O diabo de nosso tempo: uma análise de Doutor Fausto, de Thomas Mann

The of our time: an analysis of Doctor , by Thomas Mann

El diablo de nuestro tiempo: un análisis del Doctor Fausto, por Thomas Mann

Pauliane AMARAL1

RESUMO: Esse artigo centra-se na leitura do romance Doutor Fausto, de Thomas Mann, para analisar a representação do diabo nessa obra, considerando as origens do mito de Fausto na literatura. A análise é centrada sobretudo no capítulo XXV, em que o compositor Adrian Leverkühn narra seu encontro com o Senhor das Trevas. Nesse romance, que também pode ser lido como uma afirmação política e ético do autor, Mann revisitou um dos maiores mitos da cultura alemã para escrever um manifesto literário contra o regime nazista. Lida como metáfora, a trajetória decadente de Leverkühn leva o narrador humanista a um mergulho na gênese da mentalidade germânica. Por fim, neste artigo de caráter ensaístico, propõe-se um diálogo intertextual com outros textos, mostrando como Mann se vale de fontes que tratam do pacto com o diabo no âmbito da teologia, da música e das artes visuais pra construir a narrativa de seu romance. 328

PALAVRAS-CHAVE: Abismo. Doença. Literatura Alemã. Mefistófoles. Nazismo.

ABSTRACT: This article focuses on Thomas Mann’s novel Doctor Faust to analyze the representation of the devil in this work, considering the origins of the myth of Faust in literature. The analyse is centered mainly on chapter XXV of the novel, in which the composer Adrian Leverkühn relates his encounter with the Lord of Darkness. In this novel, which also coulb be read as an ethic and politic statement of his author, Mann come back to the one of most famous myth in German literature to write a literary manifest against the Nazi government. Read as a metaphor, the course of Leverkühn’s decadent trajectory takes the humanist narrator to a plunge into the genesis of the German mentality. Finally, in this essayistic article, an intertextual dialogue with other texts is proposed to show how Mann relied on sources which ’s pact in the field of theology, music, and visual arts to construct the narrative of his novel.

KEYWORDS: Abyss. Disease. German Literature. . Nazism.

RESUMEN: Este artículo enfoca la novela Doctor Fausto, escrita por Thomas Mann, analizando la representación del demonio desde las orígenes del mito de Fausto en la literatura. El análisis se centra sobre todo en el Capítulo XXV, en el que el personaje del compositor Adrian Leverkühn relata su encuentro con el llamado Señor de la Oscuridad. En esta novela, que también puede leerse como una declaración política y ética del autor, Mann volvió a visitar uno de los mayores mitos de la cultura alemana para escribir un manifiesto literario contra el régimen nazi. Leída como una metáfora, la trayectoria decadente de Leverkühn lleva al narrador humanista a sumergirse en la génesis de la mentalidad germánica. Finalmente, en este artículo ensayístico, se propone un diálogo

1 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Três Lagoas– MS – Brasil. CEP 79603-011. E-mail: [email protected]

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intertextual con otros textos, mostrando cómo Mann usa fuentes que tratan el pacto con el diablo en la teología, la música y las artes visuales para construir la narrativa de su novela.

PALABRAS CLAVE: Abismo. Enfermedad. Literatura Alemana. Mephistopheles. Nazismo.

Em Doutor Fausto, o escritor Thomas Mann elege a história do homem que vendeu sua alma ao diabo como o leitmotiv para uma obra monumental sobre as origens do nazismo na Alemanha e suas consequências devastadoras. Considerando que “Fausto é o símbolo de uma humanidade que errou procurando um caminho que levasse ao ideal desesperadamente buscado” (MEIRA, 1983, p. XXIV), a imagem desse mito se preserva enquanto metáfora de um país que acabou sucumbindo à barbárie para tentar reaver sua identidade destroçada. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, à Alemanha, destroçada, não restou outra alternativa a não ser a rendição, ratificada pelo Tratado de Versalhes. O tratado responsabilizava o país pelos prejuízos da guerra, obrigava o governo alemão a devolver territórios conquistados, como a Alsácia-Lorena, e impunha uma lei tributária cujo arrecadamento era direcionado ao ressarcimento dos prejuízos dos países vencedores, afundando ainda mais o país em uma crise econômica. Todas essas duras imposições fizeram despertar nos alemães um nacionalismo exacerbado e um desejo de reparação que ajudou a germinar a semente do Nazismo. A ascensão do Terceiro Reich teve implicações diretas na vida pessoal e intelectual de Mann, que se autoexilou na Suíça em 1933, alguns meses após Adolf Hitler ser eleito chanceler e começar a exercer poderes ditatoriais. Um episódio ocorrido poucos meses antes do exílio de Mann ilustra como na Alemanha pré-Segunda Guerrra Mundial o crecente espírito nacionalista se estendia à comunidade 329 artística da época. Em discurso feito na Universidade de Munique, em 10 de fevereiro de 1933, menos de duas semanas após Hitler assumir o poder, na ocasião da celebração da 50º aniversário de morte do compositor alemão Richard Wagner, Mann compara a magnitude de Wagner à de Emile Zola e Liev Tólstoi. Dois meses após Mann ter proferido o discurso intitulado “Os sofrimentos e a grandeza de Richard Wagner”, 45 artistas escritores e compositores, entre eles Hans Pfitzner e Richard Strauss, assinaram uma carta aberta publicada no Münchner Neueste Nachrichten protestando contra o que chamaram de uma profanação da herança wagneriana. A carta aberta não deixou dúvidas de que Mann era considerado persona non grata em seu país e o alertou para o perigo de uma iminente prisão:

Mann was vacationing with his family in Lugano when he read the protest. He almost immediately recognized that this letter represented an irrevocable denunciation before the new Nazi regime. He had been excommunicated from the Reich. His instincts kept him from returning to Munich (and indeed, after the war, an arrest warrant was discovered in the Nazi archives—Mann would have been arrested at the border). (REINHARDT, 1985, s.p.)2

2 Tradução livre da autora: Mann estava de férias com sua família em Lugano quando leu o protesto. Ele quase imediatamente reconheceu que aquela carta representava uma denúncia irrevogável diante do novo regime nazista. Ele havia sido excomungado do Reich. Seus instintos o impediram de retornar a Munique (e, de fato, depois da guerra, um mandado de prisão foi descoberto nos arquivos nazistas – Mann poderia ter sido preso na fronteira).

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Um ano antes do discurso sobre Wagner, Mann proferira o discurso “Goethe como representante da era burguesa” (1932) diante de uma plateia repleta de nazistas, mostrando Goethe como um burguês comprometido com sua visão particular de mundo e não um escritor populista e ultranacionalista. Esses discursos ilustram a capacidade de Mann em antecipar o que se tornaria a Alemanha durante a ascensão do Terceiro Reich.

Certamente eu desafiei a cólera dos detentores do poder. Não apenas nos últimos anos, através da minha distância e da expressão de meu horror a eles. Muito antes disso, eu enfrentei esse desafio porque precisava; pois, antes da burguesia alemã desesperada de hoje, eu já havia percebido há muito quem e o que subia ao poder. (MANN apud GESSAT, 2018, s.p.).

Nessa declaração, dada após Mann e sua família terem sidos expratriados da Alemanha, em 2 de dezembro de 1936, o escritor reafirma sua capacidade de antecipar o que muitos de seus compatriotas não enxergaram ou não quiseram exergar. Doutor Fausto, um romance que fala sobre a Alemanha, escrito entre 1937 e 1947, nos anos de exílio de Mann nos Estados Unidos, tornou-se um exemplo do posicionamento de um intelectual frente às atrocidades de seu tempo. Nos dias de hoje, em que discursos pregam uma austeridade construída a partir do alheiamento – a exemplo do Brexit –, o romance de Mann ressurge como um cruel lembrete das consequências da aceitação leviana de discursos totalitários em prol de promessas de prosperidade que podem encetar pactos diabólicos. A perenidade do mito de Fausto na literatura e em outras artes parece estar relacionada à construção dialética das personagens, na qual a caracterização do demônio Mefistófoles – representante do diabo – é concomitante à descrição do processo de demonização de Fausto. A 330 personagem de Fausto, seja ele um padre, um médico ou um músico, em sua condição humana, revela fraquezas e dilemas éticos, tendo que lidar com o destino que ele selou com seu próprio sangue. As representações do mito de Fausto ao longo dos anos mostram uma crescente humanização da figura do demônio, cujo paradigma é a própria supressão do diabo no inferno existencial, exemplificada através da famosa expressão da personagem sartreana que, na peça Huis Clos (1944), setencia: “O inferno são os outros”. Ideia similar é transmitida pela pintura The Devil as Tailor (1980), de Jerome Witkin, na qual o diabo é um alfaiate que costura um uniforme nazista. Alguns estudiosos localizam a primeira versão escrita do mito de Fausto no livro apócrifo Historia von D. Johann Fausten dem weitbeschreyten Zauberer vund Schwarzkünstler (Frankfurt-am-Main: Johann Spies), também chamado de Faustbuch. O Faustbuch é baseado no personagem histórico de um mago alemão que viveu no fim do século XVI e era conhecido como Dr. Johann Georg Faust. O livro reúne uma série de fábulas, que narram desde os estudos de Fausto em Wittenberg, quando assinou contrato de 24 anos com o demônio Mefistófoles, até suas aventuras mágicas ao redor do mundo, findando em sua violenta morte. O livro foi publicado logo após a morte do Georg Johann Faust, em 1587, e traduzido para o inglês por com o título The historie of the damnable life, and deserved death of Doctor Iohn Faustus (1588), tendo sido amplamente traduzido e lido na Europa. Quase ao mesmo período, a lenda de Pan Twardowski, feiticeiro que vendeu sua alma ao diabo, começou a criar raízes no folclore polonês, indicando que o mito já circulava oralmente pela Europa3.

3 Ver RAMM, 2017 s.p.

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Faustbuch foi a fonte de inspiração para o drama The Tragicall History of D. Faustus, de Christopher Marlowe, também escrito no século XVI. Encenada primeiramente em 1589, a peça de Marlowe foi publicada apenas em 1604. O drama tornou-se um dos mais populares do período Elizabetano, época em que os Protestantes foram extremamente influenciados pelas ideias de Martin Lutero, que via o papa como um anti-Cristo, como em algumas gravuras em que o Papa desce ao inferno cercado por criaturas monstruosas4.

While the English Faustbuch presents Faustus’s gruesome death as a ‘deserved’ punishment for his ‘damnable’ deeds, Marlowe’s ‘tragicall’ drama encourages more empathy with Faustus’s moral conflict, his superhuman ambition and his failure to turn back to God. (RASMUSSEN; DEJONG, 2017, s.p.)5.

Para além dessas fontes já amplamente exploradas do mito de Fausto, a procura pela gênese da história nos leva à lenda de Theophilus, um clérigo que vendeu sua alma ao diabo, arrependeu-se e foi salvo graças à intervenção de Virgem Maria. Os motivos que levam Theophilus a vender sua alma variam nas diferentes versões da lenda. Porém, em todas as versões da lenda há duas personagens recorrentes: Nossa Senhora, que atua como a força divina que destitui o pacto e uma personagem que atua como intermediário entre Theophilus e o diabo, que pode ser um necromante ou mago judeu, a depender da versão da história. É na figura dessa última personagem que encontramos o modelo para Mefistófoles. O primeiro registro escrito da história de Theophilus é do século VI, feito por Eutychianus de Adana, que alega ter sido testemunha dos eventos que narra. Assim como o Fausto moderno, a lenda de Theophilus é baseada em uma figura histórica homônima, um diácono da cidade de Adana, na Asia Menor, que hoje faz parte da Turquia. Na história, conhecido por sua humildade, Theophilus, um dedicado administrador do mosteiro, ao ser 331 convidado para assumir o cargo de bispo, rejeita-o por não se sentir digno do posto. Quando o novo bispo é nomeado, sua primeira ação é afastar o popular Theophilus de seu posto administrativo. Desolado, Theophilus aceita fazer um pacto com o diabo, negando a Virgem Maria e seu filho em troca de prestígio. Arrependido, o religioso passa a se dedicar à oração e ao jejum para tentar ser perdoado. Após quarenta dias de jejum, Virgem Maria intercede junto a Deus, conseguindo o perdão. Nos estudos teológicos, a lenda integra tanto o culto à Virgem Maria quanto à história da demonologia. Integrante da corte do imperador Carlos Magno, Paulo, o diácomo de Napóles, foi o responsável por traduzir a história de Theophilus do grego para o latim no século IX, tornando- a popular na Europa Ocidental. O trabalho do diácomo Paulo influenciou a criação de obras dramáticas e poéticas na Europa por mais de cinco séculos. Sua versão da lenda de Theophilus é apontada como a fonte de inspiração para o drama em verso da cônega Hrosvitha de Gandersheim: Lapsus et Conversio Theophili Vicedomn, escrito no século X. Considerada a primeira dramaturga alemã, Hrosvitha viveu grande parte de sua vida no convento de Gandersheim, onde criou sua obra em latim, como era usual na época. No Theophilus de Hrosvitha, ambientado no século VI, o diácono Theophilus, após perder a confiança do

4 Ver Lutero; Cranach [the Elder], 1521. 5 Tradução livre da autora: Enquanto a versão inglesa de Faustbuch apresenta a horrível morte de Fausto como uma punição “merecida” por seus atos “condenáveis”, o drama trágico de Marlowe encoraja mais empatia pelo conflito moral de Fausto, suas ambições sobrehumanas e sua incapacidade de retornar para Deus.

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arcebispo e com a ajuda de um mago judeu6, vende sua alma ao diabo em troca de uma posição prestígio entre os eclesiáticos. Outras versões posteriores da lenda de Theophilus são: Comment Theophilus vint a penitence, de Gautier de Coincy; Le Miracle de Theophile, de Rutebeuf (segunda metade do século XVIII); uma versão italiana anônima chamada Miracolo di Teofilo e três versões anônimas germânicas, escritas na baixa Idade Média7. A popularidade da história de Theophilus é corroborada por sua presença na tradição pictórica cristã, como no livro devocional Maastricht Hours, feito no início do século XIV na região da Valônia. Uma lista abrangente sobre os registros do mito de Fausto na literatura, música, pintura, cinema e outras artes foi concebida pelo professor Joerg Esleben, da Duke University8. A história de decadência, milagre e conversão de Theophilus, possui características que a inserem na tradição literária cristã, especialmente pela a intervenção da Virgem Maria, que consegue que o pacto com o diabo seja dissolvido9. No mito de Fausto, exclui-se a possibilidade de salvação via interferência divina e a ênfase da narrativa recai sobre a psique do protagonista. O embate entre misticismo e razão, presente no alicerce da mentalidade alemã, era um tema que também inquietava Goethe, o escritor a quem Mann chama se “senhor e mestre de uma era da cultura alemã” (MANN, 2011b, p. 71). Se Os sofrimentos do jovem Werther tornou- se um paradigma da literatura epistolar e seu protagonista o protótipo do herói romântico, com a peça Fausto Goethe contrói uma obra que traz para a modernidade o mito do homem que vende a alma para o diabo em troca de uma recompensa. Na tragetório da vida do escritor, o leitmotiv de Fausto reflete as elocubrações de um escritor maduro, de um Goethe com mais de 80 anos e há 58 anos distante da publicação do Werther que o tornou famoso. 332

Embora temperado pelas ideias mais humanistas do Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), Goethe era um homem do Iluminismo, que buscava a rutura com os processos de alienação, fortemente enraizados no seu tempo. Compreende-se assim que as suas últimas palavras, pedindo que abrissem uma janela para dar mais luz, sejam hoje citadas no sentido de exigir mais instrução, mais verdade, mais ciência. (ARAÚJO, 2015, s.p.).

O projeto da escrita de Fausto dominou a vida intelectual de Goethe, sendo que a primeira parte de seu poema dramático apareceu em 1808 e a segunda parte foi concluída em 1831. Goethe deixou instruções para que seu Fausto fosse publicado apenas após a sua morte, como foi feito, em 22 de março de 1832. De acordo com artigo publicado pelo seu médico pessoal, Carl Vogel, as últimas palavras de Goethe foram “Mehr Licht!” (em português, “Mais Luz!”). Mesmo sem a veracidade da cena comprovada – Vogel não estava presente no leito de morte do escritor – as palavras condizem com as preocupações de um homem que via nas luzes da razão o único caminho para a evolução moral e ética do homem. Goethe aborda o mito de Fausto como uma

6 Na versão de Eutychianus de Adana, quem ajuda Theophilus a vender sua alma ao diabo é um necromante. 7 ver LAZAR, 1972. 8 Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2019. 9 O desfecho da história de Theophilus lembra o da personagem João Grilo, da peça O auto da compadecida (1955), de Ariano Suassuna, que, através da benevolência de Virgem Maria, consegue ser perdoado de seus pecados. A história de Suassuna é claramente inspirada no cânone cristão.

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alegoria da busca do homem por um conhecimento ilimitado, da vaidade humana e do preço a ser pago por quem faz o pacto com Mefistófoles. O mito de Fausto também representa um momento de ruptura, a passagem de uma realidade para outra, do mundo natural para o mundo sobrenatural, de Deus para o diabo. Esse paradoxo coincide com momentos em que o mito de Fausto teve popularidade: a lenda sobre Georg Johann Faust (1480-1540) tem sua origem em uma época de crise (a transição entre a Idade Média e a Idade Moderna), assim como o Fausto de Goethe aparece no fim da Idade Moderna. O romance de Thomas Mann, por sua vez, revisita a lenda de Fausto para construir um painel da Alemanha antes e depois da Segunda Guerra Mundial, sondando as raízes do Nazismo, do Holocausto e de todos os eventos que colocaram em xeque as ideias de civilização, mal e homem. Em Doutor Fausto, Serenus Zeitblom narra a história de vida do músico e amigo Adrian Leverkühn. Apesar de homodiegético, o narrador tem uma visão privilegiada sobre as cinscunstâncias que moldaram o caráter do amigo, tanto como testemunha ocular dos acontecimentos, como pelo acesso às cartas e às histórias repassadas por Leverkühn a ele. Serenus Zeitblom, doutor em filosofia e professor de línguas clássicas aposentado, tem sessenta anos de idade no momento em que inicia a escrita da biografia do amigo. Além de contar eventos do passado, essa narrativa biográfica, in ultima res, é entreamada à comentários sobre os eventos que o narrador está vivenciando no momento em que escreve o livro. Através desse recurso, Mann constrói uma narrativa que dá conta não apenas da vida de Leverkühn, como também dos eventos que levaram a Alemanha a protagonizar duas grandes guerras. O narrador de Doutor Fausto, que carrega o tempo no próprio nome (Zeit)10, é quem nos fala sobre o entrecruzamento de tempos em sua narrativa: 333

[...] o tempo no qual avança o narrador e o outro no qual decorrem os fatos narrados. Trata-se de um muito peculiar entrelaçamento de épocas, destinadas, aliás, a se unirem com uma terceira, que é o período que o leitor um dia talvez aproveite para tomar conhecimento do que comunico (MANN, 2011a, p. 354).

A reflexão do narrador de Doutor Fausto dialoga com o que Gerard Genette, em Discurso da Narrativa (1995, p. 12), distingue como o tempo dos eventos recontados (énoncé) e o tempo da escrita desses eventos (énonciation), ou, o tempo da história (organização funcional e sequencial do texto) e o tempo do discurso (narrativa enquanto discurso)11. Zeitblom inicia o capítulo I dizendo que escreve em “27 de maio de 1943, dois anos após a morte de Leverkühn” (MANN, 2011a, p. 9); já no início do capítulo XLVI, diz:

Por quase quatro semanas, interrompi a redação deste relato, paralisado, em primeiro lugar, devido a algum esgotamento psíquico, depois de tudo o que acabo de descrever, mas também pelos acontecimentos do momento atual, que, a esta altura, precipitam- se. Tinham sido previstos, quanto a seu decurso lógico, mas, apesar de serem almejados em certo sentido, despertam agora um pavor incrédulo. Nosso povo infeliz,

10 Serenus, em latim, remete à clareza, brilho e serenidade, sendo também o epíteto de Júpiter. “Em sua lista de epítetos de Jove, Apuleio cita, a partir dos arquivos de adivinhos, Júpiter fulgurator, tonitrualis, fulminator, imbricitor e serenator. O último epíteto expressava o poder de Júpiter de lançar um raio à luz do dia” (PALMER, 1976, p. 49). No original: “In his list of Jovian epithets Apuleius cites from the archives of haruspices Jupiter fulgurator, tonitrualis, fulminator, imbricitor and serenator.44 The last epithet expressed the power of Jupiter to cast lightning on a clear day”. 11 Sobre o estudo do tempo em Genette (1995), ver também os capítulos 1. Ordem, 2. Duração e 3. Frequencia.

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minado pela desgraça e pelo espanto, mostra-se incapaz de compreendê-los e os suporta num fatalismo obtuso. Mas meu espírito já fatigado por antigos horrores e aflições fica exposto a eles, sem poder reagir. Desde fins de março, — escrevo em 25 de abril deste fatídico ano de 1945 — nossa defesa ao oeste do país está evidentemente desmoronando. (MANN, 2011a, p. 673).

Thomas Mann apresenta Zeitblom e Leverkühn como opostos: enquanto o narrador é católico, humanista e se expressa através das palavras, Leverkühn é luterano, teólogo e faz da música sua forma de expressão 12 . O posicionamento intelectual do narrador, enquanto personagem que participou e testemunhou a ascensão e queda de Leverkühn parece ecoar o posicionamento ético e político do próprio Mann, testemunha dos eventos que culmiram na ascensão e derrocada da Alemanha nazista. O contraste entre as duas personagens também surge nos momentos em que Zeitblom fala sobre as crenças de Leverkühn, diametralmente opostas às suas. Em uma das conversas entre os dois, Zeitblom repreende o amigo, dizendo que o seu racionalismo “[...] contém uma boa parcela de superstição, da crença num demonismo vago, indefinível” (MANN, 2011a, p. 272), ao que Leverkühn responde: “Razão e magia [...] certamente se encontram naquilo que chamamos sabedoria, iniciação, fé nos astros, nos números...” (MANN, 2011a, p. 272). Ao eleger um músico como seu Fausto, Mann toca no que a espírito alemão considera sua grande riqueza, na arte considerada a mais pura e sagrada para seus conterrâneos: “Na Alemanha a música goza do mesmo apreço popular que na França se dedica à literatura” (MANN, 2011a, p. 178). Zeitblom verá qualidades de música sacra nas composições feitas por Leverkühn em seus últimos anos de vida – intituladas Apocalispe e Lamentação do Dr. Fausto (MANN, 2011a, p. 249). É o próprio demônio quem apontará o aspecto sacro e demoníaco da 334 música: “A Música é uma matéria altamente teológica, da mesma forma que o pecado, da mesma forma que eu. O amor do cristão a ela é uma paixão genuína, porque une o conhecimento e a corrupção” (MANN, 2011a, p. 340). Música, doença, fé e pecado são elementos que estão na base das discussões éticas e teológicas suscitadas pelas personagens de Doutor Fausto. Antes de se dedicar integralmente à música, o jovem Leverkühn estuda teologia, na qual diz encontrar um “sem-número de coisas incrivelmente cômicas” (MANN, 2011a, p. 188), além de entrar em contato com a demonologia13. Nesse período o jovem Leverkühn se depara com duas concepções de diabo, apresentadas pelos professores Ehrenfried Kumpf e Eberhard Schleppfuss. Kumpf é um herdeiro de Lutero se opõe à linguagem “latinesca” (leia-se católica) da Igreja. Um teólogo sem metafísica, sem dogma, que parece acreditar concretamente na existência do diabo. Sobre essa relação intíma entre Kumpf e Belzebu, o narrador Zeitblom conjectura:

Não posso nem quero investigar até que ponto o professor acreditava na existência real do Adversário, mas tenho para mim que onde quer que haja teologia – e sobretudo uma teologia ligada a um vulto tão enérgico como Ehrenfried Kumpf – o diabo também deve entrar no quadro, preservando sua autenticidade complementar à de Deus. (MANN, 2011a, p. 136).

12 MANN, 2011a, p. 129. 13 No capítulo XXV, o próprio demônio faz ironia com o fato de Adrian concentrar seus estudos no Diabo e não em Deus: “Teu interesse concentrava-se... em mim! Pelo que te fico muito grato.” (MANN, 2011a, p. 328).

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Em outro momento da narrativa, falando sobre as ideias que o professor Ehrenfried Kumpf compartilhava durante suas palestras na faculdade de teologia, o narrador enumera diversas palavras e expressões linguísticas que designam o diabo – “Cãotinhoso, Pedro-botelho, Mestre Capiroto ou Senhor Dicis-et-non facis” – explicando que Kumpf, “só a contragosto, pronunciava o nome do Gênio do Mal”: (MANN, 2011a, p. 137). Esse ensinamento será lembrado pelo próprio demônio em seu encontro derradeiro com Adrian, alguns anos depois:

Quando me perguntas quem sou, talvez queiras saber como me chamo. Mas certamente gravaste na memória todos os curiosos apelidos que aprendeste na Escola Superior por ocasião dos teus primeiros estudos, antes de teres largado diante da porta ou embaixo do banco a Sagrada Escritura.Tu tens todos eles na ponta da língua e podes escolher qualquer um. (MANN, 2011a, p. 317).

Outra explicação de base teológica para a existência do diabo é dada pela personagem do professor Eberhard Schleppfuss, para o qual “era o próprio Mal necessária consequência e inevitável acessório da santa existência do Deus mesmo” (MANN, 2011a, p. 143). Em retrospectiva, Leverhühn chama as palestras em que Schleppfuss defendia a indispensável existência do diabo de tendenciosas. Os comentários de Zeitblom, entremeados à apresentação dos professores de teologia, criam mais uma camada dialética na narrativa: Kumpf confere uma realidade psicológica ao diabo e o considera uma figura onimpresente e Schleppfuss vê o diabo como um contrapeso, necessário à santidade, ideia que era – segundo Zeitblom – a “base da vida psíquica da época clássica em que a religião dominava a existência, a saber, a Idade Média cristã” (MANN, 2011a, p. 140). 335 Tanto a ideia do diabo andando ao lado do homem, espreitando-se na sombra, como sugere a cena do jantar na casa de Kumpf, ou a ideia de que Deus admite o Mal em prol do Bem, dialogam com a tradição teológica acerca da natureza do diabo:

The Devil is the personification of the principle of evil. Some religions have viewed him as a being independent of the good Lord, others as being created by him. Either way, the Devil is not a mere demon, a petty and limited spirit, but the sentient personification of the force of evil itself, willing and direct evil. (RUSSELL, 1987, p. 23)14.

Se o diabo é a personificação do mal, quem o aceita em sua vida – como o faz Leverkühn – aceita o próprio mal. O pacto feito pelo compositor com o diabo dialoga com a ascensão do nazismo na Alemanha, um demônio coletivo, alimentado por um boa dose de superstições e pela ideia de que a conquista de um bem maior – o fortalecimento e soberania do Estado alemão – justifica a violação dos direitos humanos mais básicos, como o direito à vida. O narrador encerra o capítulo XIII narrando uma história contada pelo professor Schleppfuss em uma de suas palestras. A história de Heinz Klöpfgeissel é ambientada no século XV e repleta de bruxas, feitiços e pactos. Em suma, Klöpfgeissel, ao tentar trair a amada, se vê impotente e desconfia de que fora acometido por um feitiço. Após uma série de interrogatórios

14 Tradução livre minha: “O diabo é a personificação do princípio do mal. Algumas religiões o viam como um ser independente de Deus, outras como uma criação dele. De qualquer maneira, o Diabo não é um mero demônio, um espírito mesquinho e limitado, mas a personificação consciente da própria força do mal, do desejo do mal e do próprio mal”.

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e perseguições, representantes da Igreja condenam a jovem amante à fogueira, juntamente com outras mulheres acusadas de bruxaria. Entre as condenadas à fogueira do conto medieval, está uma anciã, que confessa ter feito um pacto com o Diabo, o “qual se lhe apresentara sob o disfarce de um monge de pés de bode” (MANN, 2011a, p. 152). A forma como o diabo é descrito pela anciã na história corresponde a uma visão da Idade Média, quando houve uma drástica modificação na forma de representar Satã, sendo os pés de bode uma herança dos deuses da Antiguidade, que influenciou a representação pictórica e escrita do diabo na tradição cristã. Os pés de bode remetem ao deus pagão Pan, metade homem, metade bode, um deus da natureza, cujo apetite carnal era associado ao proibido. Seus chifres de bode e cascos fendidos se tornaram sinônimo de pecado e mais tarde, na Idade Média, foram adotados pelos pintores em suas terríveis representações do diabo, a exemplo do quadro “The Devil Presenting St. Augustine With the Book of Vices,” pintado no fim do século XV por Michael Pacher. Com o fim do Renascimento, a ideia do diabo também muda, como observa a professora de História Medieval na Universidade de Messina, Marina Montesano:

His role in the early Middle Ages was much like his role in the Old Testament: He was an adversary but not an active enemy. Throughout the Middle Ages Satan evolved into an aggressive, malignant force set on tormenting as many human souls as possible. (MONTESANO, 2018, s.p.)15

Nas representações do diabo anteriores ao século XVI os artistas emprestavam características não só de Pan, mas de deidades do Egito e de países que hoje conhecemos sob a denominação de Oriente Médio. Durante o Renascimento, artistas plásticos encontraram 336 inspiração para suas representações de Satã nos textos de Homero, Dante e Virgílio. Assim como as representações pictóricas de Satanás influenciaram as literárias, a publicação do Fausto de Goethe e de O estranho misterioso (1916), de Mark Twain, influenciaram artistas visuais a apresentar Satã como um dândi, um homem astuto e cheio de artimanhas16. Alinhado às demandas do mundo contemporâneo, aos poucos a representação do diabo foi se tornando mais humana e menos bestial. Para compor seu Doutor Fausto, Thomas Mann recorreu a diversas fontes bibliográficas, sendo uma delas o famoso tratado sobre bruxaria do século XV, Malleus Maleficarum (Hexenhammer) 17 , provável fonte de inspiração para a história de Heinz Klöpfgeissel. As bruxas, assim como o mago judeu que serviu de intermediário na venda da alma de Theophilus ao diabo e o próprio Mefistófoles, são representados como agentes do diabo no mundo terreno. A indefinição da natureza de Mefistófoles alcança a própria etimologia do nome, que pode ter derivado do persa, hebraico ou grego.

15 Tradução livre minha: “Seu papel no início da Idade Média era muito parecido com o seu papel no Antigo Testamento: ele era um adversário, mas não um inimigo ativo. Ao longo da Idade Média, Satanás evoluiu para uma força agressiva e maligna que atormentava tantas almas humanas quanto possível”. 16 Assim é, por exemplo, o diabo interpretado por Al Pacino no filme O advogado do diabo (1997). 17 O livro também é citado no diálogo entre Mefistófoles e o compositor: “Certas pessoas têm mais talento do que outras para a realização de proezas de bruxaria, e nós sabemos muito bem escolhê-las. Isso já registram os dignos autores do Malleus maleficarum” (MANN, 2011, p. 328).

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Mefostofiles, quien no se convertirá em Mefistófoles hasta el siglo XVIII. Se trata de un nombre notable tanto por su eufonia como por su poder de sugerir un significado, aunque nadie há descubierto todavia cúal puede ser éste, ni siquiera de qué lengua se deriva: persa, hebreo o griego. Una ambiguedad siniestra hechiza las silabas y parece mofarse de conjecturas como “enemigo de la luz” (Mefostofiles), “enemigo de Fausto” (Mefaustofiles), o “destructor-mentiroso” (Mefiz-Tofel) (BUTLER, 1997, p. 181)18.

Nas peças de Marlowe e Goethe, Mefistófeles é um aliado de Lúcifer, mas em Doutor Fausto o diabo ou demônio não é nomeado, tornando impossível definir se a figura que fala com Leverkühn é um emissário ou o próprio diabo. O tema do pacto com o diabo percorre todo o romance de Mann, não só fazendo referência ao canônico Fausto de Goethe, mas como a outras obras de arte. Ao narrar seu encontro com a prostituta a que chama de Esmeralda em carta ao amigo Zeitblom (MANN, 2011a, p. 199), o compositor diz que, impensadamente, martelou no piano do prostíbulo as notas da ópera O Franco-atirador, de Weber. A ópera, que também tem como tema principal o pacto com o diabo, será evocada em outro momento da narrativa, através da referência aos nomes das personagens Kaspar e Sammael, que representam, respectivamente, o vilão e o diabo na ópera (MANN, 2011a, p. 320). No capítulo XXV o narrador revela o encontro de Adrian com o demônio, reproduzindo as palavras escritas pelo compositor e confiadas ao amigo posteriormente. Na narrativa de Adrian sobrepõem-se confissão autobiográfica e diálogo. Nesse capítulo central de Doutor Fausto, as palavras de Adrian deixam transparecer o desejo de encontrar o demônio: “vi-O, finalmente, finalmente! Ele esteve aqui comigo, nesta sala; visitou-me inesperadamente e todavia de há muito esperado” (MANN, 2011a, p. 312). 337 O ano é 1912. Ele está na Itália, em companhia do escritor Rüdiger Schildknapp, onde alugam quartos na casa da família Manardi para passar uma temporada de três meses. A casa é localizada na cidade de Palestrina, onde nasceu o compositor de mesmo nome. Zeitblom lembra que a cidade também é citada no vigésimo sétimo canto do Inferno de Dante Alighieri, em mais um diálogo intertextual com a tradição histórica da demonologia. O canto em questão se encontra no oitavo círculo do inferno, dedicado aos maus conselhos, como o que levou a família Colonna ser excomungada pelo papa Bonifácio VIII. A família Colonna, que não considerara legítima a renúncia do papa Celestino V, obrigado a deixar o cargo por insistência de Bonifácio, refugiou-se na fortaleza Penestrino, que pôde suportar os ataques das tropas papais. A voz que fala neste Canto é do frade Guido de Montefeltro, que aconselhou Bonifácio VIII a prometer anistia à família Colonna que, acreditando na sua boa-fé do novo papa, se rende. Bonifácio então os trai, aprisionando-os e destruindo seu palácio. No capítulo anterior, a filha da matrona da casa Manardi, uma menina chamada Amélia, “uma criança quase débil mental” (MANN, 2011, p. 298), que tem o hábito de dizer repetidamente palavras desconexas, parece sentir uma presença sobrenatural quando diz “Spiriti?... Spiriti?...” (MANN, 2011, p. 307). As palavras da menina preparam o leitor para a cena ambientada na sala da casa da família Manardi, onde Adrian encontra-se sozinho, imerso na leitura do ensaio de Kierkegaard sobre a ópera Don Giovanni, de Mozart. De repente a

18 Tradução livre minha: Mefostofiles, que não se tornará em Mefistófiles até o século XVIII. É um nome notável tanto por sua eufonia como por seu poder de sugerir um significado, embora ninguém tenha descoberto o que pode ser, ou mesmo de que língua deriva: persa, hebraico ou grego. Uma ambiguidade sinistra enfeitiça as sílabas e parece zombar de conjecturas como “inimigo da luz” (Mefostofiles), “inimigo de Fausto” (Mefaustofiles), ou “destruidor-mentiroso” (Mefiz-Tofel).

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atmosfera muda, e um frio extremo invade a sala, tirando a atenção de Adrian de sua leitura: “Eis que de chofre me sinto ferido por um golpe de frio cortante, como se a gente estivesse sentado no inverno numa sala bem aquecida e subitamente alguém abrisse uma janela que deixasse entrar a temperatura gélida de fora19. (MANN, 2011a, p. 313). Adrian percebe então que não está mais sozinho na sala, que alguém está sentado no sofá. Em um primeiro momento ele imagina que seu amigo Schildknapp deve ter voltado de seu passeio, mas logo se dá conta que é outro que se faz presente: “não é Sch. E sim outro vulto mais baixinho, nem de longe tão bem-apessoado, e que nem sequer parece um autêntico cavalheiro” (MANN, 2011a, p. 314). Nesse primeiro momento do contato entre os dois, Leverkühn caracteriza fisicamente o visitante:

É um homem de corpo um pouco macilento, nitidamente menos esguio que Sch., mas também mais baixo que eu – uma boina de esporte puxada por cima de uma orelha, e ao outro lado aparecia a cabeleira ruiva acima da têmpora; pálpebras igualmente arruivadas, a cingirem os olhos vermelhentos; lívido o rosto, com a ponta do nariz um pouco enviesada. Sobre uma camisa de malha de listas horizontais, trajava uma jaqueta xadrez, de mangas demasiado curtas, das quais saíam as mãos de dedos comuns. A calça indecentemente apertada, e amarelos, puídos sapatos, que já não valia a pena engraxar. Um strizzí! Um rufião! E aquela voz, com a dicção de um ator. (MANN, 2011a, p. 314-315).

Apesar da estranheza sugerida pela descrição do visitante, o demônio descrito por Leverkühn apresenta características humanas, vestes roupas excêntricas. O vermelho dos olhos e cabelos remete a uma longa tradição que associa a cor ao mal: “Red was associated with evil in ancient Egypt as the color of the sterile desert and of blood. Red-haired people were 338 commonly supposed to be evil in the Middle Ages”. (RUSSELL, 1986, p. 69)20. Vermelhas também são as chamas do inferno, destinadas a castigar eternamente os pecadores. Essa caracterização – corpo desproporcional, cabelos ruivos – também por ser vista na personagem Mauricius Muller, na adaptação livre do Fausto de Goethe para o cinema feita por Alexander Sokurov (2011). A carta que descreve o encontro do compositor com o diabo é escrita após um longo e doloroso dia de dores de cabeça e náuseas. A doença, que deixa Adrian propenso a alucinações, permite duas possibilidades de leitura do relato: a figura com quem Adrian conversa é uma entidade sobrenatural (algo “maravilhoso”) ou meramente um sintoma da febre alta que acomete o músico (algo que é apenas “estranho”)? Essa distinção entre o “maravilhoso” e o “estranho” é apresentada por Tzvetan Todorov (1975) em seu livro sobre a literatura fantástica. De forma simplificada, Todorov explica que se o personagem ou o narrador não considera o que vê como produto da loucura estamos no campo do maravilhoso; se ele tem consciênca que o que vê ou vive provêm da loucura ou do sonho e não da realidade, o relato encontra-se no âmbito do estranho. A possibilidade da narrativa estar no domínio do “estranho” surge quando Adrian cogita que o que vê é fruto de sua condição enferma:

19 Mudanças bruscas de temperatura como indicação da presença do diabo também pode ser vista na cena da possessão do clássico filme de terror O Exorcista (1973) e em relatos de padres exorcistas. (https://pt.aleteia.org/2017/07/18/os-assombrosos-dialogos-entre-o-diabo-e-um-exorcista-do-vaticano/). 20 Tradução livre minha: “O vermelho estava associado ao mal no antigo Egito como a cor do deserto estéril e do sangue. Pessoas ruivas geralmente eram consideradas más na Idade Média”.

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É muito mais provável que isso seja o começo de uma doença e eu, na minha perturbação, transfira para fora o calafrio, contra o qual me agasalho, pensando que este tenha sua origem em vossa pessoa, de modo que enxergue a vós unicamente para descobrir nele a fonte do frio provocado pela febre. (MANN, 2011a, p. 316).

É o próprio demônio quem contesta Leverkühn, dizendo que ele sabe que sua saúde naquele momento é a de um jovem e que a sua explicação para a presença do convidado sobrenatual é um subterfúgio. De fato, no início do diálogo, o compositor esforça-se para negar que aquele com quem fala é o diabo. “Tu me vês, logo existo para ti” (MANN, 2011a, p. 341), ironiza o demônio. Para o leitor, o que está em jogo é o pacto de leitura, que pode ler o relato de Adrian tanto na esfera do sobrenatural justificado (“estranho”), quanto na do sobrenatural aceito (“maravilhoso”). No fim do capítulo XXV, quando Adrian acorda de um suposto desmaio e ouve a voz do amigo Schildknapp, a possibilidade do seu diálogo com o demônio não ter passado de um delírio reaparece, colocando novamente a narrativa no terreno da ambiguidade. Quando a confissão autobiográfica dá lugar à reprodução do diálogo entre Adrian e o demônio, entramos em contato com essa voz sobrenatural que dá algumas pistas acerca de sua natureza e de seu ofício. É nesse momento que o Cão-Tinhoso explica que precisa produzir frio para viver no calor do inferno e também que o tempo é a mais valiosa moeda de troca: “O tempo é a melhor coisa que costumamos oferecer, e nosso presente essencial é a ampulheta” (MANN, 2011a, p. 319). O mito de Fausto, no entanto, mostra que para o homem do fim da Idade Moderna (Goethe) e da contemporaneidade (Mann), o tempo desejado não é o da imortalidade, mas da criação. Ao trocar sua alma por conhecimentos sem paralelos, o Fausto recebe uma sabedoria demoníaca que garante outra espécie de imortalidade: a imortalidade através de sua 339 obra. O tempo da criação é estimado em uma sociedade em que os homens tornam-se imortais a partir de sua obra, daquilo que produziram em vida e deixaram para a posteridade. Esse é o tempo oferecido a Adrian em troca de sua alma:

Tempo? Unicamente algum tempo? Não, meu caro, não é só com esse artigo que o Diabo faz negócios. Só ele não nos faria merecer o preço do fim que será nosso. O que importa é a espécie de tempo que se fomece! Um tempo grandioso, um tempo doido, um tempo totalmente endiabrado, com fases de júbilo e de folia, mas também, como é natural, com períodos um tanto miseráveis ou mesmo inteiramente miseráveis. (MANN, 2011a, p. 323).

Adiante, o demônio reafirma o pacto e seus pormenores:

Topas a minha proposta? Poderás gozá-la durante toda uma eternidade de vida humana, cheia de obras. Quando a ampulheta estiver vazia, terei plenos poderes para tratar a minha maneira e a meu bel-prazer a distinta e bem-feita criatura que és, dominando-a, conduzindo-a, governando-a integralmente, com tudo que ela possui, corpo, alma, carne, sangue e bens materiais, por toda a eternidade... (MANN, 2011a, p. 352).

Em todas as variações da lenda de Fausto o que não muda é a moeda de troca oferecida pelo homem: sua alma. No valor atribuído à alma encontra-se uma das heranças cristãs do mito: a alma é valiosa no mundo de Deus e do Diabo, enquanto a razão e o conhecimento tornam um

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homem valioso em nossa sociedade. Até o Holocausto era senso comum aceitar que cada indivíduo é responsável pela danação ou salvação de sua alma, conforme suas escolhas, mas após a exposição da banalidade que fundamenta o mal, o mundo viu que era possível que um homem ordinário, comum, sem aparência demoníaca ou monstruosa, apenas cumprindo ordens, poderia cometer atrocidades de uma crueldade inimaginável. O protótipo desse homem é Adolf Eichmann, reponsável por enviar inúmeras pessoas às câmaras de gás. Em sua análise sobre o julgamento de Eichmann, Hannah Arendt escreve que não só ele, mas 80 milhões de pessoas eximiram-se de culpa através do equívoco, da mentira e da estupidez representadas pelo carrasco nazista:

a prática do auto-engano tinha se tornado tão comum, quase um pré-requisito moral para a sobrevivência, que mesmo agora, dezoito anos depois do colapso do regime nazista, quando a maior parte do conteúdo específico de suas mentiras já foi esquecido, ainda é difícil às vezes não acreditar que a hipocrisia passou a ser parte integrante do caráter nacional alemão (ARENDT, 1999, p. 65).

A crítica à dissimulação dos cidadãos alemães para com as atrocidades do Nazismo também surge nas reflexões do narrador Zeitblom: “[...] esses cidadãos, que, sob a aparência da honestidade, tinham andado ocupados com seus afazeres cotidianos, tentando ignorar tudo, posto que o vento vindo de lá lhes assoprasse nas narinas o fedor de carne humana queimada”. (MANN, 2011a, 675). Nessas passagens, em que o narrador tece comentários sobre os momentos em que vive e viveu, a narrativa ganha um caráter ensaístico, refletindo o posicionamento intelectual e político do próprio escritor, que também vê a presença do mal/do diabo no banal. 340 Figura antropomórfica, o demônio de Doutor Fausto já não remete ao anjo caído, mas certamente mantém sua relação com ele. Na Bíblia Cristã, a figura do diabo aparece em poucas passagens que não descrevem sua aparência. No Velho Testamento, Satã não era oponente de Deus, quando muito um adversário, como está no Livro de Jó. É só a partir do Novo Testamento que o diabo começa a ganhar os contornos hoje tão conhecidos, tornando-se uma força do mal. Após chamar seu interlocutor de Sammael, o diabo da ópera de Weber, também conhecido como o “Anjo do Veneno”, Leverkühn ironiza a distância entre a aparência do demônio com quem dialoga e a de um anjo:

Já se vê pela vossa aparência! Exatamente como um anjo! Conheceis o vosso aspeto? “Ordinário” não basta para qualificá-lo! É o da mais desbragada escória, um torpe libertino, um reles rufião! Eis o disfarce que achastes adequado para visitar-me, e não viestes como um anjo. (MANN, 2011a, p. 320-321).

Mesmo sem crifres ou pés de bode, a figura do rufião como encarnação do demônio relaciona-se com a ideia de luxúria, de prazer carnal, de algo mundano, simbolizando tudo o que Adrian – em sua fria vaidade erudita – mais abomina. A aparência do demônio surge como uma provocação, uma ironia dedicada a um intelectual vaidoso, que trava contato com o mundo a sua volta sempre com certo distanciamento.

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Que aparência tenho é puro acaso, ou melhor, as circunstâncias determinam-na, criam-na, sem que eu me preocupe com ela. A adaptação, o mimetismo, tu estás a par desses fenômenos — são mascaradas, mistificações da Mãe Natureza, que sempre se expressa com uma pontinha de ironia. (MANN, 2011, p. 321).

Provocando Adrian, o demônio diz que sua aparência é adequada, pois lembra a precariedade do lugar em que Adrian procura a prostituta apelidada de Esmeralda, de quem contrai sífilis21. A partir desse ato impulsivo e destruidor, Adrian se aproxima das forças do mal: “Vimos que teu caso merecia todo o nosso interesse, que havia nele possibilidades extremamente favoráveis” (MANN, 2011a, p. 321). A intelectualidade de Leverkühn, combinada com sua vaidade – que o mantém afastado de assuntos mundanos – faz dele candidato ideal para trocar alguns anos de sua vida pela promessa de momentos de genilidade. A personalidade de Leverkühn, altiva, é moldada para aludir à mentalidade alemã, sobretudo ao orgulho nacionalista que via apenas a possibilidade de uma Europa alemã, mas não a de uma Alemanha europeia. Adiante, Leverkühn nota que a figura com quem dialoga se transfoma, passando a ter vestimentas e fisionomia que remetem a um tipo intelectual:

Se eu não me enganava, seu aspeto tomara-se diferente: quem estava sentado ali já não se parecia com um rufião ou um marginal, e sim, palavra de honra, com qualquer coisa melhor. Usava colarinho branco, gravata, e no nariz adunco, um par de óculos, com aros de chifre, atrás dos quais brilhavam olhos úmidos, sombrios, um tanto avermelhados. A fisionomia aparentava uma mescla de dureza e suavidade: o nariz duro, os lábios duros, porém suave o queixo, no qual havia uma covinha, e a esta correspondia outra na face; lívida e arqueada a testa, e acima dela os cabelos, com entradas bem definidas, porém densos, negros, lanosos aos lados. Em suma, um 341 intelectual, que escreve para os jornais comuns artigos sobre Arte e Música, teórico e crítico, que, ele mesmo, faz tentativas no campo da composição musical, na medida das suas capacidades. (MANN, 2011a, p. 334-335).

A partir desse momento, o demônio tece inúmeras observações sobre a arte da composição e o papel do compositor contemporêneo frente a uma imensa tradição que faz com que toda nova criação redunde em “soluções de rebus técnicos” (MANN, 2011a, p. 337). A longa explanação do demônio leva Adrian a concluir: “quereis demonstra-me que, para meus designios e minha obra, ninguém poderá ser útil, a não ser o Diabo, e que somenete a ele devo recorrer” (MANN, 2011a, p. 338). Expondo-se ao contágio da sífilis, Leverkühn não sela apenas seu pacto com o diabo, mas também inicia uma profícua vida artística. É o próprio demônio quem explica a Adrian que o encontro entre ele e a prostituta sifilítica não se deu por obra do acaso:

Por isso arranjamos de propósito que te atirastes aos nossos braços, quer dizer, aos de minha pequena, a Esmeralda, e lá apanhaste a coisa, a iluminação, o aphrodisiacum do cérebro, que teu corpo, tua alma, teu intelecto desesperadamente desejavam conseguir. (MANN, 2011a, p. 349).

21 Em Morte em Veneza, o trem que leva Aschenbach para Veneza também tem o nome “Esmeralda” e simboliza a esperança do protagonista dessa novela em encontrar inspiração na cidade italiana, de resgatar sua juventude. No fim, a esperança-Esmeralda transforma-se em morte, tanto para Aschenbach como para Leverkühn, mostrando como Mann inverte a simbologia relacionada a cor é à pedra preciosa.

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A associação entre a doença e a arte é tema recorrente na obra de Thomas Mann, que também o explorou em Morte em Veneza e A Montanha Mágica, nos quais a doença assume tanto a forma orgânica como a espiritual. Falando sobre o percurso da protagonista Hans Castorp, de A Montanha Mágica, Mann chega a reflexões que podem se estender a outros personagens, como o próprio Leverkühn.

[...] O que ele (Hans Castorp) aprende a compreender é que toda saúde mais elevada deve ter passado pelas profundas experiências da doença e da morte, assim como o conhecimento do pecado é uma condição prévia da salvação. “Para a vida”, disse Hans Castorp uma vez para Madame Chauchat, “para a vida há dois caminhos: um é o usual, direto e ajuizado. O outro é mau, ele passa pela morte e este é o caminho genial”. Essa concepção de doença e morte como uma passagem necessária para o saber, para a saúde e para a vida torna a “Montanha Mágica” um romance de iniciação (initiation story). (MANN apud MISKOLCI, 1996, p. 139-140).

Em Doutor Fausto, é o próprio demônio quem faz a associação entre doença e genialidade:

[...] uma doença criativa, propiciadora de gênio, uma doença capaz de cavalgar por cima de quaisquer obstáculos, saltando em audaciosa ebriedade de rochedo em rochedo, agrada mais a vida do que a saúde que se arrasta a pé. Nunca ouvi besteira maior do que a que afirma que do mórbido só pode provir o mórbido. (MANN, 2011a, p. 341).

Entre todas as doenças que assolaram a Europa do século XIX e que eram relacionadas ao imaginário do artista maldito, como a tuberculose22, Leverkühn contrai a sífilis (e de forma 342 deliberada), colocando em evidência o livre-arbítrio e a ideia de que todo pacto – seja com uma doença ou com ideais políticos – é firmado através de uma escolha individual. Susan Sontag explica que, ao contrário da tuberculose, “o tipo da personalidade sifilítica era o de alguém que portava a doença (Oswald, em Os Fantasmas, de Ibsen; Adrian Leverkühn, em Doutor Fausto), e não o de alguém que tivesse a probabilidade de adiquirí-la” (SONTAG, 1984, p. 26). A sífilis, como doença, também está relacionada ao sexo fora do casamento, à prostituição, o que pode implicar em um julgamento moral do portador da doença, mas não em um julgamento psicológico. Analisando a relação entre vida, morte, doença e trabalho em A Montanha Mágica, Isabel Lustosa vê na abordagem desses temas a base da obra de Mann: “a propensão para o abismo, à beira do qual se debruçam todos os atormentados personagens de sua galeria, divididos entre o puritano mundo burguês germânico e a sua essência artística e/ou sensual” (LUSTOSA, 2006, p. 154). Adrian Leverkühn, sem dificuldades, integra o rol das personagens de Mann que estão divididas entre o mundo burguês/puritano (sua formação familiar) e o mundo artístico/mundano (o qual passa a conhecer a partir do contato com Esmeralda). Em Doutor Fausto a relação entre o intelecto e a doença surge ainda no início do romance, através das terríveis dores de cabeça que isolam o jovem Adrian Leverkühn cada vez mais do mundo. A doença é abordada por Mann através da noção pós-romântica que relaciona genialidade e loucura. No caso de Leverkühn, o artista sifílico, a doença tem o efeito de

22 “Embora muitos casos de tuberculose fossem atribuídos a pobreza e as condições de insalubridade, acreditava- se também que uma certa disposição interior era necessária para se contrair a doença” (SONTAG, 1984, p. 26).

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intoxicação, estímulo e inspiração. É depois de contraí-la que ele cria obras maravilhosas, com o diabo guiando sua mão. No fim, o diabo reivindica sua parte e o artista fica paralisado. O demônio, em seu discurso a Leverkühn, também associa a doença e a loucura à criação, explicando que o artista deve sacrificar a si em favor de sua obra: “Toda uma horda, toda uma geração de rapazes receptivos, sadios como mais ninguém, precipitam-se sobre a obra do gênio mórbido, do homem que foi genializado pela doença.” (MANN, 2011a, p. 342). Em sua útima transmutação, o diabo assume uma nova forma, que lembra o professor de teologia de Adrian na juventude, Eberhard Schleppfuss, descrito por Zeitblom, ainda no capítulo XIIII, como um um homem não muito alto, de corpo minguado, [...] envolto numa capa preta, que lhe substituía o sobretudo e tinha no pescoço, como fecho, uma pequena corrente de metal. Com isso, combinava ele uma espécie de chapéu de aba larga, enrolada ao lado, e cuja forma lembrava o dos jesuítas [...] Na minha opinião, Schleppfuss tinha mesmo um pé coxo. (MANN, 2011a, p. 139).

O professor que encarnava essa figura sombria e algo teatral acreditava que o próprio Mal era consequência necessária e inevitável à existência de Deus. Adrian reconhece, não sem achar graça, a semelhança física entre o professor e a figura que se transmuta à sua frente (MANN, 2011a, p. 343). Nesse momento, Adrian pede que o demônio diga sobre o que espera após o fim: “Informai-me! Como é que se vive na casa do Cão-tinhoso? Que destino terá na espelunca aquele que se congraçou convosco?” (MANN, 2011a, p. 344). Para essas perguntas não há respostas, pois, como explica o demônio, “o essencial não se ajusta inteiramente às palavras”: “A volúpia secreta, a segurança do Inferno, consiste justamente no fato de ele ser indefinível e conservar-se impenetrável às tentativas da língua” (MANN, 2011a, p. 344). 343 No intuito de fazer com que o inferno permaneça insondável, o demônio fala a Leverkühn sobre a incapacidade da razão em entender o mal supremo, ao mesmo tempo em que afirma que “o Inferno não poderá oferecer-te nenhuma novidade essencial” (MANN, 2011a, p. 345). Na dificuldade do diabo de Doutor Fausto em descrever o inferno através de palavras reverbera o esforço com que os pensadores do século XX tentarão explicar, por via da razão, as atrocidades da guerra e, principalmente, o holocausto. O demônio explica para Adrian que arrepender-se do pacto buscando a salvação não é uma possibilidade, como acontece nas lendas predecessoras do mito, em que a Virgem Maria intercede por Theophilus:

Quanto mais tempo passar, menos vontade e capacidade terás para te submeteres a contritio, porquanto a existência extravagante que levarás é um grande privilégio, que não se abandona espontaneamente, a fim de retomar a mediocridade salutar. No fundo, o Inferno será apenas uma continuação da tua vida excêntrica (MANN, 2011a, p. 347).

Em seu discurso, o demônio aproxima o inferno da vida que Adrian já leva na terra. Entre as poucas opções que restam aos habitantes da “espelunca do diabo” está a escolha “entre o mais extremo frio e um calor tão intenso que até poderia derreter granito” (MANN, 2011a, p. 347), imagem que está em concordância tanto com a descrição do inferno por Dante em A Divina Comédia, como por Milton em Paraíso Perdido, em que há espaço para os dois extremos, o frio e o calor. Enquanto refuta a possibilidade de contrição, o demônio novamente se metamorfoseia no rufião com boina esporte e olhos avermelhados. Nesse momento surgem detalhes de como

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se deu o pacto entre o compositor e o diabo, sem o uso de símbolos antigos ligados à evocação de forças ocultas23:

Entre nós dois não há necessidade de nenhuma encruzilhada nos bosques do Spessart nem tampouco de pentagramas. Temos um pacto e concluímos um negócio. Sigilaste- os com teu sangue; comprometeste-te conosco; foi-te administrado o nosso batismo. Esta minha visita tem por objetivo unicamente a ratificação. (MANN, 2011a, 349- 350).

Ao observarmos a simplicidade com que se deu o pacto, confirma-se que não só a figura do diabo ficou mais humana, como também seus rituais tornaram-se cada vez mais ordinários, sem a atmosfera, por exemplo, vista nas cenas iniciais do Quadro XIV do Fausto de Goethe, em que o protagonista se encontra com Mefistófoles em uma floresta, repleta de cavernas, cascatas naturais, luar encoberto e uma tempestade que produz o raio pelo qual o demônio desce à terra. Invariável é a necessidade de o pacto ser realizado através do sangue. Mesmo sendo advertido de que com o pacto o amor lhe fica proibido, Adrian acaba desenvolvendo grande afeição pelo sobrinho Nepomuk e, como consequência dessa transgressão, a criança morre. O demônio justifica essa cláusula explicando que o artista deve ser frio: “O amor te fica proibido, porque esquenta. Tua vida deve ser frígida, e, portanto, não tens o direito de amar pessoa alguma” (MANN, 2011a, p. 351). Mesmo antes de posta essa cláusula, a narrativa de Doutor Fausto põe em evidência a frieza de Adrian para com as pessoas, o mundo e o próprio amigo Serenus Zeitblom: “Adrian era homem da “aversão”, do desapego, da reserva, do afastamento. Expansividades físicas pareciam totalmente alheias à sua índole. Os próprios apertos de mãos eram caros e realizavam- se com certa rapidez”. (MANN, 2011a, p. 310). 344 Refletindo a alma da Alemanha destroçada com o fim da Primeira Guerra Mundial, Adrian se sente “oprimido pelo mundo e não integrado a ele” (MANN, 2011a, p. 252). Há uma implícita ligação entre o distanciamento intelectual que Adrian tem para com o mundo a sua volta e sua decisão de selar o pacto com o demônio. Para além das fontes literárias, o mito de Fausto também emergiu na vida de Thomas Mann através de uma história pessoal. Seu filho mais velho Klaus Mann, publicara em 1936 a novela . A personagem Mephisto, de Klaus Mann, foi baseada no ator alemão Gustav Gründgens, que foi casado com a sua irmã Erika Mann, também integrante do grupo de teatro Pfeffermühle. Ironicamente, após Adolf Hitler assumir o controle da Alemanha em 1933, Gründgens converte-se em um emblema cultural do novo regime ao desempenhar o papel de Mefistófoles no Fausto de Goethe 24 . A novela, uma parábola do artista oportunista, foi publicada na Alemanha apenas quarenta e cinco anos depois de sua primeira publicação, na Holanda. Na biografia que escreveu sobre Klaus, que morreu de overdose em 1949, com apenas 45 anos, Frederic Spotts (2016) sugere que a atitude friamente julgadora de Thomas (que, especula-se, lutava contra sua homossexualidade) em relação ao seu filho mais velho foi a causa de muitos dos problemas emocionais de Klaus. Deixando a Alemanha em 1933, Klaus juntou-se à família no exílio na Suíça e trabalhou para o exército americano durante a Segunda Guerra Mundial. Trágica, a biografia de Klaus

23 A exemplo da representação de um culto de invocação, ver a iluminura da letra M, no manuscrito de Plínio, o Velho, do século XV, em MONTESANO, 2018, s.p. 24 Há uma primorosa adaptação cinematográfica de Mephisto, de 1981, dirigida por István Szabó e estrelada por Klaus Maria Brandauer.

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mostra “a história comovente de um jovem intelectual profundamente corajoso que “lived and breathed politics, sacrificing everything for his beliefs” (SCHAFFNER, 2016, s.p.) 25 . Ao contrário do que narra Zeitblom no fim do capítulo II de Doutor Fausto: “Ambos os meus filhos servem hoje – um deles num cargo civil e o outro nas forças amadas – ao seu Führer” (MANN, 2011a, p. 19), os filhos de Mann, sobretudo Klaus e Erika, não tiveram medo de se posicionar contra o Führer. Após o exílio, não foram poucas as vezes que Thomas Mann declarou sua aversão ao regime nazista: Acusam-me de ter insultado a Alemanha, ao ter-me declarado contra ela? Eles têm a incrível ousadia de querer se confundir com a Alemanha. Talvez não esteja longe o dia em que o povo alemão vá preferir qualquer coisa menos ser confundido com eles (GESSAT, 2018, s.p.).

Revisitando o romance de Mann, sentimos a força do posicionamento político e do humanismo que emana do narrador Serenus Zeitblom. Pela voz de Zeitblom, Mann faz um lembrete do declínio moral no qual a Alemanha mergulhou durante a 2º Guerra Mundial:

Arrombados foram os espessos muros do calabouço de torturas, no qual um governo ignóbil, desde sempre devotado ao nada, converteu a Alemanha, e nossa vergonha está exposta abertamente ao mundo, aos olhos das comissões estrangeiras, as quais se exibem em toda a parte essas inverossímeis visões e que relatam em seus países que os espetáculos avistados ultrapassam em nojo tudo quanto a imaginação humana possa conceber. Repito: nossa vergonha. Pois será mera hipocondria confessar que tudo quanto é alemão, inclusive o espírito alemão, o pensamento alemão, a fala alemã foram atingidos da mesma forma por esse desnudamento humilhante e deixaram por completo de merecer confiança? Será compunção mórbida perguntar como, no futuro, 345 “a Alemanha”, sob qualquer aspeto, poderá atrever-se a abrir a boca em assuntos concernentes a Humanidade? (MANN, 2011a, p. 674-675).

As atrocidades cometidas pelo regime nazista desafiaram a própria ideia de razão, fazendo Hannah Arendt questionar se o ato de pensar, em sua natureza intrínseca, leva à possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?26. Em Doutor Fausto, a degradação fisiológica, mental e espiritual do protagonista de Mann torna-se metáfora para a corrupção moral da Alemanha e o diabo – que pode atender por todos os nomes – é representado quase como um homem, sem chifres ou pés de bode. Ora ele aparece como uma figura dândi, cheio de gracejos e artimanhas, ora como um intelectual, com seus óculos e vestimentas sóbrias. Em leituras recentes, o mito de Fausto tem sido tratado como uma metáfora para pactos políticos profanos. “Pode até mesmo lançar luz sobre o nosso próprio momento populista, desde o Brexit até a eleição de Donald Trump”, escreveu Benjamin Ramm em artigo publicado na BBC Culture em 2017. A analogia entre céu e inferno na política, utilizada pela anarquista Emma Goldman: “Politicians promise you heaven before an election and give you hell after”27, não deixa dúvidas quanto as razões para a atualidade do mito de Fausto em tempos em que nações em todo o mundo voltaram a acreditar que soluções extremas são as únicas possíveis. Sem entrar na questão do demérito do próprio capitalismo e da incapacidade do sistema neoliberal como o conhecemos de se auto-regulamentar sem provocar desigualdades

25 Tradução livre minha: “viveu e respirou política, sacrificando tudo por suas crenças”. 26 Ver SIQUEIRA, 2011. 27 Tradução livre minha: “Os políticos te prometem o céu antes de uma eleição e te dão um inferno depois”.

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socioeconômicas catastróficas, acreditamos que o mito perdurará ainda por um bom tempo no imaginário popular e na arte como metáfora condizente com tempos de austeridade. Pois, como já vislumbrava Kierkegaard, cada era histórica notável terá o seu próprio Fausto28.

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Recebido em 29/01/2019 Aprovado em 12/05/2019 Publicado em 22/09/2019

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