32º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

GT 09: CULTURA BRASILEIRA: MODOS E ESTILOS DE VIDA

A CARREIRA DO MC

ADRIANA FACINA 1

1 Professora do Departamento de História da UFF e pós-doutoranda no PPGAS/Museu Nacional, sob supervisão do professor doutor Gilberto Velho.

No meu estágio de pós-doutoramento venho desenvolvendo uma pesquisa sobre música, trabalho e lazer popular no . Inicialmente a idéia era trabalhar com a sociabilidade das classes trabalhadoras relacionada à música. Mas, aos poucos, fui percebendo que estava lidando com universos nos quais lazer e trabalho não possuíam fronteiras rígidas e fiquei na dúvida se seria adequado falar em sociabilidade, tal como definida por Simmel, ou seja, um tipo de interação social cujo objetivo é a própria interação.

Embora meu tema de pesquisa não se restrinja ao , hoje é impossível falar em lazer popular sem levá-lo em conta. Marcadamente ligado ao público jovem, o funk é um dos maiores fenômenos de massa do Brasil. Hermano Vianna foi o primeiro a apontar a sua dimensão, já na década de 1980, antes mesmo do surgimento do funk nacional.2 Hoje, com a indústria do funk totalmente dominada pela produção nacional, além da diversão por meio de bailes, festas e shows, esse mundo também se torna fortemente atrativo para juventude pobre por causa das expectativas de ascensão social que porta.

Em suas pesquisas, Micael Herschmann afirma que há uma contradição constitutiva do funk como fenômeno da cultura de massas. Se, por um lado ele é assimilado por amplas camadas da população, sobretudo jovens de camadas médias, enquanto produto cultural a ser consumido e usufruído, por outro lado, há a estigmatização do estilo de vida e da origem social dos artistas e consumidores preferenciais dessa música, reunidos sob o rótulo de funkeiros. 3 Uma das expressões claras disso é a proibição da execução pública dos funks que falam das facções que são associadas ao comércio varejista de drogas nas cariocas, os chamados proibidões, que nem sempre são de louvação aos “comandos” ou de apologia ao crime, mas sim descrições do cotidiano violento dessas áreas da cidade.

No mundo do funk há uma aproximação muito explícita entre criação e fruição, pois muitos freqüentadores dos bailes, consumidores dos CDs e outros produtos da indústria

2 Vianna, Hermano. O mundo . Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 1988.

3 Herschmann, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena . Rio de Janeiro, Ed.UFRJ, 2000.

2

funkeira são também criadores. Com letras simples, acompanhadas de sons feitos por colagens, sem a necessidade de uma formação musical mais formal e especializada, o funk abre espaço para aqueles que sonham em ser MCs e vêm nisso uma perspectiva de carreira bem mais atraente do que outras disponíveis para essa camada social.

A facilidade que muitos jovens de periferia encontram em compor funks e como essa atividade lhes é significativa foram demonstradas a mim num episódio específico. Em abril deste ano, fui ao encontro de um grupo de crianças e adolescentes num assentamento em Queimados para ajudar na organização de uma homenagem que o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) faria a Oscar Niemeyer, a propósito do aniversário de cem anos do arquiteto. A nossa missão era a de ensaiar a música Coração Civil , de Milton Nascimento, explicando para eles o significado da letra e relacionando-a com a vida do Niemeyer. Foi um debate animado e interessante com as crianças, mas a empolgação e o envolvimento deles só veio mesmo quando um de nós teve a idéia de pedir-lhes que cantassem Coração Civil em ritmo de funk. Imediatamente, os meninos mais velhos, entre 10 e 15 anos, se organizaram e começaram a criar, superando a timidez, fazendo bases percussivas com a boca e cantando até mesmo na frente de uma câmera filmadora que havíamos levado. Outra coisa importante também ficou clara: apesar das muitas MCs de sucesso que existem hoje, o funk ainda é um universo predominantemente masculino. No episódio em questão, o papel das meninas era o de dançar e ser platéia para os meninos.

No entanto, essa facilidade em se transformar de consumidor em criador de música funk não quer dizer que a carreira de MC seja fácil. Como mundo da arte 4, o funk depende de toda uma rede de interações que, além dos músicos, envolve DJs, público, empresários, produtores, mídia etc. Como hoje a definição do que irá ou não para a mídia depende de poucos empresários, em geral buscando um lucro imediato com jovens artistas de sucesso efêmero, construir uma carreira mais sólida é extremamente difícil. Mesmo que o MC consiga que uma música sua “aconteça”, ou seja, vire sucesso nos bailes e toque nas rádios, raramente isso significa uma situação financeira estável e mais raramente ainda a garantia de que essa situação será duradoura. Contratos abusivos,

4 Ver BECKER, Howard S.. Art Worlds. London/Berkeley/Los Angeles, University of California

3

roubos de direitos autorais, trabalho por “pendência” (leia-se por bens materiais dos quais o artista necessita, como uma casa ou carro para percorrer o circuito de shows), realização de cinco ou mais shows numa mesma noite são episódios comuns na vida dos cantores de funk.

Para entendermos o processo de constituição de carreiras no mundo do funk, analisaremos as diferentes trajetórias de três MCs. O primeiro deles, MC Marcinho, é um fenômeno raro no funk, pois faz sucesso há muitos anos, costumando ter sempre alguma música tocando nas rádios e TVs. O segundo é o MC Leonardo, que canta e compõe em dupla com seu irmão, MC Junior. Leonardo fez muito sucesso na mídia nos anos 1990, passou por um período em que não conseguia mais viver do funk e, por fim, depois de 2005, voltou a se dedicar exclusivamente à carreira, hoje como “velha guarda” do funk, mas sem a mesma presença na mídia do primeiro. Por fim, analisarei a trajetória do MC Tuy do Rep, mais jovem dos três e ainda em busca do sucesso, correndo atrás de equipes, fazendo shows de graça e pagando para ter suas músicas incluídas em coletâneas de funk vendidas nos camelôs de Madureira.

Quando falo em carreira aqui me refiro, sobretudo, às considerações de Howard S. Becker sobre essa noção:

Originalmente desenvolvido em estudos de ocupações, o conceito refere-se à seqüência de movimentos de uma posição à outra, num sistema ocupacional, feitos por um indivíduo que opera naquele sistema. Mais ainda, inclui a noção de “contingências de carreira”, aqueles fatores dos quais depende a mobilidade de uma posição à outra. As contingências de carreira incluem tanto fatos objetivos da estrutura social quanto mudanças nas perspectivas, motivações e desejos do indivíduo. Comumente, no estudo das ocupações, usamos o conceito para distinguir entre aqueles que têm uma carreira “de sucesso” (quaisquer que sejam os termos em que o sucesso é definido dentro da ocupação) e aqueles que não a têm. Ele pode ser usado também para distinguir muitas variedades de resultados da carreira, ignorando a questão do “sucesso”. 5

5 BECKER, Howard S.. Uma teoria da ação coletiva. .Rio de Janeiro, Zahar, 1977. p.72.

4

Desse modo, podemos comparar as carreiras daqueles que “chegaram lá” com as dos que ainda lutam para conseguir um sucesso que talvez nunca venha. Como essas carreiras se constroem dentro de condições historicamente determinadas, é importante levarmos em conta, além dos critérios subjetivos que definem o gosto do público, a “economia” do funk, os caminhos pelos quais a consagração midiática passa, bem como os projetos individuais desses artistas, como eles procuram organizar suas trajetórias profissionais dentro de um campo de possibilidades dado. 6

Nesta aproximação com o tema, teremos como fonte principal as entrevistas de história de vida, cujo objetivo para esta pesquisa é nos ajudar a perceber como esses MCs analisam suas carreiras, seus propósitos e expectativas.

MC Marcinho: o funk como música pop 7

MC Marcinho nasceu em 1977, na comunidade São Jorge, Duque de Caxias, e começou a se interessar pelo funk indo aos bailes onde cantavam D´Eddy, MC Galo, Danda e Taffarel, entre outros. Ao vê-los, Marcinho percebia que era possível fazer o mesmo. Começou a compor, mas teve de superar a timidez para de fato subir ao palco para cantar.

Sua primeira composição de sucesso, o Rap do Solitário , foi apresentada nos famosos concursos de rap que existiam nos clubes na década de 1990. Assim como aconteceu com Marcinho, esses concursos foram o caminho para o início da carreira de muitos MCs de “funk antigo”, que tinham suas músicas vencedoras gravadas em coletâneas.

O Rap do Solitário foi um dos pioneiros no tema de amor e acabou imprimindo a marca da carreira do MC, conhecido como romântico, caracterizada por sucessos de funk melody . Segundo Marcinho, as pessoas das equipes e gravadoras não acreditavam que esse estilo pudesse fazer sucesso e fechavam as portas para ele e o humilhavam. Numa fala significativa, ele diz que pensou em desistir e “voltar a trabalhar”, o que mostra bem

6 Uma referência fundamental a essa reflexão é a obra de Gilberto Velho, em particular Projeto e metamorfose . 7 A entrevista com MC Marcinho foi realizada na sua gravadora, a Elite Records, em 20/02/2008. 5

como o trabalho significativo, que é a música, é visto às vezes como o avesso do trabalho alienado, simplesmente ganha pão.

Incentivado por sua mãe, que dizia que se fosse da vontade de Deus ele faria sucesso, Marcinho persistiu e, “de uma hora para outra”, um DJ da Furacão 2000 começou a tocar a música dele nos bailes da Zona Oeste e ela “estourou” nas rádios, materialização maior do sucesso de um funkeiro naquela época. O concorrente da Furacão 2000, DJ Marlboro, também começou a tocar a música. O MC foi para televisão e a sua música conseguiu “desbancar” o conjunto de pagode Raça Negra como o mais tocado nas paradas em 1998, fato pioneiro para o funk.

Na sua relação com gravadoras e empresários, Marcinho diz que seu único problema foi e continua sendo com um famoso DJ, que possui o direito de algumas de suas músicas, que foram editadas por ele, e cria problemas para liberá-las quando, por exemplo, são requisitadas para algum comercial de TV, exigindo quantias excessivas por elas.

Depois do sucesso dos anos 1990, o início dos anos 2000 foi um período ruim. Não somente para Marcinho, mas para todo o mundo funk, talvez com exceção de Claudinho e Buchecha. CPI do funk, denúncias dos bailes de corredor, proibições e criminalização fizeram o mercado se retrair consideravelmente. O reerguimento da carreira veio sob a batuta do empresário Elton Madureira e do lançamento da música Glamurosa , um misto de funk romântico com pop dançante e tons sensuais, ainda hoje a mais conhecida do MC. A música foi lançada na Europa e também levada a programas de TV, colocando o artista de volta na mídia e nas paradas do sucesso.

Por conta dessas instabilidades típicas das carreiras do funk, Marcinho sempre afirma que sua trajetória é de luta e procura ser coerente com seu estilo, não cantando montagens, pornografia e nem proibidões. Para ele, compor e cantar são atividades que, apesar de garantirem seu sustento, devem seguir seu gosto e não serem determinadas somente pela lógica comercial, já que, assim, se aproximariam do “trabalho”, entendido como atividade desprazeirosa e mecânica. Nas suas palavras: “Eu não sou oportunista”.

6

Para ele, a ascensão do funk após 2005 tem a ver com o fato da elite ter “abraçado o funk”, o que diminuiu um pouco o estigma de música de bandido e favelado, que gerava muito preconceito e marginalização. Ele ressalta o papel importante nesse processo de personagens como Regina Casé, Luciano Huck e Xuxa, que assumiram seu gosto pelo ritmo contagiante e levaram os artistas para seus programas televisivos. Isso também abriu outras portas para o artista, como os bailes de debutantes ou festas de casamento, onde um show de pouco mais de uma hora pode render um cachê de 10 mil reais.

Marcinho define o funk como um rótulo e dentro dele cada um teria seu estilo: funk romântico, funk para dançar (como o dos bondes, grupos de três ou mais rapazes que cantam letras simples e dançam), proibidões etc. Assim como o rótulo pagode incluiria o pagode romântico, o pagode de raiz, entre outros. A marginalização do funk não levaria isso em consideração, o que para ele é um erro. Para o MC, o artista também deveria pensar nisso ao construir sua carreira. Marcinho não fala explicitamente, mas dá a entender que a escolha por cantar proibidões, por exemplo, pode dificultar uma carreira de mais longo prazo e calcada no sucesso na mídia. Outro obstáculo para a carreira é a ganância dos empresários inescrupulosos, que são “o lado podre do funk”, segundo suas palavras, que roubam os MCs e criam estratégias para impedir seu crescimento profissional, como “amarrar” contratos, impedindo músicas de serem divulgadas e virarem fonte de renda para os seus autores. Na sua visão, contribui para isso a desunião no funk, pois somente se os artistas se unissem poderiam fazer frente a essa situação.

Quando eu pergunto sobre o lugar especial que ele ocupa no funk, já que há mais de 10 anos vem emplacando sucessivos sucessos nas rádios, e a que ele atribuía isso, Marcinho credita sua trajetória a Deus. Depois de um grave acidente de van sofrido em 2005, quando um grande amigo seu faleceu e ele quase perdeu a perna e do qual ele ainda se recupera, de modo lento e doloroso, o MC se converteu e virou evangélico. Mas diz que a vontade de Deus sempre esteve na condução de sua carreira, já que, quando pequeno, por ser muito levado, todos diziam que “esse aí não vai dar em nada”. E “do nada” as coisas “aconteceram” e aconteceram cedo, criando muitas responsabilidades para ele. E sua humildade e simplicidade teriam garantido isso, bem como a preocupação em fazer um bom trabalho antes de ganhar dinheiro, não ceder aos apelos fáceis do mercado. Nas suas palavras: 7

“Eu sempre procurei ser correto e me dedicar àquilo que faço. Tem pessoas que dizem que vão entrar para o funk para ganhar dinheiro. Eu não. O dinheiro, a fama, o sucesso vêm daquilo que você faz. Então primeiro a gente tem de fazer um trabalho legal para depois vir a recompensa de tudo isso. Tem uns que fazem sucesso de uma música e desaparecem da mídia. Eu já vi gente subir, descer, cair e estourar e eu tô aqui ainda, ganhando troféu de melhor de 2007, melhor de 2008. E isso vem desde o início da minha carreira. No meio de uma porção de grupos novos, eu tô ali ganhando o meu troféu. Eu tenho um público que é fiel a mim e isso passa de geração a geração. Porque eu procuro fazer um trabalho legal, que você pode botar em casa que seus filhos vão escutar, vão gostar. Tem pessoas que chegam para mim e falam: “eu não sou funkeiro, não gosto de funk, mas eu curto seu trabalho, eu gosto das suas músicas, são legais.” Então isso é legal, é interessante e é isso que vem fazendo os mais de 10 anos de carreira que tô aí. Eu procuro tratar sempre todo mundo bem, principalmente as fãs. Eu trato todo mundo igual, pra mim não tem diferença, seja um artista ou um faxineiro. (...) Sempre fui humilde e procurei passar nas minhas músicas aquilo que sinto. Quando você canta sozinho é você e o público, você tem que interagir com o público, não tem uma banda por trás. Então, se eu não conseguir falar a língua do público, transmitir aquilo que eu estou cantando, acabou, eu não existo mais. Eu consigo transmitir pro público aquilo que eu estou cantando. As pessoas dizem: “casei ouvindo sua música”, “conheci meu marido ouvindo sua música”. Poxa, então isso é bacana pra caramba. Eu acho que peguei um caminho correto, o caminho certo pra mim.”

Hoje é muito difícil fazer sucesso com funk melody , porque sua produção é mais cara, a música mais complexa e as letras mais difíceis. É mais fácil “estourar” com as chamadas montagens, colagens de frases repetidas sobre um som percussivo, muitas vezes com versões pornográficas que tocam nos bailes, como a do jovem MC Rael, que tem o refrão: “ai meu piru, ai, ai, ai, ai meu piru”. Marcinho critica isso e aponta para a ilusão do ganho fácil que essa opção representa para a carreira do MC. Essas músicas repetitivas, como a Dança do créu, “pegam” mais rápido que o melody , porque este tem uma letra mais extensa, mas em compensação são rapidamente esquecidas. O próprio artista confessa que em seus CDs, atualmente, tem de colocar músicas dançantes, apesar

8

de preferir as românticas. A música de trabalho do CD, que é a que é voltada para “estourar”, sempre é dançante, mas “sem agredir ninguém”. Ainda assim, busca preservar uma qualidade mesmo em meio às exigências do mercado.

Para Marcinho, vários MCs “calejados” fazem seu trabalho hoje e não conseguem “acontecer”, porque é muito mais fácil para o empresário pegar os bondes que estão começando e que exigem pouco em termos financeiros e de qualidade musical do que trabalhar com os antigos, mais criteriosos e exigentes. Nas suas palavras, os empresários “sugam tudo o que os meninos têm” e depois jogam fora, porque o sucesso é passageiro e logo vêm outros para ocupar o lugar. Assim, lucram muito, pois esses jovens MCs muitas vezes nem recebem nada, tocando apenas por prazer e divertimento, assim como prestígio, principalmente entre o público feminino.

Ele explica seu sucesso, diferentemente dos colegas da sua geração que tentam voltar a “emplacar” no rádio ou na TV, por ter tido sempre uma visão de Brasil, não se contentar, como os outros, em fazer um sucesso no baile da . Marcinho quer conhecer os lugares que ainda não conhece e para isso se preocupa em fazer “um trabalho bom”. E, para ele, isso significa música que tem letra e uma base mais sofisticada. A prova disso seria que os MCs antigos, como Junior e Leonardo, Bob Rum e outros têm sido mais requisitados para shows do que os bondes.

Para Marcinho, um CD tem de trazer músicas diversificadas, misturando o funk com outros ritmos como charme e o pop romântico. E uma prova da respeitabilidade de seu trabalho seria o fato de Lulu Santos, de quem ele era fã, participar de um disco seu e depois gravar uma música sua em seu próprio CD. Claramente, na ótica do MC, o bom funk é aquele que expande suas próprias fronteiras para além de si mesmo, ganhando universalidade sem perder sua essência. Assim, o funkeiro tem de estudar, aprender a falar, a se expressar sem dizer palavrões e sem reforçar o estigma do favelado. Desse modo, o funk poderia ascender à categoria de pop e conquistar públicos mais amplos, mesmo que muitas vezes falando da realidade da favela. Não é à toa que seus grandes exemplos de artistas são Belo, pagodeiro cuja carreira ultrapassou as fronteiras do pagode, e Ivete Sangalo, que de cantora de axé se transformou em cantora pop que arrasta multidões.

9

Em uma de suas letras, MC Marcinho expressa o significado da carreira no funk para sua vida e a realização de um projeto individual que deu sentido à sua trajetória. O título é 100% funk:

Vou cantar...laraia E vou mais adiante Diz pra mim o que seria de mim, Se não fosse o funk.

Em cada estrada, Em cada caminho Me sinto tão longe As vezes tão sozinho.

Levando meu som Pras comunidades Levando alegria Amor e muita felicidade.

Agradeço a Deus Por tudo que Ele me dá Me dá alegria De compor e de cantar.

Vou cantar...laraia E vou mais adiante Diz pra mim o que seria de mim, Se não fosse o funk

Seria apenas Mais um cidadão Perdido no mundo

10

Vivendo de ilusão

Mas corri atrás Não esperei pelo destino E a minha estante Hoje está cheia de discos É gratificante Você poder escutar Um fã te pedindo Nunca deixe de cantar.

Vou cantar...laraia E vou mais adiante Diz pra mim o que seria de mim, Se não fosse o funk

A experiência de acompanhar os shows de Marcinho comprova o carinho e adoração dos fãs, sobretudo mulheres, muitos deles preocupados com a recuperação da sua perna, coisa que não é tão comum no meio funk, no qual a relação entre artistas e público é bem horizontal. E é de se notar que isso acontece ainda mais intensamente na Zona Sul do que no bailes da Baixada Fluminense ou Zona Norte, demonstrando que o MC vive na sua carreira aquilo que ele mesmo estabelece como projeto ideal para a conquista de uma respeitabilidade do funk para além das favelas e das comunidades pobres, ainda que isso não deva significar o apagamento de suas origens populares.

MC Leonardo: o funk como protesto e comunicação popular 8

Leonardo é da mesma geração de Marcinho e também começou sua carreira como MC, sempre em dupla com seu irmão Junior, em concursos promovidos nos clubes pelas equipes de som. Nascido e criado na favela da Rocinha, em 1975, filho de paraibanos, Leonardo teve seu primeiro contato com a música através do forró, pois seu pai era

8 Entrevista realizada em 12/03/2008 na casa do MC, localizada na Taquara. 11

músico e chegou a tocar com Jackson do Pandeiro. E, para ele, sua trajetória é a de um filho do protesto nordestino tornado forró, ritmo que teoria sido o que mais protestou ao falar de fome, de seca, da realidade do sofrimento do povo nordestino e que marcava a vida na Rocinha nos anos 1970.

O MC nasceu sem a cabeça do fêmur, problema congênito que o levou a enfrentar 16 cirurgias no quadril, o que atrapalhou seus estudos, mas não sua curiosidade em saber o porque daquelas coisas cantadas nos forrós que ouvia quando pequeno. Daí seu grande interesse por livros e por estudos, ainda que seu espírito rebelde e sua doença o afastassem da educação formal. Muitas das suas leituras foram feitas nos longos períodos em que passava na cama se recuperando das cirurgias.

No final dos anos 1980, entrou em contato com discos de funk através de sua irmã mais velha. No início dos anos 1990, trabalhava como office-boy e era um momento em que o pagode e o funk começavam a “invadir” as favelas. Foi quando ele foi a um baile no clube Emoções, na Rocinha, e viu MC Galo cantando e pensou que poderia fazer o mesmo. Ele e o irmão venceram nove concursos de funk e acabaram sendo convidados pelo DJ Marlboro para gravar um disco. A Sony Music se interessou pelo trabalho da jovem dupla e lançou o CD, que foi o primeiro disco de funk nacional a ser lançado por uma gravadora multinacional. Sua música mais conhecida, o , resultou no primeiro videoclipe de funk lançado no Brasil e outra música, Endereço dos bailes , foi a primeira a sair da programação específica de funk e tocar nas rádios na programação normal. Na época, como contratados da Sony, os MCs tiveram uma estrutura a sua volta que incluía assessoria de imprensa, advogados, produtores, técnicos, motoristas e outros, o que era algo considerado “grandioso”, ainda mais no mundo do funk.

Nesse período, que durou pouco, Leonardo diz que acreditava que a discriminação contra o funk estava com seus dias contados. A sua carreira tinha um propósito, porque ele e o irmão começaram sua trajetória no funk pedindo paz nos bailes num momento em que os jovens estavam se matando nas brigas das galeras. E essa idéia de um propósito, que poderíamos chamar de um funk engajado, politizado, acabou se tornando a marca da dupla. No entanto, eles seriam chamados para prestar esclarecimentos à justiça por causa do Rap das Armas , cuja letra original foi plageada num funk de louvação ao Comando

12

Vermelho. Plágio que se popularizou anos depois, quando as cópias piratas do filme Tropa de Elite ganharam as ruas do Rio de Janeiro em 2007 (a versão original está somente nas cópias originais do filme).

Para Leonardo, esse episódio foi negativo não só para ele e seu irmão, mas para o funk como um todo. O MC se vê como alguém que carrega uma responsabilidade para a imagem do funk, daí sua preocupação em não cantar proibidões, nem pornografia e evitar os palavrões no palco. E, assim como Marcinho, seu objetivo é tirar o funk do gueto e levá-lo a um diálogo com outros ritmos pop, trabalhando conjuntamente com artistas como Fernanda Abreu, Lulu Santos e Pedro Luís.

Por não querer cantar proibidões e pornografia, num momento de “queda” do funk no final dos anos 1990, os irmãos começaram a ter dificuldade em se sustentar com seu trabalho musical e por 5 anos sobreviveram trabalhando como taxistas. Leonardo dirigia o táxi ao longo de 12 horas por dia, com exceção dos domingos, e fazia shows esporádicos, aceitando muitas vezes cachês que financeiramente não compensavam somente pelo prazer de cantar (“nossa cachacinha”, nos seus termos). E o retorno à exclusividade do funk foi ocorrendo aos poucos, sobretudo a partir de 2005, e se consolidou com a participação no filme Tropa de Elite , que trouxe de volta o Rap das Armas para as paradas de sucesso.

O início dos anos 2000 foi também o da saída da favela, depois que uma granada explodiu na porta de sua casa durante uma guerra no morro. Mas Leonardo diz que a fonte de inspiração de suas composições continua sendo a vida na favela, seu cotidiano, suas lutas. Sua música tem o propósito de protestar contra o abandono do poder público, a violência, a falta de investimento em educação. Contar a realidade da favela, mesmo se ela for cruel, é importante. No entanto, isso é diferente de fazer proibidões onde se diz que “o bonde da favela X vai invadir a favela Y”, porque, no seu entendimento, isso desune os favelados, coloca “pobre para brigar com pobre”, coisa que o funk não deveria fazer.

Ao contrário, o funk deveria ser uma forma de união dos de baixo, funcionando como um poderoso instrumento de comunicação e mobilização populares, começando pelos próprios profissionais, em sua maioria oriunda das camadas populares. Formar uma 13

associação de profissionais do funk, para protegê-los contra a exploração dos empresários e garantir melhores condições de trabalho, é um dos projetos de Leonardo. Essa união seria importante ainda para assegurar a produção de músicas mais elaboradas e reflexivas, sem o aprisionamento de um mercado ditado por aqueles que só querem o sucesso rápido, imediato e barato das montagens, na maior parte pornográficas.

Um dos temas mais presentes nas músicas do MC é a da relação entre violência, desigualdade social e descaso do poder público para com a população favelada. Além de sua experiência pessoal, Leonardo devora livros, especialmente sobre segurança pública, revistas, jornais, se mantendo informado sobre esses assuntos e produzindo reflexão crítica sobre eles. Numa de suas letras mais recentes, Rio de Janeiro Chumbo Quente , o MC afirma:

Infelizmente já morreu muito inocente Nessa guera deprimente Onde reina lei do cão

A decisão pra combater vagabundo Prejudica todo mundo quando é o caveirão Os Caveiras são treinados pra deixar corpo no chão Os Bandidos sabem disso e trocam tiro de montão

Dizem que a bala é perdida Mas quem tá perdido é a gente Salve-se quem puder Porque no Rio o chumbo é quente

E facilmente várias armas e vários pentes De calibre diferente vêm chegando no morrão Vem munição de toda parte do mundo Vários tiros por segundo Lança míssel, granada e rojão Pros menores preparados cheios de disposição 14

Para enfrentrar a polícia e o bandido alemão Traficantes, Governantes por favor pensem na gente Salve-se quem puder Porque no Rio o chumbo é quente

Apesar de não ter mais contrato com gravadora e não estar no centro da grande mídia (ainda que apareça em programas como o Superpop , comandado por Luciana Gimenez), a dupla tem uma agenda regular de shows, tanto no Rio de Janeiro como em outros estados. Como regra geral, os shows fora do estado do Rio têm cachês mais altos. E é o próprio Leonardo que atua como empresário da dupla, negociando shows e providenciando a estrutura necessária para suas apresentações. Assim, ainda que sem a entourage que cerca um artista que “está na mídia”, como é o caso de Marcinho, a dupla permanece ganhando a vida trabalhando exclusivamente com música, sobretudo por conta da valorização do “funk da antiga” ou “velha guarda do funk” pelas camadas médias urbanas de todo o país e que, aqui no Rio de Janeiro, garante shows periódicos em locais cult como Circo Voador e Fundição Progresso.

Se a indústria do funk, tal como constituída hoje, tem pouco espaço para o funk melody , menor ainda é o espaço para músicas politizadas e de protesto. Apesar dessas músicas possuírem público cativo e serem cantadas em coro nos shows, os empresários não demonstram interesse em gravá-las (ou regravá-las) e muito menos em tocá-las nas rádios. Desse modo, esses artistas acabam por constituir uma carreira relativamente independente da grande mídia e calcada, principalmente, em shows, sua principal fonte de renda e meio de divulgação de antigos e, sobretudo, novos trabalhos.

Hoje, além dos shows, Junior e Leonardo têm um DVD ao vivo já gravado e esperando a possibilidade para finalizar a sua produção. Além das composições em parceria com o irmão, Leonardo também integra a ala dos compositores da escola de samba Acadêmicos da Rocinha e tem o projeto, já em andamento, de escrever um livro reunindo histórias de sua vida na favela e da sua relação com o funk. Sua vocação me parece ser a de um mediador entre favela e asfalto, que visa transformar o funk numa forma de comunicação que dê visibilidade à realidade da favela de modo a colocar em xeque preconceitos e denunciar as estruturas que perpetuam a desigualdade social no

15

país. Através das crônicas das favelas que aparecem em suas músicas, Leonardo torna compreensível uma realidade cada vez mais filtrada pela cobertura midiática e permeada por políticas públicas criminalizadoras que tendem a transformar as comunidades em regiões simbolicamente interditadas aos “de fora”. Dessa maneira, o MC vem garantindo um espaço de independência que, se não vai lhe conferir fortuna e superexposição na mídia, por outro aparece fortemente associada a uma idéia de autorealização através do cumprimento de uma tarefa política em sentido lato.

MC Tuy do Rep: o funk como filho da desigualdade 9

Meu primeiro contato com MC Tuy do Rep foi num estúdio caça-talentos especializado em funk. Tuy estava fazendo um teste para ver se suas músicas seriam selecionadas pelos produtores do estúdio para integrarem um CD que é levado a bailes de favelas e distribuído para venda entre camelôs de Madureira. A expectativa dos MCs, que pagam de 200 a 1.500 reais para gravarem suas músicas nesses CDs, é que suas canções “estourem” nos bailes e, com isso, despertem interesse das grandes equipes, leia-se Furacão 2000 e DJ Marlboro.

Assisti ao teste de Tuy, que cantou três músicas. A primeira era um de “putaria” leve, que falava de seu interesse sexual por uma menina no baile. A segunda, intitulada Bandido Patriota , falava sobre o Comando Vermelho e a terceira era um bonito funk de protesto chamado Filhos da desigualdade . De acordo com a explicação do MC, cujo Rep no nome se escreve com “e” mesmo (pois “como os americanos não estão nem aí pra mim eu também não tô nem aí pra eles”), a primeira música, Galudão , era feita para atender ao gosto do público dos bailes. A segunda visava garantir shows em bailes patrocinados pelo tráfico e a terceira era uma letra mais elaborada e da qual ele se orgulhava mais. E foi justamente Filhos da desigualdade a que acabou sendo selecionada para entrar no CD.

Tuy foi criado nas imediações do Complexo do Alemão, cantava e escrevia desde os 11 anos de idade. Seu sonho era entrar para um grupo de pagode. Aos poucos foi se encantando pelo funk e, aos 14 anos, fez um teste na equipe Furacão 2000, mas não foi

9 Entrevista realizada em 06/04/2008, na Ocupação Manoel Congo, centro do Rio de Janeiro. 16

aprovado. Sua família mais próxima, na verdade a avó que o criou e tios, não aprovava seu sonho em ser MC porque consideravam o funk discriminado na sociedade.

Enquanto prosseguia seus estudos na escola, Tuy trabalhava em obra, sempre sem carteira assinada, para ajudar em casa e também para juntar dinheiro para produzir uma música com um DJ seu conhecido. Com R$ 275 reais produziu Filhos da desigualdade e começou a “correr atrás” de DJs e rádios para a música “estourar” nos bailes e tocar na programação dedicada ao funk. Porém, Tuy esbarra em várias dificuldades e uma delas é o desinteresse dos empresários em veicular uma música com conteúdo de protesto, supostamente com medo de processos judiciais.

Na geração de Tuy, já não existem mais os concursos de rap que projetaram e estimularam MC Marcinho e Junior e Leonardo. Mas foram os concursos de poesia de sua escola que o incentivaram a escrever e a compor, utilizando a música como canal da revolta que sentia por sua condição social, pelas humilhações que sofria e pela desestruturação de sua família. Depois de ganhar alguns desses concursos, o jovem MC sentiu que as pessoas começaram a acreditar nele e isso fez com que ele fosse superando a timidez e tomando coragem para cantar em público.

Na esperança de realizar seu sonho de fazer sucesso, de “cantar pra muita gente”, Tuy do Rep procurava trabalhos com a finalidade de economizar dinheiro para produzir novas músicas. No verão vendia cerveja em praias da Zona Sul e, com isso, produziu mais algumas músicas para distribuir em camelôs e para tentar convencer os DJs a tocarem nos bailes.

Do mesmo modo que os MCs das antigas, Tuy se queixa dos empresários do funk, de como eles exploram os talentos, roubando músicas e direitos dos artistas, fazendo da miséria sua fonte de riquezas. Isso o tem deixado desencantado e, se o sonho de cantar publicamente suas músicas permanece, o objetivo de fazer uma carreira bem sucedida no funk lhe parece a cada dia mais distante. Por isso, Tuy está fazendo um curso de técnico em enfermagem e pensa em prestar vestibular no fim do ano. Com 20 anos, ele continua a procurar seu primeiro emprego de carteira assinada e recentemente entregou mais de 30 currículos num só dia.

17

No dilema entre se dedicar totalmente a uma carreira incerta e sofrida e procurar construir um futuro profissional menos atraente, mas mais sólido e realista, o MC tem feito alguns shows e, nas horas vagas e quando há dinheiro para a passagem, circulado por alguns lugares e eventos onde seu talento possa ser descoberto. Assim, filas na porta da equipe Furacão 2000 procurando, com centenas de outros candidatos, uma brecha para cantar, apresentações em clubes, bailes e mesmo numa festa realizada pelo movimentos estudantil na UFF, lançamento de um DVD de MC Sabrina no camelódromo, idas aos camelôs de Madureira têm sido parte de sua rotina.

Claramente, para Tuy, o funk é visto como uma maneira de ascender socialmente, uma possibilidade de realizar a utopia de ganhar o próprio sustento com um trabalho prazeiroso e significativo, sem fronteiras rígidas com o lazer, e ainda um meio para obter bens de consumo prestigiosos e difíceis de serem alcançados por jovens das camadas populares. Em sua fala, o funk também surge como alternativa ao tráfico varejista, mais perigoso e cada vez menos lucrativos para os meninos das favelas. Dessa maneira, o funk seria expressão da desigualdade social, ao mesmo tempo denúncia e tentativa de superá- la por meio de uma carreira individual, mas necessariamente ligada ao destino dos oprimidos. A letra de Filhos da desigualdade , que foi enviada a mim escrita em caixa- alta, o que em linguagem de computador significa algo que se diz gritando, demonstra essa condição do MC como porta-voz dos de baixo:

INTRODUÇÃO: E AI PRESIDENTE DA AUTORIDADE. O NOME DESSA MÚSICA AQUI Ó É FILHOS DA DESIGUALDADE. EXISTEM MILHARES OU MELHOR MiLHÕES. ESPALHADOS POR FACÇÕES E POR TODAS AS CIDADES.

LETRA: CANSOU DE SOFRER E CHORAR. O SEU MOLEQUE CRESCENDO E ELE SEM NADA PRA DAR. 18

JÁ RALOU, JÁ SERVIU PRA MUITO DOUTOR. OFICIE BOY, PEDREIRO ENTREGADOR, CAMELÔ. ESTUDOU ATÉ A QUARTA SÉRIE. NA CASA DELE A FOME ARDIA COMO FEBRE. MAMÃE EMPREGADA DOIS IRMÃOS PRESOS E PAPAI MORTO NUM TIROTEIO. EDUCAÇÃO APRENDEU NA RUA. E VIU A COVARDIA DA SOCIEDADE IMUNDA.

REFRÃO: VIVE PRA LUTAR, TROCAR , GUERREAR. É GUERREIRO GUERRILHEIRO. NÃO PODE ABANDONAR.

VIVE PRA LUTAR, TROCAR , GUERREAR. É GUERREIRO GUERRILHEIRO. NÃO PODE ABANDONAR.

É GUERREIRO GUERRILHEIRO NÃO PODE ABANDONAR.

Considerações que não são finais

O funk hoje, mais do que um tipo de música, demarca um estilo de vida da juventude das favelas e periferias cariocas. Não somente pela ótica do consumo, mas

19

também por causa das possibilidades de ascensão social que ele representa, sobretudo numa sociedade do desemprego. Com base na tradição da Escola de Chicago e nas reflexões desenvolvidas por Gilberto Velho, podemos afirmar que a carreira do MC, o mestre de cerimônias, termo que define o cantor da música funk, pode ajudar a definir projetos individuais de ascensão social, limitados pela lógica da indústria cultural, sempre atenta às possibilidades de associação entre estilos de vida e produção de bens culturais para consumo de massa. Como regra geral, se tornar MC aparece para os jovens, principalmente do sexo masculino, como uma carreira capaz de permitir a sua entrada no mundo do consumo de bens com alto valor econômico e simbólico, como roupas e tênis de marca, carros e mesmo casa própria. Ser MC, portanto, contrasta com os empregos destinados à juventude pobre, em geral mal remunerados e cada vez mais raramente associados à carteira assinada. Outro importante valor simbólico está ligado aos relacionamentos com mulheres, sempre citados como algo a se almejar como resultado do sucesso. Além dos empregos mal remunerados, a carreira do MC também é comparada, no mundo do funk, à "vagabundagem", categoria que é utilizada para identificar o mundo do crime. A carreira de "vagabundo" também é apontada como viabilizadora do consumo, mas carrega também perigos e a possibilidade real de se perder a liberdade ou mesmo a vida. Em síntese. ser MC permite ao mesmo tempo realizar trabalho "honesto" (nos termos nativos) sem ter de se submeter a um emprego considerado escravizador e injusto no que diz respeito à remuneração, incapaz de sustentar um estilo de vida valorizado pela juventude da periferia da cidade. A construção dessas trajetórias e as reflexões desses artistas sobre elas, bem como seus planos para o futuro nos ajudam a problematizar o funk como estilo de vida e como alternativa à falta de perspectiva gerada pelo desemprego estrutural.

A comparação dessas três carreiras nos faz pensar sobre a naturalização, em mundos artísticos e na indústria cultural, da associação entre talento e sucesso, entendido como respeitabilidade profissional, mas, sobretudo, lugar de exposição na mídia, público amplo e retorno financeiro. Nessa lógica, fazer ou não sucesso dependeria, acima de tudo, do talento individual de cada artista e também do que comumente se chama de sorte (aqueles que são descobertos ou “acontecem” de repente, sem ninguém saber explicar muito bem porque).

20

No entanto, sabemos que muitos outros fatores entram nesse processo, entre eles a dinâmica da própria indústria cultural, muitos condicionantes sócio-históricos e ainda as características dos indivíduos que fundamentam a estruturação de suas carreiras. Penso que as entrevistas de história de vida, associadas à observação participante e à coleta de dados em fontes diversificadas sobre a economia própria do ramo da indústria cultural analisado são procedimentos de pesquisa fundamentais para compreendermos como se estrutura e funciona o mundo do funk, compreendido aqui como um mundo da arte nos termos de Howard S.Becker.

Representantes dos sonhos e aspirações da massa funkeira, os MCs são protagonistas dessa história e, por isso mesmo, condensam em suas carreiras e trajetórias as dores e as alegrias daqueles que, apesar de um cotidiano aprisionado pela árdua tarefa de sobreviver, se negam a abrir mão do direito tão humano à felicidade.

Referências bibliográficas:

ADORNO, Theodor. “A indústria cultural”. In: COHN, Gabriel (org.). Theodor

Adorno . São Paulo, Ática, 1986 (Col. Grandes Cientistas Sociais)..

______. Indústria cultural e sociedade . São Paulo, Paz e Terra, 2002.

BECKER, Howard S. Uma teoria da ação coletiva . Rio de Janeiro, Zahar,1977.

_____. Art Worlds . London/Berkeley/Los Angeles, University of California

BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro, FGV, 1996a. p. 183-91.

_____. As regras da arte . São Paulo, Companhia das Letras, 1996b.

HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena . Rio de Janeiro, Ed.UFRJ, 2000.

21

MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações . Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2006.

VELHO, Gilberto. 1994. Projeto e metamorfose . Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

_____. 1995. “Estilo de vida urbano e modernidade”. Estudos Históricos , Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16. p. 227-34.

_____. 2002. Mudança, crise e violência . Política e cultura no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

_____ (org.). 1974. Desvio e divergência . Uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro, Zahar.

_____ (org.). 1977. Arte e sociedade . Rio de Janeiro, Zahar.

_____ (org.). 1999. Antropologia urbana . Cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

VELHO, Gilberto e ALVITO, Marcos. (orgs.) Cidadania e violência . Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Editora FGV, 1996.

VELHO, Otávio Guilherme (org.). 1967. O fenômeno urbano . Rio de Janeiro, Zahar.

VIANNA, Hermano. 1988. O mundo funk carioca . Rio deJaneiro, Jorge Zahar.

______. O mistério do samba . Rio de Janeiro, Jorge Zahar/ Editora UFRJ, 1995.

______. (org.) Galeras cariocas . Territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1997.

VIANNA, Letícia C.R.. 2003. “Movimentos musicais e identidades sociais no contexto da cultura de massa no Brasil: uma reflexão caleidoscópica.” In: TRAVANCAS, Isabel e FARIAS, Patrícia(orgs.). Antropologia e comunicação . Rio de Janeiro, Garamond. p. 71- 100.

_____. 1998. Bezerra da Silva, produto do morro . Trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 22

WILLIAMS, Raymond. 2007. Palavras-chave . São Paulo, Boitempo.

23