...]18

[…] é chegada a hora de se indagar sobre as verdadeiras condições físicas Ou seja, tratava-se de projetar outro lugar de visibilidade para as ma- e espirituais em que se processa o trabalho da inteligência e da criação en- nifestações artísticas no país, que contemplava a sua riqueza cultural e tre nós, traçando um mapa realista das nossas disponibilidades, carências antropológica, e fazia do Museu das Origens não um fim em si mesmo, mas e procedimentos no campo. E, de volta ao desastre do MAM, certeza, espe- uma pedra fundamental na articulação entre museus existentes e aquele cialmente, de que a oportunidade é esplêndida para reconstruí-lo a partir que se queria reinventar. de novos parâmetros, visando não apenas à atualidade de suas instalações Nesse mesmo sentido, com outra estratégia, não se pode deixar de falar e ao aperfeiçoamento de sua segurança, mas, sobretudo, à modernidade da criação dos cursos de graduação e posteriormente de pós-graduação de sua concepção como instrumento do fazer, do saber e do prazer de todo em arte nas universidades públicas brasileiras federais e estaduais. Esse um povo. De um povo que somos nós, brasileiros, neste momento.17 movimento foi estruturado em meados da década de 1970, sendo pioneira a Escola de Comunicações e Artes da USP, na qual atuava o crítico Walter Na ocasião foi constituído um comitê permanente pela reconstrução do Zanini e um grupo de artistas, entre eles, Carmela Gross, José Resende, MAM, e entre as propostas apresentadas a que se destacou foi a de Mário Paulo Baravelli, e outros. Posteriormente, no Rio de janeiro, o movimento Pedrosa – a fundação do Museu das Origens – que previa o estabeleci- foi liderado pelo artista Carlos Zilio e por um grupo de artistas e críticos, mento de cinco museus: Museu do Índio; Museu da Arte Virgem (Museu do entre os quais Ronaldo Brito, e iniciaram suas atividades na década de 1990, Inconsciente); Museu de Arte Moderna; Museu do Negro; Museu das Artes na PUC, com uma especialização em História da Arte e da Arquitetura, e Populares. Na contramão do que vivenciamos hoje, a ideia de Pedrosa não depois, reunidos com outros companheiros, entre eles Lygia Pape, Paulo seria inventar um novo museu, mas reunir e recuperar os museus existentes Venâncio e Glória Ferreira, criaram o Programa de Pós-Graduação em Artes no sentido de preservar aquilo que cada um teria de valioso, suprir suas Visuais na Escola de Belas Artes da UFRJ. Segundo Zilio, a entrada da arte lacunas e potencializar sua existência em conexão em um projeto de museu na universidade era necessária para fazer frente ao mercado que se pro- bastante sofisticado, em que estariam colocados lado a lado artes populares nunciava, especialmente em São Paulo, tendo em vista nosso meio social e contemporâneas, recortes antropológicos e outros mais ligados à história bastante imaturo para a sua instauração. A necessidade de vinculação da da arte. Pedrosa discorreu ainda sobre um programa de cursos teóricos e arte ao conhecimento formal fez e continua fazendo frente a uma situação específica do ambiente brasileiro, de desvalorização da cultura, haja vista os 17 pontual, Roberto. MAM: mãos à obra. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19 de julho, atuais retrocessos e enganos cometidos na extinção e posterior recolocação 1978. O autor também abordou o incêndio e a reconstrução do MAM-RJ nos textos MAM: reconstrução? Revista Arte Hoje, no 17, Rio de Janeiro, novembro de 1978 e Onde experimentar. Jornal do Brasil, Caderno B, 19 de agosto de 1978. Ambos os textos fo- 18 o novo MAM terá cinco museus. É a proposta de Mario Pedrosa. Jornal do Brasil, Rio de ram reeditados In: PUCU, Izabela e MEDEIROS, Jacqueline (orgs.). Roberto Pontual: Janeiro, 15 de setembro, 1978. Reeditado em ARANTES, Otília (org.). Política das artes. obra crítica. Rio Janeiro: Azougue, 2012. Mario Pedrosa. Textos escolhidos I. São Paulo: Edusp, 1995

262 263 do Ministério da Cultura pelo governo interino deste país. Serviu também, nós uma dinâmica muito produtiva e formadora, que abriu espaço para que como diria Zilio, “para que se estabelecesse entre nós uma reflexão sobre os artistas aprofundassem aquilo que já havia sido colocado na ordem do arte que a colocasse em conflito produtivo com o conhecimento no sentido dia por Mário Pedrosa e Hélio Oiticica: a tomada de posição em relação a mais amplo”19 e para demarcar um lugar social. problemas políticos, sociais e éticos. Se a arte está dentro dessa instituição social significa que ela pertence Como sabemos, a organização em coletivos no campo cultural é um à área do conhecimento e, portanto, não é alguma coisa ligada ao consu- fenômeno cíclico, muitas vezes marcado pela descontinuidade ou pela mo, à diversão ou ao entretenimento. Outro dado favorável da instituição breve existência, apesar de sua importância. Mas, parece-me importante é que ela tem uma dinâmica própria. Quer dizer que a instituição mantém desfazer certos preconceitos que envolvem a dicotomia coletivos x insti- o conhecimento como um acesso permanente entre gerações. Tem uma tuições, e reiterar que a descontinuidade e a precariedade são um aspecto dinâmica autônoma. Isso tem a ver também com uma questão que ainda que no Brasil caracteriza também grande parte das instituições, digamos, contava para as pessoas da minha geração, que é a formulação de uma mais tradicionais.24 Muitas instituições públicas, e não apenas os centros visão de Brasil, de um projeto de Brasil. Isso era uma questão política.20 culturais e museus, são sustentadas pelo tipo de compromisso descrito Em contraponto a manipular estrategicamente a força de instituições por Basbaum, que passa pela estreita relação entre trabalho e vida, pelo canônicas, como a universidade – mesmo que decadente sob muitos aspec- engajamento de pessoas específicas que garantem “na raça, com estratégias tos – e o Museu, o movimento dos coletivos de artistas iniciado em meados de guerrilha”, o desenvolvimento das instituições com qualidade pelo tempo da década de 1990, que se estenderia até meados dos anos 2000, significou de sua atuação. Algo nesse sentido é o que está acontecendo há dois anos a produção de institucionalidades minoritárias, como descreveria Ricardo e meio no processo de gestão do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Basbaum,21 baseada em políticas da amizade e em processos de trabalho do qual sou diretora e curadora, desde fevereiro de 2014. Um processo colaborativos, movimento que passa pela “tomada de consciência acerca que conta com o suporte do poder público municipal, mas que depende da trama institucional do sistema de arte [...] e também por uma reflexão especialmente da participação de diversos grupos sociais, do movimento sobre o papel do artista frente ao tecido social e ao circuito”.22 de diferentes corpos, muitas vezes em conflito. Colaboram e participam Basbaum argumenta que essas agências de artistas estabeleceu uma ativamente da produção da instituição a comunidade acadêmica, em proje- modalidade de compromisso de trabalho diferente daquele do funcionário, tos como o Programa Plataforma de Emergência,25 coletivos como a Oficina que passa pelo comportamento e pelo corpo, que não começa e termina Experimental de Poesia, como o Norte Comum, além de artistas, produtores com hora marcada, que passa pela relação entre arte e vida. O compro- e outras instituições que integram o programa de exposições, seminários, misso “de um tempo de produção e invenção da instituição, de um tempo cursos e debates e nos ajudam a tornar esse espaço efetivamente público. de institucionalização que passa por esse outro lugar que é também o da Com autonomia proporcional à precariedade, o modelo de gestão que convivialidade, comprometido com um tipo de sociabilidade que é parte es- está sendo desenvolvido no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica – um tratégica da ação”.23 A organização desses artistas em agências, em espaços contra-modelo na realidade, um modelo site specific – conjuga a herança que misturavam ateliê, residência e escritório, a invenção de tecnologias de todos os movimentos citados aqui, na direção da implementação de de sobrevivência e a produção de redes de colaboração, estabeleceu entre outra institucionalidade capaz de corresponder às vontades coletivas e

19 Zilio, Carlos. Depoimento inédito em entrevista aberta a Chatherine Bompuis, Lívia 24 o exemplo mais recente desse fato entre nós foi a extinção da Casa Daros depois de Flores e Ernesto Neto. Seminário “Formação e estatuto do artista”. Escola de Artes mais de quatro anos de reformas e apenas um ano de funcionamento, e a própria ir- Visuais do Parque Lage, 2012. regularidade da trajetória do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, que completa 20 Idem. 20 anos em 2016 com uma trajetória bastante irregular, intercalada por períodos de crescimento e decadência, sendo o mais penoso entre 2009 e 2013, quando chegou a 21 BASBAUM, Ricardo. O papel do artista como agenciador de eventos e fomentador de funcionar inclusive sem gestor. produções frente à dinâmica do circuito de arte. In: Manual do artista e etc. Rio de Janeiro: Azougue, 2013. 25 o Programa de Extensão Plataforma de Emergência é realizado pelo Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica em parceria com cerca de 40 professores de UFRJ, UFF, Uerj, 22 ibid., p. 121. PUC-Rio, Unirio e UFRRJ. Saiba mais em https://www.facebook.com/plataformadee- 23 ibid., p. 122. mergencia.

264 265 contribuir para o aprofundamento da democracia. É uma aventura o que folha de papel. É incrível como o humor ajuda a suportar certos dramas estamos vivendo na reinvenção de HO, como o espaço é carinhosamente e tragédias. O MUF não está abatido. O MUF não está sozinho. O MUF está conhecido, baseada na disponibilidade disseminada entre as pessoas em mais forte. Recebemos muitas mensagens de apoio do Brasil e do exterior. ocupar os espaços e buscar visibilidade para suas práticas e lutas. Essa O Ibram e a Superintendência de Museus da Secretaria de Cultura do Es- disponibilidade, a meu ver, é uma reação propositiva, constituinte, que se tado também se manifestaram de modo solidário. Agradecemos a todos e nota em diferentes pontos do país, a um período histórico compreendido adiantamos que vamos mesmo precisar de todo apoio nesse momento e entre as manifestações de 2013, as ações para o acontecimento dos me- nesse movimento de reconstrução. Reconstruir! Eis o nosso brado!26 gaeventos esportivos, e o nebuloso processo de impeachment que tornou patente, de forma assustadora, a fragilidade das instituições políticas no Talvez nos ajude a especificar esse tipo de força social instituinte, que Brasil, e da própria democracia. não parte de um governo ou liderança tradicional, sindical, por exemplo, Com certeza outros exemplos poderiam ser relacionados nessa ge- a partir da noção de imaginação radical trazida por Cornelius Castoriadis, nealogia que busquei desenhar a partir do que estou chamando “fazer em entrevista a Dominique Bolliger,27 que nos oferece um contraponto instituição como crítica”. Muito pouco explorada e conhecida no campo da muito interessante à ideia de criatividade, tão apropriada pelas indústrias arte contemporânea, por exemplo, é a perspectiva trazida pela museologia e economias criativas, normalmente focada no artista ou no indivíduo social, que sob muitos aspectos oferece resposta mais direta à proposição criador. O filósofo e psicanalista greco-francês nos diz que uma sociedade de Oiticica de que façamos esse momento ético, simbolizado pela ban- é cada vez mais obra de si mesma, sendo sua ferramenta fundamental de deira Seja marginal, seja herói (1968), ou pelo bólide Homenagem a Cara autoprodução a imaginação radical instituinte, que não seria uma coisa de Cavalo (1964). Entre eles, o Museu da Maré, no complexo de favelas que as pessoas possuíssem em quantidades maiores ou menores, mas sim homônimo, o Museu de Favela (MUF), museu de território com sede na “um processo coletivo, algo que os grupos fazem conjuntamente através de região compreendida entre Pavão-Pavãozinho e Cantagalo; o Museu das experiências compartilhadas, línguas, histórias, ideias, arte e teoria, força Remoções, na Vila Autódromo, em Jacarepaguá, lugares de elaboração e coletiva”.28 Práticas como as relacionadas neste artigo, e não apenas aque- memória dessas comunidades, em sua maioria, paisagens culturais arrasa- las desenvolvidas em espaços localizados em favelas, reforçam o convite a das por projetos excludentes de sociedade. O professor e museólogo Mário nos “voltarmos para o mundo”, feito por Hélio Oiticica também de forma Chagas, atuante nessas instituições, recentemente publicou um relato em magistral na sentença “Museu é o mundo, a experiência cotidiana”, 29 que uma rede social sobre um acidente ocorrido no MUF, que transcrevo aqui sem qualquer alteração: 26 tive o prazer de conhecer Mário Chagas no seminário “Hélio Oiticica para além dos mitos”. Causou-me grande admiração a maneira como ele mediou os conflitos surgidos no debate de nossa mesa-redonda (conflito formador e raro, diga-se de passagem, em Hoje estive no Museu de Favela (MUF) pela manhã com os companhei- que finalmente se conseguiu debater na divergência, sem um dos lados romper com o ros Antônia Ferreira Soares, Sidney Tartaruga, Rita Santos e seu João. diálogo, em que aprendemos). Tudo o que citei sobre Museologia Social neste artigo Fizemos um levantamento dos estragos, visitamos as casas atingi- deve-se a um encontro que tivemos posteriormente. A ele agradeço por me introduzir das pelas estruturas que foram arrancadas do Terraço Cultural do MUF nesse campo de trabalho em que desenvolve suas pesquisas de forma tão vigorosa. A postagem a que me refiro não pode mais ser acessada. Informações sobre o MUF pelo vento de mais de 123 km por hora. Mapeamos os danos de 10 ca- Museu de Favela podem ser obtidas na sua página oficial no Facebook https://www. sas e vamos iniciar uma campanha, tendo por prioridade as casas facebook.com/museudefavela/?fref=ts. dos moradores que foram atingidas pelas vigas de metal e pelas te- 27 entrevista concedida por Cornelius Castoriadis a Dominique Bolliger, em 1992, para lhas arrancadas do Terraço. Felizmente os danos não são graves e nin- o Centre National de Documentation Pédagogique, na França. Disponível em vídeo, guém foi ferido. Decisão do Colegiado do MUF: vamos cuidar das casas dividida em seis partes, no link https://www.youtube.com/watch?v=CVprzAUBqs0 para o YouTube. dos moradores que foram atingidas. Só depois vamos cuidar do MUF. 28 “Porque os movimentos sociais precisam de imaginação radical”. Artigo de Alex Khas- O bom humor de alguns moradores que filmaram com os olhos o trági- nabish e Max Haiven, publicado originalmente em Opendemocracy.net, republicado co acontecimento produziu a seguinte imagem: “Caraca! Lá vai o tapete no site esquerda.net no link http://www.esquerda.net/artigo/por-que-os-movimentos- voador do MUF”. O vento foi tão forte que transformou a cobertura do -sociais-precisam-da-imaginacao-radical/33535. Terraço Cultural com bem mais de uma tonelada em um “tapete”, em uma 29 oiticica, Hélio. Programa Ambiental. In: Catálogo da Exposição Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, 1996, p. 104.

266 267 dá nome à mesa-redonda a partir da qual escrevo esta contribuição. Se DA ADVERSIDADE VIVEMOS,30 como encerraria o artista em seu já citado artigo de 1967, tais práticas nos ajudam a estruturar não apenas outra ideia de museologia, mas, em última análise, são fundamentais para instituir a sociedade que queremos.

30 oiticica, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. Catalogo de exposição. MAM: Rio de janeiro, 1967.

268 269 Instituição, programa in progress? Lisette Lagnado Crítica de arte e curadora, dirige, desde 2014, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro

Não irei expor as já conhecidas restrições de Hélio Oiticica (1937-1980) sobre a instituição artística. Por uma razão muito simples: interessa aqui pensar a eficácia – ainda que residual ou corrompida – das proposições de um dos maiores nomes do século XX. Dedicarei, assim, a primeira parte deste artigo a uma compilação sumária de ideias consagradas em torno da instituição, antes de adentrar o aparato conceitual de um artista que, até o final dos anos 1970, planejava cada uma de suas “invenções”,1 com uma rara consciência de quem apenas produz para o sistema da arte se for algo rigorosamente inserido em um horizonte chamado “programa”. O que, entretanto, complica a presente reflexão é que esse programa foi concebido de modo a ficar aberto, em movimento, permeável ao fluxo do tempo e do acaso. A morte de seu autor interrompeu indiscutivelmente a expansão dessa matriz, o que não significa que deva encerrar seu caráter propositivo e negar sua liberdade essencial. Um programa aberto é, antes de mais nada, um programa livre.

1 “Invenção” é o termo empregado por Hélio Oiticica para designar seu trabalho. No vo- cabulário controlado desse artista, a terminologia tem um rigor estratégico. O título do primeiro estudo de Celso Fernando Favaretto, A invenção de Hélio Oiticica (São Paulo: Edusp, 1992), faz-lhe justiça.

271 Ora, a dificuldade reside em identificar como um programa in pro- a derrubada de antigos princípios morais: posição é um termo intrinsica- gress – denominação usada por Oiticica – tem condições de manter uma mente ligado ao corpo no espaço.3 Por entender o programa de Oiticica integridade nos moldes atuais da instituição. Dedico este texto à artista como um programa com ênfase no processo (não é uma escola, nem um Laura Lima que está enfrentando uma pressão maligna provocada por uma movimento), preferi adotar este texto ao conhecido manifesto “Esquema acusação absurda de uma das participantes de seu trabalho The inverse, geral da nova objetividade” (1967). Muito mais citado, “Nova objetivida- atualmente no ICA de Miami. Atentados desse tipo colocam em risco a de” corria o risco de misturar as águas do meu escopo curatorial no caldo liberdade da arte e mostram o quanto a expressão artística precisa de cultural do tropicalismo.4 outro tipo de instituição. Com maior ou menor voltagem, os artistas convidados a participar A segunda parte será voltada para um estudo de caso, a 27ª Bienal, da 27ª Bienal atualizaram um repertório de ideais conceituados quatro exemplificado por alguns artistas convidados. Naquela bienal, realizada décadas antes: a superação do quadro de cavalete, a participação do es- em 2006, procurei colocar em rotação conceitos enunciados pelo artista pectador, a tendência para proposições coletivas e o engajamento da arte em seu Programa ambiental (1966), também chamado Parangolé. Preten- nos problemas políticos e sociais. A conjugação desses fatores culminou do assim revisitar Oiticica no contexto de uma bienal internacional como em várias formações singulares de coletivos ou “comunidade” – urbanas, exemplo de instituição. periféricas, religiosas, sexuais, multiculturais ou até mesmo sem identidade, sinalizando o advento da I Bienal de São Paulo sem nenhuma representação oficial de um Estado-nação.5 1. Posição e programa

A percepção da arte sob uma visada programática é um traço essencial das 2. Vanguarda e instituição, mitos siameses vanguardas russas, e nesse sentido a consulta aos notebooks de Oiticica confirma o vulto de uma comparação com perspectivas construtivistas, Falar do mito da “instituição” é uma tarefa que conduz à Teoria da van- permitindo verificar que havia uma verdadeira vontade projetual à maneira guarda (1974) de Peter Bürger e, consequentemente, implica contestar a das escolas de arte, arquitetura e design, emblematizadas nos Ateliês Su- noção de autonomia esteticista da arte. periores Técnico-Artísticos Estatais (Vkhutemas, 1920-1930), entre outras De tempos em tempos, dada a relação dialética entre contexto histórico e iniciativas políticas educacionais. Para um artista da envergadura de Oiticica, recepção da arte, os artistas reformulam os objetivos, a definição e a função o projeto artístico não se concebe desvinculado do campo da educação. social a arte. Nas dinâmicas de “vanguarda”, os artistas se empenham em Ora, insistir mais uma vez no pioneirismo de Oiticica é uma afirmação ampliar os limites de atuação. Sua estratégia é de “choque”, de combate aos que, nos últimos anos, atingiu o espesso nevoeiro da mistificação. Se o critérios e diretrizes do sistema normativo. A vanguarda condena formas de objetivo dos encontros deste seminário consiste em desconstruir mitos, negociação com a instituição. Assim sendo, o artista se depara com forças todo cuidado será pouco. antagônicas: explorar a instabilidade do seu presente e mirar uma qualidade A 27ª Bienal de São Paulo procurou trazer as linhas de “Posição e pro- universal, que transcende seu tempo e espaço, sob o risco de ficar datado. grama” para a contemporaneidade. Escrito em 1966, esse texto se dirige a um horizonte mais abrangente que os fenômenos da arte. Além de um 2 3 as páginas iniciais da publicação 27ª Bienal de São Paulo: como viver junto (São Paulo: vasto vocabulário, em que o conceito de “antiarte” é positivado, a própria Fundação Bienal, 2006) sugerem uma linha transversal de contiguidade entre o frag- escolha do título corrobora na aspiração de uma finalidade ética, exigindo mento “Fantasia” (Barthes, Roland. Como viver junto, trad. Leyla Perrone-Moisés, São Paulo: Martins Fontes, 2003) com fac-símiles de textos de Hélio Oiticica (“Posição e programa”, julho 1966 e o projeto não realizado de quatro penetráveis para o Central 2 “Antiarte – compreensão e razão de ser do artista não mais como um criador para a Park de Nova York, subterranean tropicalia projects, de 1971). contemplação mas como um motivador para a criação – a criação como tal se comple- ta pela participação dinâmica do ‘espectador’, agora considerado ‘participador’”. In: 4 Hélio Oiticica se manifestou várias vezes contra a associação estabelecida entre seu “Posição e programa”, julho 1966. Todos os textos de Hélio Oiticica aqui mencionados Programa ambiental (ou Parangolé) e o tropicalismo. podem ser encontrados no site que organizei. Disponível em: http://www.itaucultural. 5 cf. “A primeira bienal do século”, palestra de Waldir Barreto, Palácio do Café, Vitória org.br/programaho/. (ES), 20/09/2006.

272 273 A instituição é o canal que não somente torna pública, mas legitima a fique com o momento pós-moderno brasileiro, seus alicerces fundamentais produção do artista. Depois de uma obra escrita, uma pintura ou escultura estão inscritos no ideário da vanguarda. 7 tida por finalizada, esse trabalho deixa o âmbito particular (o que quer que Falar do mito da vanguarda remete, portanto, ao seu outro, intrínseco, chamemos esse momento de maturação da obra, de “solidão essencial” que lhe assegura o conflito necessário para existir: o mito da instituição. A ou de solipsismo) e busca uma comunicação com o outro. Nesse aspecto, arte é uma disciplina amparada em códigos normativos. Sua prisão ou sua o papel da instituição teria a função de projetar uma ponte entre o dentro clínica – a “vigilância disciplinar”, para usar uma terminologia foucaultiana e o fora, uma subjetividade e uma alteridade, a vida interior do sujeito – é a exposição, seja ela realizada em museu, centro cultural ou galeria. O e sua relação com o mundo. Na prática, consiste em exibir e difundir a fiscal da arte é encarnado na figura do crítico, iminente porta-voz dos valores produção artística – função assumida por museus, centros culturais, ga- da sociedade moderna. Nesse panorama, pensadores como Foucault e De- lerias e publicações especializadas (livros, catálogos e revistas) com seus leuze, ainda que sem se debruçar especificamente sobre valores estéticos, respectivos agentes (críticos de arte, curadores, editores etc.). Portanto, tornaram-se fundamentais no debate do mito da “instituição artística”. a instituição não deve ser entendida apenas como um espaço físico: ela é o próprio instrumento social que dá lastro ao fazer artístico. Mas a contribuição de Bürger esclarece o quanto a instituição deve 3. Adeus ao esteticismo sua engrenagem a uma sociedade burguesa. Ainda que o regime das artes plásticas tenha adentrado a era das massas (exposições financiadas por Gostaria de passar agora para a inserção de trabalhos dessa natureza no corporações privadas, atraindo a popularidade do turismo cultural), o cotidiano dos espaços institucionais. fato é que sua distribuição permanece restrita a uma elite. A tão aguar- Desde a primeira exibição da maquete de Cães de caça (1961), o críti- dada etapa da democratização da arte não se concretizou; foi, e continua co Mário Pedrosa avaliou o revés causado aos paradigmas modernos por sendo, um sofisma. um projeto de jardim público, dotado de cinco Penetráveis, em forma de Enquanto o aparato de Marcel Duchamp foi capaz de instaurar uma labirinto.8 Não deixa de surpreender que, até o presente momento, ne- ruptura epistemológica, no lugar do choque sobram hoje escândalos opor- nhuma instituição tenha conseguido construir esse projeto, baseado no tunistas que apenas replicam as questões mais urgentes nas redes virtuais. desenvolvimento da cor no tempo e no espaço. A vanguarda que, nos anos 1960, vestiu a roupagem da contracultura perdeu sua conotação programática. Com a indústria cultural, os acontecimentos Deve-se acolher, calorosamente, o MAM do Rio de Janeiro por acolher uma artísticos se tornaram interdependentes da cultura de massa. O desejo, experiência como a desse jovem artista de talento que é Hélio Oiticica. por sua vez, resiste. O desejo vanguardista de transformação do cotidiano É que os museus de arte contemporâneos, ou aqueles dedicados a esse permanece no sentido apaixonado e utópico. A arte política não está mor- mito que é a arte dita moderna, não podem ser confinados às atividades ta, ao contrário: ganhou contundência no cinema de arte, na performance tradicionais da entidade – guardar e expor obras-primas. Suas funções são e nas instalações de modo geral. Assim, embora a chamada geração da bem mais complexas. São eles intrinsecamente casas, laboratórios de ex- contracultura reconheça Oiticica como legítimo protagonista de seu tempo periências culturais. Laboratórios imediatamente desinteressados, isto é, histórico (o artista aderiu a todos os seus ícones6) e Mario Pedrosa o identi- de ordem estética, a fim de permitir que as experiências e vivências se fa- çam e se realizem nas melhores condições possíveis ao estímulo criador. O Museu, assim concebido, é a luva elástica para o criador livre enfiar a mão.9 6 a tese de Celso Favaretto, “A invenção de Hélio Oiticica” (1992), foi um dos estudos precursores na elucidação do alcance de uma “nova sensibilidade” e “nova consci- ência” no complicado cenário cultural do Brasil durante o regime militar. Em 2003, Favaretto orientou meu doutorado, com foco na década de 1970, vivida em Nova York, 7 no presente debate, a neovanguarda constitui uma digressão sem interesse aqui. “Hélio Oiticica: O mapa do Programa ambiental” (não publicada) – ambas foram de- fendidas no Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências 8 além dos cinco Penetráveis de Hélio Oiticica, Cães de caça é constituído do Poema Humanas da Universidade de São Paulo. No volume 2, dedicado ao glossário do Pro- enterrado de Ferreira Gullar e do Teatro integral de Reinaldo Jardim. grama ambiental, aparecem as referências mais recorrentes, tais como Jimi Hendrix, 9 Cf. Pedrosa, Mário. Catálogo da exposição “Projeto cães de caça”. Rio de Janeiro: Bob Dylan, Black Panthers, entre outros. Museu de Arte Moderna, 1961.

274 275 Vivenciar a cor é uma proposição de caráter estético e sublime. Mais As reproduções que vemos dos Ninhos no Museum of Modern Art de Nova adiante, à medida que o artista amplia a participação do espectador, a York (“Information”, 1970, curadoria de Kynaston McShine), um ano de- relação com a instituição se torna mais complexa. Oiticica menciona a pois, mostram que eles foram “habitados” e vivenciados. Na qualidade de dificuldade de solicitar que o visitante tirasse os sapatos para se entregar espaços institucionais, a liberdade que instituições como Whitechapel e aos aspectos sensoriais do ambiente proposto. Hoje, os obstáculos são o MoMA proporcionaram naquele tempo desconcerta diante da realidade formulados pela própria instituição, cujos departamentos jurídicos se dos espaços públicos atuais. encarregam de antever toda sorte de probabilidade de danos, em sua Obviamente, o ambiente mais vivo que Oiticica encontrou para apre- maioria de ordem abstrata e moral. A autocensura, assumida por muitas sentar suas invenções foi, ao longo de quase uma década, os dois lofts instituições, não liquidou a arte experimental, porque a experimentalidade (Babylonests e Hendrixsts, batizados à maneira como o são lugares abertos faz pouco caso dos sistemas legais para ocupar espaços. ao público), onde exibia suas live performances e projetava seus live films. A Depois de Cães de caça, as propostas colocando em xeque as regras fusão de filmes com performances deságua nos blocos de imagens e trilhas da instituição se tornam mais complexas, pois se de início Oiticica estava sonoras das Cosmococas, programa in progress, que Oiticica realiza com concentrado no sujeito-participador (com apenas uma pessoa entrando de Neville d’Almeida.10 Vale refutar os equívocos que foram escritos sobre cada vez nos Penetráveis), os desdobramentos passam a contemplar uma esse período, insinuando ideias de reclusão em ninhos-casulo, quando na multidão e, obviamente, toda multidão representa uma ameaça à ordem verdade o artista estava antenado com o modus operandi eletrizante de vigente. Poucos sabem que na inauguração da mostra “Esquema geral da toda uma juventude atuante no baixo SoHo de Nova York. nova objetividade”, no MAM-RJ, o cortejo de passistas da escola de samba da Outro ponto importante: sendo programa in progress, como justificar Mangueira, participando da manifestação ambiental Tropicália, seguiu pelo o tratamento de “instalação” conferido às Cosmococas? A “manifestação aterro do Flamengo por ter sido dispersado pela polícia na área do museu. ambiental”, exaustivamente conceituada nos escritos de Oiticica, continua Qual regime institucional estaria apto a receber uma invasão de passistas ausente nas categorias normativas do display expositivo. O dia em que a da comunidade da Mangueira sem o protocolo das autorizações prévias? instituição souber trabalhar a concepção participativa de Oiticica como Nesse momento, cabe pontuar que o termo “manifestação” evidencia parte e sine qua non de sua obra será dado um passe (“passe” e não maior afinidade com “protesto” do que com a linguagem da “instalação”. “passo”!) descomunal. O Programa ambiental dispensa guias e manuais Da multidão emanam pulsão e imprevisibilidade. Para um neto de anar- de programas educativos por constituir, em si, um autocaminho para a quista, a subversão e os desvios são palavras de ordem. Seria interessante descoberta do corpo, sua finalidade máxima. trazer para este fórum de discussão as sucessivas bienais que sofreram atentados de pichadores, exigindo o reconhecimento de sua expressão e vitalidade. Em última instância, o que está em pauta é a livre germinação 4. Estudos de casos, 27ª Bienal de São Paulo de “situações” incontroláveis em um espaço público que não somente pri- ma por valores contemplativos, mas implica preocupações patrimoniais. Dois vetores pedagógicos estruturam a 27ª Bienal de São Paulo para tra- Não há conciliação entre a multidão – seja ela das encostas dos morros ou balhar com as questões antes apresentadas: “projetos construtivos” e das periferias – e o regime de uma instituição. Como combinar a presença “programas para a vida”. coercitiva de vigias e câmaras nas salas de exposição e as instruções de A bienal inaugurou oficialmente sem a exposição, sem uma lista de Oiticica rumo à libertação do corpo? obras, sem uma lista de artistas. O início da 27ª Bienal aconteceu com um Em 1969, convidado a expor na Whitechapel Gallery, o artista conse- seminário em janeiro de 2006, não coincidindo, portanto, com a abertura gue, além de reunir um conjunto significativo de sua produção, encontrar da mostra em setembro. A ideia consistia em não ficar refém de uma mos- a “luva elástica para o criador livre enfiar a mão”. Ora, essa “luva elástica” tra expositiva. O projeto curatorial esboçou cinco jornadas que, ao longo é parte tanto da obra quanto de sua fruição: o programa de Oiticica não consiste apenas em “deixar tocar” os Bólides ou “deitar” no plano Éden, etapa resolvida na instituição hoje por meio da construção de cópias ou 10 nunca é demais repetir que o projeto da 27ª Bienal não aderiu à tendência em voga em torno da “estética relacional” de Nicolas Bourriaud e que as afinidades aconteceram réplicas, mas consiste em garantir o processo de “descoberta do corpo”. por acaso.

276 277 do ano, discutiram conceitos-chave do Programa ambiental, alguns mais em Oiticica tangencia fortemente uma aspiração para o espaço público da implícitos, outros derivados de uma leitura atualizada e mais transversal. cidade. Cumprindo essa tarefa, a 27ª Bienal trouxe um conjunto vigoroso de Os seminários cumpriam o papel de evocar o regime conceitual de Oiticica obras de Gordon Matta-Clark (1943-1978), a partir da pesquisa nos arquivos sem forçar uma ilustração formal com sua obra. Essa ausência de obras revelando linhas de cruzamentos e afinidades com oP arangolé-área. Em foi a premissa curatorial para poupar os objetos artísticos do excesso de 1971, Matta-Clark liderou o boicote dos artistas americanos à Bienal de visibilidade (atitude que reforçaria uma retórica aurática do “criador”) e São Paulo, em repúdio à ditadura militar. Recusou participar como artista favorecer o campo até então negligenciado de um vasto léxico11 de palavras oficial dos Estados Unidos e seria apresentado pela primeira vez somen- “novas” que, no meu entender, deveriam ser incorporadas ao vocabulário te em 2006. Dan Graham foi outro artista importante no segmento que artístico, lembrando que Oiticica revisitou até os Metaesquemas para ca- ressignificou a vida dos subúrbios em contrapartida à falência do projeto librar uma sintaxe ambiental. moderno. A saída do museu, endossada por ambos, corresponde ao slogan Irei agora tratar rapidamente de cada seminário da 27ª Bienal.12 “museu é o mundo”,15 reivindicando espaços não consagrados para o fazer Iniciar as jornadas de debates com uma homenagem aos trinta anos artístico e, nesse percurso, valorizando áreas degradadas à margem dos do desaparecimento de Marcel Broodthaers (1924-1976) pretendia trazer grandes centros. o Musée d’Art Moderne, Département des Aigles (1971) em plano de equi- Nesse cenário, a questão que melhor exemplifica o horizonte de preocu- valência com uma iniciativa nunca concluída de Oiticica, Newyorkaises. pações de Oiticica talvez seja a ambivalência que certos trabalhos mantêm Pensado para ser um livro de caráter enciclopédico, Newyorkaises, assim entre o interior e o exterior da casa. Naqueles anos da contracultura, de- como o Département des Aigles, é um compêndio de experiências, oriundas vassar a intimidade da esfera do privado fazia parte de um projeto crítico. de diversas fontes e diversos autores, resultando em uma ideia corrosiva de A alternativa da vida em comunidade, um assunto que nos anos 1960 acervo já que tanto Broodthaers quanto Oiticica, aficionados por Mallarmé, significava uma tomada de oposição contra a vida burguesa em família, contestam a produção de objetos de arte fadados a retroalimentar o sistema constituía outro “programa para a vida”. Oiticica defendeu o “barracão”, institucional. Atuaram sem se conhecer (foram contemporâneos um do outro) “lugar-recinto-casa-ninho-roupa”, inspirado da arquitetura de favela e na na confecção de um repertório próprio e provocando agenciamentos. Essa espontaneidade do samba, como projeto ideal de comunidade. reflexão ganhou consistência na palestra de Ricardo Basbaum, enfatizando Matta-Clark foi também essencial no seminário dedicado à vida cole- um “dispositivo de atuação”.13 tiva.16 Do restaurante Food a iniciativas sociais organizadas por artistas, O segundo seminário abordou uma disciplina que atravessa toda a tra- esse núcleo talvez tenha sido o mais radical a esgarçar o sentido tradicional jetória de Oiticica, a arquitetura.14 O planejamento urbano sempre escapa da arte. O Taller Popular de Serigrafía, criado em Buenos Aires (2002), da racionalidade moderna das pranchetas dos arquitetos. Da primeira ma- foi uma resposta à crise do modelo de desenvolvimento capitalista na quete para um conglomerado de penetráveis aos Magic squares passando Argentina. TPS é o nome do coletivo que surge de assembleias de bairros por diversas deambulações urbanas de ascendência situacionista, tudo para veicular pautas sociais, com aulas abertas para ensinar a técnica da serigrafia, gerando uma iconografia específica estampada e veiculada em cartazes, faixas e camisetas, assim como Oiticica imprimiu palavras 11 minha tese de doutorado dedicou um volume ao glossário levantado nos escritos do de ordem em capas, estandartes e bandeiras. “Incorporo a revolta” é um artista. exemplo emblemático. O TPS se notabilizou pela luta das trabalhadoras 12 Havia originalmente um sexto seminário, focando a relação de Hélio Oiticica com o cinema (quase-cinema, mais precisamente), mas esse não se concretizou porque a que recuperaram a fábrica Brukman depois de sua falência decretada. A parceria com a Cinemateca não frutificou. Assim, alguns filmes foram exibidos no pró- estratégia de associar o trabalho artístico a uma apropriação técnica antes prio edifício da bienal e outros em duas salas comerciais da cidade, sem o seminário. Cabe registrar aqui Gordon Matta-Clark, Ivan Cardoso, Jack Smith, Jean-Luc Godard, Júlio Bressane, Marcos Bonisson, mas também Gerry Schum e Len Lye, entre outros. 15 cf. artigo “Museum is the world”, que escrevi para o encarte no jornal Valor Econômico, 13 cf. Deslocamentos rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico. caderno EU&, que acompanhou a curadoria da responsável pela representação france- In: 27ª Bienal de São Paulo: seminários (São Paulo, Rio de Janeiro: Fundação Bienal, sa, Corinne Diserens, trazendo Jean-Luc Moulène e Anri para a 25ª Bienal de São Paulo Cobogó, 2006), p. 57-74. O seminário “Marcel, 30” foi coordenado por Jochen Volz. (São Paulo, 01/01/2002). 14 o seminário “Arquitetura” foi coordenado por Adriano Pedrosa. 16 o seminário “Vida coletiva” foi coordenado por mim.

278 279 reservada a poucos mestres foi várias vezes adotada por Oiticica por meio tomarem corpo. A 27ª Bienal convidou o coletivo Eloisa Cartonera, uma de workshops, notadamente na Universidade de Sussex (1969), precedendo casa editorial baseada em Buenos Aires então dirigida por vários artistas, a montagem de um grupo de Ninhos. dentre eles Javier Barilaro. No regime “ambiental”, interessava conectar Pensar a existência de um artista vivo, porém não inserido na instituição o resultado ao processo de trabalho com os filhos de catadores de pape- clássica, autodidata e anônimo, é a pesquisa do Long March Project, reu- lão, publicando em tempo real novos títulos durante o tempo de duração nindo cerca de 250 artistas locais e internacionais. Desde 2004, consistiu da exposição.19 Dulcinea Catadora é a célula brasileira que nasceu dessa em refazer a caminhada da “revolução cultural”, visitando cada vilarejo e iniciativa, consagrada hoje na fabulosa Feira Tijuana. Hoje, ninguém acre- cada família, para resgatar a tradição de recortes de papel, com as práti- ditaria nas dificuldades encontradas para permitir sua inserção no andar cas de contação de histórias e teatro de bonecos. O Programa ambiental térreo do Pavilhão da Bienal. Além do display de estantes fixas, repletas de reverbera na seguinte pergunta: “O que fazer com os chamados artistas capas desenhadas, atuar como “célula viva” foi um desafio institucional. populares que moram na China, cuja vida e profissão são baseadas em uma Mais solto do quinto seminário fez do Estado do Acre uma heterotopia estética que não valorizamos?” que devolveria a floresta amazônica aos povos indígenas.20 O “adeus ao Sua apresentação no Pavilhão da Bienal edificou um gigantesco ar- esteticismo”21 de Oiticica permite agregar a arquitetura vernacular das quivo, compilando dados relevantes para examinar a realidade chinesa, casas populares, e a geometria dos povos indígenas, a pintura de um ex- observando informações relativas a gênero, origem étnica, educação e -seringueiro e autodidata, Hélio Melo, e assim por diante. Tratava-se, desde situação econômica. Da mesma forma que o Long March Project tem uma o lançamento da plataforma de uma bienal em consonância com Marcel perspectiva que valoriza o autodidata, a 27ª Bienal olhou para um Hélio Melo Broodthaers, de aproximar alguns artistas que trabalharam à margem da (1926-2001), artista, compositor e escritor nascido no Estado do Amazonas. instituição artística. Alguns investiram na esfera privada da casa e das ruas Olhou também para María Galindo, militante anarcofeminista, fundadora para alcançar esse objetivo, propondo formas de trabalho em cooperação do coletivo Mujeres Creando na Bolívia. Como enfrentar o machismo e a por meio de uma instituição apta a acolher encontros entre artistas e não homofobia? O convite a María Galindo se fundamentou na farta produção artistas. As residências artísticas em três Estados brasileiros (Acre, Pernam- textual de Oiticica contra uma arte “sexista”, ressaltando que Parangolé é buco e São Paulo) desempenharam uma função mobilizadora nesse sentido. experiência coletiva e manifestação performativa. Rirkrit Tiravanija, visivelmente próximo das premissas do Programa O seminário intitulado “Reconstrução”17 retomou os trabalhos iniciados ambiental, é um dos artistas cofundadores de The Land Foundation (1998), na jornada sobre arquitetura e antecipou algumas questões que surgiriam projeto em processo na Tailândia que “funciona em todas as direções, desde no bloco dedicado à vida em comunidade e ao ativismo social. Em síntese, o mundo urbanizado, globalizado e interconectado, até as comunidades a reunião desses três seminários permitiu atualizar uma série de proble- rurais, locais, orgânicas e fora da grade”.22 Tiravanija esclarece, contudo, mas que Oiticica levantou no fim dos anos 1960, quando se depara com o que seu trabalho sempre foi destinado à instituição mesmo criando “uma assassinato de Cara de Cavalo. Não cabe aqui esmiuçar o marginal, mais resistência em relação à estrutura (museus, galerias, cubo branco)”. uma aparição mítica nos escritos do artista, porém cabe recordar que a marginalidade e as diversas periferias do mundo globalizado ganharam uma representação enfática na 27ª Bienal, seja na série dos Marcados de [série de retratos do povo ianomâmi, nos habitantes do Jardim Miriam com o projeto Jamac ou nos meninos do Morrinho, mora- 19 cf. entrevista com Javier Barilaro. Disponível em: http://www.forumpermanente.org/ dores da Favela Pereira da Silva, com Paula Trope], seja no show do grupo rede/numero/rev-NumeroOito/oitoentrevistacartonera [último acesso: 4/06/2016]. congolês Konono Nº 1, para citar exemplos rápidos. 20 o seminário “Acre” foi coordenado por José Roca. O seminário “Trocas”18 desenvolveu questões relativas ao papel do par- 21 “Adeus, ó esteticismo, loucura das passadas burguesias, dos fregueses sequiosos de ticipador na obra de vários artistas, condição radical para certos projetos espasmos estéticos, do detalhe e da cor de um mestre, do tema ou do lema”. Oiticica, Hélio. “Crelazer”, Londres, 14/01/1969. 22 cf. “Contra a nostalgia”, entrevista de Rirkrit Tiravanija para a autora. Disponível em: 17 o seminário “Reconstrução” foi coordenado por Cristina Freire. http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2772,1.shl [último acesso em 18 o seminário “Trocas” foi coordenado por Rosa Martinez. 05/06/2016].

280 281 5. Concluindo A arte como campo possível para resgatar uma humanidade perdida, a arte como instância restauradora da harmonia, a arte contra a razão A aquisição gradual e anônima de campos de arroz, a serem cultivados instrumental – sim, mas para quem? Segundo Bürger, se acreditarmos em como espaços abertos à comunidade e à experimentação, atividade contí- apenas um modelo de instituição (e não em uma pluralidade de manifes- nua sem necessidade de aplicar noções de autoria, assemelha-se a outras tações), permanecemos pagando tributos à sociedade burguesa. O erro formas espontâneas de cooperação coletiva. Para Oiticica, o exemplo por tático da 27ª Bienal, vista com dez anos de distância, foi menosprezar o excelência é o samba praticado no Rio de Janeiro: independentes da apre- berço empresarial da Fundação Bienal, cujo mentor, Francisco Matarazzo sentação de um desfile no Carnaval, seus ensaios seguem ininterruptos ao Sobrinho (o Ciccillo), importou para a São Paulo dos anos 1950 o modelo longo do ano.23 De certa maneira, os seminários e as residências da 27ª BSP, da Biennale di Venezia, baseada em exposições universais. A impossibili- estendidos ao longo de um ano, funcionaram como “ensaios”, antecipando dade da Bienal de São Paulo atualizar sua agenda e seu modus operandi se a formalização desse conjunto de ideias no formato expositivo. A 27ª Bienal deve a sua intrínseca origem com ideários modernos, notadamente com a não procurou abolir o artista, nem a arte, nem o mercado, porém “substituir museificação do novo. A Fundação Bienal se insere na ideologia burguesa o valor da individualidade autoral pela ação comunitária e o bem comum”. denunciada por Bürger e, nesse sentido, embora não seja um museu strictu Ora, revendo a posteriori o empenho dispendido para manter vivo um sensu, suas ambições foram historicamente pautadas pela vinda de artistas acontecimento internacional centrado nas obras expostas na exposição, de renome internacional. é preciso admitir que a duração da experiência e o exercício da liberdade A tentativa de testar o Programa ambiental na instituição constituiu – duas das solicitações fundamentais no Programa ambiental – só conse- uma temeridade, muitos projetos não puderam ser levados a cabo devido guem uma vida artificial dentro de uma instituição. Se concordarmos que a entraves jurídicos, porém a despeito das adversidades encontradas, e Oiticica levou a instituição ao seu limite, propondo espaços labirínticos, a despeito de ter sido chamada de “bienal do terceiro setor”, algumas com vivências sensoriais, deliberadamente abertos a situações de riscos e conquistas continuam repercutindo. improvisos, houve uma ingenuidade curatorial na percepção de uma bienal Será que não poderíamos pensar uma instituição movente, isto é, que não museológica, que pudesse atuar por meio de plataformas experimentais. se adapta, absorve e reconfigura a obra de arte do mesmo modo que cada Mesmo assim, por sua força natural, o legado de Oiticica permanece época tem uma produção artística que lhe é própria? tão vivo quanto castigado (pelos próprios mitos que criou). Sua legitimação segue com firmeza a despeito dos problemas que colocou para a instituição e que esta, por sua vez, lhe traz hoje. Se estamos reunidos para discutir o mito da instituição no âmbito de sua obra é porque esse artista abalou de forma inédita, profunda e irreversível, o que entendemos por uma arte maior, e o fez sem concessões a esteticismos formalistas, como única manifestação legítima da sensibilidade, com desdobramentos em esferas marginais (outro termo interpelado no presente seminário), em redes in- formais e campos transdisciplinares que ignoram a consagração da crítica. O Programa ambiental ecoa na periferia dos centros urbanos (como a Maré e a Rocinha, para dar dois exemplos atuais no Rio de Janeiro), capaz de arregimentar grupos que se comunicam em tempo real, usando desde a pichação (técnica que vários autores remetem às inscrições das cavernas) às mídias digitais. Nada mais legítimo, para citar apenas um exemplo, que o fenômeno do funk que ganhou espaço “sem a ajuda da indústria cultural estabelecida”.24

23 cf. Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, 30/05/1979. Número de tombo: 0080/79. Disponível em: http://www.itaucultural.org.br/programaho/ 24 Vianna, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

282 283 Utopia Tripartida Brasileira = Terra + Sociedade + Luta Hélio Oiticica, Lygia Clark e Oscar Niemeyer Introdução Brasil Diarreia de novo.

[...] Hoje cultiva-se o policiamento instituição-cultural, no Brasil. Cultivam-se as Luiz Guilherme Vergara tradições e os hábitos (falam-se em perigos + perigos, mas a maioria corre o perigo Professor do Departamento de Arte maior: o da estagnação desse processo que parece sofrer retrocessos ou borrações da Universidade Federal Fluminense no seu crescimento [...]1

Por onde começar, senão pela referência ao estado de diarreia que toma conta do Brasil hoje. Ao mesmo tempo, invoca-se como pertinente o legado crítico de Oiticica como vontade de cura, “aspirina” pela proposta de um “estado de invenção” ou luta contra a curra, ou não “convi-conivência”2 no contexto social e político nacional hoje. O que significa expor será a questão que permeará todo este documento. Impossível apresentar uma proposta curatorial que reúna três grandes afluentes das raízes utópicas e antropofágicas brasileiras – Hélio Oiticica, Lygia Clark e Oscar Niemeyer, sem atravessar a cortina de fumaça do Brasil hoje. Primeiramente, a forma arquitetônica circular com rampas em espiral já incorpora como fenome- nologia do redondo e subterrâneo, em ressonância com as especulações espaciais e éticas do Abrigo poético de Lygia Clark de 1964.

1 Oiticica, Hélio. Depoimento “Brasil Diarreia”. In: Oiticica, Cesar Filho; Cohn, Sérgio; Vieira, Ingrid. Hélio Oiticica. Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 113. Publicado originalmente em Ferreira Gullar (org.). Arte brasileira hoje. São Paulo: Paz e Terra, 1973. 2 ibid., p. 112.

285 [...] a condição brasileira, mais do que simplesmente marginal dentro do significa expor? Quando o museu assume a condição experimental das mundo, é subterrânea, isto é, tende e deve erguer-se como algo específico práticas ambientais, não estaria também invocando uma perspectiva de ainda em formação; a cultura (detesto o termo) realmente efetiva, revo- escola ética de arte? lucionária, construtiva, seria essa que se erguia como SUBTERRÂNEA (es- crevi um texto cm esse nome, em setembro 69, em Londres); assume toda a condição de subdesenvolvimento (sub-sub), mas não como uma “con- Arqueologia da criação servação desse subdesenvolvimento”, e sim como uma ... “consciência Dimensão infinita – utopias ao rés do chão5 para vencer a superparanoia, repressão impotência...” brasileiras [...].3 PN15 – Série Newyorkaises . subterranean TROPICÁLIA PROJECTS6 Local de concepção: Nova York O PN 15 será literalmente a obra central desta exposição, pois será cons- truída no centro do museu. Como único Penetrável de Oiticica circular, parte Ao instalar esse penetrável como território de vivências que ratificam a da série Subterranean Tropicália projects (1971),4 sua presença ambiental posição ética de Oiticica de “negação do artista como o criador de objetos, será geradora de irradiações nucleares de performances espontâneas que mas que se torna um propositor de práticas”, a própria instituição museu estarão colocando em questão tanto a natureza da arte como também do e o papel das interfaces entre arte-situamento e sociedade se alinham a museu. É com essa série de penetráveis também chamada de Conglomerados essa desintegração de conceitos formais. Ao mesmo tempo, corporifica- que Oiticica, então morando em Nova York, reposiciona como síntese da -se o espaço expositivo como ágora, praça e mundo, pois que essa série sua trajetória “o desenvolvimento da desintegração de conceitos formais Subterranean foi projetada para o Central Park de Nova York. Os ambientes (começando pela própria ‘pintura’) da arte, e acima de tudo questionando circulares do PN 15 foram descritos por Oiticica para serem ocupados por a natureza da ‘obra de arte’”. Nessa declaração percebe-se um sentido proposições de diferentes tipos de performances, público e indivíduos es- anacrônico de desenvolver artisticamente pelo avesso e fissuras, pela pontâneos, planejadas para grupos como formas críticas sobre o problema desintegração de conceitos e valores concentrados na virtuose do fazer da alienação relacionado ao contexto brasileiro, que ele chamou de “meta- objetos, por onde a potência ética e dimensão infinita é empoderada pelo performances”. Essa forte sinergia com a crise atual e a vocação espacial descriar da forma. Essa posição e vontade construtiva enunciada por Oiticica do MAC não é apenas formal e precisa ser aprofundada como “posição já antecipava tendências críticas da arte que problematizam a natureza da ética” que parte da vontade construtiva ambiental e dimensão infinita de obra em sua experiência de recepção expandida como criação e vice-versa. Hélio Oiticica, em impressionantes aproximações com os Abrigos poéticos Desde então, várias instalações ambientais vêm reconfigurando o papel do e Trepantes de Lygia na arquitetura redonda de Niemeyer. artista como propositor de arquitetônicas multissensoriais de engajamentos É daí que nasce também uma exigência curatorial de cuidados com as públicos. Da mesma forma convergem as práticas curatoriais e artísticas micropolíticas, como utopias ao rés do chão que se alinham à fenomenologia para o sentido político e ético do cuidar do lugar da arte como laboratório de acontecimentos para múltiplas narrativas. Dessas novas zonas (inter)penetráveis de criação-recepção de narrati- 5 “Utopias ao rés do chão” foi o título do texto para catálogo da exposição “Sudários. Carlos Vergara”, no MAC de Niterói, 2013. vas, pioneiramente presentes nas memórias conceituais da Subterranean 6 resumo Série Conglomerado subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. Texto enviado para Tropicália, emergem também os dilemas éticos e estéticos para as práticas Universidade de Buffalo, na qual Hélio Oiticica descreve seus projetos PN10, PN11, curatoriais, artísticas e pedagógicas contemporâneas. Três indagações PN12, PN13, que formariam o conglomerado subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. Esse acompanham essa abordagem. Por que museu de arte quando o contem- grande projeto havia sido pensado para o Central Park de Nova York. São penetrá- porâneo é regido pela desintegração da atenção isolada no objeto? O que veis que preveem a possibilidade de performances. HO anuncia um terceiro projeto (o PN15). Junto com a descrição, menciona a inclusão de plantas e fotografias e maque- tes. As performances não foram ainda explicitadas porque, segundo HO, dependem do local em que os projetos serão construídos. In: Projeto dos Subterranean TROPICÁLIA 3 ibid., p. 117. PROJECTS. PN15 – Série Newyorkaises. Título do Projeto: subterranean TROPICÁLIA 4 documentação do Projeto HO. PN15 – Série Newyorkaises. Título do Projeto: subterra- PROJECTS. Local de concepção: Nova York. In: Hélio Oiticica (catálogo). Rio de Janei- nean TROPICÁLIA PROJECTS. Local de concepção: Nova York. In: Hélio Oiticica (catálo- ro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996. Disponível em: http://54.232.114.233/extranet/ go). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996. enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cod=498&tipo=2

286 287 hermenêutica de Paul Ricoeur. Com o legado desses artistas identificam-se máximo possível não literários, sobre o problema da alienação relaciona- conceitos que estão no avesso da superfície formal da arte e, portanto dos do ao contexto brasileiro, e buscando por relações próximas com os pro- museus, ainda centrados na produção, exposição, apreciação contemplativa blemas universais; eu penso que estas áreas de performances planejadas de objetos. Outrossim, a “dimensão infinita” é adotada como posição que se devem assumir de fato os problemas relacionados com qualquer que seja desenvolve a partir da desmaterialização ou desintegração do objeto pelas o grupo, heterogêneo ou não, que estão sendo colocados no projeto8 relações do corpo/comportamento e a construção do lugar de encontro e criação entre arte – artistas propositores e sociedade em “metaperfor- Na proposição da série Subterranean (que inclui o PN15), Oiticica revê mances” interpretativas de zonas de contato de si mesmos como o outro. seus “estados de invenção” dos anos 60 já como proposição de metaper- Esta proposta curatorial concentra-se nas quebras do mito desses formances e comentários críticos contra a alienação do contexto brasileiro, três artistas pelo acolhimento e pertencimento de suas estruturas de apontando para um questionamento sobre a natureza da arte a partir do comportamento e arquitetônicas encarnadas no corpo, terra e luta (ou deslocamento do foco isolado no objeto, para a tendência ao ambiental, à invenção). Arquitetônica aqui é adotada como conceito de Bakhtin,7 que vontade construtiva nas formas de criar e estar coletivo que amadurecem se realiza pela exigência da experiência do outro na criação, não como como “posição ética”. Ainda hoje, a partilha da criação e a recepção artística uma forma dada para um espectador passivo, mas um leitor móvel, como experimental se apresentam como grandes dilemas críticos e pragmáticos coadjuvante herói da trama do unir partes fragmentadas de sujeitos e so- para o sentido público dos espaços e instituições culturais. Seriam esses ciedade, que experimentam por si mesmos a construção de um texto ou os constituintes éticos dos cuidados curatoriais para se ampliar e instituir o acontecimento da arte. essa dimensão metacrítica e metaperformática hoje? O que se coloca como Hélio Oiticica na sua apresentação conceitual da série Subterrânea o mito das instituições seria a necessidade de cuidar da territorialização e Tropicália Projects resume sua trajetória partindo dos penetráveis em produção experimental da arte contemporânea em um panorama nacional 1959, sintetizada como tendência e desenvolvimento de “desintegração de de anemia grave do sentido e política cultura pública brasileira? conceitos formais [...] questionando a natureza da obra de arte” ao mesmo O que significa expor a produção artística experimental/ambiental para tempo em que aponta para uma condição experimental de comportamento um público diversificado hoje submetido a um estado extremo de alienação e e recepção como “forma de contato não contemplativo”. Todo o campo de relações e sentidos de criação e recepção , autor-artista e espectador 8 Oiticica, Hélio. In: Subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. In: Projeto dos Subterranean participante convergem para os estados de proposição, “propor o propor”, TROPICÁLIA PROJECTS. Série Newyorkaises. Título do Projeto: subterranean TROPICÁ- confirmando a radicalização e coerência conceitual voltada ao desejo de LIA PROJECTS. Local de concepção: Nova York. In: Hélio Oiticica (catálogo). Rio de transformação e dissolução da arte como experiência. Ao mesmo tempo, Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1997, (p. 143). Texto em inglês. Tradução livre. pelas metaperformances, configura um espaço crítico não literário sobre HELIO OITICICA: subterranean TROPICÁLIA PROJECTS. This series of projects relate to my former work from 1959 on, in that way that they are a consequence of the inven- o problema da alienação relacionado ao contexto brasileiro. tion of what I call penetrable (1960 on); all my work from that period on has been a development of the desintegration of formal concepts (starting with that of ‘painting’ [...] buscando por uma forma de contato não contemplativo; a participa- itself) of art, ultimately questioning the nature of the ‘work of art’, and looking for a ção do espectador (participante) tocando, vestindo, penetrando o lugar form of non-contemplative contact ; the participation of the spectator (participator) touching, dressing, penetrating the actual pieces, developed towards actual proposi- em si, desenvolvido no sentido real de proposições (propor propor): algo tions (propose to propose): something similar to practices of the spontaneous self, como a prática do self espontâneo, não ritualista, como uma posição per- non-ritualistic, as an actual anti-art permanent position; the denial of the artist as manente de antiarte; a negação do artista como o criador de objetos, mas a creator of objects, but turned out into a proposer of practices, in which ideas and que se torna um propositor de práticas nas quais as ideias e descobertas discoveries are opened and barely suggested, and realize themselves in the course of such practices. […] são abertas e sugeridas diretamente, e realizadas no curso de tais práticas. a) of project 1 […] my original intention was to create them as a critical commentary, [...] minha intenção original foi de criá-los como comentário crítico, ao as mostly non-literary as possible, on the problems of alienation related to brazil- ian context, and searching for close relations with universal ones; I think that those planed performances areas should take the actual critical problems related to which- 7 Bakhtin, M. M. Towards a Philosophy of the Act. Texas: The University of Texas Press, ever group, be it heterogeneous or not, is putting on the project: they should be a kind 1999. of meta-performances.

288 289 acomodação consumista da cultura? Como atualizar ou invocar a atualidade mesmo sociais e individuais. [...] todo tipo de experiências que poderia se do legado experimental e relacional de Oiticica-Clark sem um compromisso desenvolver em um novo sentido de vida e sociedade [...]10 com uma terapêutica social e institucional no contexto arquitetônico do MAC, assumindo sua vocação simbólica com uma trilogia epistemológica Acompanhando a dissolução do projeto concreto pelo fim do primado e ontológica de sinergias e ressurgências com a utopia antropofágica das atomista da produção artística, essas indagações compõem uma fundamen- raízes brasileiras? Para tanto, o museu é tomado e proposto como labo- tação curatorial pautada pela necessidade de situamento da experiência ratório para uma fenomenologia existencial e hermenêutica dos estados estética. Em outras palavras, todo programa ambiental e posição ética de estar juntos, da vontade construtiva e dimensão infinita que incluem a é voltado para uma arquitetônica da geografia de ações (Milton Santos) pracialização das “metaperformances” da série Subterrânea, e suas varia- que simultaneamente invoca a desterritorialização e a reterritorialização ções em práticas do comum projetadas como tendências da contracultura, deleuzeana de devires. Daí o campo de vivências espaciais é como elo de do playground.9 O museu assume seus espaços como territórios de jogos conectividade encarnado como consciência fenomenológica das relações e vivências, traduzindo aqui a metáfora para o seu sentido simbólico e espontâneas, não diretivas, que se dão nas metaperformances do estar público de utopias ao rés do chão. junto, no acontecimento existencial hermenêutico da compreensão de Estaríamos hoje revisitando os contextos dos anos 60-70 quando os si como o outro ser espaçotemporal coletivo. “Propor propor”, é como programas ambientais eram propostos como tendências críticas e expe- reinventar a prática do tempo zero, antecipação de futuros inaugurados rimentais como formas de ativações de espaços públicos e parques, tais através das estruturas de comportamento (inter)penetráveis, da partici- como os Domingos da Criação no MAM Rio em 1971, celebrando o jogo, o pação coletiva na criação de si, sem deixar de trazer o que Oiticica projeta lúdico e o coletivo? Ainda hoje, demanda-se um desafio às instituições, como dilatamento de capacidades sensoriais habituais. O “Aparecimento com posicionamentos críticos, artísticos e pedagógicos contra a estagna- do Suprassensorial na arte brasileira” é resgatado não como histórico mas ção dos museus de arte regidos ou submetidos pelos modelos estéticos como metalaboratório do público na experiência de si em proposições cada contemplativos neoliberais. Nesse sentido, também, o contemporâneo é vez mais abertas e espontâneas. anacrônico ao estado dominante de alienação enquanto se assume uma proposta experimental voltada a exibir o intangível estado “suprassensorial”, é a tentativa de criar, por proposições cada vez mais abertas, exercícios ainda como antecipação utópica de sua ressignificação como laboratórios criativos, prescindindo mesmo do objeto tal como ficou caracterizado [...] do futuro ao rés do chão. Que implicações e mudanças de posições e prin- São dirigidos aos sentidos, para através deles, da “percepção total”, levar cípios curatoriais, pedagógicos e artísticos estão em jogo? Que mudanças o indivíduo a uma “suprassensação”, ao dilatamento de suas capacidades ou proposições foram ou não suficientemente experimentadas, ainda hoje sensoriais habituais, para a descoberta do seu centro criativo interior, da representam um relicário e repertório do legado de vivências existenciais sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao cotidiano.11 e coletivas de luta, crelazer e suprassensorial? Não é apenas do debate desgastado e datado sobre o fim do espectador [...] o sentido de Suprassensorial tornou-se um ponto claro para mim, sin- que se propõe rever esse legado já ultraexposto. Como utopias ao rés do to que a vida em si mesma é o seguimento de toda experiência estética, chão, o que está em jogo é a formação de um território de sinergias com como uma totalidade [...] um “retorno ao mito” desde a formulação do Pa- o compromisso de se atualizar pela experiência não literária a metacrítica rangolé, tornaram-se uma necessidade real, urgente e irreversível. Sinto ao contemporâneo. Sem deixar de corresponder à metafísica e à herme- que a ideia cresce para a necessidade de uma nova comunidade, baseada nêutica fenomenológica da dimensão infinita, que embasa a posição ética em afinidades criativas, apesar da diferença cultural ou intelectual, ou e o aparecimento do suprassensorial de Oiticica.

9 Playground foi também um projeto coletivo coordenado por Palle Nielsen para o Mo- 10 Oiticica, Hélio. Carta a Guy Brett, 2 de abril de 1968. In: Hélio Oiticica (catálogo). Rio derna Museet como ativismo social chamado também Model for a Qualitative Society. de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1997, p. 135. Estocolmo, 1968. 11 Oiticica, Hélio. O aparecimento do supra-sensorial na arte brasileira. In: Hélio Oiticica (catálogo). Op. cit., p. 104.

290 291 “Propor propor” justapõe trajetórias de desconfortos críticos e esté- Esse relato de Oiticica, observando o comportamento das formigas ticos dos ensimesmismos sem outros. Pelo contrário, como arquitetônica em reação aos seus dedos, já estaria apontando para as bases fenome- propositiva da descriação e da respiração da arte concreta de Lygia Clark nológicas do pesquisador propositor, o curador e artista, encarnados nas no seu deslocamento para a construção do self e seus objetos relacionais experiências das interfaces multissensoriais entre arte – estruturas de para habitar o continente-ilha da própria arquitetura casulo – concha de comportamento e sociedade, Niemeyer para o MAC. Para além do mito desses artistas são propostas de quebradas subterrâneas, microgeografias ao rés do chão, como zonas suspensas do contemporâneo, da defesa por contextos públicos do comum, Oiticica além dos mitos II do contato com o corpo-sentidos para a transformação, dobras e desdobras entre arte e antiarte, museu e antimuseu. É preciso também reconhecer Em 1996, depois de quase 20 anos de convívio com o sobrinho-neto Hélio os obstáculos que se impõem ao contemporâneo de ir além da condição Oiticica, em um grupo de estudos espiritualistas13, Vera Oiticica soube que de seu próprio mito conceitual de espetáculos sem espetacularizações, de eu estava dirigindo a Divisão de Arte Educação do MAC Niterói e também exposições de conceitos sem corpos, sem dar densidade e temporalidade desenvolvia pesquisas no recém-inaugurado Centro Municipal de Arte Hélio para o acontecimento existencial e social do acolhimento da arte como ato Oiticica. Foi quando então ela me relatou algumas memórias da infância público de ser arte total no museu-mundo. de Hélio. Uma das que mais me impressionaram foram os desafios que ele, com apenas oito anos, fazia às visitas na casa de seus pais com o Guia Rex.14 Ele havia decorado as rotas das linhas de ônibus e pedia aos visitantes que Oiticica além do mito I escolhessem qualquer número de linha que ele descreveria o itinerário por onde o ônibus passava. Essa lembrança compartilhada da Vera também Em 1954, Hélio Oiticica, então com 17 anos, observa como as formigas12 se completou com duas outras que dizem respeito ao seu pai (da Vera), o se desviavam da ponta de seus dedos. Com mais atenção ainda descreve mestre Oiticica, avô do Hélio. Todos o conhecem como o anarquista, mas minuciosamente como variam o momento e a distância do desvio da for- poucos como o educador, inventor de uma gramática. Muito menos o co- miga da ponta do dedo de acordo com o dedo, do indicador ao polegar. nhecem como um mestre da Rosa Cruz. Nessa ocasião pude (re)conhecer Imagina-se com essa descrição que o jovem deva estar ajoelhado ao rés nas lembranças de vários membros desse grupo as aulas e meditações do do chão. Mais ainda, ele é o sujeito-pesquisador e pesquisado interagindo mestre Oiticica. Algumas delas podem também fazer sentido para esta com a sua mão, seus dedos, enquanto observados como uma experiência arqueologia da infância do Hélio. sensorial da extensão de si mesmo como estrutura de intervenção no O mestre Oiticica costumava andar por uma hora em silêncio nas ruas, comportamento e afetos no mundo dos movimentos coletivos ou sensoriais sem cumprimentar ninguém antes das aulas – o que já seria um delírio das formigas – outras de si mesmo em ação. Sem dúvida, o jovem Oiticica ambulatório meditativo. Como educador presente na alfabetização fami- estava também intuitivamente a palmear uma inteligência sensorial ou liar do próprio Hélio, conta ainda a Vera que seu avô Oiticica inventou um “suprassensorial” da parte das formigas. Nessa desconstrução, Oiticica já exercício para as revisões gramaticais da escrita dos textos como percurso, estaria inaugurando o seu porvir científico (como legado do seu pai José sublinhando com círculos, losangos e setas os sujeitos, verbos e predicados Oiticica), sendo a experiência registrada pela escrita encarnada e fluente, o de cada frase. Pode se imaginar como escrita e texto se transformavam princípio fenomenológico que acompanhará toda a sua trajetória de artis- graficamente em mapa e labirinto de percursos cognitivos espaciais na ta – pesquisador, inventor de programas, estruturas de comportamentos, mesma medida em que se leem se transformam em movimentos simultâ- penetráveis, palavras-conceitos e proposições participativas. neos de transportes entre significação e sentidos. É possível identificar de

12 Hélio Oiticica registra em texto datado de 31 de março de 1954. Figueiredo, Luciano; 13 Fundação Cultural Avatar em Niterói. Pape, Lygia; Salomão, Waly (orgs.). Hélio Oiticica. Aspiro ao grande labirinto. Rio de 14 Oiticica Filho, Cesar. EncontrHOs. In: Oiticica, Cesar Filho; Cohn, Sérgio; Vieira, Janeiro: Rocco, 1986, p. 15. Ingrid. Hélio Oiticica. Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009, p. 9.

292 293 imediato essas duas presenças do avô Oiticica nos “estado de invenção” como condição de vontade construtiva. A habilidade de síntese diante do de Hélio, desde a sua infância e aquisição corporal da linguagem, na sua “problema dos opostos” é registrada por ele de forma conceitual e expe- consciência de movimento espacial no ato de fixação do pensamento rimental simultaneamente. pela escrita indissociável dos movimentos do espírito e corpo. A prática do espaço se funde ao pensamento como estruturas fenomenológicas da O núcleo veio revelar, ou melhor, acentuar o problema dos opostos nessa escrita. Assim a prática da linguagem desde a infância de Hélio é também expressão e particularmente dentro da minha estética (sentido estético). ontológica em que o estado de invenção e também de compreensão de O aparecimento de sentidos opostos se dá entre o sentido estrutural e o si. Aqui já se podem reconhecer como arqueologia da criação do artista sentido da cor (desenvolvimento nuclear). A estrutura do núcleo aparece os atributos fundadores dos estados de invenção da arte de Hélio. Não há e se gera num sentido totalmente arquitetônico; dir-se-iam estruturas pa- como não se perceber “caminhando” ao se ler os seus textos, da mesma redes, às quais, acrescentando teto, passariam a ser protocasas.... Inte- forma que se experimentam seus penetráveis, cruzando um labirinto es- grando-se a essa estrutura rigorosamente arquiteturada, está o “sentido pacial de ideias com setas e junções, invenções de palavras e intertextos, da cor”, resolvido aqui pelo “desenvolvimento nuclear”.16 como prática existencial da escrita espaçotemporal encarnada em uma metaescrita corporal. Nessa fase pré-golpe militar e colapso político existencial global, tem- Aspirar ao grande labirinto é uma essência da dimensão infinita e metafí- -se um Oiticica mergulhado na elaboração das estruturas experimentais de sica de Oiticica como um transbordamento ontológico de ser na compreensão “compensação mútua das polaridades” entre uma lógica da estrutura (que de si mesmo inseparável da inscrição e escrita reflexiva da prática espacial rompe com o quadro) e sua perturbação espaçotemporal pela dimensão da existência como ato de linguagem total no mundo-vida. Dos penetráveis “cor-luz” ou “luminosidade anterior da cor”. Em sua descrição, pode se ob- à capa mágica do parangolé; dos bólides ao programa ambiental, o delírio servar palavras-conceitos-chave da física-biologia, como desenvolvimento ambulatório compartilhado urbano com Lygia Pape; o “aparecimento do nuclear atrelado ainda a uma lógica arquitetônica. O que Deleuze e Guattari suprassensorial”; em todos esses estados de invenção podem-se reconhe- elaboram como causalidade reversa17 pode ser adotado para a compreensão cer as transbordas para uma gramática cognitiva e motora fenomenológica e a proposição do lugar relacional de convergências e conciliações mútuas no mundo indissociáveis do complexo encontro com a invenção e prática de opostos. A estrutura, propõe o artista, dissolve-se em vibração – irra- ontológica da linguagem como força e sentido da vontade construtiva diação da “cor-luz” ou dissolução do espaço, e simultaneamente “tomou existencial ou de si mesmo no mundo. corpo” como fenômeno do “desenvolvimento nuclear, que é na verdade o Outra unidade tripartida que emerge nessa breve arqueologia da criação ponto de ligação indissolúvel em que um não existe sem o outro”.18 de Oiticica é a confluência e síntese entre ciência, arte e uma metafísica do Porém, a questão curatorial é também vinculada ao pragmatismo da suprassensorial como dimensão infinita. Ainda com 22 anos (1959) escreve: prática pública da arte como fenomenologia hermenêutica da possibilidade da experiência artística ser também da invenção de si – e da própria insti- As formas originárias vêm do incomensurável infinito e geram todas as ou- tuição. Como a instituição pode assumir o cuidado “com as formigas” ao rés tras. São estáticas, pois as estáticas possuem mais força. São simétricas do chão no percurso de processos e proposições experimentais que rever- e transcendem a tudo que se pode imaginar. Concretamente o círculo se tem lógicas de causalidades e reversibilidades entre conceito-experiência enquadra nesses princípios. É a forma transcendente por excelência; é a enunciadora do mais profundo silêncio; é a síntese do próprio Cosmos: 16 ibid., p. 39. por isso, possui um extraordinário vigor.15 17 deleuze e Guattari desenvolvem o conceito de causalidades reversas : “Physics and biology present us with reverse causalities that are without finality but testify none- Em oposição ao mito, Hélio traz sua invenção da arte para as micro- theless to an action of the future on the present, or of the present on the past, for geografias do corpo-suprassensorial na relação com a terra-estrutura-cor example, the convergent wave and the anticipated potential, which imply an inversion of time. (p.431). In: Deleuze, Gilles; GuattarI, Félix. A Thousand Plateaus. Capitalism and Schizophrenia. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003. 15 Oiticica, Hélio. O problema dos opostos. Figueiredo, Luciano; Pape, Lygia; Salo- 18 Oiticica, Hélio. O problema dos opostos. Figueiredo, Luciano; Pape, Lygia; Salomão, mão, Waly (orgs.). Hélio Oiticica. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 15. Waly (orgs.). Hélio Oiticica. Aspiro ao grande labirinto. Op. cit., p. 39.

294 295 como síntese de uma fenomenologia do encontro paradoxal ou sistêmico do por Ricoeur. Na condição participativa como “ato total da vida” ficam dos opostos, estrutura expositiva, discursos e proposições arquitetônicas dispostos simultaneamente a arte e antiarte, como vontades mútuas de de interfaces multi e suprassensorial, articulando o que Oiticica chama potência – estética e existência. Oiticica estaria também enunciando em de “compensações mútuas”? Quando a experiência estética é deslocada sintonia com a hermenêutica fenomenológica, como Ricoeur aponta para a do objeto para o acontecimento espaçotemporal a vontade construtiva relação entre a potência e o sentido, entre a vida portadora de significação imanente também se abre para outra ordem ou campo gravitacional da e o espírito como conector de sentidos. A culminância da arte total é a existência-vida e metafísica, indissociável do seu contexto – acolhimento própria vida proposta então como significante em que o espírito, corpo- e hábitat. Nesse sentido a dimensão epistemológica e ontológica funda -alma na consciência perceptiva, é o agente conector. Como territorializar uma complexa produção de cuidados para o acontecimento ambiental de a arte, em sua potência frágil, se possível, como unidade tripartida equi- arte e vida, sendo a quebra dos mitos e hierarquias de poderes e saberes valente ao que Euclides da Cunha aborda como Terra-Homem-Luta? Sem da instituição também desafiada pelo experimental. que a instituição deixe de ser mito para ser terra, pertença e participação O desafio de se expor Oiticica, como trajetória do pesquisador-propositor do indivíduo na sua totalização como brasileiro, formiga e humanidade. e sujeito da linguagem em ação, é também propor ao público o vínculo Daí expor é promover atualidades e ativações de sinergias do tempo do entre experiência e compreensão de si pela invenção. Em outras palavras, simbólico e a passagem das décadas, para a sociedade vestir o projeto essa complexidade paradoxal justapõe constantemente o que Paul Ricoeur Parangolé é também tomar consciência do outro de si. aborda como fenomenologia hermenêutica.19. É dessa arqueologia da criação que se resgata o conflito de interpretações de Ricoeur, que, por sua vez, aplica-se como posição ética para a investigação ampliada do Unidade Tripartida Euclideana – Terra-Homem-Luta cuidado curatorial com as relações de significação e compensações mútu- as. As instalações ambientais do legado experimental de Oiticica quando Acrescentam-se aqui as dimensões Terra-Homem-Luta, como arqueologia e dispostas ao público exigem posicionamentos éticos com os cuidados nas teleologia dessa crise recorrente brasileira encarnada e antecipada na per- interfaces para o desenvolvimento nuclear (formigas ao rés do chão) da cepção e transe de Os sertões de Euclides da Cunha. De Os sertões à “Posição dimensão suprassensorial, ou multissensoriais. Cruzam-se camadas da ética” de Oiticica, o contemporâneo nacional e global está atravessado de primeira instância fenomenológica da experiência sensorial e semântica camadas históricas soterradas, subterrâneas de uma consciência coletiva com a dimensão infinita, existencial e reflexiva ontológica. fragmentada que por pulsações e choques faz contato com as ramificações e enraizamentos da alienação de si mesma. Cabe nesse momento de tantas [...] seria a vontade de uma posição inteira, social no seu mais nobre sen- incertezas e riscos de regressão das conquistas sociais brasileiras resgatar tido, livre e social. O que me interessa é o “ato total de ser” que experi- através dessa confluência ética, ambiental e arquitetônica entre Oiticica, mento aqui em mim – não nos atos parciais totais, mas um “ato total de Clark e Niemeyer, a referência a Euclides da Cunha na sua descoberta de vida”, irreversível, o desequilíbrio para o equilíbrio do ser. [...] A antiga si mesmo (nós mesmos brasileiros) como “o mestiço de três elementos ét- posição frente à obra já não procede mais – mesmo nas obras que hoje nicos, a gênese das raças mestiças do Brasil é um problema que por muito não exijam a participação do espectador, o que propõem não é uma con- tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos”.21 O problema de templação transcendente mas um “estar” no mundo.20 Canudos, em Os sertões de Euclides, está na atualidade repressiva e re- gressiva violenta em processo de guarda e vigília da liberdade condicional O que Oiticica expressa como posição diante da obra é também campo brasileira como semente e raiz tripartida do Brasil entre a Terra, o Homem aberto para a polifonia ou o próprio conflito das interpretações elabora- e a Luta. É justamente pela Subterranean Tropicália que se recoloca o MAC da intuição de Niemeyer nessa zona marginal e microutopia concreta

19 Ricoeur, Paul. O conflito de interpretações. Hermenêutica fenomenológica. Porto- -Portugal: RËS, 1988. 21 euclides da Cunha apresenta de forma contundente “a complexidade do problema et- 20 Figueiredo, Luciano; Pape, Lygia; Salomão, Waly (orgs.). Hélio Oiticica. Aspiro ao nológico do Brasil”. Cunha, Euclides. O homem. Os sertões. Rio de Janeiro: Nova Agui- grande labirinto. Op. cit., p. 74. lar, 2005, p. 73.

296 297 para incorporar à projeção de mitos (vadios) brasileiros dos imaginários Por outro, o MAC chega a Niterói como uma caravela voadora imemorial, recorrentes na forma do herói marginal, de Lampião a Macunaíma, Bispo que coloca e transfere a todos para a experiência geográfica e simbólica da do Rosário; de Glauber Rocha ao próprio Hélio Oiticica. projeção de visões do paraíso já descritas por Sérgio Buarque de Holanda.23 A síntese tripartida de Cunha para o Brasil de Canudos envolvendo Aqui nessa vista se inscreve o palimpsesto de múltiplas temporalidades terra-“humanidade”-luta (substituindo Homem por Humanidade) é res- desde o mito do descobrimento à vista da Boa Viagem, ao deslocamento gatada como eixo ético-estético curatorial para abordar as diferenças e europeu-cristão dos jesuítas projetando uma utopia ou miopia do Éden distâncias dos diferentes Brasis unidos ou fragmentados como habitantes (Evergreen), do êxtase da escrita de Pero Vaz Caminha em face “da fantástica da adversidade. Principalmente em tempos de luta como hoje, ressurgem geografia” da floresta, que sugere a imagem de paraíso com a simplicidade as miragens ou ressonâncias de utopias ao rés do chão dos Sertões, Éden, e inocência de seu povo, os nativos dessa terra sem pecados originais. Tropicália, assim como Casa corpo e Abrigo poético, na Terra Brasilis. Tal O Programa ambiental e o Parangolé são retomados pelo PN15 – Subter- como Cunha, os estados de invenção projetados em Subterranean por Oi- ranean Tropicália, como pontos de viradas fenomenológicas e hermenêuticas ticica culminam em formas éticas de reterritorializar a arte, devolver para para uma posição ética curatorial e pedagógica que celebra o Brasil das a terra, “incorporar a revolta”, que devem ser cuidadas como estruturas de utopias ao rés do chão – Terra-Humanidade (diversidade)-Luta. Assim, a transformações de comportamento e consciência do sentido individualista “filosofia do ato” de Bakhtin ressignifica a dimensão ética do propor vestir e alienado para a prática instituinte experimental do coletivo – comum – da a capa de arte e magia dos Parangolés, como “arquitetônica é algo-dado própria instituição pública para a arte contemporânea. As visões de Nie- como algo a ser conquistado”.24 O que se experimenta e se incorpora é a meyer para o MAC, de Oiticica para Subterranean e de Clark para o Abrigo transferência e transfiguração da potência de ser em ação significante poético fundam territórios redondos encarnados de sínteses e desafios como dimensão ontológica que se desdobra das estruturas semânticas de pertencimento do futuro antecipado de lutas para além de seus mitos. e sensíveis da experiência artística. Como arquitetônica da criação se Como atender aos cuidados éticos com o sentido público da arte e cultura defende algo dado de possibilidade a ser conquistado, o estado de in- brasileira tal como a ordem tripartida brasileira enunciada por Euclides da venção e libertação. Todas as proposições de interfaces multissensoriais Cunha – Terra-Humanidade-Luta? se oferecem como incorporações da vontade construtiva e o horizonte de O sentido bakhtiniano de arquitetônicas está igualmente presente para aparecimento provável e possível do suprassensorial como transbordas Oiticica e Clark como viradas da arte concreta para as estruturas (inter) simbólicas do corpo, terra e luta na experiência do sentido público da penetráveis ambientais e relacionais com bases em interações sensoriais arte, além do mito. O ambiental é deflagrador de desafios do sentido de ligadas ao corpo, habitar, jardins coletivos e intervenções urbanas. Ambos conectividade entre corpo-instituinte coletivo-abrigo e o seu outro de si, buscavam simetricamente do corpo à cidade por novas relações supras- a sociedade e vice-versa. sensoriais, construções coletivas de células comunitárias,22 que entram em No caso do MAC como escultura e arquitetônica das raízes utópicas antro- confronto com o próprio mito contemplativo da instituição. pofágicas brasileiras, a instituição e o instituinte, abrigo e o redondo do mundo, Duas ordens gravitacionais de mitos operam nessa confluência ética no projetam-se o continente, Terra e a estrutura viva do coletivo, Luta, como chão MAC como um páthos, um coincidatio oppositorum, diante dos conflitos da de possibilidades e compromisso com as microgeografias da transformação condição social e cultural brasileira. De um lado sendo uma instituição pública de si e do outro, nós e outros nós. A sociedade é a terceira margem de fluxo pode ser vista como reafirmando um mito fundador da sociedade brasileira que realiza a existência, a festa e o simbólico, o abrigo redondo do mundo. A que modela por filtragem e alienação da realidade, quase floresta (em seu utopia ao rés do chão se aproxima a “subterranean tropicália”, como sentido sentido antropofágico), sobre a qual se impõe por crenças e modos de per- de unidade tripartida entre TERRA – jardim, experiência reflexiva, espelho cepção do mundo subalternas às doutrinas civilizatórias dos colonizadores público de heterotopias, e a margem de si, fora da lei. Porém ao se propor e, por conseguinte, alienantes de nós cada vez mais outros de si mesmos.

23 Holanda, Sérgio Buarque. Visão do paraíso. Os motives edênicos no descobrimento e 22 Oiticica, Hélio. The senses pointing toward new transformations. London, 1969. Itaú colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2002. Programa Cultural. Disponível em http://54.232.114.233/extranet/enciclopedia/ho/in- 24 Bakhtin, M. M. Towards a Philosophy of the Act. Texas: The University of Texas Press, dex.cfm?fuseaction=documentos&cd_verbete=4382&cod=625&tipo=2 1999, p. 75. [tradução livre].

298 299 como parte do desafio crítico e vocação do MAC projeta-se sua atualidade de suas instituições – abrigos Terra, Luta e Sociedade – para acolherem a como lugar de pertencimento trazendo para a instituição museu os paradoxos experiência multissensorial do experimental. É daí que: do contemporâneo pela justaposição entre quebradas baldias e as rampas espirais modernistas e pós-modernistas, de celebração e superação do mito a fenomenologia escapou ao seu projeto inicial; é apesar dela que ela des- do museu-templo, praça e laboratório de futuros. cobre, em vez de um sujeito idealista encerrado no seu sistema de signi- Ecoam nessa confluência de três margens e marginais do Brasil, Oiticica ficações, um ser vivo que tem desde sempre como horizonte de todas as e Clark, a arquitetura de paradoxos de Niemeyer, uma oca e, ao mesmo suas miras, um mundo, o mundo.26 tempo, carrossel de polifonias dos manifestos das vanguardas modernistas e pós-modernas inacabadas como lutas contemporâneas. Esse confronto As viradas ambientais de Oiticica são ainda hoje colocadas como o anacrônico de utopias ao rés do chão introduz a conceituação curatorial. problema dos opostos entre a passagem ou ruptura de dois mitos, da ins- Simultaneamente dá tangibilidade e responsividade (Bakhtin, 1999) à terra tituição como confinamento idealista e estrutura de comportamento rígido – luta como intuição e desejo palpável das formas e estados de invenção e normativo e, o outro dela, o mito da própria obra de arte como objeto de do contemporâneo desses artistas. Projeta-se um coincidatio oppositorum criação apresentado como oráculo monolítico. Enquanto a sociedade como entre celebração e golpe fatal na estagnação dos museus, trazendo o seu terceira margem for colocada à distância de si mesma pelas instituições, o avesso, antiarte e antimuseu, como apropriação do mundo. mundo-vida não é tomado como significante, e o indivíduo/sociedade não Dar à Terra e Luta um sentido de jogo, festa e simbólico (Gadamer) é encontra seu outramento social – existencial, a aliança tripartite da Terra- a dificuldade principal que pode justificar o que Ricoeur propõe para a Sociedade-Luta não se realiza com cultura viva. Propõem-se a aproximação, fenomenologia como estrutura de acolhimento com a imagem de jovem o acolhimento e o pertencimento como constructos fenomenológicos her- planta – viva no solo sobre a qual pode se enxertar a condição hermenêutica menêuticos que permeiam a condição e mirada ambiental da arte contem- indutora do simbólico. Assim se propõe abordar a passagem Subterranean porânea e sua possibilidade de atualização existencial espaçotemporal e para o Ambiental, “experimentar o experimental” como o enxerto da her- ontológica como compreensão de si mesmo como outro. O próprio sentido menêutica na fenomenologia. A arte-arquitetônica como estruturas propo- público da instituição se dá como lugar de possibilidades epistemológicas sitivas espontâneas de comportamento acolhe a sociedade, o individuum da criação coletiva e significação social, pois exige o cuidado com os outros participante de si mesmo – como possibilidade de experiência dos sentidos enquanto posição ética. ontológica do ser finito que pela vivência encontra o “compreender, já não como um modo de conhecimento, mas como um modo de ser”.25 [...] Já não nos satisfazem as velhas posições puramente estéticas do princípio, das descobertas das estruturas primordiais mas essas descobertas como que se tornaram habituais e se dirige o artista mais Indeterminações conclusivas ao estabelecimento de ordens objetivas, ou simplesmente à criação de objetos, objetos esses das mais variadas ordens, que não se limitam à Complementando esse entrelaçamento introdutório entre a trajetória fe- visão, mas abrangem toda a escala sensorial, e mergulha de maneira nomenológica de Oiticica com o percurso dos conflitos de interpretações inesperada num subjetivo renovado como que buscando as raízes de um de Ricoeur. Até mesmo como Husserl, Oiticica passa pela frustração com comportamento coletivo ou simplesmente individual, existencial [...]27 o empreendimento ou proposta de redução pura do ser e concebe para a série Subterranean a metaperformance, o espontâneo self e as ocupa- ções coletivas como parte de uma escultura parque. Nessas concepções críticas o desfazimento ou descriação da própria natureza formal da arte é antecipado como desafios éticos do contemporâneo para o sentido público 26 ibid., p. 11. 27 Oiticica, Hélio. A situação da vanguarda no Brasil. (Proposta 66). In: Figueiredo, Lu- 25 Ricoeur, Paul. O conflito de interpretações. Hermenêutica fenomenológica. Op. cit., ciano; Pape, Lygia; Salomão, Waly (orgs.). Hélio Oiticica. Aspiro ao grande labirinto. p.10. Op. cit., p. 111.

300 301 TROPICAMP: pré- e pós-Tropicália ao mesmo tempo. Algumas notas sobre a noção de Em seu texto programático “Bloco-Experiências in Cosmococa — programa in progress”1 (1974),Hélio Oiticica descreve a obra de Jack Smith, cineasta e Tropicamp (1971) artista de performance norte-americano, como “precursora” de suas famo- sas instalações quase-cinematográficas, as Cosmococas: ambientes com projeções de slides múltiplas, trilha sonora, propostas para performance de Hélio Oiticica* e o uso explícito de cocaína.2 Já uns anos antes, em 1971, destacando a importância de Smith e de Mario Montez, ator ícone da cena de teatro e do cinema queer no underground nova-iorquino dos anos 1960 e início dos anos 1970, Oiticica cunhou o termo “tropicamp” para caracterizar um elemento Max Jorge Hinderer Cruz resistente na gradativa comercialização das estéticas queer à época. Seu Crítico cultural (São Paulo) texto “MARIO MONTEZ, TROPICAMP”3, publicado na revista Presença, no mesmo ano no Rio de Janeiro, traz uma descrição exemplar de uma atitude que pode ser distinguida na obra do próprio Oiticica desde o início dos anos 1960, e que se tornaria mais e mais aparente em sua produção tardia. Pode-se considerar a noção de “tropicamp” como uma crítica oportuna do quanto o consumismo estava se disseminando também no campo da arte de vanguarda com a que Hélio Oiticica se vê confrontado chegando em Nova York em 1970.4 De fato, nas últimas duas décadas, a recepção na história da arte politizada dos anos 1960-70 tem estabelecido a oposição política de Oiticica frente às tendências imperialistas e culturalistas como um verdadeiro paradigma. No entanto, o último período de sua atividade artística, antes de sua morte em 1980, continua sendo relegado a certo descaso por parte da crítica e a história da arte. Por exemplo, em sua re- cente obra “Conceptualism in Latin American Art:Didactics of Liberation” (2007), o artista e autor uruguaio Luis Camnitzer conclui seu capítulo sobre Oiticica, cujo tom é predominantemente elogioso, com uma inesperada declaração negativa:

303 “Após receber uma bolsa do Guggenheim, Oiticica muda-se para Nova aspecto objetual. Se alcançarem seu propósito, essas notas podem servir York (1970-78), onde continuou trabalhando na série de Parangolés e outros como uma tentativa de mapear uma crítica da ideologia indelével — que projetos. Inspirado pela cena disco e pelas drogas, ele também trabalhou é reflexo da mudança de uma condição moderna para uma pós-moderna com os ambientes de slides, os ‘quase-cinemas’ e as Cosmococas (1973), — presente em todaa obra de Oiticica; e ajudarão a levantar a questão: com resultado menos satisfatório.”5 o que a insistência nessa diferença geográfica e temporal na recepção de A despeito da motivação que levou Camnitzer a categorizar a obra de sua obra acaba por esconder? Oiticica em duas fases, pré e pós Nova York (além de reprovar a música disco e as drogas erroneamente atribuídas só ao período nova-iorquino), ele parece seguir uma vertente dominante no mundo da arte contemporânea. TROPIcamp (Pré-Tropicália) Também Mari Carmen Ramirez, curadora da grande retrospectiva “The Body Viva a banda-da-da / Carmen Miranda-da-da-da-da of Color” (2007), no Museum of Fine Arts em Houston e na Tate Modern em Caetano Veloso, ‘Tropicália’ (1967) Londres, estabeleceu uma diferença entre o apogeu (antes de sair do Brasil) e a queda (depois de sair do Brasil) do artista na introdução ao catálogo da Em 1959, o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar publicou a sua famosa exposição: “Se Oiticica como um ‘artista marginal’ está associado ao seu “Teoria do não-objeto”’8 e Oiticica, que tinha apenas 22 anos, juntou-se período de autoexílio em Londres e Nova York (1969-77), pode-se afirmar ao recém-fundado Grupo de Arte Neoconcreto, no Rio de Janeiro. Foi este que o Oiticica revelado nesta exposição guarda relação com o período também o ano da Revolução Cubana e da subsequente inclusão do país otimista e utópico dos anos 1950, com seus impulsos desenvolvimentistas, na comunidade de estados socialistas na Guerra Fria. As tensões geopo- além do seu radical estímulo às neovanguardas brasileiras. Esta ascensão líticas consequentes e a pressão exercida pelo governo norte-americano e queda representou as duas faces de um esforço de modernização sem alteraram os cenários políticos em boa parte dos países latino-americanos, precedentes, que buscava conduzir o Brasil ao seu ápice.”6 inclusive e drasticamente, no Brasil. Cinco anos depois, em 1964, diversos Por outro lado, como escreveu Carlos Basualdo, curador da exposição acontecimentos cruciais e trágicos convergem para Oiticica. Ferreira Gullar, dos “Quase-Cinemas” e editor do pioneiro projeto de publicação homônimo que Oiticica admirava, havia se tornado um ativista do Partido Comunista (2001) sobre Oiticica: Brasileiro, envolvido com os Centros Populares de Cultura (CPCs), e publica “Rever seus textos não publicados é entender que a última década de seu ensaio Cultura posta em questão, em que ele finalmente rompe os vín- sua vida e produção foi seguramente tão prolífica quanto as precedentes, e culos com a cena de arte vanguardista, taxando-a de elitista e rendida ao que as descobertas intelectuais deste período podem inclusive nos obrigar a sistema e propondo um retorno às raízes populares da produção cultural; reconsiderar os trabalhos anteriores em sua totalidade [... e a testemunhar] estabelecendo assim uma relação dialética entre a arte e as necessidades uma consideração sistemática das relações entre os diferentes regimes de das classes populares brasileiras. Em julho, falece o pai de Hélio, José trabalho e as formações subjetivas que aquelas constituem.”7 Oiticica Filho. Um pouco antes, os militares haviam organizado um golpe Além do mais, a alegre alienação de Oiticica quanto às normas sensoriais de estado, o qual ocupariam até 1985, cinco anos após a trágica morte do e comportamentais, prática baseada no principio do prazer, que Oiticica próprio Hélio, em 1980. Ainda no mesmo ano, mesmo Oiticica não con- propõe como fundamento do seu programa ético-estético e que persistiu cordando plenamente com Gullar, ele deseja fugir do ambiente burguês de 1959 a 1980, é, de fato, impossível de entender do ponto de vista da da Zona Sul do Rio de Janeiro, vindo a nutrir o seu celebrado fascínio pelo especificidade de meios ou do discurso essencialista sobre o modernismo. Morro da Mangueira. Nesse contexto, ele também desenvolve os famosos Por certo, é difícil categorizar a obra de um artista tão multifacetado como Parangolés e faz da música popular uma parte integrante de seu trabalho Hélio Oiticica. Ele propõe o desafio da não distinção entre (não-)objetos artístico. Três anos depois, em 1967, Oiticica co-organiza a mostra “Nova interativos, inúmeros ensaios de fascinante clareza analítica, assim como Objetividade Brasileira” no MAM RJ, que é também a primeira apresentação panfletos e textos polêmicos, bem como a multimídia, instalações “su- de sua instalação interativa Tropicália (1967), que inclui os seus Penetráveis prassensoriais” e séries incompletas ou de autoria difusa. Portanto, para PN2 e PN3 (estruturas geométricas de madeira e tecido), programas de TV, desenvolver nosso argumento, vamos colocar o foco nos diferentes contextos poemas, pássaros e plantas tropicais, cascalho, areia e outros objetos num e coalizões presentes em sua obra, mais do que analisar as obras em seu cenário labiríntico com o mote definido no título do PN2 “A Pureza é um

304 305 Mito”. Um ano depois, o regime militar aprova o Ato Institucional AI-5, e mesmo ano sai o LP solo de Caetano com a música Tropicália e só um ano com ele a repressão militar atinge seu auge de violência contra a população depois é lançado seu álbum conjunto, Tropicália: Ou Panis et Circences, civil. Com a desculpa de “proteger” as pessoas da corrupção ideológica, a solidificando a Tropicália como movimento, e fazendo referência não apenas população é privada de seus direitos políticos básicos (direitos humanos, aos movimentos da juventude contemporânea e a música pop, mas também liberdade de expressão, liberdade de reunião etc.), ao passo que a polí- a representantes das culturas marginalizadas, a cultura afro-brasileira e cia militar adquire o aval para perseguir pessoas e grupos sem suspeitas indígena, e uma vasta gama de cineastas, poetas e artistas vanguardistas plausíveis ou permissões judiciais. identificados como “contracultura”. No seu livro “Verdade Tropical” Caetano Por outro lado, desde o início do regime militar, em 1964, havia uma nos conta queno processo de sua criação, a inspiração de chamar a canção sutil atmosfera de solidariedadeda oposição formada por diversos grupos semiacabada de “Tropicália” veio do fotógrafo Luis Carlos Barreto, que políticos e civis progressistas ou de esquerda, a despeito das fortes dife- apontou uma grande afinidade com o espirito da instalação homônima de renças de opinião entre alguns deles. Entretanto, não havia um consenso Hélio Oiticica.9 Mais tarde, Caetano diz que nenhum título poderia ser mais cultural generalizado que fosse capaz de unir as forças dos grupos politi- apropriado para uma música que rima “A Banda” com “Carmen Miranda”. camente ativos. Ao mesmo tempo, aparecem diversos novos formatos na Ao nomeá-la “Tropicália” dá um impulso decisivo para o que Oiticica mais televisão brasileira, incluindo numerosos programas de entretenimento tarde chamaria de “Tropicália sínteses”, o agenciamento específico de nos moldes dos programas “ocidentais”, entre eles o Festival de Música elementos heterogêneos e insurgentes que conseguem pôr em movimento Popular Brasileira. Na segunda edição do festival, em 1966, o jovem Chico uma massa crítica. Buarque consagra-se vencedor com sua canção “A Banda”. Chico, um ra- É na vibe de 1968, afinado com a atmosfera de protestos e movimentos paz boa-pinta, charmoso e socialista confesso, entoou uma ode à mágica internacionais de solidariedade desta época, que Caetano sabe aproveitar do carnaval, afirmando que quando a banda passa, “cantando coisas de a oportunidade e canta: “Eu organizo o movimento / Eu oriento o carnaval / amor”, o velho fraco se esquece do cansaço e põe-se a dançar; o burocrata Eu inauguro o monumento no planalto central / Do país / Viva a Bossa-sa-sa interrompe o seu trabalho sério; os amantes solitários param de contar as / Viva palhoça-ça-ça-ça!”10 Entretanto, assim que a Tropicália consolida-se estrelas para unirem-se à passagem; a gente sofrida se despede da dor como um movimento popular nacional de proporções políticas, os milita- e a moça feia debruça na janela pensando que a banda lhe faz uma sere- res começam sua empreitada contra ela. O famoso estandarte de Hélio nata. Sem dúvida, aquelas canções de amor da banda tem a energia de que diz “Seja marginal, seja herói” foi exibido no ledário show coletivo da um movimento social que, como o carnaval, pode reverter as condições, Tropicália no Bar Sucata no Rio de Janeiro, evento que foi interditado pela suspender a ordem estabelecida e clamar por liberdade. A apresentação polícia. Consequentemente, no início de 1969, Caetano e Gil foram detidos de Chico na TV desencadeia um fenômeno sociocultural que desde uma por diversos meses, primeiro em presídio e depois em prisão domiciliar. perspectiva midiática e política culmina poucos anos depois na Tropicá- Imediatamente depois do seu período de encarceramento, os dois músicos lia. “A Banda” sintetiza duas importantes qualidades que imprimiriam à fugiram para Londres, para onde Oiticica tinha migrado há pouco.11 Em sua experiência da Tropicália na música popular uma notória intensidade: em primeira exposição individual numa instituição no exterior, a instalação primeiro lugar, a apropriação, quer dizer, a funcionalização do conceito de Éden (1969), trabalho de Oiticica que dá sequência à instalação Tropicália, astros da música que são celebrados por grandes parcelas da população é exibida na Whitechapel Art Gallery.Junto com Tropicália e Éden, Oiticica para um fim subversivo; e, em segundo lugar, a circulação de conteúdos inclui o Penetrável PN5 – Tenda de Gil e Caetano (1969), e, com ela, ofe- que tendiam a ser ambíguos ou mesmo explicitamente subversivos, por rece abrigo, literalmente, construindo uma tenda em que revistas podem meio de sistemas de transmissão de alcance nacional, como o rádio e a ser lidas e fitas de música, ouvidas, espaço multimídia de exilio político. TV. No Festival de 1967, dois jovens músicos da Bahia e suas bandas le- Assim, ele incorpora a experiência do exílio à alteração experimental da varam essa experiência a um outro nível: Gilberto Gil com Os Mutantes e disposição estética dos visitantes. Caetano Veloso e os Beat Boys incorporam guitarras elétricas, e com seus Dentro de poucos meses, no outro lado do Atlântico, o regime brasileiro hits “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque” ligam o vigor do carnaval empreende uma operação de “limpeza”, removendo da cena da música baiano, seus Trios elétricos e a realidade social brasileira, com o som dos todos os elementos subversivos e ao mesmo tempo “tropicalizando” a movimentos juvenis internacionais, os Rolling Stones e Jimi Hendrix. Nesse imagem nacional midiatizada, entulhando os meios de comunicação com

306 307 uma superabundância de pássaros, plantas e outros ícones tropicais. Em esta época, Oiticica preenche centenas de páginas de cadernos, escreve breve, uma enxurrada de celebridades midiáticas tomaria os palcos, trans- numerosos textos para publicação no Brasil,e manda incansavelmente cartas formando o eletrizante impulso da Tropicália num tropicalismo ordinário para a família e amigos, descrevendo a sua vida e trabalho durante seu exílio de confecções de moda excêntrica, que confunde o pop com liberdade e em Nova York. Ocasionalmente envia fotografias e até séries completas de se contenta com vestir calças boca de sino. Em um de seus textos mais slides e para acompanhar suas descrições. Esse abundante material – as marcantes sobre a questão, Oiticica descreve o processo como uma dilui- Heliotapes (fitas cassete com áudio de fala do Hélio, entrevistas e músicas, ção dos elementos críticos da Tropicália e das estratégias de apropriação 1971—75), o material em Super 8 não editado (1971—76),14 o filme Agripina antropofágico-culturais numa grande “Brasil Diarreia” (1970).12 é Roma-Manhattan (com a participação de Mario Montez interpretando Muitos membros da oposição e da contracultura fogem para o exílio, a si próprio, 1972) e os já mencionados “quase-cinemas” (1973—75), in- tentando escapar da repressão cada vez mais violenta dos militares e da cluindo as Cosmococas (1973-74) – fornece impressionantes exemplos de sociedade civil conservadora. Muitos amigos e artistas próximos a Oiticica como Oiticica, apesar das condições variantes, produz em articulação a começam a circular por diferentes países e cidades, num constante ir e vir. um vasto número de artistas brasileiros, no Brasil e espalhados pelo mun- Artistas como Caetano e Gil, Waly Salomão, Torquato Neto, Glauber Rocha, do, como Neville D’Almeida, Antônio Dias e os irmãos Augusto e Haroldo Julio Bressane, e Lygia Clark — entre muitos outros —pas- de Campos. Alguns de seus textos publicados são redigidos em forma de sam temporadas em Londres, Nova York, Milão ou Paris. Alguns conseguem cartas e trazem um amálgama de descrições de sua obra artística, crítica voltar ao Brasil por períodos mais curtos ou longos. Nesses anos, diversas social, sua homossexualidade, o uso de drogas (e imagens disto), filosofia, revistas alternativas são criadas, assumindo um importante papel enquanto rock e sua precária situação financeira.Tudo isto formando um só conjunto porta-vozes dessas personalidades em circulação no exterior. Uma dessas inextricável.15 Esse tipo de colagens de texto e imagens ilustram sua sólida revistas se chamava Presença, na qual Oiticica publica seu artigo “MARIO habilidade de embaraçar as fronteiras entre vida e trabalho, um projeto MONTEZ, TROPICAMP” quando morava em Nova York. Esse exemplar da já iniciadoanteriormente no Rio, emostram a indissociabilidade entre as cena contracultural teve vida curta, sobrevivendo apenas por duas edições. condições de vida, as consequências e as possibilidades trazidas por Nova Os nomes das publicações refletem a situação precária e os objetivos pro- York e a repressão no Brasil. Quando “MARIO MONTEZ, TROPICAMP” foi gramáticos da época: Navilouca, Pólen, Flor do Mal (em alusão à obra de lançado, Oiticica não tinha simplesmente saído do armário (uma questão poesia censurada de Baudelaire) eO Pasquim, para mencionar alguns. Ao política tanto no Rio quanto em Nova York).Ele também se posicionava como mesmo tempo essas revistas servem como cartografias das constelações um dissidente sul-americano em exílio nos EUA, com um visto temporário em rápida transmutação, em que figuram tanto os exilados como os que de residência prestes a vencer, ficando frequentemente sem dinheiro, e permanecem no país. Assim, ajudam a criar um senso de continuidade que considerando a ideia de voltar ao Brasil “desastrosa”.16 Mesmo assim ele é havia sido perdido pelos órgãos de comunicação e culturais aceitos pela veemente ao caracterizar Manhattan como “o único lugar que me interes- oficialidade. A Tropicália tinha então entrado no underground. sa”, e ao mesmo tempo, é ambivalente ao chamá-la de “Babilônia”.17 Numa carta a Lygia Clark ele escreve: “Hoje estou péssimo, com mil problemas para resolver sem saber tropiCAMP (Pós-Tropicália) como; me sinto como numa prisão, nessa ilha infernal, sem status, tendo Diarreia, Diarreia, Di-a-rreia, “Diarreia” — Diarreia, Di... que escolher qualquer emprego exploratório que me queiram oferecer, Mario Montez, também conhecido como Miss Montez, em Screen Test nº 2 de Andy Warhol etc.; tudo vai passar, mas é irritante; a cidade vive de emprego escravo: (1965)13 porto-riquenhos ilegalmente aqui, brasileiros, portugueses, irlandeses, e Deus sabe mais o quê.”18 Olhando desde a perspectiva destas redes de comunicação contracultural, Apesar das dificuldades que a vida impôs a Oiticica depois que sua bolsa é importante notar que o uso de texto, áudio, filme Super8 e fotografia Guggenheim acaba, em 1972, ele enfrenta as consequências da situação como suportes artísticos torna relativamente fácil para Oiticica (e para de dissidente e decide permanecer em Manhattan vivendo em condições outros também) o envio da sua produção para o Brasil e a disseminação precárias. Para Oiticica isso significa nada menos que prosseguir com o internacional, o que ele faz durante toda a temporada no exterior. Durante que tinha começado com Tropicália, agora no underground babilônico de

308 309 Nova York. Nesse sentido Oiticica dá um passo à frente e reinstala seus da Broadway e um cartaz de musical pode ser considerado a expressão Ninhos (1970) – uma classe de bateria de cabines Bólides-camas, estrutu- mais antiga da extraordinária sensibilidade plástica do jovem artista que ras inabitáveis de extensão horizontal que exibiu na mostra “Information” temos conhecimento hoje. Para nós, invocar a imagem do pequeno Hélio, (1970), no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) – no seu loft lo- maravilhado e boquiaberto, em meio a Times Square, possibilita imaginar calizado no Lower East Side, rebatizando-os de Babylonests (trad. Ninhos um aspecto a mais da perspectiva de Oiticica em 1971 — o ponto de vista de Babilônia).19 Seguindo a lógica de PN5 – Tenda de Gil e Caetano, esses de alguém que havia acabado de chegar.Ou, fazendo uso das palavras para espaços funcionam como casulos protetores, nos quais a experiência de definir o termo camp do dramaturgo e diretor do lendário The Ridiculous vulnerabilidade e desterritorialização pode ser reconfigurada ética e este- Theatrical Company, Charles Ludlam, “a perspectiva de um estrangeiro, ticamente.Isso pode ser entendido no sentido do que Mario Pedrosa certa de coisas que os outros aceitam como completamente normais”.23 O amor vez definiu como “exercício experimental da liberdade”, ou, dito de forma anacrônico de Oiticica pelos espetáculos da Broadway e a cultura popular mais jocosa, como um exercício de alienação da alienação.20 dos EUA dos anos 1940 e 1950 é algo que ele partilha com Montez e que Essa abordagem também pode nos ajudar a entender que, para Oiticica, estabelece uma grande parte da cumplicidade entre eles. Estrelas como as oposições sociais e políticas não são constituídas por contrastes bem- Carmen Miranda e Marilyn Monroe — que faziam parte do repertório de -definidos ou divisões estéreis, como homossexual versus heteronormativo Drag Queen de Mario Montez — eram figuras quase mitológicas tanto no ou de sul contra norte. Pelo contrário, ele assume uma posição decidida- universo da Tropicália quanto na cena do underground queer de Nova mente minoritária e internacionalista frente a ambos sistemas, a democracia York: superestrelas rejeitadas pela intelectualidade que, em termos de americana e a ditadura militar no Brasil. Nesse sentido, Oiticica aspira a intensidades e mortes trágicas, antecipam os grandes astros do rock. novas formas de alianças, a coalizões subterrâneas que recusam tanto a Figuras que até hoje testemunham que conceitos como “cultura nacional “normalidade” do liberalismo dos EUA quanto o fascismo civil-militar no autêntica” e o “verdadeiro e único amor” afinal são conceitos efêmeros e Brasil, considerando os dois sistemas repressivos e inaceitáveis. A noção só podem funcionar com a combinação precisa de barbitúricos e anfeta- de “tropicamp” pode ser considerada uma importantíssima expressão do minas. Como Oiticica afirma durante a conversa Mario Montez, “Há muito espírito de oposição heliano. em comum entre o movimento da Tropicália no Brasil e o trabalho seu e Porém, a permanência de Oiticica nos EUA depois de 1970 não era a de Jack Smith, sabe”.24 primeira possibilidade aberta por uma bolsa Guggenheim. Graças ao apoio Quando Oiticica vai para Nova York em 1970, ele fica decepcionado com da Guggenheim Foundation em 1947, seu pai,o entomologista e fotógrafo a cena artística local, e não mede palavras em suas críticas. Numa carta José Oiticica Filho, tinha conseguido levar toda a sua família para Wa- a Guy Brett ele escreve: “Eu não sei o que está acontecendo aqui, mas a shington D.C. por dois anos.21 Durante a conversa entre Oiticica e Mario cena artística é tão burguesa, conformista e reacionária, é inacreditável.”25 Montez, registrada como material de base para o texto “MARIO MONTEZ, Mas Oiticica encontra uma exceção à regra em Jack Smith, no contexto do TROPICAMP”, Oiticica recorda sua primeira visita a Times Square aos dez teatro queer e no underground de Nova York. Ele fica impressionado com o anos de idade, na cidade de Nova York em 1948. Ele conta a Montez a res- Ridiculous Theatrical Company (“um grupo importante”) e o Living Theater, peito da profunda impressão causada pelo cartaz da Broadway de “Annie e pelos projetos de Mario Montez (“ele é um gênio”), por Ira Cohen, que Get Your Gun”(1946), musical de Irving Berlin, que foi adaptado para filme gostava de se vestir como um califa, e por Stefan Brecht — autor da lendá- alguns anos depois e virou um sucesso internacional. O cartaz mostrava a ria crônica do teatro queer de Nova York chamada Queer Theater (1978) e protagonista Annie segurando um rifle, cujo cano “sobressaía do enorme filho de Bertolt Brecht — que se disfarçava como meio noiva, meio noivo, cartaz” e ficava erguido no espaço aberto como um elemento plásticoaci- personificando um hermafrodita numa peça que Oiticica viu, e a quem ele ma das luzes da Broadway. Ele relembra: “Fiquei muito impressionado.”22 encontrou numa festa. “São as melhores coisas de teatro aqui; sinto-os Por diversos motivos, essa tenra memória pode ser considerada essen- sempre ‘pensando junto’, em grupo, o que parece tão raro por aqui.”26 cial para a forma de perceber o trabalho de Oiticica: tanto pela informação Quanto mais Oiticica admirava o sentimento de comunidade ao redor do biográfica que revela quanto sob um ponto de vista estético-formal. Um Ridiculous Theatrical Company, mais aumentava a sua desconfiança quanto elemento fundamental da obra de Oiticica desde os anos 1950 é o desejo a significativamente mais competitiva atmosfera de The Factory, estúdio de da superação do espaço pictórico ilusionista, e provavelmente, a memória Andy Warhol. Em outra carta, ele escreve sobre a situação abissal de alguns

310 311 dos astros de Warhol, que basicamente “vivem na rua”, e sobre como ele Durante a conversa com Mario Montez, Oiticica conta sobre a visita de ofereceu o seu apartamento (os “Babylonests”) para Holly Woodlawn, que Smith ao Brasil. Smith tinha produzido — apesar dos planos de filmagem não tinha outro lugar para ir.27 Durante a conversa gravada, Oiticica pergunta frustrados — uma série de slides mostrando a arquitetura brasileira, um a Mario Montez diretamente sobre a baixa remuneração das produções da projeto em que Oiticica parecia ter particular interesse. Entretanto, todas The Factory de Warhol, e quando Montez confirma que é verdade, “US$ as imagens, o carrossel e o projetor haviam sido roubados, deixando Smith 10 por filme”, Oiticica responde, com expressão de descrédito: “Eles [os com apenas umas filmagens em 16mm fragmentadas do Carnaval no Rio e produtores] devem ser milionários!” Montez, no entanto, vem à defesa de dos policiais militares ao redor do evento. Essas imagens foram restauradas Paul Morrissey, diretor dos filmes de Warhol na época, por que ele havia com o título Respectable Creatures (1950—66). Depois de apresentar o filme dado US$ 100 para que ele comprasse algo ‘bonito’ para vestir. Montez em 2009, na conferência intitulada “Live Film!Jack Smith!Five Flaming Days responde diplomaticamente: “Costumo obter dele tudo o que quero”, e in a Rented World” em Berlim, o escritor, especialista em cinema e teoria Oiticica muda de assunto.28 queer Juan A. Suarez, faz referência à Tropicália de Oiticica, descrevendo Numa carta para o cineasta Ivan Cardoso, Oiticica escreve: o filme, entre outros, como “Tropicalismo de Smith”.32 “trash [1970] é o filme do morrissey, prod. warhol, comercial: é lindo: No texto “MARIO MONTEZ, TROPICAMP” e na conversa gravada com comercialização gay-underground (superficialmente): [ ...] toda park avenue Montez, Oiticica expressa suas esperanças de que ele volte as telas de pergunta: já viu trash: pensando serem hips: sentindo-se conivente com cinema através de Andy Warhol, num filme que originalmente receberia o algo marginal: levar uma atividade marginal a um nível burguês: esse lado título de Tropicana Heat, como consolidação de uma atitude ético-estética: reacionário é assumido em trash, o que não impede a fantástica sensibilidade “tropicalidade como coisas tropicais críticas”, mas comenta que “ninguém de morrissey mais atores (joe dallessandro, jane forth e principalmente pode imaginar como seria o filme até que fosse editado e distribuído”.33 holly woodlawn) de se mostrarem como os melhores mesmo (...)”29 Ironicamente, Warhol produziu Heat em 1972, um ano depois, sem Mario Oiticica tem consciência do fato de que a cena underground e a estética Montez, e sem “Tropicana” no título, e se tornou um enorme sucesso co- queer em Nova York tinha começado a se vender há muitos anos. Porém, na mercial. Foi nessa ocasião que Warhol retirou de circulação seus filmes opinião de Oiticica, Smith permanece imune às tendências “reacionárias” e pré-Morrissey, seguindo os conselhos do próprio Paul Morrissey. Como à comercialização: “O lance de Jack Smith é bastante diferente.”30 No início Douglas Crimp comenta, “Morrissey achou que eles eram pretensiosos e de 1971, Oiticica visita o loft de Smith pela primeira vez e assiste a uma de chatos, e eu acredito que ele queria chamar atenção para os seus próprios suas “living performances” (performances vivas): Claptailism of Paloma filmes”. Assim Morrissey torna indisponíveis até o fim dos anos 1980 todos Economic Spectacle:Saturdays at Midnight at the Plaster Foundation, 36 os filmes de Warhol em que Mario Montez e Jack Smith apareciam.34 Greene Street. Em diversas ocasiões, ele menciona e descreve com detalhes as suas impressões. Numa carta a Brett, ele escreve: “Jack e um cara gordo meio afeminado estavam vestidos completamente O TROPICAMP e Hélio Oiticica de árabes (túnicas), e o cara gordo tinha sutiãs em seu peito; eles esta- Podemos abrir o armário agora, Andy? Vamos abrir o vam, quando eu cheguei, sentados numa mesa antiga, onde você deveria armário? Posso abrir o armário? sentar junto, após depositar uma moeda numa lata (o fundo da lata era a Jack Smith como Jack Smith, em Camp (1965), de Andy Warhol mão de Jack, e ele ficava checando para ver se você estava depositando dez centavos ou um quarto de dólar), tem que cochichar com ele e com É importante deixar claro que as manifestações artísticas e as referências o gordo, havia um clima de mistério como se fossem padres de alguma da estética queer na obra de Hélio Oiticica e sua ênfase em políticas de religião desconhecida; eu disse de onde tinha vindo, e Jack contou que gênero raramente tem sido explicitadas no Brasile tampouco nos circuitos já tinha vindo ao Rio (provavelmente em 1966, porque ele lembrava que a internacionais da história e crítica de arte. Porém, poderíamos especular escola de samba que tinha ganhado era azul e branco, a , portanto, que quanto mais atenção Jack Smith receber do público e crítica em geral, ao passo que, em 67 e 68, tinha sido a Mangueira, que era verde e rosa) e mais importante ele se tornará, enquanto uma referência crucial (do universo tinha tentado fazer filmes, mas tudo era absorvido por eventos inesperados, queer) para os estudos de Oiticica no futuro. Desde a exposição de Smith e este era um importante comentário: as coisas no Brasil são absorvidas, no P.S.1 Contemporary Art Center em Nova York, em 1997, a sua obra vem não importando o quanto de planejamento fosse empregado.”31 atraindo cada vez mais atenção das instituições em escala internacional,

312 313 com apresentações de sua obra cinematográfica no Museu Reina Sofía de Nixon), e novas constelações ideológicas depois dos anos 1960 (o impacto Madri (2008), no grande festival-retrospectiva Live Film!Jack Smith!Five dos movimentos de 1968 a nível global). Para um sujeito pós-Tropicália Flaming Days in a Rented World em Berlim em 2009, e em mostras na com Oiticica, a cultura marginal posta em voga por um novo consumismo Barbara Gladstone Gallery, em Nova York, e no Institute of Contemporary de vanguarda liberal em um mercado livre e desregulado representa uma Arts, em Londres em 2011. ameaça, inclusive mais difícil de escapar que a da fábrica, dos hospícios Nesse contexto, temos que contradizer as sugestões e os medos de ou dos militares. que a influência de Smith na obra de Oiticica poderia tê-lo convertido em Finalmente é importante afirmar a sexualidade gay de Oiticica, mas um artista menos brasileiro. Ao contrário, Oiticica não mudou a sua forma também ter em mente que sua própria afirmação enfática de politicas de trabalhar depois de conhecer a obra de Smith, mas sim, ele finalmente queer é só um dos vários aspectos importantes dentro de todo um jogo de encontrou em Smith e em Montez, importantes aliados e cúmplices na luta propostas que conformam sua atitude ético-estética. Esta atitude revela contra as formas de ideologia repressiva (pequeno-burguesa conservadora uma coalizão internacionalista e subterrânea, que recusa estritamente o e liberal niveladora) que dominam o campo da arte, e contra as que ele se princípio heteronormativo e o fascismo de comportamento ainda vigente, rebela pelo menos desde 1964. Dessa forma, a noção de “tropicamp” de mas que porém se mantém alerta e suspeita das narrações liberais de pro- Oiticica, como ele detalha em seu texto na revista Presença em 1971, pode gresso social, das modas e do chique distintivo das boemias metropolitanas. ser entendida como “simultaneamente pré e pós-Tropicália”35: embora ela Para Hélio Oiticica, assim como sua relação com Manhattan-Babilônia, sua derive de suas experiências em sociedades repressoras (tanto liberais quanto atitude diante das politicas de gênero, a atribuição nacional e os processos fascistas), ela também afirma a experiência de ser desterritorializado (exí- de alienação são muito mais complexa do que qualquer oposição binaria de lio político, perda dos pais e figuras paternas), sempre recusando o olhar “pré- e pós-exílio” possa abarcar, e por fim sugere interrelacionar as múlti- nostálgico que procura uma origem verdadeira, ou um destino verdadeiro. plas camadas e facetas que constituem o processo de mudança aparente Nesse texto, Oiticica, de maneira provocativa, delineia a genealogia de seu em seu enfoque sobre Tropicália, sobre sua vida e sua obra. próprio trabalho por meio do “Tropicalismo de Smith”, ao invés do “Ma- nifesto Antropofágico” (1928) de Oswald de Andrade, ou das vanguardas brasileiras dos anos 1950 — ambas figurando na genealogia padrão da obra de Oiticica em discursos sobre história da arte. Além do mais, Oiticica desenvolveu uma genealogia diferente e determinada por ele mesmo, que coloca estrategicamente suas raízes próximas da obra de Smith. Isso nos dá a oportunidade de compreender algumas das similaridades estrutu- rais entre práticas antropofágicas e práticas camp: apropriação, humor, desterritorialização de estruturas semióticas e padrões de conhecimento, e sobretudo, a des-essencialização de práticas culturais. O antropofágico e o camp são atitudes estritamente contrárias a hegemonia cultural, que com o desvio de afinidades eletivas que Oiticica nos apresenta, formam uma aliança de emergência histórica e panamericana. O que nos sugerem as observações de Oiticica é que o desafio que temos que enfrentar hoje em dia é reconsiderar as estratégias antropofágicas e as estratégias camp, no contexto de novas formas de consumismo e de com- modities que emergem depois de 1968, em especial no começo dos anos 1970. É importante afirmar que a noção de “tropicamp” implica mudanças fundamentais na sociedade e na produção, como a mudança do regime laboral (do Fordismo ao Pós-Fordismo), mudanças na economia global (a dissolução da relação padrão-ouro e dólar americano pelo presidente

314 315 Notas 12 Vide H. Oiticica, “Brasil diarreia”, 1970, Doc #0328.70. Publicado em Cesar Oiticica Filho, Sergio Cohn e Ingrid Vieira (ed.), Encontros: Helio Oiticica, Rio de Janeiro: * uma primeira versão desse ensaio foi publicada na revista Afterall, nº 28, Londres Azougue, 2009. 2011 em inglês. O autor gostaria de agradeçer a Fabiana Faleiros pela ajuda com a 13 para obter uma descrição abrangente do desempenho de Mario Montez no Screen adaptação e edição do texto em português. Test no 2, confira o ensaio original de Douglas Crimp “Mario Montez, For Shame”, in 1 Vide Hélio Oiticica, ‘Blockexperiments in Cosmococa — programa in progress’. O Stephen M. Barber e David L. Clark (ed.), Regarding Sedgwick: Essays on Queer Cultu- texto foi impresso em pelo menos três diferentes publicações: Projeto Hélio Oiticica re and Critical Theory, New York and London: Routledge, 2002. et al. (ed.), Hélio Oiticica (catálogo de exposição),Paris e Roterdã: Jeu de Paume and 14 o autor gostaria agradecer a Cesar Oiticica Filho, o Projeto Hélio Oiticica e Vinícius Witte de With, 1992; Carlos Basualdo (ed.), Hélio Oiticica: Quasi-Cinemas (catálogo Nascimento pelo acesso ao material não publicado, tanto Super8 como fitas de áudio. de exposição), Columbus and Cologne: Wexner Center and Kolnischer Kunstverein, 15 para mais informações sobre os textos de Oiticica durante o período em Nova York, 2001;H. Oiticica e Neville D’Almeida, COSMOCOCA PROGRAMA IN PROGRESS, Buenos confira o abrangente livro do crítico cultural e publicitário brasileiro Frederico Coe- Aires e Belo Horizonte: Fundação E. Constantini e Fundação de Arte Contemporânea lho, Livro ou Livro-Me. Os escritos babilônicos de Hélio Oiticica (1971— 1978), Rio de Inhotim, 2007. A versão original é mantida no arquivo digital do Projeto Hélio Oiticica Janeiro: Editora da UERJ, 2010. Rio de Janeiro (doravante PHO) como Doc. nº 0301.74 16 Vide carta a Luis Fernando Guimarães, 11 de abril de 1971, PHO Doc #1107.71-p.1 (ori- 2 Vide Sabeth Buchmann e Max Jorge Hinderer Cruz, Hélio Oiticica & Neville D’Almeida: ginal em português). Cosmococa, Rio de Janeiro: Azougue / Capacete, 2014. 17 carta para Lygia Clark, 2 de agosto de 1970 (original em português). Publicado em L. 3 Vide Hélio Oiticica, “MARIO MONTEZ. TROPICAMP”, Presença, Rio de Janeiro, dezem- Figueiredo (ed.), LygiaClark, Hélio Oiticica: Cartas 1964—1974, Rio de Janeiro: Editora bro 1971, manuscrito original em PHO Doc nº 0275.71 UFRJ, 1996, pp.159—66. 4 Vide PHO Doc. nº 0271.71, “anotações para serem traduzidas para inglês: para uma 18 carta para L. Clark, 24 de janeiro de 1972 (original em português). Publicado em L. próxima publicação”,1 de setembro de 1971. In Paula Braga (ed.), Fios Soltos. A Arte Figueiredo (ed.), LygiaClark, Hélio Oiticica, op. cit., pp.215—20. de Helio Oiticica, São Paulo: Perspectiva, 2008. 19 para descrições e reflexões completas sobre os “Babylonests” de Oiticica, confira 5 Vide Luis Camnitzer, Conceptualism in Latin American Art: Didactics of Liberation, o extraordinário trabalho de Victor ManuelRodriguez sobre o assunto, “Cold War Austin: University of Texas Press, 2007, p.230. Legacies Otherwise: Latin American Art and Art History in Colonial Times”, tese de 6 Vide Mari Carmen Ramirez (ed.), Helio Oiticica: The Body of Colour (catálogo de expo- doutorado não publicada, Rochester, NY: School of Art and Sciences, University of Ro- sição), Londres: Tate Publishing, 2007, p.18. É significativo que a mostra foca mesmo chester, 2009. Um excerto foi publicado como “Eroiticica o Los muchachos de Oro de nas obras de Oiticica de 1955-65, e a segunda parte da retrospectiva planejada para Babylonests”, ramona — revista de artes visuales, nº 99, abril de 2010, pp. 59—63. mostrar a obra tardia de Oiticica terminou nunca acontecendo. 20 parafraseando o lema antropofágico de Oiticica de consumir o consumo, entendemos 7 Vide C. Basualdo, ‘Waiting for the Internal Sun: Notes on Helio Oiticica’s Quasi-Cine- a posição de Oiticica como um programa de alienação da alienação. O autor gostaria mas’, in C. Basualdo (ed.), Helio Oiticica: Quasi-Cinemas, op. cit., pp.39—40. de agradecer a Sabeth Buchmann pelos anos de troca e colaboração na pesquisa so- 8 Vide Ferreira Gullar, “Teoria do não-objeto” (1958), publicado em Suplemento Domini- bre a vida e obra de Hélio Oiticica, e por compartir sua criteriosa análise do trabalho cal do Jornal do Brasil, 19-20 de dezembro de 1959. de Oiticica relativo às implicações da tecnologia e da produção da subjetividade. Vide S. Buchmann, Denken gegen das Denken. Produktion — Technologie — Subjektivität 9 Vide Caetano Veloso, Verdade Tropical, São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. bei Sol LeWitt, Helio Oiticica und Yvonne Rainer,Berlin: b_books, 2007, e “Leisure 73” 188. A Tropicália de Oiticica foi apresentada por primeiro em 1967, durante a exposi- in Tanya Leighton (ed.), Art and the Moving Image, London: Tate Publishing in asso- ção “Nova Objetividade Brasileira” no Museu de Arte Moderna (MAM) no Rio de Janei- ciation with Afterall, 2008. ro, que foi um tipo de panorama de arte de vanguarda da época. O uso por Oiticica da TV na instalação pode ser considerado no contexto da importância dos festivais de 21 Vide Ariane Figueiredo, “Hélio Oiticica: Cronologia (1937—1980)”, in P. Braga (ed.), música televisionados para movimentos sociais à época. Fios Soltos. A Arte deHélio Oiticica, op. cit., pp.291—303. 10 “Eu organizo o movimento / Eu oriento o carnaval / Eu inauguro o monumento no 22 as supracitadas “Heliotapes” constituem-se de uma série de entrevistas e conver- planalto central / Do pais / Viva a Bossa-sa-sa!” C. Veloso, “Tropicália”, 1967. sas que Hélio Oiticicacomeçou em 1971. A conversa de uma hora e meia com Mario Montez, gravada em 1 de setembro de 1971, na casa de Montez no Brooklyn, pode ser 11 uma valiosa coletânea de textos sobre a temporada em que Oiticica morou em Lon- considerada parte da série. O autor gostariade agradecer a César Oiticica Filho e o dres, incluindo uma versão fac-similar do catálogo da exposição de sua mostra indivi- Projeto Hélio Oiticica por fornecer a gravação. Uma edição reduzida da entrevista tra- dual na Whitechapel Art Gallery, com curadoria de Guy Brett, foi publicada em 2007: duzida para o português foi publicada na revista Nau n°6, Rio de Janeiro, Agosto 2015. Guy Brett and Luciano Figueiredo (ed.), Oiticica in London, London: Tate Publishing. Uma transcrição da entrevista integral em idioma original inglês, introduzida por Max

316 317 Jorge Hinderer Cruz, foi publicada como “Héliotape with Mario Montez”, na revista 33 H. Oiticica, ‘MARIO MONTEZ, TROPICAMP’ (1971), PHO Doc #0275.71, publicado ori- Criticism, volume 56 n°2, Jack Smith: Beyond the rented world (ed. Marc Siegel), Way- ginalmenteem português em Presença, nº 2, Rio de Janeiro 1971 (conforme citado ne University Press, 2014, pp.379 – 404. em: Frederico Coelho, “Eu, brasileiro, confesso minha culpa e o meu pecado: cultura 23 Vide “Camp”, resposta crítica de Charles Ludlam para “Notes on Camp”, de Susan marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970”, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Sontag. Ludlam critica a despolitização do termo unidirecional de Sontag, que inclui 2010, p. 311). Vide também esta edição, pp. 16—21. a definição essencialista de camp; e, assim, atribui um valor idealista a objetos espe- 34 Vide M. Danbolt, “Front Room — Back Room”, op. cit., http://www.trikster.net/2/ cíficos. Ludlam afirma sobre a reificação da estéticaqueer por Sontag: “Susan Sontag crimp/5.html (último acesso em 1º de agosto de 2016). realmente criticou Camp ao afirmar que se tratava de coisas específicas [...] se você 35 H. Oiticica, ‘MARIO MONTEZ, TROPICAMP’, op.cit. adotar a regra de Camp e o Teatro do Ridículo no mercado de ações,você pode ganhar uma fortuna. Você compra quando estão em baixa e ninguém as quer e, em segui- da, aumentam. Se você comprar na alta, já o faz sabendo que vão cair.” In Steven Samuels (ed.), Ridiculous Theater: Scourge of Human Folly: The Essays and Opinions of Charles Ludlam, New York: Theatre Communications Group, 1992, pp. 225—27. O autor gostaria de agradecer Marc Siegel por liberar o texto original de Ludlam. 24 diversas histórias sobre os encontros entre Oiticica e Smith podem ser encontradas nas cartas de Oiticica de 1971, por exemplo, para G. Brett, L. Clark e Waly Salomão. Vide, em especial, sua carta para seu amigo de longa data Luis Fernando Guimarães, 11 de abril de 1971, PHO Doc #1107.71. 25 carta para G. Brett, 16 de março de 1971, PHO Doc #1102.71 (original em inglês). 26 carta para L.F. Guimarães, 11 de abril de 1971, PHO Doc #1107.71 (original em portu- guês). 27 oiticica, no entanto, objeta que Woodlawn nunca apareceu, o que o levou à conclu- são de queela deve ter encontrado um local “lucrativo” para passar a noite. Ibid. Outra descrição sobre as condições de vida precárias de Woodlawn é fornecida por D. Crimp numa entrevista: “Holly Woodlawn morou comigo por um breve período em que ele estava produzindo Trash (1970), então, eu conhecia a experiência do outro lado, o lado de uma drag queen que estava sendo explorada por The Factory”. Vide Mathias Danbolt, “Front Roomt – Back Room: Interview with Douglas Crimp”, disponí- vel emhttp://trikster.net/2/crimp/1.html(último acesso em 31 de julho de 2016). 28 Vide “Héliotape com Mario Montez” (conversa com Mario Montez), 1º de setembro de 1971 (original em inglês). 29 carta para Ivan Cardoso, 23 de fevereiro de 1971, PHO Doc #1096.71 (original em por- tuguês). 30 carta para G. Brett, 16 de março de 1971, op. cit. 31 Ibid. 32 “Live Film! Jack Smith! Five Flaming Days in a Rented World” foi apresentado de 28 de outubro a1 de novembro de 2009 em Arsenal — Institute for Film and Video Art e HAU/Hebbel am Ufer, em Berlim. O programa contou com a curadoria de Susanne Sachsse, Marc Siegel e Stefanie Schulte Strathaus.A pesquisa de J.A. Suarez apresen- tada nesta ocasião foi publicada em “Jack Smith: Beyond the rented world”, Criticism, op. cit. Para mais informações sobre Mario Montez, vide J.A. Suarez, “The Puerto Ri- can Lower East Side and thetQueer Underground”, Grey Room, no.32, Summer 2008, pp. 6—37.

318 319 A instituição em xeque: trabalhando nas ruínas do museu Jesús Maria Carrillo Castillo Professor titular do Departamento de História e Teoria da Arte da Universidad Autónoma de Madrid e ativista institucional

Em 1964, ao mesmo tempo em que os Bólides de Hélio Oiticica propunham- -se a ativar a imaginação de um público que deixava de ser passivo para recriar a obra, Jean-Luc Godard fazia com que os protagonistas de Bando à Parte percorressem às pressas, em apenas nove minutos, as intermináveis galerias do Louvre, dando por encerrado o “tempo dos velhos museus”, deixando entrever, de maneira teatral, barroca, vaga e extemporânea, um novo tempo: o da experiência contemporânea, que demandava novas histórias, novas arquiteturas e disposições subjetivas. No entanto, esta premonição de matizes futuristas e dadaístas não iria assumir a forma que eles conceberam, a reboque dos eventos que suce- deram os protestos de 1968 e o ulterior impasse pós-moderno. Foi assim que o chamado “fim da história” acarretaria não só um obscurecimento da possibilidade de prenunciar o futuro, como também a tendência a ar- remedar modelos obsoletos e a disseminar o pastiche enquanto forma de referência ao passado.

321 Apesar das diferentes vertentes da museologia crítica e pós-moderna e em papel machê que lhe propiciassem experiências prontas para o con- da pujança dos modelos participativos e interativos, mesmo hoje em dia, o sumo, ou tampouco servir de cenário para a representação das novas e museu continua representando uma encenação burguesa. A contemplação velhas elites hegemônicas. Muito pelo contrário, o dispositivo ao mesmo autônoma das obras de arte em museus era um dos ritos mais ultrapassados tempo anacrônico e teatral de exposição tenderia também à virtualidade por meio do qual o público ilustrado se atualizava. de produzir no visitante um nível superior de consciência “brechtiana” a Através da mediação das obras de arte e do juízo estético que elas respeito do olhar, tornando visíveis as sombras que gera o próprio corpo suscitavam, o indivíduo tomava consciência de sua própria natureza, como físico e biográfico sobre qualquer uma das personificações que lhe são sujeito autônomo, além de membro de uma comunidade política, de uma propostas. No filme de Straub-Huillet, a voz feminina em off que “recita” as república de “homens” livres. O anacronismo é um traço essencial da atual impressões de Cezanne sobre as imagens das pinturas nos protege contra experiência de um museu, como decerto uma pesquisa de rua confirmaria. uma identificação com o olhar do artista. O contraste entre o ponderado O museu, aí inclusa a arte contemporânea, é reconhecido pela população olhar de Cezanne e o intenso tráfego da Paris atual, que abre o filme, torna como um dispositivo obsoleto, ainda que a sua atmosfera arcaica aumente patente seu incontornável distanciamento, assinalando o espaço vazio do o seu apelo como produto cultural de “qualidade”, sem necessariamente “público” contemporâneo. torná-lo ilegítimo. No ritual da visita a museus, a esfera pública burguesa O assinalamento desse espaço vazio e a necessidade de instaurar olhares é contemporaneamente reproduzida em tom de pastiche, de modo espe- específicos sobre o próprio tempo adquire especial sentido de urgência tacularizado e adaptado ao consumo fácil, partindo da importante missão no caso do Museo Reina Sofía. Por um lado, sua situação periférica den- ideológica de exaltá-la como ápice do processo civilizatório, ao mesmo tro das narrativas da modernidade hegemônica teria feito com que sua tempo em que encerra suas promessas de emancipação. adesão inerte às mesmas resultasse numa imagem provinciana e colonial No entanto, também é possível identificar a atividade como “espectro”, de suas coleções, em que qualquer processo artístico local pareceria um que torna patente a natureza distópica do presente e sublinha a urgência de eco imperfeito das tendências surgidas nos centros. O protagonismo de conjecturar novas esferas públicas nas quais se articulem tanto o conflito seus personagens diaspóricos: Picasso, Miró e Dalí, não fazia mais do que quanto as figuras de emancipação. Em sua Visita ao Louvre, de 2004, o duo corroborar essa temporalidade subalterna, definida a partir da ansiedade Straub-Huillet recupera o tempo da contemplação lenta e perscrutadora devido à carência ou da nostalgia frente à perda. Por outro lado, o Museu que seu colega Godard havia esnobado em sua disparada, há quarenta se via assombrado pelos fantasmas de um passado arrebatado por décadas anos. Os cineastas o fazem, contudo, mediante um gesto anacrônico, in- de ditadura franquista e posteriormente enquadrado, a reboque da insti- vocando um espectro, já que com sua câmera encenam o olhar inquisidor tucionalização das vanguardas no período democrático, que havia dado de um jovem Paul Cezanne sobre a pintura dos grandes mestres, a partir lugar a uma narrativa normalizada e canônica. do umbral próprio da vanguarda. Eles pareciam querer nos dizer que os Com a crise sistêmica que se afigurava com particular relevo em 2008, limites do olhar contemporâneo são incomensuráveis aos dos museus, e no mesmo período em que começava a trabalhar a nova equipe curatorial, que é necessário provocar um desfasamento temporal que permita religar tornava-se imprescindível reivindicar um “aqui e agora” a partir do qual os olhos e os corpos dos visitantes com a escala de atenção e os ritmos que se pudesse projetar um olhar específico e discernível, e com base em que demanda a apreciação dessa sequência de imagens emolduradas, objetos também se tornasse possível agitar as inércias historiográficas e liberar e documentos sob a vitrine, que são dispostos nas salas. os silêncios e ângulos arcaicos, devolvendo ao visitante o interesse por Para ver as pinturas de Veronese, Ingres ou Delacroix, tal como expos- encarar e descortinar as vicissitudes de um tempo incerto. Isso o obrigava tas no Louvre, seria necessário personificar os olhares que não derivam a assumir o risco de entrar em cena ensaiando uma voz distinta, seguindo de nossa experiência contemporânea. A posição absorta ou inquisidora um roteiro em permanente processo de reescrita e enfrentando um público que o museu de arte requer precisaria ser reconstruída através de ficções, cujas expectativas ainda eram uma incógnita. mediações literárias ou cinematográficas, tomando por base as imagens O conceito da rede Museos del Sur, cuja proposta programática proveio herdadas ou que subjazem o imaginário coletivo. A finalidade dessas fic- do Museo Reina Sofía, vinculava o planejamento desses dilemas especí- ções não seria necessariamente o de confundir ou ludibriar o visitante com ficos do museu a uma releitura radical da modernidade global, na qual a intenções ideológicas, nem o de introduzi-lo em estimulantes simulacros visão universalista e imperial se veria necessariamente interpelada pelos

322 323 olhares subalternos, sempre fragmentários, conjunturais, antagonistas e de situação em relação paraláctica com aquele. A apresentação dos objetos natureza performativa. Uma genealogia desses olhares nos levaria mais a como resultantes de uma conjuntura, de uma encruzilhada de caminhos uma teatralidade barroca, tal como se tornou evidente no projeto Principio nos quais confluíram determinações e acidentes, subjetividades e vonta- Potosí, do que à visão absorta do Iluminismo. des, e não como monumentos de um tempo encerrado, ou como contas As implicações processuais desse modelo “do sul” teriam sido en- desgastadas de um rosário repetido à exaustão, manifesta a virtualidade saiadas num projeto anterior, Desacuerdos, iniciado em 2002 e limitado de propor ao visitante uma percepção intensa e aberta de sua própria ao contexto espanhol. A partir da alusão explícita ao texto de Ranciere, situação histórica e de sua capacidade de agência. Desacuerdos articulava instituições, ativistas, artistas e pesquisadores Nesse sentido, seria fundamental explorar e moldar os diferentes regis- num projeto experimental de investigação histórica plural e disfônica, na tros da obra de arte: material, icônico, estético-formal, histórico, biográfico contramão das narrativas oficiais da chamada Cultura da transição demo- e documental, fazendo com que um ou outro predomine, mas sem anular crática espanhola, entendida nos termos da normalização e do consenso. os demais, em cada encenação concreta. A exploração dessa versatilidade O desenvolvimento desse projeto explorava as possibilidades de uma pro- e polissemia não só multiplicaria os recursos narrativos e expressivos à dis- clamação contra-hegemônica no interior da instituição, empreendendo um posição do museólogo, mas também transmite uma sensação de ligeireza e processo de negociação e conflito, ao mesmo tempo em que ensaiava uma abertura ao espectador, que já não se vê constrangido a reconhecer a mesmice historicidade compatível com a natureza dissonante do projeto. O artista e engessada e aurática da obra de arte, mas sim a perceber sua capacidade de teórico Marcelo Expósito, um de seus principais pesquisadores, propunha veicular a diferença e o contingente dentro de um processo de emancipação. uma ruptura epistemológica na construção da narrativa histórica a partir do Outro gesto imprescindível seria o de moldar a voz do museu, transmi- religamento político dos fragmentos do passado e desses com o presente tindo a sensação de uma enunciação localizada e móvel, que suspendesse a partir de uma história diagramática que “facilitasse a compreensão da a ficção de uma verdade autônoma, necessitando apenas se destacar, e forma como os artefatos estéticos carregam as marcas de suas próprias evidenciasse uma locução que unisse o narrador ao receptor numa ação condições históricas”. As noções de “montagem” e “olho variável” extraídas comunicativa específica em que o sentido fosse produzido. Este emissor não da linguagem cinematográfica, em que Expósito se debruça, poderiam ser seria diretamente identificável com a figura do “autor”, entendido como uma facilmente estendidas em direção aos conceitos de encenação e teatrali- voz singular que viria meramente substituir a figura da autoridade abstrata dade pelo viés do Museu. da história da arte canônica por outra singularizada, mas que constituiria O primeiro gesto curatorial seria romper com a hegemonia do presente um narrador que fala a partir de um “nós” plural, e inclui a busca da cum- abstrato do museu e detonar uma consciência aprofundada do tempo que plicidade do destinatário da história, ajudando a engendrar as condições, apresentou ao visitante, para que este se situasse e gerasse cronologias como aponta Expósito, para que este “tome a palavra”. diversas e complexas: o tempo próprio do olhar, a distância com relação Como um bom narrador, deveria estar capacitado a despertar expecta- ao passado, os tempos e lugares específicos das obras, as sequências: o tivas, gerar tensões, ensejar paradoxos e incógnitas e mostrar as possíveis antes, o momento e o depois. Dessa forma, o museu deveria se converter saídas. Deveria ser capaz de mudar de um registro para outro, de ensaiar num espaço heterocrônico, onde entrou em crise a polaridade entre um esse “olho variável”, deixando de encarnar seus personagens num estilo agora irrefletido e um passado cristalizado, multiplicando-se os tempos direto para tecer comentários ou reflexões históricas, de dividir um co- possíveis, contraditórios e sobrepostos com o presente, ativando-se as nhecimento pessoal para transmitir um grito de urgência. Acima de tudo, fricções inerentes às políticas da memória. a narração deveria suscitar o visitante sem saturar sua imaginação e sem O poder de sedução do objeto de arte original, do documento ou da bloquear sua capacidade de julgamento e seu agenciamento, cujo estímulo fotografia “vintage” teria de ser aproveitado com cautela para que pudesse deveria ser a finalidade última do Museu. romper a literalidade da experiência do tempo sem cair na tentação de O último fator fundamental que deve ser considerado no delineamento substituí-la por um distanciamento aurático, reverencial, que nos devolvesse dessa encenação seria a dinâmica dos corpos. Como dissemos, o ritual do imagens reificadas do passado. Esta “presença” devia pôr em movimento museu moderno identificava o protagonista da esfera pública como o sujeito uma imaginação do tempo histórico que conectasse o visitante com um individualizado cujo corpo e olhar transitava entre outros corpos e outros “aqui e agora” “outro”, que não o dele, tornando-lhe patente sua própria olhares autônomos entre si, sem ter que se relacionar de forma mercantil,

324 325 sem ter que competir no campo profissional, ou entrar em conflito político. por meio dos quais atualmente são debatidos os novos estilos de vida e O assinalamento crítico do esgotamento desse modelo disciplinar de articulação social. deixou há muito de ser suficiente. O museu se vê, por um lado, sobre- Recentemente, algumas instituições culturais se mobilizaram para pôr carregado pelas lógicas especulativas do capital que o perpassam até os em discussão essa situação e a urgência de dar uma guinada que possi- ossos, deslocando-o e perturbando até mesmo a sua própria definição: bilite escapar do abismo que se tornou ainda mais iminente com a última museu como marca da cidade ou como marca do país, museu-franquia crise financeira. Com este intuito, uma coalizão de museus se formou sob (a começar pelo Guggenheim, e seguido pelo Louvre e o Pompidou). Por a sugestiva alcunha La Internacional de que participaram SALT (Istambul), outro lado, ele se vê cada vez mais ignorado por uma massa social animada Vanabbemuseum, de Eindhoven, Museo Reina Sofía, de Madri, MHKA, da por lógicas da produção cultural que são incomensuráveis em termos do Antuérpia e o supracitado Macba. Com o projeto denominado “Los usos valor que o museu é capaz de reconhecer e para as quais o museu é um del arte”, La Internacional aborda os desafios das instituições culturais lugar totalmente alheio. no século XXI mediante um complexo programa de exposições e fóruns de No entanto, este cenário foi também abalado devido à emergência de discussão cujo desenvolvimento manifestou tanto a vontade de transfor- configurações e das coreografias dos corpos atinentes à definição de uma mação quanto as dificuldades enfrentadas pelas próprias instituições para nova esfera pública, que foi evidenciada pela Primavera Árabe, o Movimento conduzir a sua mudança, o que abarcava dispositivos e linguagens, além 15-M e o Occupy. A evocação do espectro da esfera pública burguesa ou do entendimento entre instituições para formar uma só frente comum. proletária tem que ser negociada agora frente à presença e à urgência de A alusão aos “usos da arte” pretende voltar à cena do crime e àquele um “corpo político” que defende com veemência uma saída em direção ao momento no qual a arte burguesa, com a desculpa de resguardar sua au- centralismo. Com acentuada rapidez, passou a se contentar em “ocupar” tonomia frente à lógica instrumental da produção industrial, à cultura de com seus corpos os espaços e instituições organizadas pela ordem estabe- massa e à propaganda, atirou-se nos braços do mercado de bens de luxo. lecida, trazendo à tona a sua natureza obsoleta, propondo-se a conjecturar Por seu turno, o mercado desfrutava do desprendimento da arte do fardo novas configurações de corpos e espaços e novas articulações institucionais do valor de uso e podia por livremente em prática as suas lógicas espe- e, citando Toni Negri numa recente intervenção no museu, abre um novo culativas. A pergunta que se faz a La Internacional mais uma vez é: E se a ciclo político, incerto e complexo, mas certamente irreversível. arte e suas instituições pudessem ser socialmente úteis sem, no entanto, O lema entoado pelos espanhóis indignados “que não nos representa” ser meros instrumentos de obtenção e acumulação de poder? Se assim for, não só denuncia a crise das instituições existentes, com também proclama como isso poderia ser posto em prática? a aparição de um novo sujeito político que exige e que de fato incorpora Uma das possíveis respostas suscitadas pelas instituições reunidas formas de mediação muito diferentes. Nelas, a relação promíscua entre os na La internacional reside no conceito de “usuário”, que substituiria a corpos que ocupam o espaço social já não é mais aquilo que precisa ser desgastada noção de público. Esta noção foi recentemente teorizada pelo regulado, pautado e, por fim, abstraído na instituição, mas sim o substrato filósofo Stephen Wright, numa releitura do conceito marxista do valor de básico para a imaginação de novas formas institucionais. uso a partir de uma perspectiva wittgensteiniana, identificando toda a Essa situação revolve os fundamentos próprios do museu, certo que este produção de sentido com o uso. A proposta é radical ao eliminar qualquer novo sujeito não tem mais o mínimo desejo de consumir nossos produtos resquício de idealismo, de transcendência, que poderia servir de legitimação culturais ou de recorrer aos nossos serviços, tal como definidos pelas às estruturas materiais de poder. Ela pretende facultar uma alternativa à estratégias de marketing ou nossos refinados especialistas. Não devemos aparentemente inescapável identificação do indivíduo como consumidor sentir nostalgia desse sujeito unificado ultrapassado, e menos ainda do e do valor como algo exclusivamente derivado do mercado oferecendo o papel das instituições nos processos de subjetivação ideologicamente or- uso, sempre sujeito ao arbítrio dos usuários, como única regra do jogo. No questrados. Por certo, hoje em dia é impossível e indispensável reconstruir entanto, este princípio pode levar a uma ficção ainda maior ao oferecer uma a identidade dos corpos, a simultaneidade dos tempos e a continuidade idílica abertura a sua infinita plasticidade com a participação de alguns usu- dos espaços que se afiguravam de forma idealizada numa visita a uma ários já completamente emancipados, que não leva em conta as resoluções exposição, conquanto esta atenção não justifique o desapego pelo museu desses usuários, conquanto estes não sejam mais apenas cidadãos, nem de toda a sua base constituinte e o alheamento com relação aos processos a natureza política dos museus, sua natureza constituída e sua função na

326 327 reprodução ou contestação de modelos hegemônicos. A ilusão do uso livre meiros, deu-se início a processos abertos de debates a respeito do sentido do museu seria cúmplice ao mascarar a crescente dificuldade dos sujeitos das instituições contemporâneas, que combinam o radicalismo do discur- em decidir sem ao menos entender os mecanismos que orientam e afetam sivo com a implementação de processos de horizontalidade na tomada de a sua vida. Por outro lado, com a restrição ao “uso”, haveria renúncia dessa decisões e gestão conjunta de recursos. Além disso, com os outros, foram capacidade de suspensão, de refluxo, de deriva e de dispersão, que faz com postos em questão os princípios coloniais da prática de colecionar e da que a arte seja “verdadeiramente útil”, quiçá premente. narrativa museográfica, investigando práticas patrimoniais que não passem Essa busca de uma utilidade outra, um valor intraduzível em valor de pela expropriação, nem pela propriedade exclusiva da memória por parte troca, foi a marca da colaboração entre práticas artísticas e movimentos das instituições, mas sim por um “comum” indefinido e aberto. Também sociais desde os anos 1990, quando o marco do capitalismo pós-fordista foram avaliados dispositivos de acionamento que evitem a cristalização e o adensamento dos processos de exploração vinculados à globalização, da memória em torno de imagens ideológicas do passado e que permitam assim como a luta e a resistência, voltavam seus olhos à potência atinente uma interpelação contínua do presente. O portal Archivos es uso oferece à reapropriação da linguagem e à imaginação de outros modos possíveis evidências deste processo. do fazer subjacentes à promessa da arte. Seu caráter avaliativo, prototípico e experimental enquadra-se na tra- Essa nova arte crítica saía do campo da entidade artística e seus pro- dição de vanguarda e justifica aqueles que encontram lugar nos museus, cessos de crítica interna para definir seus modos de fazer a partir da co- embora não estejam associados a meros gestos simbólicos que só circulam laboração direta com os processos de resistência e protesto, situando a no âmbito do artístico. Trata-se, na verdade, de processos reais que pre- reivindicação da arte por autonomia no cerne mesmo da vontade coletiva de tendem participar de outro processo real que ocorre fora dos muros das emancipação, efetuando uma revolução copernicana na relação entre arte instituições e que implica deslocamentos e reconsiderações das lógicas e ativismo, cujos antecedentes são encontrados na cena latino-americana de funcionamento dos museus. das artes sob o jugo das ditaduras dos anos 1970 e 1980. Nesse contexto, estavam sendo engendrados os primeiros contatos, no início dos anos 2000, entre os museus e algumas práticas cuja importân- cia crítica já extrapolava a entidade artística para ocupar-se dos conflitos que iam do âmbito cotidiano e local ao transnacional e global. Para entrar nessa batalha, o museu teve de ensaiar respostas que iam além do me- ramente discursivo ou expositivo para ensejar fóruns de negociação por meio dos quais os modos de fazer seriam testados em práticas concretas, e fórmulas e protocolos “úteis” poderiam ser submetidos ao experimento de um novo processo de formação. Os museus, herdeiros do Iluminismo e das revoluções burguesas do século XIX, sentiram-se urgidos a suspender estrategicamente a sua autoridade institucional e apresentarem-se, em troca, como um espaço de negociação, como um cenário em que as per- sonae de uma nova representação pudessem ensaiar suas vozes e onde pudessem mover seus corpos. Para esse efeito, tem de pôr em suspenso o monopólio da autoridade cultural tradicionalmente assumido pelas instituições culturais e levar a cabo um exercício ativo de reconhecimento do outro, do que está formal- mente no exterior, para pôr em questão essas distinções. Essa atitude levou à implantação de projetos experimentais entre o Departamento de Atividades Públicas do Museo Reina Sofía e a Fundación de los Comunes e a chamada Red de Conceptualismos del Sur. Com os pri-

328 329 PREFEITURA DA CIDADE CENTRO MUNICIPAL SEMINÁRIO 4 de julho 6 de julho DO RIO DE JANEIRO DE ARTE HÉLIO OITICICA Seja marginal, seja herói. Área aberta ao mito. Prefeito da Cidade Diretora e Curadora Realização O mito da marginalidade. O mito da criação. do Rio de Janeiro Izabela Pucu R&L Produtores Eduardo Paes Associados Abertura Mesa 3 Assessor Executivo Vice-prefeito Organização Barbara Szaniecki, Giuseppe Cocco Ana Kiffer, André Vallias, Antonio Manuel Neves e Izabela Pucu Rafael Zacca e Ricardo Basbaum Adilson Pires Barbara Szaniecki Assessora de Giuseppe Cocco Mediação: Patrick Pessoa Conferência 1 Secretário Municipal Recursos Humanos Izabela Pucu de Cultura [colaboração] Giuseppe Cocco Lenice Fernandes Junior Perim Debatedora: Izabela Pucu Coordenadora de Direção de Produção Chefe de Gabinete Pesquisa e Público Rodrigo Andrade Flávia Piana Daniele Machado Gestão de Projeto Conferência 3 Subsecretário de Gestão Coordenador Lucas Lins

Peter Pál Pelbart Carlos Corrêa Costa de Produção Debatedor: Tania Rivera Alessandro Costa Assistente de Produção Mesa 1 Subsecretária de Richards Carino Eleonora Fabião, Frederico Coelho, Artes e Fomento Coordenador Zaba Azevedo Gerardo Silva e Luiz Eduardo Soares Fabiana Scherer Operacional Mediação: Bruno Cava Israel Farias Revisão Subsecretária Rosalina Gouveia de Cidadania e Coordenadora Diversidade Cultural Administrativa Tradução Evelyn Chaves Neyla Quaresma Conceito traduções 7 de Julho Coordenador de Recepcionista Fotografia Museu é o mundo. Equipamentos Culturais Especializada Tahian Bhering O mito da instituição. Robson Camilo Luísa do Valle 5 de julho Filmagem e Edição Mesa 4 Gerente de Capuzzo Produções Tropicália. Centros Culturais Izabela Pucu, Lisette Lagnado, Keyna Eleison Van Identidade Visual A pureza é um mito. Luiz Guilherme Vergara e de Beuque Max Jorge Hinderer Cruz Aline Carrer Mesa 2 Barbara Szaniecki, Mediação: Mario Chagas Assessoria de Impressão

Cíntia Guedes, Gonzalo Aguilar Comunicação e J. Sholna Assesoria de Imprensa e Paola Berestein Jacques André Balocco Mediação: Giuseppe Cocco Contabilidade Marcos Xavier

Conferência 4 Jesús Maria Carrillo Castillo Debatedor: Giuseppe Cocco Patrocínio Realização Conferência 2 Celso Favaretto Debatedor: Luiz Camillo Osorio

330 331 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).

H 475 Hélio Oiticica para além dos mitos. Hélio Oiticica para além dos mitos. / Bárbara Szanieci, Giuseppe Cocco, Izabela Pucu (Orgs.) _ Rio de Janeiro: R&L Produtores Associados, 2016.

340 p. :il.

Revisor: Rosalina Gouveia; tradutor: Márcio Soares Pinheiro; Produção e coordenação editorial: Lucas Lins e Rodrigo Andrade; Projeto gráfico: Aline Carrer.

Seminário Internacional Hélio Oiticica para além dos mitos, realizado no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, de 4 a 7 de julho de 2016.

ISBN 978-85-60008-12-4

1. Arte - Filosofia e estética. 2. Arte brasileira - Séc. XX. 3. Artes – Congressos. 4. Arte e política – Congressos. 5. Arte e sociedade – Congrssos. I. Szanieck, Bárbara. II. Cocco, Giuseppe. III. Pucu, Izabela. IV. Título.

CDD – 709.04 cdu 7 (81)

Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica Rua Luis de Camões 68 Centro Rio de Janeiro

Este livro foi produzido para o Seminário Internacional Hélio Oiticica: para além dos mitos, realizado no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, em julho de 2016. O texto foi composto em National. Os papeis utilizados foram Duo Design 300 g/m2, (capa) e Polen Soft 80 g/m2 (miolo). Impressão e acabamento: J. Sholna.