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MUNDOMINAS: ressignificações do espaço mineiro na poética de Murilo Mendes

Lucas Mendes Ferreira

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Lucas Mendes Ferreira

MUNDOMINAS: ressiginificações do espaço mineiro na poética de Murilo Mendes

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Letras da Universidade Federal de , como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras Área de concentração: Estudos Literários Orientadora: Profª. Drª. Terezinha Maria Scher Pereira

Juiz de Fora Faculdade de Letras da UFJF 2011

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Ferreira, Lucas Mendes.

Mundominas : ressignificações do espaço mineiro na poética de Murilo Mendes/ Lucas Mendes Ferreira. – 2011. 121 f. : il.

Dissertação (Mestrado em Estudos Literários)-Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2011.

1. Estudos Literários. 2. Literatura e outras manifestações Culturais. 3. Literatura e Crítica Literária. I. Título.

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AGRADECIMENTOS

À Terezinha Maria Scher Pereira, minha orientadora sempre, pela amizade, compreensão e sugestões sempre instigantes e pontuais.

À minha mãe pelo amor e pelo amparo incondicional.

Às professoras Maria Luiza Scher e Marília Rothier Cardoso, pelo carinho e apoio durante o curso de mestrado.

À professora Helena Maria Rodrigues Gonçalves por me ensinar a ler a “palavra mundo”.

Ao professor Carlos Cortez Romero pela amizade e apoio dado desde os primeiros anos de graduação.

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RESUMO

A dissertação busca compreender a marca da mineiridade nas apropriações do Barroco mineiro, em Contemplação de Ouro Preto, e na rememoração de Juiz de Fora, em A Idade do Serrote, de Murilo Mendes. Lidas de forma relacional neste trabalho, apesar de as duas obras diferenciarem-se entre si na forma e no tratamento, ambas representam o mesmo gesto na revisitação a Minas: trata-se de uma perspectiva cosmopolita, do poeta maduro, a partir dos anos 1950. A análise de Retratos-relâmpago, que se insere na poética memorilística muriliana e realiza um projeto que está em gérmen nos outros dois livros, pauta-se pelas marcas culturais contidas nas citações e fragmentos de outros artistas e intelectuais, de forma que muitos destes são contemplados posteriormente com os “retratos-relâmpago”. Além disso, a análise recorre a textos dispersos da obra muriliana, que corroboram a ideia de revisitação do espaço da história da nação por um viés pessoal. Nesse sentido, a leitura da Minas drummondiana enseja uma crítica da mineiridade que serve como parâmetro para leitura de como tema nas obras de Murilo. Como remate, procedeu-se a um estudo que procura apontar aspectos análogos entre Murilo e outros artistas e críticos que conjugam o eixo Minas-Europa. Para isso, sem querer esgotá-los, eis os principais temas abordados: Barroco mineiro, Antropofagia, questão do arquivo, artes plásticas, conceito de contemplação e amizade . Logo, o percurso entre Ouro Preto e Juiz de Fora evidencia a associação entre as figuras populares afetivas da infância e do imaginário mineiro com as afinidades intelectuais que marcaram o trajeto do poeta maduro, que se fixou em Roma, a partir dos anos 1950. Além de investigar a relação de afetação entre o europeu e o brasileiro, este estudo visa à articulação entre espaços culturais diferentes na legitimação da ideia de “mundominas” - termo proposto por Drummond no poema “Escritório”, do livro Boitempo.

PALAVRAS-CHAVE: Murilo Mendes, 1901-1975; Mundominas; Vanguarda; Barroco Mineiro; Arquivos-espectro

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ABSTRACT

The dissertation seeks to understand the inscription of “mineiridade,” or Minas Gerais identity, in the appropriations of the “mineiro” barroque in Contemplação de Ouro Preto, and recollections of Juiz de Fora, in Idade do Serrote, by Murilo Mendes. Read in relation to each other in this study, although the two works are distinct in form and treatment, both represent the same gesture in revisiting Minas: it is a cosmopolitan perspective from the poet's mature years since the 50’s. An analysis of Retratos-relâmpago, which fits into Murilo’s poetic and realizes a project incipient in the other two books, is guided by cultural marks contained in the quotations and fragments of other artists and intellectuals, in a way that many of these people are treated later with "flash pictures." In addition, the analysis draws on the general work of Murilo, which corroborate the idea of revisiting the history of the nation's space for a personal expression. In this sense, the reading of Minas in the works of Drummond entails a critique of the region that serves as a parameter for reading the theme of Minas Gerais in the works of Murilo. It was also proceeded by a study that seeks to pinpoint aspects of Murillo and other similar artists and critics who combine Minas-. The main topics of the dissertation are: barroque, Antropofagia, the issue of archive, fine arts, the concept of contemplation and friendship. Therefore, the route between Ouro Preto and Juiz de Fora shows the association between the popular figures of childhood affections and imaginary with intellectual affinities that marked the path of the mature poet, who settled in Rome, since the 50’s. In addition to investigating the relationship of affection between the European and Brazilian, this study aims to link different cultural spaces in legitimizing the idea of "mundominas" - a term proposed by Drummond in the poem "Escritório",in the book Boitempo.

KEYWORDS: Murilo Mendes, 1901-1975; Mundominas; Vanguard; Barroque; Spectre- archives

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...... 08

2 EIXOS INESPERADOS: ARQUIVOS DA MEMÓRIA E DESLOCAMENTOS DE MURILO MENDES ...... 14 2.1 JUIZ DE FORA – OURO PRETO ...... 14 2.1.1 A Rua Halfeld e o footing do proletário ...... 21 2.1.1.1 Murilo no Rio: A vanguarda e a negação do passado pelo Modernismo ...... 27 2.2 CAPELA DO PADRE FARIA – SÃO FRANCISCO DE ASSIS ...... 33 2.1.1 Arquivos-espectros em Contemplação de Ouro Preto e Idade do Serrote ...... 38 2.2.1.1 Morte e aprendizagem: o agônico em Murilo Mendes ...... 44

3 MUNDOMINAS ...... 51 3.1 MURILO E O ESTADO ...... 54 3.1.1 Drummond – Nava – Murilo ...... 59 3.1.1.1 A viagem de 24: Murilo e a Antropofagia ...... 63 3.2 UMA POÉTICA DA AMIZADE: MINAS-ROMA ...... 69 3.2.1 Professor Aguiar-Spinoza ...... 74

4 O SIGNO PLÁSTICO ...... 77 4.1 DA GÊNESE PESSOAL À LINGUAGEM ...... 77 4.1.1 Mapas ...... 84 4.2 O VISÍVEL...... 87 4.3 O TÁCTIL ...... 94 4.4 O AUDÍVEL ...... 95

5 CONCLUSÃO ...... 98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 102

ANEXO A – ITINERÁRIO POÉTICO DE MURILO MENDES ...... 109 ANEXO B – ENTREVISTA COM SILVIANO SANTIAGO SOBRE A RELAÇÃO ALEXANDRE EULÁLIO E MURILO MENDES ...... 112 ANEXO C – ARTIGO “CIDADES BRASILEIRAS” DE TARSILA AMARAL ...... 118 ANEXO D – ARTIGO “QUE RESTARÁ DEPOIS?” DE TARSILA AMARAL ...... 119 ANEXO E - PROPAGANDA DO GRANDE HOTEL DE OURO PRETO ...... 120 ANEXO F- REPORTAGEM ANTI-PEDAGÓGICA DE OURO PRETO ...... 121

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1 INTRODUÇÃO

“As harpas da manhã vibram suaves e róseas. O poeta abre seu arquivo – o mundo - ” Murilo Mendes

O presente trabalho pressupõe que, embora as obras A Idade do Serrote (1968) e Contemplação de Ouro Preto (1954), de Murilo Mendes, sejam diferentes entre si na forma e no tratamento, representam o mesmo gesto – a revisitação a Minas a partir de uma perspectiva cosmopolita: junção da história pessoal do poeta com a consequente ressignificação da história da nação, cujo espaço é revisitado através do conceito “mundominas” (DRUMMOND, 1988, p. 479). Contemplação e A Idade do Serrote compõem, com Retratos-relâmpago (1973), o corpus fixo da dissertação, na medida em que este livro realiza o projeto referencial das inúmeras citações de intelectuais e figuras históricas que rondam as duas obras sobre Minas. Na associação do espaço nacional e do europeu, entre as figuras afetivas da infância e os intelectuais que marcaram a formação e o convívio de Murilo, configura-se um projeto que estava em gérmen, consolidando uma poética da aprendizagem através dos retratos escritos em Roma. Dessa forma, interessa, na análise desse livro, não uma interpretação dos “retratos- relâmpago”, mas antes a análise da complementaridade mantida com Idade do Serrote e a poética memorialística em geral. Apesar de, tecnicamente, terem ritmos diferentes, este ponto é fundamental para ensejar as obras aqui analisadas quanto à apropriação da herança: em Contemplação estão ausentes tanto a economia fragmentária de Idade do Serrote e Retratos-relâmpago quanto o tom de humor dos mesmos. Essa diferença pode prever uma contaminação da nacionalidade barroca. No entanto, a evocação dos fantasmas de Ouro Preto conteria antes uma contribuição rebelde, para construir um futuro menos autoritário, partindo de uma noção de preservação como resistência enigmática, estimuladora da intelectualidade, elemento de união entre ações cotidianas e gestos excepcionais. Nesse sentido, esse trabalho se divide em três eixos no desenvolvimento da hipótese: o destaque das imagens regionais, com sua força singularizadora do já conhecido cosmopolitismo muriliano; o enfrentamento das circustâncias políticas de que o artista se serviu justamente para confrontar-se com todas as formas de autoritarismo e a construção de uma rede conceitual para dar conta da operação dupla em que poeta e poesia se inventam numa grafia cuja elaborada materialidade constitui um composto de sensações correspondentes ao grau máximo da eficácia estética.

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Tendo como principais objetos de estudo as referências a Minas na poética de Murilo Mendes, subjaz a esta pesquisa, no diálogo da literatura com a história, uma leitura da representação das cidades de Ouro Preto e Juiz de Fora bem como a política na representação simbólica e na ressignificação do patrimônio histórico e do cotidiano da cidade mineira. Os dezoito poemas que compõem Contemplação de Ouro Preto são lidos quase sempre em comparação com alguns dos textos de Idade do Serrote, entre eles “Etelvina”, “ Belmiro Braga”, “Cláudia”, “Tio Lucas”, “A rua Halfeld” , “O professor Aguiar” e “ O Olho Precoce”. Ao observarmos a maneira particular como Murilo insere sua obra ao lado de outras que compõem o alto Modernismo brasileiro, a representação do espaço mineiro traz novas nuances para questões complexas, como a Antropofagia e a identidade nacional, num redimensionamento da importância dada pela crítica à obra muriliana sobre essas problemáticas. O próprio conceito norteador do trabalho, mundominas, termo do poema “Escritório”, no Drummond de Boitempo, liga-se a questões da crítica na obra literária e oferece apontamentos para uma possível reflexão sobre a permanência e a superação do discurso modernista na contemporaneidade. No poema “Escritório”, de Drummond, no espaço privado, na sala do escritório particular do avô, revela-se a percepção direta do mundominas. Entre o “dicionário livro único/para o trato da vida” e “a ciência do sangue”, o escritório conteria em si a “fazenda abstrata” (DRUMMOND, 1988, p. 479). A base desse discurso é o procedimento de reinvenção da tradição, cujos temas que atravessam o cosmo na obra muriliana, como a gênese pessoal, o surrealismo, o Barroco, as relações afetivas, o estar no mundo, o caos e a morte, surgem como principais apontamentos no corpus da pesquisa. Nesse sentido, iniciada oficialmente a partir de A Idade do Serrote – autobiografia de formação –, a poética memorialística de Murilo merece atenção especial , já que Contemplação de Ouro Preto e Retratos-relâmpago poderiam ser também analisados como livros de memórias. As comparações entre Murilo e Drummond ensejam não só o fato de ambos publicarem, quase ao mesmo tempo, as memórias da infância em Minas, Boitempo e Idade do Serrote, em 1968, mas também outras relações, como a contemplação de Ouro Preto: provavelmente, o título do livro de Murilo Mendes sobre Ouro Preto foi inspirado na crônica “Contemplação de Ouro Preto”, de Drummond, publicada em 1952, no livro Passeios na Ilha. A mineiridade tem apelo tão forte na poesia de Drummond que, se Murilo constrói em sua poética uma crítica de cultura, Drummond constrói uma crítica da mineiridade. Dessa forma, opondo-se às incursões de Murilo no espaço mineiro ou complementando-as, são

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analisados os seguintes textos de Drummond sobre Minas: “São Francisco de Assis”, do livro Poemas (1930); “Contemplação de Ouro Preto”, de Passeios na Ilha (1952); “Viagem de Sabará”, de Confissões de Minas (1944); “Meu Irmão Pensado em Roma”, “Halley” e “Escritório”, da série Boitempo & A Falta que ama (1968-1979). A partir da questão da memória individual e da cidade, pode-se fazer um mapeamento do Modernismo mineiro em direção ao mundo, seguindo uma nova significação contida no termo chave do trabalho – o conceito mundominas. Sabe-se da importância do Modernismo mineiro e de como existe um museu de papel bastante significativo para ser explorado: a revista de vanguarda Verde, criada em Cataguases; a produção dos poetas da geração de 20, em Belo Horizonte, entre os quais Drummond e Emílio Moura, além do convívio entre intelectuais, como Murilo Mendes, Murilo Rubião e Henriqueta Lisboa, em Belo Horizonte durante os anos 1940. Muitos desses poetas mudaram-se para o , lugar das experiências de deslocamento de Murilo e da ressignificação de Minas Gerais. Na maneira sugestiva como esse espaço é delineado por Murilo nas teias dos arquivos da história e das artes, ao descrever os cenários de Ouro Preto e Juiz de Fora, sempre pela perspectiva do Outro, pode-se repensar o modernismo mineiro, considerando mundominas como um conceito alegórico. A articulação entre a crítica e a teoria literária com a crítica cultural, biográfica e interdisciplinar é fundamental tanto na recriação do espaço mineiro, a partir do tratamento memorialístico dado à recordação de viagem a Ouro Preto e à própria revisitação do mundo infantil em Juiz de Fora, quanto na associação entre a Europa e Minas. A abordagem aqui proposta parte das pesquisas desenvolvidas no projeto “Prática Política e Poética – Um Estudo da Amizade em Murilo Mendes como Estratégia de Sobrevivência entre Mundos Diversos”, coordenado pela Prof. Dra. Terezinha Maria Scher Pereira. A pesquisa procurou investigar a ambiência intelectual de Murilo Mendes na Europa, avaliando as referências a espaços regionais e a relação com outros artistas europeus e brasileiros das mais diversas áreas. Assim, no capítulo “Eixos Inesperados: Arquivos da memória e deslocamentos de Murilo Mendes”, procura-se fazer uma releitura da relação Ouro Preto e Juiz de Fora, aproximando as duas cidades por um viés historiográfico e crítico da mineiridade. A rua Halfeld, em Juiz de Fora, é revisitada a partir de uma abordagem histórico-literária, em que Murilo dá voz ao Outro. Alguns textos sobre a história de Juiz de Fora são base para análise da releitura da principal rua da cidade. As “Chronicas Mundanas”, escritas por Murilo entre 1920 e 1921, na sua cidade natal, são o eixo principal da comparação.

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Pode-se entender que Murilo apropria-se de uma certa tendência do romance histórico e, a partir de uma revisitação dialética, promove um jogo de forças e uma luta de classes na rua Halfeld rememorada em Idade do Serrote. Em uma tática de afirmação do Modernismo, a relação entre Juiz de Fora e o mundo é lida através do olhar do poeta maduro, que nega o professor de poesia e poeta Belmiro Braga. A análise do retrato de Murilo Mendes, pintado por Guignard, em 1931, delineia o início dos deslocamentos no itinerário do jovem poeta mineiro, já vivendo no Rio de Janeiro. Dentro desse capítulo, uma leitura do poema “São Francisco de Assis”, de Drummond, e a “Capela do Padre Faria”, de Murilo, ratificam as perspectivas de representação nos dois poetas e a questão do trauma histórico e do embate entre vencedores e vencidos. Através das leituras de Mal de Arquivo e Espectros de Marx, uma análise de Derrida evidencia a ideia de arquivos-espectro, corroborada pelo conceito de história, em Walter Benjamin. Associada à dimensão política, a noção estética torna essencial a problemática da herança, na medida em que ela indica o viés estratégico da desconstrução pela motivação e compromisso com o Outro, vivo, morto ou ainda porvir. Dessa forma, a ideia de “espectro do Barroco” permeia as leituras dos poemas e textos, buscando legitimar o conceito de contemplação do irrealizado proposta por Murilo. A teoria de uma poética da aprendizagem entre a realidade e o irrealizado dá-se através do enfrentamento do espectro da morte em Ouro Preto e pelo personagem do Tio Lucas, de Idade do Serrote. Nesse sentido, se, por um lado, a morte é lida como alegoria da aprendizagem, por outro lado, os poemas sobre Ouro Preto são lidos como alegoria do irrealizável, contrapondo- se aos símbolos de uma Ouro Preto historicista, no sentido tradicional, como observamos na metáfora das flores, em Contemplação de Ouro Preto e no Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. O espírito e a forma do Barroco são discutidos pela associação entre alegoria e símbolo nas teses benjaminianas. Constituem o índice de leitura do capítulo o mito, a ruína, a contemplação e a herança espectral do Barroco e da arquitetura barroca mineira como valor. Buscando uma analogia entre a poética muriliana e a viagem dos antropofágicos a Ouro Preto, em 1924, como marco inicial do projeto modernista de se escrever sobre esta cidade, o terceiro capítulo parte da análise do principal termo da dissertação: “mundominas”. Patrocinadas pelo governo, as viagens dos intelectuais tinham no ministro da Educação e Cultura, Gustavo Capanema, um articulador das ideias dos artistas e intelectuais, cujas obras colaboravam para o processo de legitimação do patrimônio histórico nacional. O poema “Luminárias de Ouro Preto”, de Murilo, dedicado ao então ministro Capanema, é

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representativo dessa política literária. O objetivo dessa análise política é perceber a estratégia de deslocamento muriliano, já que, a partir da publicação de Contemplação de Ouro Preto, financiado pelo governo democrático de Getúlio Vargas (1951-1954), Murilo iniciará suas incursões europeias, até firmar residência definitiva em Roma. Percebem-se os impasses do escritor modernista brasileiro, cuja obra só podia circular pela via privada das amizades ou pela via pública dos projetos estatais. Na análise desses deslocamentos, outras viagens a Ouro Preto afirmam o imaginário da cidade como símbolo tanto do patrimônio quanto de uma identidade nacional. Além da relação com Drummond, faz-se uma leitura crítica da obra Roteiro Lírico de Ouro Preto (1937), de Afonso Arinos de Melo Franco. O livro, que deveria ser sobre a cidade de Ouro Preto, acaba direcionando seu foco narrativo para as histórias do personagem denominado “o poeta”, que, na verdade, é o escritor Pedro Nava, acompanhante do narrador, Afonso Arinos, na visitação a Ouro Preto. Nava escreveu o prefácio da segunda edição do livro, em 1980, reafirmando e estendendo o movimento memorialístico mineiro dos modernistas ao espaço de Ouro Preto. Para o autor juizforano, as velhas histórias de Ouro Preto são memórias do próprio sangue gravadas no corpo. Na relação Drummond-Murilo-Nava, a dialógica entre o memorialismo mineiro e as incursões modernistas a Ouro Preto traz à tona o ensaio “Poesia e Ficção na autobiografia”, de Antonio Candido, que relaciona os três autores e seus escritos memorialísticos. Da mesma forma, pensando-se em outras incursões a Ouro Preto, além das já observadas em Drummond, Pedro Nava, Afonso Arinos e Cecília Meireles, o espectro da primeira viagem modernista a esta cidade, que irradia o ideal de se escrever sobre a mesma, sugere apontamentos da recepção muriliana aos antropofágicos: em que pontos a poesia de Murilo aproxima-se e em que pontos afasta-se do principal movimento do Modernismo brasileiro. A viagem de 1924 é símbolo da novidade do pensamento modernista que percebe, no Barroco mineiro, as incorporações de uma arte popular e uma arte erudita. Nesse sentido, a relação com Tarsila do Amaral é fundalmental, simbolizando a relação entre literatura, pintura e paisagem mineira. Como, na poética e na vida de Murilo, Roma é o ponto final do itinerário “mundomineiro”, esta dissertação associa a “cidade eterna” e Minas, na análise do retrato do “Professor Aguiar”, em Idade do Serrote, e o retrato de “Spinoza”, em Retratos-relâmpago. Dessa forma, em um espaço rasurado e não delimitado, é proposta, na leitura das duas obras, uma noção de trânsito entre os afetos da infância em Minas e os afetos do poeta canônico.

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Pensando na influência da pintura sobre a literatura modernista, no capítulo 4, “O Signo Plástico”, busca-se traduzir o signo multisensorial muriliano com base na leitura de poemas diversos. A discussão dos desdobramentos de espaço e tempo em uma poética visual, táctil e audível, tem sua origem efabulada na noção da própria gênese do menino-poeta em Minas. Trabalhando nessa perspectiva, serão utilizados alguns críticos de arte, como John Berger, Vertov, Lessing, entre outros, além das comparações com as telas ouropretanas de Guignard. O tratamento crítico por parte do poeta faz explodir os limites da verbalidade. Se a literatura e a pintura dialogam com a história e a política na ressiginificação do patrimônio histórico das cidades mineira, o surrealismo pode ser visto na medida em que une o tempo da história ao sentimento de crise e perda da linguagem. Os livros que compõem o corpus fixo da dissertação sugerem, na representação das coisas do mundo e objetos, um percurso da vida à linguagem, passando pela história, a partir do tempo da nação brasileira, à eternidade, sugerida por Roma. O jogo muriliano com o leitor acontece pelos desdobramentos de uma poética memorialística operativa e transformadora, mesclando biografia, autobiografia e ensaio sob o signo da amizade construída na intelectualidade. Para Murilo Mendes, mesmo na prosa, a poesia serve como uma espécie de construção crítica que salvaria o mundo em constante crise e melancolia. Via poesia, a existência seria reafirmada e reconstruída como crítica: crítica pela perda do autêntico, como no retrato-relâmpago, de Henri Michaux, ao contestar a realidade vigente: “Nela todos os projetos acham-se falidos a priori. Trata-se da contestação absolutamente única, não de um sistema parcial, produto de uma certa época, mas do sistema totalitário, o do serviço militar da vida” (MENDES, 1994, p. 1229). Dirigindo o olhar para o perene e o eterno, Murilo contesta criticamente a corrosão e a localização, apesar de impossível a realização deste desejo, existindo apenas como registro na tentativa poética.

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2 EIXOS INESPERADOS: ARQUIVOS DA MEMÓRIA E DESLOCAMENTOS DE MURILO MENDES

2.1 JUIZ DE FORA – OURO PRETO

“Da antiga Minas, Prenhe, barroca -Dura Escultura-” Murilo Mendes

“Sebastiana diz que tem uma vontade doida de ir a Minas Gerais, Mamãe diz mas Sebastiana você mora em Minas Gerais, ué gente, eu pensava que morasse em Juiz de Fora” Murilo Mendes

Respectivamente, de Contemplação de Ouro Preto e de Idade do Serrote, as epígrafes que abrem a dissertação relacionam a experiência memorialística desdobrada entre a conservação do passado e a ressignificação dos arquivos das duas cidades mineiras. A partir da viagem dos antropofágicos Tarsila, Oswald e Mário, em 1924, Ouro Preto torna-se o símbolo modernista de um Brasil puro, singelo, com suas manifestações populares, arquitetura original e marco histórico nacional das artes. Em “A Permanência do Discurso da tradição no Modernismo”, Silviano Santiago cita Brito Broca ao tocar na questão sobre o modernismo e a identidade nacional a partir de uma redescoberta do Barroco mineiro:

O divórcio em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem da Minas barroca surgisse aos olhos modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam. E não falaram, desde a primeira hora, numa volta às origens da nacionalidade, na procura de um filão que conduzisse a uma arte genuinamente brasileira? Pois lá nas ruínas mineiras haviam de encontrar, certamente, as sugestões dessa arte (BROCA, apud SANTIAGO, 2002, p. 121).

Enquanto Ouro Preto ficou preservada como arquivo da memória nacional, Juiz de Fora foi formando-se subterraneamente na travessia das caravanas que trilhavam o caminho do ouro. Em lampejos de uma breve memória, nesses dois momentos de sua poética, Murilo viajará, entre as raízes mineiras, para uma Juiz de Fora da infância, em uma visão muito

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particular, que privilegia os parentes, mulheres por quem se interessou e tipos sociais da cidade. Na representação de duas cidades que configuram eixos-inesperados, ambas as obras, embora, aparentemente, não tenham pontos em comum, dialogam quanto à confluência do espaço mineiro, representando momentos diversos da poética muriliana. A partir dessa primeira confluência, o confronto entre as mesmas destacará aspectos relacionais da incursão mineira. Se, esteticamente, as obras são diferentes, obviamente, as cidades ainda mais. No prefácio escrito por Marcos Neves para o livro Juiz de Fora em 2 tempos, organizado e editado pelo jornal local Tribuna de Minas, a diferença é o ponto principal que definirá a identidade de Juiz de Fora. Percebe-se uma intenção de afastamento da herança colonial como eixo fundador, situando a cidade provinciana em uma esfera europeizada:

Gratidão, Milheiros, Lamaçal, Botanágua, Rua Direita... Nomes da passado que a memória resgata para contar a história da cidade.Uma história que começa no rastro das tropas que abriam caminhos para o ouro, mas se constrói de forma singular no contexto de Minas. No lugar de catedrais, fábricas. Sem a opulência do Barroco, o estilo neoclássico e eclético de seus prédios e a racionalidade da arquitetura industrial, que opõe chaminés às torres devotas. Sem a marca da cultura colonial mineira, Juiz de Fora distingue-se pelo cosmopolitismo – urbana, moderna. (...) No vale, traçaram-se estradas, assentaram-se os trilhos que transportaram café e minérios (NEVES, 1997, p.1).

O prefácio inicia-se com a epígrafe da escritora juizforana Rachel Jardim, considerada uma grande representante do memorialismo juizforano: “Juiz de Fora, se não falo nela agora, quem falará?” (JARDIM apud NEVES, p. 1). Unindo a ponta da sua experiência europeia de “poeta italiano”, nas palavras de Luciana Stegagno Picchio (PICCHIO, 1994, p. 01), com a experiência do poeta brasileiro consciente da espectralidade do cosmpolistismo da origem juizforana, Murilo busca representar justamente a fugacidade de uma nova Juiz de Fora universal e cosmopolita. Historicamente, o espectro do Barroco deixa uma marca nas trilhas do século XX: o caminho do ouro ressignifica-se nos trilhos do trem que marcam a modernização do país e de Juiz de Fora. Mas a diferença com relação às cidades históricas é cristalizada pelos próprios modernistas, como comenta Drummond na crônica “Viagem de Sabará”:

Por duas vezes Sabará me deu esta sensação de dor feliz acabando em dissolução. Duas vezes operou em mim o sortilégio das cidades mortas de Minas, que são as cidades mais vivas de Minas, em que pese a Juiz de Fora, Belo Horizonte, Uberaba, Ponte Nova, Cataguases (DRUMMOND, 1959, p. 44).

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As cidades que representam o progresso são lidas a contrapelo das cidades decadentes do ciclo do ouro, embora mortas, serão mais vivas do que Juiz de Fora. De fato, enquanto as modernas cidades não têm o mesmo apelo, mantém-se a vivacidade poética de Ouro Preto. Juiz de Fora só será revisitada na poética memorialística, na efemeridade da epifania de uma totalidade expressa na efabulação do cometa Halley, o mundo em Minas por alguns instantes:

Tudo é como se não acontecido pois depois de acontecer — restou o quê?

Ah, sim, restou Halley Iluminando de ponta a ponta o céu de 1910. O menino Murilo Mendes o contemplava em Juiz de Fora o menino Marques Rebelo em Vila Isabel o menino Carlos no mato-dentro de Itabira os três absolutamente fascinados (...). Halley voltará Halley volta sempre Com a pontualidade comercial dos astros. Pouco importa sejam outros meninos que o hão de ver em 1986 iluminando de ponta a ponta a noite da vida (DRUMMOND, 1988, p. 355).

Espectro da infância em Minas, o Halley voltará como uma espécie de um arquivo- espectro, que ronda a poética da memória: a poesia do não acontecido, já que, depois de acontecer, o que resta logo se esvai. Nesse sentido, entre a falta e o retorno do recalcado, o apagamento dos arquivos é a condição da história, de forma que, a partir dos arquivos monumentalizados como patrimônio das cidades mineiras, as memórias pessoais de Murilo Mendes e dos modernistas relacionam- se com os espectros do Barroco e do Modernismo, conjurados na imagem literária, formando uma rede de arquivos que, por vezes, desnaturaliza o que está sacralizado ou mantém as interpretações histórico-geográficas. Embora poesia não seja história, nesse caso, o entrelaçamento dos discursos histórico e literário sugere apontamentos de leitura da província, de forma que as frestas do passado entrevêem a gênese das opções estéticas e políticas. No caso de Murilo Mendes, Minas Gerais é deslocada para outros cenários no tempo da infância e das revisitações, tornando-se um locus instável. Muito mais que o espaço da cidade, contempla-se Minas a partir das opções artísticas e políticas advindas principalmente da vanguarda, configurando o que pode chamar- se de “mundomineiridade”, no eixo Ouro Preto-Juiz de Fora.

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Porém este salto do Barroco à vanguarda é povoado por espectros que unirão, em sua espectralidade, as ruínas da história e o tempo mítico da obra muriliana, o vestígio e o rastro deixados pelo Caminho Novo:

O caminho Novo das Minas, além de caminho comercial, econômico, estratégico e político, é a estrada violenta e dolorosa do ouro, do quinto, da capitação, dos registros, do fisco (...) o que viu descerem os Inconfidentes em ferros. Via gloriosa, via dolorosa do mineiro – com as estações da sua paixão (NAVA, 1974, p. 144).

Se, potencialmente, Juiz de Fora desenvolveu-se entre as cidades que marcaram o trajeto do Ouro, compondo hoje o famoso roteiro do Caminho Novo, sua identidade constitui- se pela diferença entre as demais cidades mineiras, em oposição ao espectro do Barroco que ainda ronda Minas e o Brasil na história, na religião, nas artes e no turismo. Em 1835, com intenção de ligar Vila Rica (Ouro Preto) ao Rio de Janeiro, o engenheiro Henrique Halfeld projetou a estrada do Paraibuna, que desempenhou um importante papel no desenvolvimento de Juiz de Fora. Por ela passa hoje a Avenida Rio Branco, a principal avenida da cidade.1 Nesse sentido, a cidade natal de Murilo torna-se espectro de projetos de itinerários interrompidos, tanto na sua modernização quanto no plano mais ambicioso da estrada do Ouro. Segundo o artista plástico Arlindo Daibert:

Nas últimas décadas, paralelamente às políticas desenvolvimentistas oficiais, temos assistido a uma depredação sistemática do patrimônio arquitetônico e cultural de nossas cidades. Cidades de porte médio, como Juiz de Fora, são as que mais sofrem, uma vez que passam a reunir os defeitos mais graves das grandes cidades que lhe servem de modelo e conservam, inconscientemente, suas limitações de província. Há um crescimento desordenado e artificial, sem qualquer planejamento, que as transforma em grandes anomalias urbanas (DAIBERT, 1995, p. 164).

O jogo hoje inverte-se: enquanto Juiz de Fora é a cidade ruína, que perdeu prestígio, poder econômico e considerável parte da arquitetura neoclássica, Ouro Preto, a cidade da decadência do ciclo de Ouro, é um importante roteiro turístico. Minas Gerais sempre foram duas: uma, lembrança da infância; outra, lembrança de viagem no Modernismo brasileiro. Drummond, nascido em Itabira, Murilo e Nava, nascidos em Juiz de Fora, percorreram esse duplo caminho. Um trajeto que vai configurando-se a partir de anotações e observações nos cadernos da memória, reais ou não, compondo o itinerário da viagem.

1 Dados consultados no portal da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Com efeito, no mesmo momento que escreve sobre Ouro Preto, têm início deslocamentos europeus de Murilo Mendes. Em 1952 viaja um ano pela Europa; entre 1953 e 1955, participa de missão cultural na Bélgica e na Holanda e leciona literatura brasileira na Sobornne; finalmente, em 1957, transfere-se para a Itália, onde ocupa, na Universidade de Roma, a cátedra de Literatura Brasileira.2 Na relação da obra memorialística, em Idade do Serrote e Retratos-relâmpago, livros escritos na Europa, culmina o projeto de associar as memórias de Minas com as memórias da Europa, em um exercício de crítica e autocrítica, de saberes “poliédricos” sobre objetos, sobre a arte, a literatura e a filosofia, que já não se distinguem dos sujeitos contemplados com “retratos” que demonstram o lampejo da utilização de uma linguagem concisa, formada por fragmentos de citações que deslocam sujeito e objeto. Na perspectiva da consolidação do Estado, a partir da arquitetura histórica, Ouro Preto apresenta-se a partir de um “olhar domado” (MENDES,1994, p. 489). No entanto, a polifonia dos poemas de Contemplação e a série de crônicas autônomas, de Idade do Serrote, abrem dobras para uma leitura da multiplicidade em Ouro Preto e Juiz de Fora. Essa multiplicidade é percebida na representação das imagens que mesclam o real com o imaginário, o passado, o presente e o porvir. Em trecho de Idade do Serrote, o choque entre ilusão e realidade faz-se necessário:

Somente muito mais tarde pude compreender que Alfanor estava certo: mesmo sem o querer, levantara a meus olhos o véu de Maya, mostrando-me a grande ilusão, isto é, o artifício, sem o qual não existe conhecimento da realidade. Desde então passei a perceber a realidade sempre acompanhada de sua irmã gêmea, a ilusão, igualmente geradora de múltiplas formas e situações (MENDES, 1994, p. 144).

A partir de um arquivo institucional, os arquivos-espectro dos vencidos sugerem um futuro, uma realização daquilo que não se realizou, sendo, por isso, ainda espectro. O outro nome da realidade é ilusão, gerando múltiplas formas e situações, como se observa nas poéticas de Ouro Preto e Juiz de Fora. Uma leitura através da crítica biográfica abre espaços de leitura nos textos murilianos. No processo de composição de Idade do Serrote, poderia Murilo ter relido suas crônicas e até mesmo críticas literárias que escrevera anteriormente? Ou teriam permanecido esquecidas nos arquivos públicos e bibliotecas? Embora, em certos momentos do texto, parece que Murilo abre uma caixa de lembranças com velhas anotações e as cita, isso não pode ser afirmado categoricamente, já que podem ser poemas e frases citados de memória ou criados por Murilo na configuração de uma memória inventada, pura blague.

2 Dados biografados por Fábio Lucas

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É o que acontece quando no texto da rua Halfeld: citando um poema de Belmiro Braga, segundo Murilo, expostos em um grande cartaz, na loja de ternos de Virgílio Bissagio, os versos ficavam pendurados, sem nunca serem retirados ou substituídos por um novo poema:

Rapaz moderno Se tens idílio De amor eterno Vai ao Vírgilio Fazer um terno. Um terno chique Da cor da uva E que te fique Como uma luva. Hoje o rapaz No amor tem ágio Se as roupas faz Lá no Bisaggio (MENDES, 2003, p. 148).

Além da balada burguesa ou jingle local, com esquema abab, atribuída a Belmiro Braga, Murilo transcreve bilhetes de amor e transfere ao leitor-crítico a dúvida e a ilusão do arquivo: afinal, o trecho transcrito era uma anedota tão conhecida na cidade, que Murilo já a tinha incorporado? Murilo teve acesso à carta, anotou o trecho e a guardou entre suas recordações? Ou o trecho nunca existiu? E assim um trecho de uma carta de amor passa de ouvido em ouvido na rua, com um final que, mesmo sendo uma citação de memória, pelo menos é de co-autoria de Murilo Mendes:

Fábio R..., que divide seu tempo entre a bebida, o jogo e a redação de cartas que envia com um pseudônimo aos destinatários; umas delas ficou célebre, dirigida a Dona Josefina B..., seu texto era assim: “ Senhora, amo loucamente as pernas de sua grande amiga Hermengarda O ... Quanto às suas próprias pernas merecem o respeito e menor atenção de quem se subscreve com sóbrias homenagens, Dionísio P.” (MENDES, 2003, p. 152).

As hipóteses sobre a autoria de certos trechos só poderiam ter sido respondidas pelo poeta, parentes e amigos que já se foram, e assim ilustram como “o arquivamento tanto produz quanto registra o evento. É também nossa experiência política dos meios chamados de informação” (DERRIDA, 2001, p. 29). O mal está no desvio, destruição e na impaciência constante do desejo de memória. Entre memória e desejo, o texto literário torna-se um arquivo através da representação de arquivos outros, ligados à história, à arquitetura, à fotografia, aos livros, cartas e crônicas.

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O Murilo criador de novos arquivos, a partir da vertigem de uma origem, define-se no poema em prosa “Irmã de Pedra”, do livro O sinal de Deus (1935-1936): “Eu sou post- scriptum de mim mesmo” (MENDES, 1994, p. 752). O poema de Belmiro Braga e as cartas de amor de Fábio R... são também um tipo de texto post-scriptum, impressão muriliana de textos outros. No subtítulo de Uma impressão freudiana, de Mal de Arquivo de Derrida, a palavra impressão, nas várias concepções do dicionário refere-se à “estocagem, cifragem, censura, recalque e leitura” (HOUAISS, 2003, p. 1384), de forma que arquivos-espectro ressurgem nas redes associativas constantes da obra muriliana. Em prefácio para a edição de Idade do Serrote, editada pela Record, em 2003, Marília Rothier Cardoso salienta a importância da leitura da obra “menos como testemunho de uma circunstância histórica e mais como exposição de processo de conhecimento” (CARDOSO, 2003, p. 17). E ainda sobre a relação entre história e memória, tece o seguinte comentário:

No entanto, apoiado na fé anticonvencional e libertária, que o distingue do romancista, o poeta busca prever o futuro para além dos limites do realismo cético e, assim, ultrapassa a “idade do serrote”, inventando o “menino experimental”. Com esse gesto, funde auto e alterbiografia e recupera o maravilhoso, capaz do enfrentamento da catástofre. Pois à medida que “devora o livro e soletra o serrote”, o menino experimental produz o antefilme do “Apocalipse, fato do dia”. Dedilhando as palavras como Adelaide fazia soar sua harpa, instaura o mito para “pré-fabricar a história” (CARDOSO, 2003, p. 17).

Nesse sentido, podemos ler as obras das cidades em questão por um viés literário crítico e também historiográfico. Um viés histórico que se dilui na alegoria da cidade como a forma dentro do espaço de aprendizagem da arte, em uma história pré-fabricada pela poética auto e alterbiografica. O poeta precisa destruir as cidades mineiras na concepção formal de forma e espaço para transformá-las em poesia, reconstruindo-as.

2.1.1 A Rua Halfeld e o footing do proletário

“Memória é coisa recente” Paulo Leminski

Na narrativa histórica do início do século XX, Juiz de Fora é considerada a cidade das fábricas, da arquitetura de estilo neoclássico e eclético e da racionalidade industrial. Murilo Mendes confirma esse caráter moderno da cidade mineira em Idade do Serrote:

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(...) ouço as sirenes das fábricas apitando para o almoço: Juiz de Fora, dizem, antecipou-se a São Paulo em certos pontos da industrialização, conta com uma usina hidroelétrica além de muitas fábricas de tecidos, de cerveja, de móveis, etc. Fábricas de pesadelo segundo o poeta Arnaldo B..., inimigo da máquina; não ando lá por dentro, pouquíssimas vezes entrei numa fábrica, todos os dias entro numa casa comercial, entretanto acho a indústria mais simpática, Baudeleire diz que o comércio é de fundo satânico, às vezes vou assistir à saída dos operários quando a chaminé apita, na realidade para assistir as operárias, há mesmo certas feias que me agradam. (MENDES, 2003, p. 146).

Presenciando um período de prosperidade industrial em Juiz de Fora, Murilo registra, entre 1920 e 1921, suas primeiras impressões da cidade nas Chronicas Mundanas do jornal A Tarde3. No fragmento acima, de “Rua Halfeld”, Murilo refaz o footing pela tradicional rua da cidade: “Faço o footing na rua Halfeld de minha infância e adolescência (...)” (MENDES, 2003, p. 145). Ao espiar o mundano, as vitrines das lojas e as operárias bonitas, Murilo põe em cena a cidade que era símbolo do desenvolvimentismo em Minas. Em crônica de 6 de outubro de 1920, atenta justamente para a civilização da cidade:

É simplesmente uma “vitrine” uma espécie de “caleidoscópio”. Objetos que encantam as crianças e causam cobiça aos moços, às moças, dos velhos, às velhas. Gravatas e lenços de seda. Iluminação feérica. Todos se detêm ante a “vitrine” admirados. É uma verdadeira romaria. Decididamente, Juiz de Fora civiliza-se. Todos se dão reunião naquele ponto “chic”. Por que não elogiar, numa crônica que registra acontecimentos da vida mundana, o bom gosto que presidiu à escolha das “vitrines” dos srs. Santos, Carvalho & Cia? (MENDES, 1920, p. 2).

Na crônica do dia seguinte, retomando a sessão “O footing”, o jovem Murilo, no mesmo estilo do autor maduro, rememora tais passeios. Dessa vez, a beleza das mulheres é que chama a atenção. As reticências, no final da crônica, revelam um certo humour modernista, um riso interior contido no não-dito, na súplica de que as mulheres graciosas da cidade não se exilem do mundo, da rua Halfeld:

<>... – Vimos ontem na rua Halfeld, das 6 às 8 horas: melle. Maria Vida Barbosa Lage, no fulgor da sua beleza maravilhosa, num elegantíssimo vestido de <> escuro. (...) Que as nossas graciosas conterrâneas acorram todas em bando, a nossa melhor rua, e que não se exilem como freiras, em suas casas. Pois se elas são nossa maior alegria, e o motivo supremo do nosso deslumbramento... (MENDES, 1920, p. 2)

3 Estas crônicas foram organizadas pela professora Terezinha Vânia Zimbrão da Silva, da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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No livro Juiz de Fora: Imagens do Passado, Douglas Fazolatto explica o footing juizforano, na rua Halfeld: “Era lá também que acontecia, no ínicio do século, o famoso footing, que começava às seis da tarde, com as moças da elite andando sempre pelo lado par, sempre a sós... Enquanto elas subiam, eles desciam flertando...” (FAZOLATTO, p. 100, 2003). Composto por uma série de cartões postais, recolhidos em acervos pessoais e públicos, o livro traz imagens da Juiz de Fora do começo do século XX. Dos trinta e três cartões, dezesseis são de imagens de fábricas, pontes e casas comerciais, outros são fotos de ruas importantes da cidade, mostrando uma cidade em progresso, com homens trabalhando em construções, e ruas sendo urbanizadas. É interessante observar que, no famoso artigo de Antonio Candido sobre a autobiografia nas poéticas de Nava, Drummond e Murilo Mendes, os textos de Idade do Serrote são considerados “unidades autônomas, ou semiautônomas, à maneira de crônicas soltas” (CANDIDO, 1989, p. 56). Nesse caso, poderíamos ler a crônica “Rua Halfeld”, de Idade do Serrote, como uma reescrita das crônicas do jornal provinciano de Juiz de Fora, em que, apesar de fazer críticas a certos tipos enfadonhos e burgueses, Murilo tinha que cumprir a função de colunista social. Liberto de certas interdições do trabalho de cronista de jornal, o poeta escreve uma “crônica do serrote” sobre o cotidiano da Halfeld à moda do memorialismo modernista. Se o footing registrado nos anos 1920 era feito por moças da elite, às seis horas da tarde, o deslocamento de Idade do Serrote irá privilegiar as operárias. O footing imaginário parece durar um dia inteiro, começando na hora do almoço, quando apitam os sinos das fábricas. O poeta aproxima-se das fábricas pelas mulheres, reconhecendo que não foram as vitrines, que elogiava nas crônicas, mas as indústrias que conferiram civilização à cidade provinciana, por isso lembrada até hoje como a “Manchester Mineira”, a “Princesa de Minas”. Ainda cita Marx:

(...) por enquanto, é claro, ignoro Marx e Engels, mesmo a insuficiente encíclica Rerum Novarum, pensar que Rui Barbosa só na última hora incluiu na sua plataforma de candidato algumas linhas sobre a questão social, em todo caso já sei e não é pouco, que os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus, que todos foram remidos pelo sangue de Jesus Cristo, portanto irmãos , afirmando-se assim a unidade do gênero humano, só mais tarde irei saber que Lamennais catorze anos antes de 1848 escrevera na Paroles d’um croyant: proletários de todos os países, uni-vos; padre Dillinger outro dia lembrou num sermão que segundo Nosso Senhor é mais fácil um camelo passar pela fundo de uma agulha que um rico entrar no reino do céu; na verdade começo a sentir um grande desprezo pelo rico materialão, ávido, o milhão feito homem, diz José de Alencar; o rico, o chato pra burro (fórmula infeliz, muito em moda na época, empregada a torto e a direito) (MENDES, 2003, p. 147).

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Murilo vai trazendo à tona figuras da realidade nacional, como Rui Barbosa e José de Alencar, ao lado de nomes internacionais, como Marx, Engels, Lamennais e o padre Dillinger. Lado a lado com a religião, pelo seu apelo ao povo, a referência ao comunismo aponta para um cristianismo rebelde. A memória do arquivo no texto sobre a rua Halfeld corresponde a índices (listas de afetos intelectuais), provas (como a constatação de que, catorze anos antes, padre Lamennais dissera a mais famosa sentença proferida por Marx – basta consultar a obra de Lamennais para se comprovar isso), testemunho (o cotidiano do footing por Juiz de Fora no início do século XX) e memento (observações que parecem lembranças anotadas no relicário da cidade). O footing de Murilo responde, de certa forma, ao seguinte questionamento de Derrida em Mal de Arquivo: “Como fazer as correspondências entre o memento, o índice, a prova e o testemunho?” (DERRIDA, 2001, p. 7). Mais do que a memória tradicional como conservação, as correspondências buscam os espectros daqueles que, com suas ações e palavras, marcaram muito mais a memória do poeta do que a paisagem. Enquanto o espaço pode ser preservado, as pessoas e ações que movimentam a cidade acionam as lembranças desta como arquivo que “tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória” (DERRIDA, 2001, p.22). Nesse sentido, o texto da memória como arquivo nunca será original, será antes uma vertigem, um não-saber ou uma invenção. Segundo Wander de Melo Miranda, há nesta questão uma negatividade produtiva , já que um arquivo absoluto esvaziaria a imaginação (Informação verbal)4. O footing refeito em Idade do Serrote contém ideias mais profundas do que os das Chronicas Mundanas, não por um texto ter sido escrito pelo poeta consagrado e o outro pelo jovem da província, mas, principalmente, por se tratar de um arquivo ressignificado a partir de uma complexa herança. Esse acervo cultural engloba críticas, como as feitas à plataforma política de Rui Barbosa e à moda do Romantismo brasileiro de criar personagens caricatos como o tipo do rico “chato pra burro” (MENDES, 2003, p. 147), relacionando política e literatura. A rede de arquivos murilianos permite-nos encontrar leituras significativas relacionadas ao contexto da escrita. A referência às vitrines da rua Halfeld, a Baudeleire, às fábricas de Juiz de Fora e ao do Manifesto de Marx, não são mero acaso entre uma e outra

4 Aula do curso “Pesquisa em Acervos Literários e Culturais”, do Programa de Pós-Graduação em Letras- Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em 23 de março de 2011.

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noção do footing, pelo contrário, apresentam-se como posicionamento político do autor. A opinião política muriliana, na maioria das vezes subreptícia nos poemas, pode ser melhor observada em algumas críticas do escritor, como a feita ao livro Cacau, de Jorge Amado que, logo no início do livro, lança a seguinte questão: “Será Cacau um romance proletário?” (AMADO apud MENDES, 2001, p. 45).5 Ao tentar responder a essa questão, no cenário de 1933, Murilo Mendes comenta que, no Brasil, devido ao atraso no desenvolvimento capitalista, não se poderia falar em uma ideologia proletária. Além disso, uma obra literária sobre o assunto só seria revolucionária se o autor se integrasse à ambiência do operário, para produzir mais do que uma reportagem. Na pequena crítica publicada no Boletim de Ariel, Murilo reconhece em Jorge Amado essa aproximação com a linguagem e com o cotidiano do operário brasileiro. Para contrapor o êxito do romance proletário, à sua moda sempre associativa, o poeta modernista tece uma crítica ao livro Parque Industrial, de Pagu: “‘Romance proletário’, anuncia a autora no frontispício do Parque Industrial. Houve engano. É uma reportagem impressionista, pequeno-burguesa, feita por uma pessoa que está com vontade de dar o salto mas não deu” (MENDES, 2001, p. 45). Segundo Murilo, embora o livro de Pagu não informe ao leitor sobre o parque industrial propriamente, seu tema central seria a relação sexual entre o filho de um capitalista com a filha de um operário. Com uma leitura assaz lúcida do movimento, sem a euforia marxista, Murilo reconhece que o contexto operário brasileiro, naquele momento, ainda estava em formação. Na perspectiva de enfoque nas minorias, pode-se dizer que, se o texto sobre a rua Halfeld fosse um poema, o mote provável seria o versículo do evangelho que diz “porque é mais fácil entrar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no Reino de Deus” (MENDES, 2003, 147), configurando um catolicismo popular.6 Na leitura do livro Juiz de Fora: imagens do passado, de Douglas Fazolatto, lançado em 2003, a rua Halfeld é elogiada pelo ar elitista dos tempos do footing burguês: “A Rua Halfeld concentrava o melhor e mais elegante comércio da cidade: joalheirias, moda e artigos finos para homens e mulheres, louças, livrarias, cinemas, bancos, restaurantes e cafés” (FAZOLATTO, 2003, p. 98). Se as Chronicas Mundanas deveriam registrar os fatos da sociedade burguesa, Murilo descreve imagens às avessas em Idade do Serrote, apresentando um cotidiano simples e humilde, passando da imagem de uma certa “dona ourodentada” (MENDES, 2003, p. 145)

5 Catálogo Murilo Mendes 1901-2001. 6 Termo sugerido pela Profª. Drª. Marília Rothier Cardoso da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), em minha banca de qualificação, em 14 de junho de 2010.

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para a imagem de um cachorro vira-lata e um cego caminhado no meio dos videntes (MENDES, 2003, p.145). Essas imagens, segundo Murilo, são dos “primeiros seres a botarem futuros problemas na minha cabeça” (MENDES, 2003, p. 145). Ou seja, dentro da proposta modernista, Murilo é um poeta observador dos tipos cotidianos, do homem comum. Observa- se a desconstrução do elitismo da principal rua de Juiz de Fora: “aí quanta gente descalça! outros de chinelo, já é uma promoção” (MENDES, 2003, p. 145). Daí em diante, cria-se no microcosmo da província uma espécie de “luta de classe”, sem maniqueísmos, mas por um julgamento bem-humorado de tipos sociais. Do lado dos esnobes, capitalistas, pseudo- intelectuais estão:

(...) Vitorino que pretende falar quatro línguas e não fala nenhuma (...); o prefeito O. A..., untuoso, com gestos de lado e de prelado, tão enjoativo que parece autoenjoar- se (...); Virgilio Bissagio parece que não varia os gestos (...); o ‘major’ Zénobio, lesma de boné (...); o jornalista Alexandre G..., habitante segundo Quevedo da ‘bobeira bestial’ , rico em perdigotos (...) ; o industrial Veloso, pão duro, triste porque enquanto anda na rua gasta os sapatos (...); Aristeu V..., funcionário público, merdoso, ex-homem (...); Ernesto C..., pavão encardido, crítico literário de um jornal da terra (...); o advogado Jarbas P..., olho postiço, voz esgarniçada, porque-me- ufanista número 1 da cidade (...); o amanuense Tibúrcio, sempre à procura de alguém pra bajular (...); o delegado Viegas, auto-cartaz da autoridade, evito-o, dobro esquinas (...); o coletor Aristarco, pródigo em nomes feios, apelidaram-no Aristerco; o bacharel Belisário..., bexiguento, sempre resmungão, gasta as noites visporando (...) (MENDES, 2003, p. 145).

A maioria dos cidadãos-personagem, alvos das farpas murilianas, são aqueles que, pela distinção e títulos na pequena cidade de Minas, figurariam em notas nas Chronicas Mundanas, nome que se apresenta em vários sentidos: registro do cotidiano intrinsecamente mundano que não implicaria uma negatividade ao se considerar o movimento pela cidade e os importantes eventos culturais; ao mesmo tempo, a banalização da vida sem graça de uma pequena cidade mineira, cujo progresso era notável, mas ainda não legitimado. Esses personagens são como a cidade: seu verniz de modernidade e sofisticação esvair-se-á nas décadas seguintes. Como o personagem de Ernesto C... , que “promete desde o ventre materno uma monumental história da literatura que só resulta o anúncio; é, segundo Lichtenberg7, uma faca sem lâmina a que falta cabo” (MENDES, 2003, p. 145). Por outro lado, Murilo é mais simpático na descrição dos habitantes mais sinceros, assumidamente interioranos, seja na simplicidade dos trabalhos manuais, no ócio da boêmia, no apelo popular ou intelectualidade “menor” que a maioria apresentava:

7 Lichtenberg é um entre os vários intelectuais citados em Idade do Serrote, que serão contemplados posteriormente com um “retrato-relâmpago”.

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o farmacêutico Gregório L... (...), sua especialidade consiste em alterar ditos e provérbios; Ricardo, o amolador de facas e canivetes, vai girando sua roda de pedra, aquele grito estrídulo, música atual, golpeia o ar; Inácio B..., campeão de bilhar e bilboquê, imitador de bichos e sons de bichos, considerado por muitos “um artista”; (...); meu colega Raimundo..., cínico, vagabundo, diz que o onanismo é o trabalho manual por excelência; o maestro Duque Bicalho, admirável mestiço, regente da orquestra do Cinema Farol vizinho à casa paterna (...); o conhecido boêmio Fábio R..., que divide seu tempo entre a bebida, o jogo e a redação de cartas (...) (MENDES, 2003, p. 146).

Gerando um embate de forças nas entrelinhas da rua Halfeld, esses personagens são o oposto dos tipos aristocratas burgueses, são figuras que se ligam ao poeta pelo afeto e pela arte, chamados em cena a contrapelo do cenário histórico elitizado que compõe o imaginário juizforano da Belle Époque8, no início do século XX. Vale observar que 1968, ano de publicação de Idade do Serrote, coincide com o ano mais truculento da ditadura militar brasileira, de maneira que, mesmo não sendo um livro com questões assumidamente políticas, o trauma brasileiro não passa despercebido na figura do delegado Viegas: “evito-o, dobro esquinas, tenho um medo danado da polícia, do exército, de todos os fantasmas da ordem, fantasmas ativíssimos, sempre dispostos a errar, injustiçar e crueldizar” (MENDES, 2003, p. 150). O momento histórico insurge nas esquinas do texto. Em palestra feita no antigo Centro de Estudos Murilo Mendes, em 1994, Lucciana Stegagno Picchio toca na ferida política de um Murilo deslocado, lembrando que, se “Vivendo de sugestões do ambiente, habitava-lhe uma angústia de se estrangeiro em toda parte” (PICCHIO, 1994, p. 1):

Poeta católico, Murilo Mendes, mesmo em Roma, não perdeu a fé. Contra qualquer regime ditatorial, de esquerda ou de direita, durante os anos de ditadura no Brasil, sofreu sob o ponto de vista ideológico. Ao mesmo tempo que sentia-se culpado por ficar fora, também sentia-se culpado por ser brasileiro; queria voltar, mas uma força impulsionava-o a ficar. (PICCHIO, 1994, p. 1)

A culpa a que Luciana Stegnano Picchio refere-se diz respeito ao fato de o poeta estar longe do país em um momento político tão grave quanto o da ditadura militar. Eis a impressão de Murilo sobre o autoritarismo pensando em Roma:

Este é o nosso mundo lacerado, filho do tampão com a ditadura. Da ditadura que de vez em quando toma férias, engordando para voltar à carga. Da predominância do efêmero. Das teorias rapidamente esgotadas. Dos objetos rapidamente consumidos e consumados. Que, desejando recuperá-los, nós colamos e fotomontamos. O mundo onde as coisas, laceradas pela espada do tempo ou do ditador, talvez finalmente COLEM (MENDES, 1994, p. 1020).

8 Termo usado pela Prof. Dra. Teresinha Vânia Zimbrão no artigo Crônicas da Província.

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Esse fragmento do livro Poliedro, do texto “Colagens”, dá ênfase a uma Roma multicultural dos “santos crucificados de cabeça para baixo”, das “fotografias de La Dolce Vita e dos peitos da soberba Loren” e dos “cartazes gritantes do PCI, do PSI e do PSIUP concitando os cidadãos à greve” (MENDES, 1994, p. 1020). Dessa forma, é com essa mesma efervescência da vida romana que Murilo ilustra e homenageia a Juiz de Fora de Idade do Serrote, principalmente ao concitar os personagens menores da Rua Halfeld. A intenção do poeta poderia ser a de se livrar de outra culpa: a do desdém para com certo ar provinciano do qual possivelmente se envergonharia.

2.1.1.1 Murilo no Rio: A vanguarda e a negação do passado pelo Modernismo

Negado pelos modernistas, o passado não se desliga do saudosismo, antes quer negar os antecessores mais próximos e contemporâneos, até mesmo os seus mestres, de forma que a irônica e pejorativa eleição de um príncipe dos poetas representa essa ruptura. O príncipe dos poetas seria aquele herdeiro das correntes românticas e simbolistas do início do século, no Brasil, como se percebe no poema “O Príncipe dos Poetas”, de Drummond:

FAZER É preciso fazer alguma coisa Que pelo menos risque um círculo Efêmero na água morta da cidade. Vamos eleger o Príncipe dos Poetas Mineiros?

(...) É sério, gente. Votos para Belmiro Braga, o velho Augusto de Lima e Noraldino e Mário Matos. Poeta nenhum deixa de ter o seu votinho, Menos nós, questão de ética ou de tática? (DRUMMOND, 1988, p. 736)9

O poema de Drummond pode ilustrar a negação de certos aspectos do passado juiz- forano em Murilo. Com relação ao poeta Belmiro Braga, Murilo confessa, sem sentimentalismos, nunca mais ter lido um só verso daquele que o introduziu no mundo da poesia:

9 Em 1954 Drummond concede uma série de entrevistas à rádio do Ministério da Educação e Cultura, e, em um desses programas de rádio, narra a eleição do príncipe do poetas, feita na redação do Diário de Minas, em 1926.

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Transposta a adolescência, temendo helás! que o encanto se rompesse, nunca mais reli um só verso do meu padrinho de batismo literário, que solicitara em vão à Academia. Entretanto, mesmo acreditando que sua linguagem de trovador menor não me tocara mais, o homem-poeta, maravilhoso, subsiste, irrevogavelmente (MENDES, 2003, p. 155).

Nas memórias, o poeta modernista consagrado reencontra e renega a poesia do trovador menor, seu antigo mestre nas letras. Apesar da diferença entre Murilo, um “poeta maior” e Belmiro “um poeta menor”, eticamente, ambos são homens-poeta, mas, esteticamente, Murilo usa a tática da negação de certo estilo para legitimar em suas memórias a canonização do Modernismo. Dessa forma, no diálogo da modernidade com a tradição, todo movimento tem as dobras invioláveis da ruptura, que contém em si a negação de certos passados, entre os quais o discurso romântico-simbolista-trovadoresco de Belmiro Braga. No entanto, no elenco de nomes de ruas e prédios da cidade, ambos os poetas subsistem ao jogo de forças literárias: Belmiro Braga vira um espectro mineiro, nome de uma rua juiz-forana e de uma cidade que fora distrito de Juiz de Fora; e Murilo Mendes vira nome de museu. Assumir a província para além da representação poética não condiz com a postura modernista, como ilustra a imagem do “menino experimental”, o mineiro cosmopolita que, desde a infância, transita entre mundos diversos na trajetória artística e intelectual. Ao mesmo tempo em que Murilo ressalta a ambição, ridiculariza as formas de solidão, enfrentado-as, elevando alguns personagens de Juiz de Fora a outro local de enunciação. Entre tantos exemplos dessa reconfiguração está a desconstrução da Santíssima Trindade. Em Idade do Serrote, observamos associação entre Dudu, um mendigo famoso na cidade, e grandes nomes, de forma que Dudu seria “da mesma raça de Dante, Spinoza, Beethoven: criados à imagem e semelhança de Deus” (MENDES, 2003, p. 168). Nesse aspecto, o espaço da poética mineira, desde a poesia árcade, remete ao universal, que conjura o mito da mineiridade, como exemplifica o poema “Vila Rica”, de Cláudio Manuel da Costa:

Enfim serás cantada, Vila Rica, Teu nome impresso nas memórias fica Terás a glória de ter dado o berço A quem te fez girar pelo Universo (COSTA, 1994, p. 5).

Desse modo, poder-se-ia dizer que Juiz de Fora e Ouro Preto giram pelo universo das referências europeias afetuosas de Murilo, encobrindo os rastros do provincianismo em nome de uma poética “maior”, do culto homem mineiro. No entanto, o que se entrevém é uma atmosfera vaporosa em que giram Europa e Minas, num denominador comum, mundominas

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de Murilo. Em termos concretos, a saída da província é festejada como desprendimento do mundano e banal para o alargamento das experiências na cidade grande:

Leitor ilustre... Estás de parabéns vou te deixar. Vou ver outras paisagens; a minha alma, tão nova – e já tão velha – vai viver numa cidade maior, cidade onde os cenários são de legenda e sonho. Talvez que eu volte breve: talvez que eu nunca volte, embalado pela nostalgia infinita de outras terras, onde mais intensamente se vive, e se sofre e se ama... (MENDES, 2004, p. 179).

Murilo vai ao Rio com impulso de extensão das fronteiras da existência. A linguagem da crônica lembra o poema “Menino sem Passado”:

Fiquei sem tradição sem costumes nem lendas Estou diante do mundo Deitado na rede mole Que todos os países embalançam (MENDES, 1994, p. 88).

“Embalado pela nostalgia infinita de outras terras” (MENDES, 2004, p. 179), o Murilo cronista começa a criar a persona do menino sem tradição, talvez com a intenção de viver, sofrer e amar mais intensa e ironicamente, já que a negação é uma tática. Afinal, a poesia de Murilo sempre será íntima e contaminada pelas tradições da infância. Como registro das vivências no Rio, a poética muriliana potencializa-se em uma teatralidade, marcada pelas distorções do “eu” fixado no espaço carioca, entre os irreverentes valores nacionais modernistas e o desejo de mundivivência. Em diversos livros, há versos que exemplificam essa não fixidez e as metáforas que a representam: “É necessário caminhar sobre as ondas” (MENDES, 1994, p. 253), de “Angústia e Reação”, em Tempo e Eternidade; “Procurei meu rosto, não o achei” (MENDES, 1994, p. 334), de “Estudo para um caos”, em Metamorfoses; “Nada me fixa nos caminhos do mundo” (MENDES, 1994, p. 97), de Cantiga de Malazarte, em Poemas. Embora, no Rio, Murilo absorva uma nova atmosfera cultural, sua poética apresenta uma utopia blochiana, do marxismo heretodoxo observado em “Rua Halfeld”. Para Ernerst Bloch, a utopia transpõe a questão econômica e pauta-se em valores humanistas. Dessa forma, transpondo os limites de Juiz de Fora, Murilo sente que, no Rio, “a vida se chama amanhã; o mundo lugar para nós” (BLOCH, 2005, p. 118); nos limites de seu quarto, em Botafogo: “a esperança está fundada no impulso humano para a felicidade e dificilmente poderá ser destruída, e com suficiente clareza ela sempre foi um motor da história” (BLOCH, 2005, p. 430).

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Nas recordações de Ismael Nery, podemos testemunhar essas experiências cariocas na vida do próprio poeta:

As discussões sucediam-se pela noite adentro, na pequena casa de Botafogo, depois do Leme. Eram poucos os amigos fiéis. Os que pareciam mais freqüentemente eram Jorge Burlamaqui, Antônio Costa Ribeiro, Mário Pedrosa, Antônio Bento e eu. Guignard vinha sempre, mas apenas para conversar sobre pintura. Ismael gostava muito dele, e quando caiu doente, em 1930, pediu-lhe para fazer o seu retrato. É um dos melhores pintados por Guignard e ao mesmo tempo um bom documento do Ismael humamo, do Ismael que tantas vezes vi de coração quebrado, como sucumbido sob o peso de todas as desgraças e sofrimentos da humanidade, em contraste com o Ismael quase olímpico, ditador da inteligência, senhor prepotente da arte (MENDES, 1996, p. 36).

Na mesma analogia entre vida e arte, a leitura do retrato de Murilo Mendes no Rio, pintado por Guignard, passa pela perspectiva da philia10, nesse caso, amizade construída pela intelectualidade, sem desconsiderar a complexidade ideológica do movimento modernista em suas diferenças e desavenças. Nesse aspecto, a valorização da amizade se daria tanto no nível estético, na medida em que funcionária como motivo de organização da poética, quanto no nível pessoal . Frederico Morais confirma o dado da philia nos retratos feitos por Guignard, quando este viveu no Rio: “O retrato era precedido por uma convivência ou era fruto de uma longa amizade” (MORAIS, 1979, p. 23). Os retratos do Rio foram expostos pela Pró-Arte, Escola Nacional de Belas Artes, em maio de 1931. Entre eles está o de Murilo Mendes. A maioria dos quadros que estão visíveis na foto apresenta uma estabilidade na figura do retratado, com exceção do de Guignard, destaca-se o de Murilo.

Fig.1: Retratos de Guignard. Fonte: Catalogo Alberto da Veiga Guignard 1896-1962.

10 O conceito de philia, em Murilo Mendes, foi parte da minha pesquisa no projeto “Prática Política e Poética – Um Estudo da Amizade em Murilo Mendes como Estratégia de Sobrevivência entre Mundos Diversos”, orientado pela Prof. Dra. Terezinha Maria Scher Pereira.

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Na leitura de um Murilo multifacetado, que escreve poemas em formas diversas e uma prosa fragmentada, as técnicas de composição do quadro também apresentam aspecto híbrido, articulando óleo em tela, aquarela e o traço visível do desenho na composição da figura.

Fig. 2: Retrato de Murilo Mendes. Fonte: Patrimônio Vivo – UFJF 45 anos.

O pão de açúcar fica suspenso no espaço. No poema “Grafito no Pão de Açúcar”, de Convergência, pelo ângulo da janela, pode-se pensar no “olho circular” (MENDES, 1994, p. 634) que navega o mundo. Parece que Murilo Mendes vai voar para além da tela com o balanço do vento nas cortinas. O olhar do poeta é pintado com os mesmo tons do céu azul acinzentado, rumo a outras paisagens e experiências:

Neste Rio ásperofísico Nomeei-me poeta (...) Daqui vi crescer A novíssima Israel: Karl Marx/Freud/Eisnten

Daqui pude aferrar Picasso/Mallarmé/Strawinski (...) Cedo desarmei-me. (...) Do cume desta colina Contorno o BR acelerado Retardado Extrovertido Coisificado

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Meu olho circular navega o mundo Que aceito Malgrado mil ______(MENDES, 1994, p. 634)

A expressividade do poema é marcante no conteúdo preciso: no Rio acontece o ritual simbólico de nomeação do poeta em meio áspero. Assim como foi observado em Idade do Serrote, Murilo reorganiza a santíssima trindade de sua poesia: de um lado política, psicologia e física; e de outro, pintura, poesia e música. Sempre sobre uma perspectiva de algum ponto tático de observação, como o cume da colina, o poeta do olho armado desarma-se para contornar o símbolo-nação BR. Dessa forma, o poeta que se diz deslocado entre tempo e espaço costuma escolher um ponto de pouso fixo para ver um Brasil ambíguo, do qual o olho armado se desprende para aceitar o mundo na curiosa perspectiva imagética da reta: um conjunto infinito de pontos, alinhados na mesma inclinação horizontal. As retas da janela do quadro de Guignard têm uma angulação especifica, ângulos que sugerem a circunavegação do olhar. A janela poderia ser um quadro do pão de açúcar dentro do retrato de Murilo, indicando o voo para o mundo da pintura. Como conclui no poema “Mapa”: “estou no ar, (...) no meu quarto modesto da Praia de Botafogo” (MENDES, 1994, p. 117). Entre os múltiplos deslocamentos e a desordem da poética muriliana, há um senso de unidade no modesto quarto do poeta. Finalmente, se pensarmos na relação entre desenho e pintura feita por Mário de Andrade, os traços do desenho do corpo de Murilo revelam efemeridade:

A pintura busca sempre elementos de eternidade, e por isso ela tende ao divino. O desenho, muito mais agnóstico, é um jeito de definir transitoriamente, se posso me exprimir assim. Ele cria por meio de traços convencionais, os finitos de uma visão, de um momento, de um gesto. Em vez de buscar as essências misteriosas e eternas, o desenho é uma espécie de definição, da mesma forma que a palavra monte substitui a coisa monte para a nossa compreensão intelectual (ANDRADE, 1975, p. 75).

Essa citação abre o artigo “Pedro Nava se desenha”, de Eneida Maria de Souza, para quem Mário elege o desenho e sua característica de esboço para romper com os limites da moldura e, ao mesmo tempo, com a ideia de totalização. A linha do desenho é traço, ou seja, rastro. Representa o “agora” (AGAMBEN, 2009, p. 66) de Agamben, contendo “sempre a forma de um limiar inapreensível entre um ‘ainda não’ e um ‘não mais’” (AGAMBEN, 2009, p. 67). O desenho revela esse Murilo em trânsito,

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sempre projetado para as artes, as paisagens ou o Outro. Ao comentar sobre a temporalidade na moda, Agamben faz o seguinte questionamento:

Mas a temporalidade da moda tem um outro caráter que aparenta à contemporaneidade. No gesto mesmo no qual o seu presente divide o tempo segundo um ‘não mais’ e um ‘ainda não’, ela institui com esses ‘outros tempos’ – certamente com o passado e, talvez, também com o futuro – uma relação particular. Isto é, ela pode ‘citar’ e, desse modo, reatualizar qualquer momento do passado (os anos 20, os anos 70, mas também a moda imperial ou neoclássica). Ou seja, ela pode colocar em relação aquilo que inexoravelmente dividiu, rechamar, re-vocar e revitalizar aquilo que tinha até mesmo declarado morto. (AGAMBEN, 2009, p. 69)

No seu modesto quarto no Rio, em sua contemporaneidade, mesmo na tela, Murilo é inapreensível na efemeridade do traço. O principal procedimento da poesia de Contemplação e das prosas de Idade do Serrote e de Retratos-relâmpago é a tarefa de citar o passado para reatualizá-lo, considerando os acontecimentos do mundo e da história como lampejos inseridos no movimento da eternidade.

2.2 CAPELA DO PADRE FARIA – SÃO FRANCISCO DE ASSIS

As leituras da construção poética da memória bem como suas estratégias de arquivamento e deslocamento no texto inicial sobre a rua Halfeld apontam para a ideia de criação x observação. Voltando-se novamente para a “Nota sobre Cacau”, percebe-se como a problemática da criação está ligada à experiência e à vida, em uma poética autobiográfica e sensitiva. Ao afirmar que um escritor revolucionário que deseja escrever um romance proletário terá que se integrar ao contexto, Murilo expõe um enfoque íntimo e radical, do poeta e prosador que precisa realizar ou apreender as sensações para representá-las na literatura. Tal questão em Murilo é também registrada na leitura do diário de Drummond, em 21 de Agosto de 1975, uma semana depois da morte de Murilo Mendes:

Uma ocasião, Murilo Mendes pôs em dúvida que poetas incrédulos ou pouco fiéis ao cristianismo pudessem escrever poemas sobre a vida de Cristo. Alegava que ele próprio, leitor assíduo da Escritura não se atrevia a tanto. Manuel Bandeira, ouvindo-o, sorriu. Eu confesso que não gostei dessa limitação dos direitos poéticos. Murilo era intransigente nessas coisas (DRUMMOND, 2006, p. 325).

Drummond não acredita na limitação dos direitos poéticos, em poemas como “São Francisco de Assis”, o poeta joga com a questão da crença religiosa e da representação:

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Senhor, não mereço isto. Não creio em vós para vos amar (...) Não entrarei, senhor, no templo, Seu frontispício me basta. (...)

Mas entro e, senhor, me perco Na rósea nave triunfal. Por que tanto baixar o céu? Por esta nova cilada? (...)

Perdão, senhor, por não amar-vos (DRUMMOND, 1959, p. 274).

O poema é a prece autoirônica e irreverente de um ateu que, primeiro, acha-se incrédulo para a fruição artística da igreja barroca, mas, logo em seguida, entra na igreja e, na sua incredulidade, faz um poema sobre seu próprio ateísmo e a “cilada barroca”, repetindo enfaticamente o nome “senhor” e os pronomes “vós e “vos”, em um tom de oração. As distinções didáticas sugerem para o estilo barroco as categorias de claridade relativa, unidade, profundidade, formas abertas e retorcidas; em se tratando do poema de Drummond, principalmente a ilusão da distância em uma ambiência vaporosa, que sugere um além, pode representar essa “nova cilada” (DRUMMOND, 1959, p. 274). Nessa concepção clássica, o Barroco usa artifícios na arte para legitimar uma contrarreação ao paganismo e ao humanismo renascentista, em um dualismo entre o espiritual e o mundano, que reintegrará o homem ao cristianismo ou, pelo menos, deixá-lo hesitante. Essa hesitação é muito diferente da contemplação de Ouro Preto muriliana, que se não entrega ao dualismo Barroco, por anunciar um Cristo morto, contrariando a crença na ressurreição. O comprometimento religioso de Murilo em uma igreja ouropretana é percebido associado a um conceito libertário de contemplação, no poema “Capela do Padre Faria”:

Contemplei na escureza o irrealizado Destino; vi o rastro do Santo, Nada mais que seu rastro, E a sombra do cálice na sombra.

Deslizam os bem-aventurados Depois de soprarem na luz, Indicando o Ar essencial, A dupla respiração da alma Alimentada por êxtases infinitamente pequenos: Mas quem lhes recolhera a plenitude, Quem lhes transcreveria o árduo silêncio Enquanto dominavam a ordem tríplice Do mundo, demônio e carne?

Minúsculo ruído faz o rosário No espírito rodando; Este recinto de ouros em contraponto

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E vaga de indicação de Oriente, Á medida do espírito foi feito Que meditou a riqueza domada, Elemento a serviço de renúncia, Espírito que natureza e arte não subjugam. Pobre ouro recolhido, pretificado, inerte...

Aqui o rolar das ondas do órgão, A sonoridade dos antigos cânticos E os panejamentos do incenso Turbariam o apetite de levitação: Quedemo-nos sem gesto, sem palavra, Ocultos da comunidade dos homens e dos bichos, Ocultos do peso próximo da montanha E da própria luz agora rebatida, Quedemo-nos olvidados. Mesmo sem rezar sem ouvir sem ver Aceitando (MENDES, 1994, p. 488).

Ao contrário de Drummond, que escolhe uma igreja símbolo do Barroco, Murilo escolhe uma igreja simples e pequena, para enunciar seu o conceito de contemplação: “contemplar o irrealizado”, ver “o rastro do Santo” e “a sombra do cálice na sombra” (MENDES, 1994, p. 488). Para Agamben,

perceber esse escuro não é uma forma de inércia ou de passividade, mas implica uma atividade e uma habilidade particular que , no nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto separável daquelas luzes (AGAMBEN, 2009, p. 63).

Neste discurso poético, homólogos à política e à estética, estão em jogo memória e enunciação. Em “Sobre o conceito da história”, de Walter Benjamin, a memória historiográfica é uma interpretação histórica, sujeita aos interesses dos vencidos ou dos vencedores:

A verdadeira imagem do passado só se deixar fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. “A verdade nunca nos escapará” – essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem esse presente se sinta visado por ela (BENJAMIN, 1994, p. 224).

Segundo Walter Benjamin, trazido a partir das questões do presente, somente em um instante o passado é autêntico, dirigindo-se prontamente ao presente e às suas variadas interpretações. Murilo parece não cair no erro de uma interpretação histórica ideologicamente marcada pelo estado presente.

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No site oficial de Ouro Preto (2011), a história da capela faz perceber como sua construção é fruto de um trauma, de uma inversão histórica em que o jogo de poder inverte- se, e o escravo domina o branco. Em 1740, reedificada e enriquecida, a capela abrigou a confraria dos brancos do Rosário expulsa pela maioria dos negros. Na leitura do poema, essa inversão de poder dos negros vencidos não permite realizar o desejo de paz na cidade marcada pela barbárie, pois ela se repete pelos vencidos. Ou seja, na interpretação histórico-literária, a potência do lugar de enunciação do subalterno não se realizou, já que a inversão da barbárie mantém a história da violência colonial preservada na pequena capela. Dessa forma, o poema de Contemplação que parece mais próximo do êxtase religioso, não conclui esta manifestação. Mesmo no caso do poeta performático, o fato histórico cria uma interdição, segundo Wander de Melo Miranda: “não pode um corpo ressentido realizar um corpo recalcado”.11 (Informação verbal). “Quedemo-nos sem gesto, sem palavra” (MENDES, 1994, p. 488) e “Quedemos-nos olvidados” (MENDES, 1994, p. 488). A história é esquecimento, o leitor que lê o poema da capela, mesmo sem conhecer seu trauma, poderá reconhecer que Murilo subverte a ordem do êxtase religioso. A Minas barroca lança-se ao pensamento oriental da meditação diante da lógica interna das rimas do “r” do “minúsculo rosário”, que faz um mínimo “ruído” “no espírito rodando”, em um “recinto” em que a “riqueza” é “renúncia”, em que o ouro “recolhido” é inerte, em um estado de “Espírito que natureza e ar não subjugam” (MENDES, 1994, p. 488). Toda a liturgia barroca é desmontada, “a sonoridade dos antigos cânticos” e “os panejamentos do incenso” somente “turbariam o apetite de levitação”, na perspectiva orientalista que gera uma nova luz sobre a sombra da igreja, sobre o fracasso do catolicismo colonial e sobre o presente. Essa nova perspectiva vai contra a arte domada, de forma que Murilo utiliza a expressão “riqueza domada” no poema (MENDES, 1994, p. 488). Essa pequena capela revela o catolicismo de igrejas humildes, do qual nos fala Picchio:

Tendo sofrido terrivelmente durante um período, na Itália, começou a gostar da Espanha, a magra e românica Espanha, de João Cabral. Em Barcelona ia visitá-lo, conhecia as catedrais e igrejinhas românicas de barro. Chegava a Roma e se deparava com a civilização que ele não queria. (PICCHIO, 1994, p.1)

A opção de Murilo reforça a questão do catolicismo popular, caracterizado pelo cristianismo das origens, como ilustra o “retrato-relâmpago” de São Francisco de Assis: “Poeta, isto é, fundador da palavra essencial; pobre da coisa perecível. Exorcisma o capital-

11 Aula do curso Pesquisa em Acervos Literários e Culturais, do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em 11/05/11.

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demônio.” (MENDES, 1994, p. 1201). Em Contemplação, poemas de igrejas que são símbolos do alto Barroco, como a São Francisco de Assis, dividem espaço com templos menores, como a Capela do Padre Faria e uma igreja ainda menor, em Ouro Branco. A cidade, nos arredores de Ouro Preto, é contemplada em “A Igreja de Ouro Branco”:

Tua íntima unidade Na redução do branco Na pátina de ouro amortecido, Nos esconderijos do barroco, Sustenta-nos em luz sólida Que se distribui à longa serra, Antepaço de Outra branca Jerusalém. (MENDES, 1994, p. 504)

Os elementos do poema destacam a simplicidade da igreja “na íntima unidade, na redução do branco, na pátina de ouro amortecido e nos esconderijos do barroco” (MENDES, 1994, p. 504). Nos elementos humildes sustenta-se a “luz sólida” (MENDES, 1994, p. 504) do catolicismo. Nessa perspectiva, Murilo descreve duas noções de história:

Costumo dizer que há duas histórias:a história construída com altos personagens, guerreiros, príncipes, papas, inventores, industriais, escritores, cientistas, artistas, etc, e a história menor; a da gente humilde, anônima, do povo fértil em variados aspectos humanos, comparsas participantes de uma realidade que escapa muitas vezes aos protagonistas de “El grand teatro del mundo”, como dizia Calderon (MENDES, 1994, p. 1360).

Em Idade do Serrote, afirma-se que a história é “feita de abusões e mal-entendidos” (MENDES, 2003, p. 144), na interpretação dos versos de “Capela do Padre Faria” , a memória como experiência histórica do presente detém o passado no instante da contemplação, em que o desejo coloca em movimento uma potencialidade a partir da “dupla respiração da alma” (MENDES, 1994, p. 489). Essa dupla respiração pode indicar a expiração na morte e no ar que sopra a poesia, uma poesia inexata na forma e precisa na intenção de se resvalar do historicismo, aceitando os esquecimentos históricos, “ocultos da comunidade dos homens e dos bichos” e “ocultos do peso máximo da montanha”, até mesmo da própria luz do presente imposto à cidade-museu. Esta cidade que, se “procuramos objetivá-la e fixá-la no tempo cronológico, ela se revela inapreensível” (AGAMBEN, 2009, p. 66), impossibilitando a experiência poética do autor. É importante ressalvar que Murilo não é um poeta que se prende a limitações poéticas, principalmente se considerarmos a sua poesia extemporânea, que mescla paisagens reais e

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imaginárias e absorve o máximo das amizades intelectuais, apesar da observação sobre a necessidade de conhecimento e crença para se fazer um poema sobre a vida de Cristo. O texto do diário de Drummond confirma antes como Murilo preza por uma poética do conhecimento integrado às sensações, além do elemento autobiográfico que proporciona tais experimentações poéticas. Essas observações possibilitam uma leitura do catolicismo popular e rebelde, que integra o marxismo, o folclore e até mesmo o mistério do oriente, como temos visto até agora.

2.2.1 Arquivos-espectros em Contemplação de Ouro Preto e Idade do Serrote

Um aspecto a ser observado na relação entre Idade do Serrote e Contemplação de Ouro Preto é a libertação das imagens na quebra de categorias formais. Esse ideal constante deve-se, principalmente, ao surrealismo e às suas ideias de automatismo. Para o poeta e crítico português Jorge de Sena, “O automatismo não é, por forma alguma, o contrário da lucidez atenta; é, antes, uma atenção lúcida levada ao limite do absurdo. A libertação das imagens tocou todos, mesmo os mais avessos à audácia” (SENA, 1975, p. 62). Murilo não se apropria do automatismo, antes apropria-se das ideias de associação entre elementos díspares, sugerindo um olhar fantástico na constante metamorfose das obras. Por outro lado, esse elemento pode também representar a influência do Barroco, pela libertação das imagens com relação ao estilo clássico. Murilo apresenta uma nova fase poética em Contemplação, como observa Luciana Stegagno Picchio: Contemplação inaugura nova fase na poesia de MM: na atenção às coisas, às paisagens, com sua história, tradição, forma e sentido que frutificaria nos anos com os poemas de Tempo Espanhol e depois, já no fim da vida, com as prosas de Espaço espanhol, Carta geográfica, Janelas Verdes e outros textos (...) na linha da poesia descritiva (PICCHIO, 1994, p. 1680).

Em sua forma, muitos poemas apresentam ritmo tradicional e popular da redondilha maior, longas estrofes e negativas, apropriação de fragmentos do senso comum e do imaginário local, além de relativa clareza em passagens narrativas e descritivas que se afastam do Barroco e do surrealismo. Apesar da libertação de imagens sugeridas, os poemas de Contemplação aproximam-se muito mais da musicalidade do romanceiro. Murilo escreve três romances: “Romance das Igrejas”, “Romance de Ouro Preto” e “Romance da Visitação”, nos quais exerce a forma poética do romanceiro à exaustão, em longas narrativas que

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descrevem cenários e nomes de Ouro Preto e da bíblia, à maneira popular. Sobre o caráter do Romanceiro, Cecília Meireles afirma:

O Romanceiro teria a vantagem de ser narrativo e lírico, (...) de preservar aquela autenticidade que ajusta à verdade histórica o halo das tradições e da lenda. (...) A voz irreprimível dos fantasmas, que todos os artistas conhecem, vibra, porém com certa docilidade, e submete-se à aprovação do poeta, como se, realmente, a cada instante lhe pedisse para ajustar seu timbre a audição do público. Porque há obras que existem apenas para o artista, desinteressadas de transmissão; outras que exigem essa transmissão e esperam que o artista se ponha a seu serviço, para alcançá-la. O Romanceiro é desta segunda espécie. Por isso, a parte “pessoal” nele se encontre, é uma outra simples intervenção para favorecer o desenvolvimento do tema (MEIRELES, 2010, p. 25).

O comentário feito em uma conferência na Casa dos Contos, no “Primeiro Festival de Ouro Preto”, em 20 de Abril de 1955, estabelece um nexo importante de diferenças e confluências para entender a Contemplação de Murilo. Um ponto importante é a questão do lirismo e da narrativa no Romanceiro, na maneira como esses dois conceitos imbricam-se, na fase madura, representada pela Idade Média e Renascimento Europeu que o Brasil não teve, e irão marcar o poeta. Murilo volta à sua infância da Europa colada em cadernos, e sua lírica não é somente descritiva, mas absorve a narração da tradição oral, do canto narrativo do Quindum serere da ama-de-leite Etelvina: “Esta cantiga entrou nos meus poros, assimilei-a: começava a música, o ritmo do homem; era uma vez e será para todo e sempre” (MENDES, 2003, p. 29). O trecho diz “era uma vez”, assim começa toda narrativa. Por outro lado, a descrição quase narrativa nas diversas formas poéticas vai diluindo- se na prosa-poética de Idade do Serrote. Nesse livro, a narração tradicional fica em segundo plano, já que as imagens descritivas têm mais do que contar: a autobiografia de formação como integração do “processo da vida social na vida de uma pessoa” (BENJAMIN, 1996, p. 202) é subvertida na autobiografia muriliana. O Murilo maduro irá influir com todo seu conhecimento sobre o cotidiano de sua infância. Afinal, nunca sendo um ouvinte imparcial, Murilo teve a chance de perceber um conceito de experiência, na medida em que “a relação entre ouvinte e narrador é dominada pelo interesse em dominar o que foi narrado” (BENJAMIN, 1996, p. 202). Pode-se concluir que, embora Murilo afirme-se como poeta erudito de vanguarda e, ao mesmo tempo, queira buscar uma autenticidade das tradições e da lenda, não quer que estas se ajustem à história.

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Prevalece a experiência pessoal nas dedicatórias de cada poema de Contemplação, no fato de o livro ser dedicado “À querida memória de meus pais” (MENDES, 1994, p 457). “A palavra latina patrimonium significava, entre os antigos romanos, tudo o que pertencia ao pai, pater ou pater famílias, pai de família (...)” (CASTRO, 2008, p. 11). Nesse sentido, a relação entre os pais e o patrimônio demonstra os desdobramentos do pessoal no âmbito social e histórico. Para se perceber a revisão da história e do patrimônio como arquivos-espectro através da poética de Murilo, vale estabelecer uma ponte com o Romanceiro da Inconfidência: fazendo emergir a história documental de maneira poética, Cecília faz vibrar docilmente a voz dos fantasmas. Ao livro patrimônio, que resguarda a história oficial e ao qual cumpre a função de “narrar a estranha história de que haviam participado” (MEIRELES, 2010, p. 22), cantando as flores da cidade, a poeta oferece os poemas como “um ramo de flores – como um ramo de puro amor” (MEIRELES, 2002, p. 35):

Tudo me fala e entendo: escuto as rosas E os girassóis destes jardins, que um dia Foram terras e areias dolorosas (MEIRELES, 2010, p. 42).

Do poema “Cenário”, esses versos compõem com “Fala Inicial” os dois únicos de cunho pessoal. Diferente de Cecília, Murilo atravessa Minas pelo viés do irrealizado, da materialidade que levita, da decadência da matéria domada, em uma perspectiva que se aproxima muito mais do imaterial. Rompendo com a tradição do patrimônio histórico nacional, essa imaterialidade incorpora o tom e o tema popular de muitos versos de Ouro Preto, a cidade que tradicionalmente privilegia os grandes monumentos católicos. No poema “Flores de Ouro Preto”, dedicado a Cecília Meireles, a oposição da relação entre Murilo e autora é nítida na visão de assombro do presente:

(...) Tristes flores de Ouro-Preto” Só vi cravos-de-defunto, Apagadas escabiosas, Murchas perpétuas sem cheiro, Nascidas de sete meses, Só vi cravos-de-defunto, Que se atam ao crucifixo (MENDES, 1994, p. 471)

As flores de Ouro Preto nada mais representariam do que o artificialismo Barroco, a estilização rebuscada que perde conteúdo nas torções e nos ornamentos em excesso. Recriar

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esse Barroco na Ouro Preto dos anos 1940 não é mais possível: a arquitetura barroca preservada é como “buquê de flores extintas” (MENDES, 1994, p. 471). No entanto, a cidade sóbria, confrontada em dois tempos na “medida da eternidade” e “vivendo a luz do céu” (MENDES, 1994, p. 471) revela a questão muriliana na descrição da cidade entre seu passado e presente: é uma questão de conjurar espírito e forma. Usadas à exaustão no livro, as palavras assombração, espectro e morte criam um psiquismo caótico e assombrado em Murilo, por sempre querer perceber o mundo. Nesse caso, precisa aceitar o espectro, como propõe Derrida: “aprender a viver com os fantasmas, no encontro, na companhia ou no corporativismo, no comércio sem comércio dos fantasmas” (DERRIDA, 1994, p. 11). Ver a “cidade sóbria” e “medida na eternidade” (MENDES, 1994, p. 741) traz em si “a experiência do passado como porvir” (DERRIDA, 1994, p. 12). No projeto de uma poética da eternidade, de abstração do espaço e do tempo, isso significa buscar justiça em nome dos que não estão mais entre nós, mas que ressurgem na espectralidade, pois

nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível, pensável e justa, sem reconhecer em seu principio o respeito por esses outros que não estão mais ou por esses que não estão aí, presentemente vivos (DERRIDA, 1994, p. 13).

Por isso as flores de Ouro Preto são mortas, pois, para perceber o mundo como pretende, nos outros textos “geográficos” das cidades, propõe-se a tarefa poética de contemplar a fantasmagoria, de lidar com as formas de assombração que rondam o Brasil e a própria infância do autor. A partir de Contemplação, Murilo dará início aos seus diários de viagem, um movimento de percepção do mundo. O itinerário poético na contemplação de Ouro Preto está gravado no final do livro, na primeira edição de 1954: “Ouro Preto-Mariana- Rio 1949-1950” (MENDES, 1954, p. 171): a libertação acontece no Rio, como ele sugere no “Grafito no Pão de Açúcar”. Ao pensar-se no trauma do itinerário Barroco, na rememoração do passado tão presente que é associado à infância, podemos nos perguntar “para onde vai o Barroco na poética de Murilo?”, como pergunta Derrida “Whiter marxism?”, “Para onde vai o marximo?” (DERRIDA, 1994, p. 25). Baseando-se no primeiro capítulo sobre o eixo inesperado Ouro Preto-Juiz de Fora, pode-se dizer que a noção de Barroco mineiro como história e memória, após a decadência, vai para a formação das Gerais através das Minas, em que se configuram dois tipos diferentes de cidades: uma cujo urbanismo Barroco é preservado; e outra que desponta para o progresso e o refinamento efêmeros. Assim, embora as duas Minas sejam espectros de uma potencialidade de mundo, jamais superam a marca da província. Ao mesmo

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tempo os modernistas mineiros refazem a potencialidade de mundo, retroagindo à maneira vanguardista sob o espaço mineiro Estudos mais recentes sobre o Barroco e as apropriação modernistas tem ponderado essa apreensão da essência barroca, um fato de cultura marcado pela viagem dos antropofágicos em 1924:

A missão de descobridores de um Brasil artisticamente verdadeiro era concedida, portanto, aos viajantes modernistas. Poderíamos perceber, comumente, uma interpretação cíclica da história da arte brasileira, onde o Modernismo seria o movimento cultural responsável por estabelecer um elo de reconciliação com o passado Barroco. Não convém, no entanto, a rigor, repetir a convenção de que os modernistas brasileiros descobriram o Barroco mineiro, porque, durante o século XIX, o imperador D. Pedro II, o poeta Olavo Bilac ou o pintor francês Émile Rouède reconheceram, todos, a validade das obras daquelas cidades da mineração. Além disso, eles também as utilizaram como tema para suas criações poéticas e pictóricas, as inspiradas anotações no diário de viagem do Imperador (Don Pedro II, 1957); o poema Ocaso e as Crônicas de Vila Rica de Bilac (BILAC, 1919, 1894) e as telas de Rouède. Antes mesmo que os modernistas descobrissem as cidades do passado da mineração, como material para ser elaborado na poesia e na arte, a sensibilidade do final do século XIX já havia pressentido essa possibilidade. A produção modernista sobre o tema do Barroco de Minas Gerais apresenta-se muito diversa do que se poderia esperar de um estudo sistemático (BRANDÃO, 2010, p. 2).

Como propõe Brandão (2010), o cruzar de olhares dos intelectuais modernistas gera arquivos-espectro cuja característica muitas vezes é de encobrimento do factum, possibilitando leituras não oficiais da memória mineira. O valor da arte surgida no Brasil do século XVIII, como tema ou escola, é moldado à maneira vanguardista, tanto que os poemas de Murilo sobre Ouro Preto revelam mais sobre o Modernismo do que sobre o próprio Barroco mineiro ou o estilo Barroco em sua especificidade. Associada a essa leitura de Derrida e dos arquivos, a leitura de Walter Benjamin corrobora a espectralidade barroca como valor da humanidade. Em “Origem do Drama Barroco Alemão”, Benjamin afirma não só o conceito de Barroco como recorrente na história do homem, mas também o tom fragmentário da vida, a partir da ideia de símbolo e alegoria. As flores de Cecília Meireles em Ouro Preto representariam uma totalidade da história poetizada: no Romanceiro da Inconfidência, o poema oferece uma coroa de flores aos personagens históricos. No entanto, Murilo, em “Flores de Ouro” encobre esse sentido histórico com prematuras flores murchas e mortas. Assim a alegoria muriliana distingue-se do símbolo da cidade barroca como cidade das flores, reconhecendo o Barroco como espectro na

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medida temporal da experiência simbólica é o instante, na qual o símbolo recebe o sentido em seu interior oculto e por assim dizer, verdejante. Por outro lado, a alegoria não está livre de uma dialética correspondente, e a calma contemplativa, com que ela mergulha no abismo que separa o Ser visual e a Significação, nada tem da auto-suficiência desinteressada que caracteriza intenção significativa, e com a qual ela tem afinidades aparentes (BENJAMIN, 1984, p. 187).

O próprio título do livro de Murilo sugere a calma contemplativa para se mergulhar no abismo que separa a sobreposição constante de imagens de Ouro Preto e sua significação. Na perspectiva enigmática, que envolve outros conhecimentos que vão sendo apropriados no subir e descer de ladeiras do “Romance das Igrejas de Minas”, na busca do gênio, encontramos ruínas, e o Barroco é um espectro:

Minha alma sobre ladeiras, Minha alma desce ladeiras Com uma candeia na mão, Procurando igrejas Da cidade e do sertão O gênio das Minas Gerais Que marcou estas paragens, Estas sombras benfajezas, Estas frescas paisagens, Estes ares salutares (MENDES, 1994, p. 461).

No movimento de subida e descida da alma teatral, que anda com uma candeia na mão em busca do gênio das Minas, os ares são salutares, de forma que a figura do gênio vai perdendo-se na descrição das igrejas de pedra-sabão e das figuras populares e sacras chamadas à cena do poema, reafirmando o catolicismo popular do poeta:

Uma só fé, um só pão Vozes ascendem nos ares Que desprezam o cantochão, Rompe um canto pela nave A Santa Maria Eterna, Um canto sentimental Que ofende a liturgia, Fonte viva, genuína, Da santa religião, Mas que toca a alma ingênua Do povo rústico e chão. (MENDES, 1994, p. 466)

Na busca pelo gênio, chega-se a “uma só fé, um só pão” “do povo rústico e chão” (MENDES, 1994, p. 466). As flores e o gênio estão mortos, a verdade da liturgia, alegoria da

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cidade monumental, é uma ruína no “cantochão”. O conceito de alegoria associa-se ao mundano do Barroco, sem cair na cilada do belo:

Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza simbólica se evapora, quando tocada pelo clarão do saber divino. O falso brilho da totalidade se extingue. Pois o eidos se apaga, o símile se dissolve, o cosmos interior se resseca. Nos rebus áridos, que ficam, existe uma intuição, ainda acessível ao meditativo, por confuso que seja (BENJAMIN, 1984, p. 198).

Nesse sentido, se, por um lado, podemos perceber o espírito Barroco na escrita de Murilo, não uma forma barroca, por outro lado também é difícil perceber a estética surrealista em uma forma concreta: seus pressupostos são como uma pulsão fragmentada da alma. Assim, entre a redondilha maior, a redondilha menor, os endecassílabos, os ditirâmbicos vagando entre versos livres e sonetos brancos, a forma dos poemas de Ouro Preto é uma expressão da ruína da forma numa espécie de espírito libertador da paisagem convencional barroca. Em uma “avacalhação” da forma, que transita entre estilos eruditos e populares, a hibridez formal dos poemas relaciona a poética muriliana com heranças diversas, talvez em uma tentativa de desinstitucionalização do patrimônio e da verdade histórica, como temos visto até aqui, para uma nova aprendizagem através da poética.

2.2.1.1 Morte e aprendizagem: o agônico em Murilo Mendes

Nas memórias das cidades, a atividade de colecionador não estaria somente na reunião de livros, quadros, gravuras, depoimentos e correspondências de artistas, mas também na própria obra muriliana, uma obra de rememoração através de recortes da cultura ocidental e de outras culturas. Para Deleuze (1987), na releitura em Proust e os signos, a escrita das memórias recupera o passado, mas rejeita uma escrita tradicional, alçando-a para o futuro. O conceito da Recherche – a busca – amplia um conjunto de signos e imagens relacionadas à arte, à amizade, à filosofia e à corporeidade. A leitura de Deleuze tende ao constante e dissonante movimento dos seres e das coisas no fluxo temporal, nas incorporações da tradição e do novo. Embora experiência seja aprendizagem e revelação, apresentando imagens diversas associadas às cidades, aos intelectuais, às situações e emoções, “a Recherche é ritmada não apenas pelos depósitos ou sedimentos de memória, mas pelas séries de decepções contínuas e pelos meios postos em prática para superá-las em cada série” (DELEUZE, 1987, p. 26). Na busca de uma aprendizagem da escrita e da arte, Murilo forma arquivos do passado projetando para o futuro, construindo uma obra viva. É uma busca positiva e, ao mesmo tempo, agônica, como apontam diversos críticos do poeta. Agônica pelo que simbolizaria a Recherche que, no corpus proposto, representaria uma superação da falta e da

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morte nas relações intelectuais e afetivas: “quase já não distinguia amor e morte” (MENDES, 1994, p. 492). O enfrentamento das “séries de decepções” é um estratagema de arte como resistência: “O FIM só é trágico para quem não o mereceu” (MENDES, 1994, p.55). A não passividade diante da morte e do inexorável é mola propulsora da busca, experiência e aprendizagem, como signos da memória e deslocamento, mesmo quando reclusa e solitária, como o próprio poeta assinala no retrato de seu Tio Lucas, em Idade do Serrote:

As pessoas e os fatos são contagiosos, os transístores são contagiosos desde séculos, desde muito antes da invenção do atual transístor. Há também moléstias contagiosas: para combate-las Tio Lucas trancou-se na sua barca não bêbeda, barca morena lúcida de livros e de remédios. Quebrou seu coração, contagiou-se de humanidade, e morreu influindo certamente na morte, ajudando-a na sua – tempestiva ou intempestiva tarefa (MENDES, 1994, p. 936).

Nessa prática, Murilo Mendes configura uma herança e um arquivo na reescrita do passado mineiro, nas lembranças da infância e nas impressões deixadas pelos antepassados e interlocutores da sua obra, em contraponto com as soluções de sua própria escrita. Assim são diversas as produções explicitadas nos textos emaranhados de citações de Idade do Serrote, Contemplação de Ouro Preto e Retratos-relâmpago. Dessa forma, a história de Tio Lucas influencia o alto espírito livre do poeta a posteriori na leitura de outros textos operativos:

Declarava que tudo era ilusão e fantasmagoria; considerava-se um nada. O que mais me colpiu no relato de seus últimos tempos de vida foi a singular palavra que distribuía entre seus clientes e conhecidos: “O homem deve ajudar a morte”, ou segundo outros, “O homem deve influir na morte”. Muitos anos depois liguei naturalmente essa palavra – em qualquer das duas versões à conhecida frase de Rilke que desejava morrer de sua própria morte (MENDES, 1994, p. 936).

Indo além da metalinguagem, Murilo Mendes é um poeta-crítico, de forma que sua arte poética é também de autoanálise. Nesse sentido, a citação de Rilke na pagineta sobre o Tio Lucas encontra outros pontos em comum com a obra de Murilo, por um lado, tão marcada pela influência dos seus pares e antecessores, por outro, tão própria individual: “O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou” (RILKE, p. 24, 1970). Como aponta Manuel Bandeira, Murilo era “um dos quatro ou cinco bichos-de-seda da nossa poesia, isto é, os que tiram tudo de si mesmos” (BANDEIRA, p. 630, 1974).

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Percebe-se que o tema da morte relacionado à ideia de deslocamento do tio Lucas ecoa em outros textos, como afirma Picchio, no prefácio da coletânea de prosa Transístor:

Cada livro de prosa do poeta Murilo Mendes já tem seu homólogo, seu correspondente, ao nível do sentido, na obra em verso. De forma que muitas vezes a prosa pode ser considerada mesmo em função de sua poesia, como sua nota referencial, explicitação e solução (PICCHIO, 1980, p. 15).

Picchio ainda sugere que o homólogo poético de A Idade do Serrote está propagado por toda a obra de Murilo. A tarefa de enfrentar a solidão, a morte, a fantasmagoria e o nada, apreendida pela figura legendária de Tio Lucas, atravessa os versos de Contemplação de Ouro Preto, que sugerem a libertação e a aprendizagem projetada para o futuro no meio da cidade assombrada por espectros:

Ouro Preto se inclina com elegância, Ouro Preto se inclina, e um dia cairá. Nova técnica transfigura a terra, Mas os futuros engenheiros e arquitetos Não mudarão o corpo de Ouro Preto Que ainda se preserva da reforma Por sua mesma pobreza e solidão Ouro Preto para o futuro um dia se voltara, Gerando no seu bojo a nova tradição... Acelerando a história, a vida deslocou. Mas a lenda combate aqui a história: Seus espectros e igrejas permanecem Pelo ciúme da morte resguardados (MENDES, p. 459, 1994)

A cidade que, no livro de Murilo, carrega imagens de fantasmagoria e assombração, quer seja pela figura de Tiradentes enforcado, quer seja pela presença de Alphonsus Guimaraens, quer seja pelas ruínas do Barroco, preserva-se não pela ação institucional dos “futuros engenheiros e arquitetos”, mas pela “pobreza e solidão”. A lenda prevalece sobre a história, apontando a positividade de uma cidade da morte resguardada, justamente pelo componente do imaginário ouropretano. Mitos locais e a morte evidenciam a tradição popular, aproximando a obra de Murilo Mendes da dicção de Contemplação e do antiacademicismo do Tio Lucas. A visão da morte em A Idade no Serrote e em Contemplação de Ouro Preto representa uma transformação em que o tempo cíclico da lenda do tio, que morreu em um barco, no meio de um Rio, na cidade de Leopoldina, e as lendas e espectros da cidade de Ouro Preto ganham maior vivacidade. A morte é uma alegoria da transformação, resistência e resignificação da vida futura:

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A concepção da história-destino ordena-se em torno da figura da morte . Ela é a verdade última da vida, o ponto extremo em que o homem sucumbe à sua condição de criatura. Ora, a alegoria significa a morte, e se organiza através da morte (BENJAMIN, 1984, p. 38). (...) Mas a morte não é apenas o conteúdo da alegoria, e constitui também o seu princípio estruturador. Para que um objeto de transforme em significação alegórica , ele tem de ser privado de sua vida. A harpa morre como parte orgânica do mundo humano para que possa resignificar o machado. O alegorista arranca o objeto do se contexto. Mata-o. E o obriga a significar. Esvaziado de todo brilho próprio, incapaz de irradiar qualquer sentido, ele está pronto para funcionar como alegoria. Nas mãos do alegorista, a coisa se converte em algo diferente, transformando-se em chave para um saber oculto. Para construir a alegoria, o mundo tem de ser esquartejado. As ruínas e fragmentos servem para criar a alegoria (BENJAMIN, 1994, p. 40, grifos nossos).

Na análise do conceito de ruína como alegoria, deve-se atentar para o fato de que, embora a Ouro Preto seja ruína no século XVIII, para Murilo, em outro conceito benjaminiano, é resíduo. Qual o sentido do monumental em Ouro Preto, já que a cidade fica preservada? Na medida em que fica cercada e cristalizada em um projeto de apropriação nacional, a cidade não se fragmenta. Enfim, embora ela seja, sim, uma ruína como cidade modelo do século XVIII, Minas toda é um resíduo do passado, transposta no Caminho Novo. Assim, o poeta pode transformar o espaço em fragmento, em ruína criativa, para que se faça uma reconstrução alegórica dentro da poesia ou pela poesia, que só faz sentido se a cidade for realmente arruinada na monumentalidade institucional, para poder tornar- se poesia e ser recriada no sentido alegórico. Da mesma maneira, Tio Lucas que, ao largar a faculdade de Medicina no Rio e passar a viver entre as margens de um rio mineiro, ganha fama de curandeiro e desmistifica o caráter cientificista legitimado na medicina, metamorfoseando o saber prático em oculto:

Durante muito tempo discutia-se na família se Tio Lucas teria ou não aplicado a seus clientes o curare, nome que me causava certa apreensão. Ninguém ignora que o curare é um veneno violentíssimo, extraído da casca de um cipó, usado por algumas tribos indígenas para ervar suas flechas. O curare, além desse grande poder ofensivo, possui alguns sinônimos igualmente fortes: ticuna, uirari, voorara (MENDES, 1994, 936).

Por outro lado, a morte é desvirtuada do conceito comum da cultura ocidental, em sua positividade como movimento inerente à vida. A figura de Tio Lucas é alegoria dessa aceitação que se segue a uma superação da morte e do morrer. Na memória-aprendizagem do Murilo menino e adolescente, o Tio Lucas representa o “antiacadêmico” e de “alto espírito livre” (MENDES, 1994, 936), aquele que, através da morte, revela o futuro do menino.

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Dessa forma, Murilo descreve, por exemplo, a mitização de Sócrates da seguinte maneira, em Retratos-relâmpago: “O ato de morrer: descortesia a passado, cortesia a futuro. A morte como sistema” (MENDES, 1994, p. 1198). Como coloca no poema “Sacristia do Carmo de Ouro Preto” o mito se constroi “entre a nossa infância e o dom da morte” (MENDES, 1994, p. 533). Neste poema há um movimento de espelhos como alegoria da contemplação daquilo que é tão obscuro quanto o próprio “eu-poético” na cidade “tonta de espectros” (MENDES, 1994, p. 474):

Nestes espelhos refinados, frios Mirar-me inda não sei: miro Nestes espelhos a mesma Ouro Preto, E suspenso nos espelhos e na serra - Inquietante sinal posto Entre a nossa infância e o dom da morte – Miro o Cristo com seus cabelos Crucificado no meio de dois espelhos.

Suportando grandes jarras trabalhadas Eis o Cristo que nos mira inda morrendo. Sem ele eu pudera mirar o espelho (...) Talvez até que uma berlinda viesse Buscar-me para a festa das luminárias Ou um passeio nos arredores lajeados Talvez o orvalho me cobrisse E da caixinha de música da cômoda Se erguesse o grilo da primeira infância.

Mas não! Entre os refinados, frios espelhos, Miro o Cristo na cruz, e seus cabelos. Que podem esconder essas apuradas molduras?(MENDES, 1994, p. 533)

A mirada aos espelhos é o argumento central do poema, há um jogo entre mirar a si mesmo e a mesma Ouro Preto. No entanto, entre estas duas imagens, a do eu e a da cidade, e entre dois espelhos, eis o Cristo: “inquietante sinal posto” (MENDES, 1994, p. 533). Ao mirar o Cristo, que representa a imagem e semelhança do homem, focalizam-se os cabelos. É na ondulação da forma do barroco que Murilo contempla algo interdito. Na atração barroca pelo ornato, a atenção volta-se para os cabelos de Cristo e as apuradas molduras do espelho. A retirada para um mundo onírico é sugerida no olhar para o espelho, que corbriria o poeta com orvalho e faria erguer da caixinha de música da cômoda o grilo da primeira infância. Porém, encontra-se na moldura barroca um desvio, uma outra perspectiva de contemplação inscrita na pergunta “Que podem esconder essas apuradas molduras?” (MENDES, 1994, p. 533):

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Lamentarei que tombe em fragmentos Irremediavelmente O torso frio de Apolo (...) O deuses que trouxestes na aurora clássica Pedras para um templo de um Deus... (...)

Ó Grécia! Ó Grécia! Em Ouro Preto desvendei teu símbolo: Prelúdio foste de uma vida eterna... (MENDES, 1994, p. 533)

Como observa Tania Rivera em uma análise freudiana de transtornos de viagem, tal desvio pode ser lido como um “transtorno de memória” , termo usado por Freud em carta aberta, entitulada “Um transtorno da memória na Acrópole”, ao escritor francês Romand Rolland. Nesta carta o psicanalista faz um relato de viagem, com planos de passear alguns dias com seu irmão na ilha de Corfu, na Grécia. Durante o percurso, eles param em Trieste na Itália e são convencidos por um amigo a ir para Atenas. Um estranho mau-humor toma conta dos dois, tornando enigmáticos os motivos que os fizeram mudar o roteiro de viagem. Ao ver a Acrópole a reação é de total surpresa: “ De modo que tudo isso existe tal como aprendemos no colégio!” (FREUD, 1974, p. 3329). Há um espanto diante de tal constatação, pelo fato de representar uma dúvida e incredulidade, resultado de uma deformação que leva a concluir que a situação atual do monumento grego conteria um elemento de questionamento da realidade. Murilo faz o mesmo questionamento ao desvendar o símbolo grego na igreja barroca. Dessa forma, a contemplação representa uma Grécia que surge como símbolo de resistência à morte, que ronda Ouro Preto, como conclui o poema:

Ó Grécia! Ó Grécia! Desencadeada e domada. Cristais do Carmo, espelhos refinados, Não entrarei vosso oriente lúcido Obscuro é o nosso oferecido amor -Nem mesmo o podemos conhecer - , Inda obscuro é o céu de nuvens esgarçadas, Obscuro o que evocamos da infância crisálida. Uma cruz, esta sim, refletireis, Dom de beleza e morte – afinal abraçados. (MENDES, 1994, p. 533)

De fato, essa imagem de uma Grécia da morte resguardada é confirmada em Carta- Geográfica: “Direi que a cidade consiste na Acrópole e nos museus? Esquecerei o elemento mais vivo de Atenas e de toda a Grécia, a luz que, nos redimindo de muitas culpas, consegue nos subtrair à ideia dissonante da morte?” (MENDES, 1994, p. 1054). Assim, os espelhos do poema não refletem a beleza da Grécia, somente a mortandade da cruz, entre a obscuridade do

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amor e da infância. No entanto, na contemplação muriliana o dom eterno da beleza clássica é revelado na obscuridade da morte barroca. Entre a imagem da cruz e das estátuas dos deuses gregos, instaura-se a noção do agônico na obra de Murilo Mendes. Segundo Luiz Costa Lima , no termo ‘se cruzam o latim cristão agonizare e o grego agonizesthai, o primeiro indicando o “entrar em agonia” e o segundo “lutar”’ (LIMA, 2002, p. 24).

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3 MUNDOMINAS

“Percepção direta do mundominas O escritório do velho é fazenda abstrata.” Drummond

“Itabiromem claroenigmático (...) À brisa sarcástica de Minas Dorme acordado.” Murilo Mendes

As epígrafes de Murilo e Drummond destacam a contextualização do deslocamento do mapa mineiro a partir da relação com o mundo. O trajeto mundomineiro dos dois poetas cruza-se na contemplação da cidade barroca de Ouro Preto, que ilustra como o retorno a Minas é uma estratégia memorialística tanto no sentido pessoal – de retorno à origem mineira – quanto no sentido de uma reavaliação do projeto modernista, iniciado pelos “antropofagistas” de São Paulo, de valorização estética, histórica e política do Barroco mineiro. O sentimento de nacionalidade inicial, incutido pelos paulistas na busca do que fosse genuinamente brasileiro, é revisto pelos modernistas mineiros a partir perspectivas outras do Barroco. Nos dois textos de epígrafe, temos a mesma referência ao ambiente mineiro em seu aspecto universal na construção da identidade cultural brasileira, no imaginário do Estado- nação, como destaca Wander Melo Miranda, no artigo “A poesia do reesvasiado: Imagens da nação no memorialismo mineiro”. Mas, para além do Brasil, os espectros do Barroco afirmam um cosmopolitismo no conceito local de mineiridade. Nesse caso, na análise das contemplações de Ouro Preto, o termo mundominas, do poema “Escritório”, de Drummond, é um conceito híbrido, como síntese da mineiridade com o cosmopolitismo, representativos do Barroco mineiro e das apropriações deste pelas vanguardas modernistas em Murilo. Um homólogo muriliano ao termo mundominas “itabiromem” (MENDES, 1994, p. 689), do Murilograma para C. D. A., remete também ao “poeta-homem” (MENDES, 2003, p. 155) Belmiro Braga (na marca da frátria e do cosmopolitismo muriliano na relação com o poeta menor da província). O “itabiromem” dorme acordado, em uma possível referência ao sonhar acordado dos surrealistas, a que Breton chama de “arbitrariedade no mais alto grau” (BRETON, 1988, p. 38). Para além do Surrealismo, vale relembrar a posição modernista do sono proposta por João Cabral de Melo Neto: “o sono é uma aventura que não se conta” (NETO, 1994, p. 686).

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O claroenigmático está na relação vivificada do acordar e no enigma que é o sono (para além de qualquer interpretação, como é possível com os sonhos):

(...) o sono promove esse amálgama de sentimentos, visões, lembranças, que segundo Cocteau fará o verdadeiro realismo do poeta. Pode-se se dizer do sono que ele favorece a formação de uma zona obscura (um tempo obscuro), onde essa fusão se desenvolve (...) e de onde subirão mais tarde esses elementos que serão os elementos do poema e que o poeta surpreenderá um dia sobre seu papel sem que os reconheça. (CABRAL, 2003, p. 668)

Na análise de Antônio Cândido: “A Juiz de Fora de A Idade do Serrote é tonalidade quase fantasmal num lugar permeado de sonho” (CANDIDO, 1998, p. 56). Quanto a Ouro Preto, embora se possa dizer que é um lugar permeado de sono, a intenção da poesia muriliana é trabalhar justamente com a interdição do sonho e, ao mesmo tempo, levar os fantasmas de Ouro Preto para essa atmosfera por vezes onírica, repleta de “transtornos de memória”. Transtornos marcados pela profusão de imagens no tom poético de Contemplação que, nos romanceiros, chega a ser narrativo, e na poetização total do cotidiano de Juiz de Fora, com frases substantivadas, sem verbos. Entre o sonho e o sono, este último é a tônica das duas obras, no caráter de obscuridade da história e da infância. Além disso, há uma associação entre memória, sono e morte:

Antes de tudo, há a parte de “aventura”, como diria Murilo Mendes, o que de um certo modo já sugeri acima, escrevendo que o sono predispõe à poesia. Ainda aqui penso existir dois tipos nessa “predisposição”, um deles realizado pela idéia de abstração do tempo, de “fuga” do tempo, que Jorge de Lima considera “a pedra de toque do verdadeira poeta”, e que no sono se reveste de um caráter, já não mais “ideal” de pensamento, mas efetivo. O outro, realizado por essa ideia de morte a que o sono se associa para o poeta (...) (CABRAL, 2003, p. 687)

Feitas essas considerações, no poema “Escritório”, no espaço privado mineiro, na sala do escritório do avô, revela-se a percepção direta do mundo. Entre o “dicionário livro único/para o trato da vida” e “a ciência do sangue”, o escritório contém em si a aventura poética da “fazenda abstrata” (DRUMMOND, 1988, p. 497). O dicionário representa o conhecimento do mundo, a ciência do sangue e o locus mineiro. A mesma epifania do “mundominas” (DRUMMOND, 1988, p, 497) é expressa por Murilo na pagineta “O Queijo”, do livro Poliedro. A forma e contornos de um queijo-minas sugerem essa descoberta do mundo, também na infância, que se dá pelo aspecto relacional da forma do queijo mineiro com os outros queijos do mundo:

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A eternidade nasceu pois para mim redonda e branca, vinda da forma do queijo de Minas que despontava na mesa ainda fresco, trazendo uns restos de água alegre – ou do leite? – do dilúvio. A eternidade me dava de comer nas mãos. Até que um dia apareceu lá em casa o queijo do tipo flamengo, vermelho; alguns, é verdade, redondos, mas outros com pretensões a quadrados ou retangulares. Desde então meu conceito de eternidade perdeu a primitiva pureza ortodoxa. De resto, entre o redondo e o quadrado, entre o branco e o vermelho meu espírito balança desde o inicio. E não sei bem se a eternidade é efêmera (MENDES, 1994, p. 1009).

Flutuando sem grilhões, sobre o espaço e o tempo, o queijo mineiro é desterritorializado. O texto ressalta o projeto poético muriliano explicitando a necessidade de ir além do espaço gráfico e da experiência puramente linguística. Em seu aspecto táctil, pretende ser o quadro de um queijo: “Como poderia eu entender a palavra eternidade se me faltava uma experiência não-línguistica da mesma? Felizmente o queijo interveio por tangência” (MENDES, 1994, 1009). Em confluência com a proposta de livros como Poliedro, nota-se que, para Murilo, no sentindo óptico e de luz, a partir de uma dimensão da física, a literatura é uma arte da perspectiva e do espaço. Integrado à ideia relacional com o mundo e com as diversas formas de criação, conceito de mineiridade se dá através da substituição do processo descritivo de Minas pelo processo crítico sobre a poética mineira, tanto na poesia de Drummond quanto na de Murilo. O olhar em direção a Minas, na primeira viagem muriliana às raízes mineiras, em Contemplação de Ouro Preto, sugere um percurso da vida (autobiografia) à linguagem (representação das coisas do mundo, dos objetos), passando pela história (tempo da nação brasileira – do Brasil colônia – à eternidade). No caso específico das obras que contemplam o que seria o tema da mineiridade na escrita muriliana, o substrato material da vida do poeta fornece dados para observar a perspectiva política na relação entre as duas obras sobre Minas – Contemplação de Ouro Preto e Idade do Serrote – . Nas releituras de Minas feitas por Murilo, sugere-se uma redefinição do espaço mineiro repleto de referências à Europa: “Juiz de Fora naquele tempo era um trecho de terra cercado de piano por todos os lados” (MENDES, 2003, p. 74). Já para poetas como Drummond, o piano, em Itabira, era um instrumento hostil, europeu, que iria sobrepor-se ao canto do canário em Itabira:

O monumento negro do piano domina a sala de visitas. É maior do que ela, na imponência lustrosa de sua massa. Nele habitam cascatas encadeadas á espera da manhã. Tão bom que não falasse.

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Mas fala, fala. A casa é caixa de ressonância. Os pratos vibram. O ar é som, o cão reage, trava luta renhida com Czerny e perde. O pobre silêncio refugia-se no bico do canário (DRUMMOND, 1988, p. 1732).

Da mesma forma, Murilo não distingue o Barroco mineiro do Barroco espanhol:

Debruçado ao balcão do solar Vasconcelos De onde toda Ouro Preto estende-se aos meus pés (...) Deus Barroco espanhol, com enorme esplendor (MENDES, 1994, p. 472, grifos nossos).

Logo no primeiro poema de Contemplação, “Motivos de Ouro Preto”, os pianos são convocados:

E esses pianos dir-se-iam pianolas Tangendo sons remotos, subterrâneos, Restos de roídas polcas e mazurcas... Pianos inconfidentes (MENDES, 1994, p. 458).

Os pianolas, modernos pianos mecânicos que tocam música automaticamente, sugerem o ambiente musical de Ouro Preto, no deslocamento de um objeto moderno para a cidade barroca. Como Murilo vai para o mundo, considerando o cosmopolitismo do poeta, a projeção mineira nunca será provinciana. Como já se afirmou, apesar de Murilo ter ido para a Europa na idade madura, desde suas primeiras crônicas, escritas em Juiz de Fora, ele já demonstra sua vocação para o mundo.

3.1 MURILO E O ESTADO

Segundo Arruda (1999), o espectro do exílio está sempre no encalço dos mineiros. Desde a decadência, a diáspora é um dos símbolos que compõem o mito da mineiridade, e, nesse sentido, o Estado tem uma influência pontual no caso dos modernistas: “Para os “letrados”, a ruptura dos laços natais esteve fortemente conectada à imersão no aparelho do Estado, absorvidos que foram pelo regime, principalmente a partir dos anos 30” (MICELE apud ARRUDA, 1999, p. 206). O tratamento dado pelo Estado a Ouro Preto era, por vezes, bastante supérfluo, como se percebe na leitura dos jornais da época, como na propaganda do Grande Hotel, de Ouro

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Preto, um texto de exaltação, sugerindo que Ouro Preto era um lugar de paz e aconchego, o contrário da cidade-fantasma de Murilo. A propaganda circulou em várias edições do Diário de Notícias nos anos 194012:

Na cidade monumento onde tudo - até as pedras, as árvores e os edifícios - nos fala do passado grandioso do Brasil; onde tudo nos recorda as figuras de Tiradentes, Aleijadinho, Tomás Antônio Gonzaga e Marília de Dirceu, compondo-a e embelezando-a com a própria vida plena de nobreza e heroísmo, o Grande Hotel é o mirante ideal para um regresso confortável à infância da nacionalidade. Ali, gozando das comodidades e do requinte a que nos habituaram os grandes centros tumultuosos e tentaculosos, podemos nos deliciar com as obras primas da arte colonial e que o gênio imperecível de Antônio Francisco Lisboa emprestou vigor capaz de vencer a poeira augusta dos séculos (GRANDE HOTEL, 1945, p. 4).

O hotel diz oferecer, na província monumento, os mesmos requintes e comodidades de um grande centro. Em sua propaganda, difunde o mito de que o Aleijadinho, polêmico personagem na história, já que a autoria de muitas obras ainda é discutível, teve o poder de vencer a poeira dos séculos na pedra sabão. No poema “Romance de Ouro Preto”, o hotel é citado como ponto de observação:

Na cerração, Vista de frente, Vista dos fundos Lá das Cabeças, Lá do Rosário, Do Grande Hotel Do alto da cruz (MENDES, 1994, p. 480).

No Diário de Notícias, de 29 de Abril de 1945, Renato de Alencar, jornalista responsável por cobrir os fatos culturais e políticos na coluna “O que se passa em Minas”, escreve uma crônica especial para o suplemento “Letras e Artes”, criticando a superficialidade no tratamento dado à cidade barroca:

Faz pouco tempo o Ministério da Educação financiou mais uma excursão das “formigas”, grupo de senhoritas que de quando em quando visitam regiões dos estados vizinhos à Capital Federal. Desta vez o motivo da viagem foi Ouro Preto, relicário do Brasil e sede de nossos mais velhos sonhos de liberdade. (...) Ouro Preto devia receber mais atenção do ministro Capanema. (...) Mas tudo isso só seria possível se houvesse competência e direção em nossos homens de governo no sentido de cultura do povo, e não essa deplorável herança de senhoras feudais. (ALENCAR, 1945, p. 6)

12 Consulta feita na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

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O artigo de Renato Alencar chama a atenção para uma visão mais séria da “cidade- museu” (AMARAL, 1938, p. 6). Nesse sentido, podemos perceber a aproximação dos intelectuais com o Estado como uma iniciativa do governo de solidificar Ouro Preto, no imaginário nacional, como o símbolo tanto da história de luta pela independência quanto da originalidade da arte nacional preservada na arquitetura. Certamente, a recepção da viagem 1924 marca o Modernismo e irradia o ideal de se escrever sobre Ouro Preto e sobre o gênio Aleijadinho. Entretanto, como já se observou, a recepção representa a cidade barroca por outra perspectiva, uma vez que, no jogo político, ela já havia sido monumentalizada pelo Estado. Murilo colabora com o governo democrático de Vargas, publicando Contemplação, pelo Ministério da Educação e Cultura. A partir daí, passa a fazer palestras na Europa, até firmar residência definitiva em Roma. A arte engajada na rebeldia de uma certa destruição do monumento para adentrar nas ruínas da história e do trauma ouropretano, ao mesmo tempo que revela a cultura do povo – é “moeda de troca” em uma relação mundominas. É como se Murilo oferecesse poeticamente ao próprio Brasil o Barroco mineiro à moda modernista em troca do Barroco romano e espanhol, indo lecionar Literatura Brasileira em Roma, como adido cultural, até o fim da vida. Na era Vargas, o patrimônio do país será exaltado como símbolo para a construção da identidade de um Estado sólido. No entanto, a poética modernista irá revelar mais do que uma cidade que será preservada pelo valor de uma cartilha cívica: o valor do patrimônio real e dos seus desdobramentos em arquivos de cultura propicia a análise dos cruzamentos de uma memória institucional, social e pessoal. Há uma subjetivação da história e da própria política do regime que detém o poder. Murilo, assim como Drummond, servirá ao Estado.13 A rememoração crítica pelo intelectual moderno é crucial: nestas alturas dos anos 1950, o próprio movimento modernista deixa de ser uma novidade, sendo sacralizado como assunto obrigatório nas escolas do país. Em depoimento à rádio do Ministério da Educação e Cultura (1954), Drummond afirma o seguinte:

(...) O Modernismo, de tão integrado na evolução literária, foi reconhecido oficialmente, adotado nas escolas sacralizado... Não gosto muito disso não. Era melhor quando nos apontavam como os párias, os marginais da literatura. Tínhamos bom humor suficiente para nos divertir com os xingamentos, as pedradas. Os garotos de colégio nos estudam, nos entrevistam de gravador em punho. É a glória! e a

13 Murilo foi inspetor de Educação no Governo Getúlio Vargas, teve diversas publicações financiadas pelos governos federal e estadual, e, em 1957, foi enviado pelo Itamaraty para a Itália, onde lecionou cultura e literatura brasileira. Em carta a Alfredo Bosi dirá o seguinte: “Não trabalho na embaixada, nem nunca trabalhei; sempre na universidade. Há vários anos atrás fui considerado adido cultural, mas só para efeito de elevação de vencimentos;e durante algum tempo, só no papel”(MENDES, 1971, p.2).

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glória, você sabe muito bem, cheira a mofo e até defunto. Era tão gostoso brincar de Modernismo... Nos compêndios, nos tornamos defuntos importantes. O melhor é não ter importância e estar vivo (DRUMMOND, p. 47-48, 2008).

Estratégica e profissionalmente muitos intelectuais se associam ao governo, porém a produção artística, mesmo que agora em lugar canônico e federal, mantém o intuito de ser uma arte desacralizadora de qualquer totalitarismo. O poema “Luminárias de Ouro Preto” é uma exaltação dedicada a Capanema, sobre as luminárias da cidade, símbolo dos esforços de preservação, alegoria das relações entre o artista e o Estado:

Em Ouro Preto -Viva sua luz – Vi luminárias Dependuradas, Vi luminárias Que a mão conduz, Vi luminárias Roxas, azuis. Mas inda outras Vi luminárias Celoviárias No amor ocultas, Ó luminárias, Ó planetárias! Tu, Pai antigo, Pastor eterno, Motor divino, Geraste a luz (MENDES, 1994, p. 501).

Muito além das luzes de Ouro Preto, as luminárias de Capanema e do povo integram o poema cósmico que quer alcançar a luz oculta de Deus: “Fazeis ver tudo/ À luz do amor” (MENDES, 1994, p. 504). Se, por um lado, na perspectiva institucional, Ouro Preto apresenta-se na esfera do “olhar domado” (MENDES, 1994, p. 489), por outro lado, a polifonia dos poemas de Contemplação é a dobra de uma leitura da multiplicidade e imaterialidade. As casas e igrejas são espectros da barbárie, da violência contra Tiradentes e os escravos. No entanto, pelo menos no espaço da poética, essa barbárie pode representar uma potencialidade na fundação de futuras políticas. Se o primeiro poema do livro “Motivos de Ouro Preto” começa com a palavra assombração, o último poema, “Acalanto”, remete ao sono da preservação do patrimônio como um “sono da libertação” (MENDES, 1994, p. 540). A partir de um arquivo institucional, os arquivos-espectro dos vencidos sugerem um futuro, uma realização daquilo que não se realizou. Ao evocar as figuras do passado mineiro,

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retomar o projeto de 1924 e se relacionar diretamente com o governo, a partir dos anos 1950, com a publicação de Contemplação, Murilo encontra-se no duplo lugar dos inconfidentes: como políticos e como artistas. Cabe pensar até que ponto a conjuração de espectros de Aleijadinho e Tiradentes funcionam como uma conspiração de resistência da realização controladora da arte pelo Estado, ou poderiam ser encarados como aceitação da presente institucionalização.14 Esses são os dois sentidos de conjuração, para Derrida, em Espectros de Marx: “lutar contra o poder superior” (DERRIDA, 1994, p. 61) e “de outra parte a encantação mágica destinada a evocar, a fazer vir pela voz, a convocar um feitiço ou um espírito” (DERRIDA, 1994, p. 61). Os dois sentidos de conjuração atravessam as obras de Murilo Mendes, que não faz nenhuma menção a Tiradentes como herói nacional, apenas como um grande amigo:

Erra insatisfeita nos ares A alma trágica do alferes Joaquim José da Silva Xavier. Os amigos chamou, e o eco respondeu (MENDES, 1994, p. 458).

Na “Chronica Mundana” de 2 de Outubro de 1920, Murilo critica a adulação patriota de certos heróis, sendo Tiradentes o alvo principal:

Tiradentes, precursor do cirurgião Brás Magaldi, foi um burguês neurastênico e maluco, que cometeu a asneira de sonhar, há mais de um século, com a nossa Independência. Já lhe ergueram estátuas, já lhe dedicaram poemas, já celebraram uma ópera em sua glória, já honraram várias ruas e praças com seu nome, já lhe reproduziram as atitudes sublimes em quadros de dois metros de comprimento; anualmente no dia 21 de abril, os colégios realizam a inevitável sessão solene, com passeatas em bondes, cervejas e sanduíches; e há sujeitos que erguem a bengala, furiosos, clamando que o mártir ainda não é suficientemente dignificado... (MENDES, 2004, p. 148).

Por outro lado, Murilo faz um belo poema ao escultor Aleijadinho, retomando a ideia de ordem na “matéria já domada” (MENDES, 1994, p. 533) de uma constelação em que “fatigados caminhos refazemos” (MENDES, 1994, p. 532) Na homenagem a Aleijadinho, Murilo reconhece que os caminhos são fatigados. A representação de Ouro Preto seria, então, definitivamente rebelde. O próprio fato de Murilo fazer um soneto branco a Aleijadinho poderia representar uma reação contra a forma institucionalizada do soneto, refletindo na temática de um Aleijadinho que serve aos interesses de manipulação do Estado.

14 Questão proposta pela Profa. Dra Marília Rothier Cardoso, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), em minha banca de qualificação de mestrado, em 14 de junho de 2010.

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É interessante observar como Murilo liberta-se dessa obrigação, do Barroco artificial pregado pela política nacionalista, não se sentindo à vontade na cidade institucionalizada . Melancólico, como a querer escapar do peso da pedra de Ouro Preto, intercala-a com outras imagens mais leves, no meio dos poemas, como a lua, no poema “A Lua de Ouro Preto”:

Lua nas pedras, Por sob os pés De Nossa Senhora, Que lua luando! (MENDES, 1994, p. 517).

Nesse sentido, a trajetória das políticas de viagens remontam à crônica “Contemplação de Ouro Preto de Drummond”, ao Roteiro Lírico de Ouro Preto, de Afonso Arinos de Melo Franco, e à antológica viagem dos antropofágicos, em 1924, entre tantas outras viagens modernistas.

3.1.1 Drummond – Nava – Murilo

Seja pela perpetuação de uma existência que se vê finita e ameaçada pela morte, seja pela ausência que gera o desejo, as memórias em sua estrutura de narração dos fatos datados da vida, com as suas lembranças mais significativas, tiveram a estrutura tradicional reinventada por Drummond e Murilo que, junto com Pedro Nava, construíram um grande acervo cultural e literário da Minas modernista. A poesia ganha nova dimensão, e essas memórias passam a ser essenciais como últimos escritos dos poetas, revelando sua maturidade e estabelecendo novas relações com o sistema poético. Para a literatura, a análise dessas obras não apenas reinventa o “livro de memórias”, mas amplia o acervo cultural de Minas. A contemplação se configura pelo resgate da memória da cidade mineira por meio de recordações de viagem dos poetas, em uma relação positiva entre o público e o privado. Assim, nas memórias ouropretanas, o título Contemplação de Ouro Preto, de Murilo Mendes, que contém dezoito poemas sobre a cidade histórica, é uma referência explícita a uma crônica de mesmo título, publicada no livro Passeios na Ilha, de Drummond, de 1952, dois anos antes da publicação de Murilo. Os poemas deste seguem a mesmas temáticas da crônica daquele: o roteiro de viagem, as ruínas, a preservação do patrimônio, a afetividade, política, a morte, a memória subalterna dos escravos e boêmios, e, por fim, as figuras de Aleijadinho e Alphonsus Guimaraens. De fato, em sua crônica, Drummond registra que

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acompanhou o processo de composição do livro de Murilo, publicado dois anos depois: ‘ o meu companheiro de excursão, Murilo Mendes, vira em Ouro Preto uma cidade pobre de flores, “ sem outro ornato apurado – além da pedra do chão”.’ (DRUMMOND, 1975, p. 42). Os versos citados compõem a conclusão do poema “Flores de Ouro Preto”. Da mesma forma afetiva, o Roteiro Lírico de Ouro Preto, de Afonso Arinos de Melo Franco, nos apresenta Pedro Nava como personagem que acompanha o narrador, e é chamado de “o poeta”. Na segunda edição de 1980, Nava escreveu o prefácio para o livro, e considera serem ele e Afonso Arinos “filhos da gloriosa província dos metais e das pedras” (NAVA, 1980, p. 10) “entre sombras mais vivas que os vivos” (NAVA, 1980, p. 10). O poeta- personagem de Arinos tem um sentimento similar ao Murilo, que dedica o livro sobre Ouro Preto aos pais e entrevê momentos da infância nas poesias sobre a cidade: “Era lembrança de velhas histórias, de antigas estampas, de vistas fotográficas ou quem sabe? memórias do nosso sangue, recado genético arquivado dentro de nós na amálgama de nossos corpos” (NAVA, 1980, p. 11). No roteiro, um Nava totalmente boêmio, que causa confusão no botequim do Zé Badu e no hotel em que estavam hospedados, tem sensações poéticas comuns aos poetas que se veem em Ouro Preto, como a presença de espíritos e a vontade de morrer:

O poeta sentiu claramente a presença dos espíritos. “Pelo menos de um” – dizia ele, apreensivo - , “que está aqui a meu lado, entre mim e você. Estou sentido o bicho.” Mais tarde o poeta apurou, contando a sensação que tivera a um conhecido, que, de fato, um certo Zé Periquito, já defunto, era visto a rondar a Igreja de S. José e os muros do cemitério, em horas impróprias para pessoas vivas (FRANCO, 1980, p. 42).

A vontade de morrer é narrada em outro momento:

O poeta caiu numa profunda depressão. Queria chamar a polícia pelo telefone. Queria ser preso em Ouro Preto, como os seus colegas da Arcádia. Queria chamar a polícia, para tocar violão, para dar tiro. Queria se rasgar, se entregar. Queria morrer (FRANCO, 1980, p. 32).

O roteiro constrói Nava biograficamente, em uma linguagem coloquial que se deixa contaminar pelas cantigas populares e a própria efabulação de um romance como propõe Antonio Candido na leitura do poeta juizforano: “a sua obra é em prosa franca, de composição corrida e compacta, baseada em longas seqüências narrativas logicamente dispostas e engrenadas segundo uma necessidade não linear, mas cronológica” (CANDIDO, 1998, p. 60). Nessa prosa de Afonso Arinos, o leitor é levado a um conhecimento enciclopédico da cidade,

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mas em uma narrativa entrecortada pelas interdições boêmias de Nava, no meio das quais encontramos também pontos de referências comuns na Contemplação de Murilo. Um deles é a descrição das crianças da cidade, que Afonso iguala às crianças de Florença:

(...) observando alguns garotos que riscavam na calçada um jogo de amarelinha, servindo-se, para traçar os riscos, de um pedaço de pedra-sabão. Um momento duvidei de que fosse o famoso talco, cujos blocos se animaram tantas vezes, em figuras e motivos ornamentais sob as rudes mãos dos artistas da Colônia. Mas fui aos meninos, pedi-lhes a pedra com que riscavam e verifiquei era sabão. (...) Olhando as crianças brincarem com o mesmo material que serviu ao Aleijadinho não pude deixar de concordar com o honrado Saint-Hilaire, quando diz que as populações de Vila Rica, ainda no tempo em que ele por lá passou, tinham por causa da proximidade, em que vivia, dos resto de uma ilustre época distinta, uma finura, uma polidez e uma graça, inexistentes nas outras zonas de Minas, que não participaram da civilização do ouro. Aqueles meninos de Ouro Preto, na calçada da velha ponte, servindo-se da pedra ilustre para jogar amarelinha me fizeram pensar também, nuns garotos que vi em Florença, há muitos anos, brincando de esconder numa loggia pública, à beira da rua, entre o Perseu com a Cabeça de Medusa, de Cellini, e o Rapto das sabinas, de Jean Bologne. (FRANCO, 1980, p. 34)

Em “Romance das Igrejas de Minas”, Murilo diz o seguinte sobre as crianças de Ouro Preto:

Garotinhos retorcidos Descendentes dos garotos Que inspiraram Aleijadinho (MENDES, 1994, p. 465).

Finalmente, Afonso Arinos confirma o aportuguesamento de Ouro Preto: “Há realmente, um ar de família no urbanismo ibérico, e os portugueses o transmitiram a algumas cidades coloniais brasileiras.” (FRANCO, 1980, p. 50). Mas, ao mesmo tempo, adota a política modernista de valorização do popular, ao citar o versinho do peixe vivo, que Murilo também cita em “Romance da Visitação”, assim como a lenda do escravo Chico Rei, um dos espectros da Ouro Preto muriliana:

Com efeito, o movimento de renovação estética, a que se deliberou chamar modernismo, terminou, no Brasil, por uma paradoxal volta ao passado e às suas expressões essenciais. A recuperação do Brasil pelos seus poetas, músicos, pintores, sociólogos, arquitetos, partiu, incontestavelmente, da ingenuidade onomatopéica dos nossos futuristas da era do Centenário e adjacências. Mas foi do material antigo, dos lundus, modinhas, maleitas, mandigas, engenhos, quitutes, grupiaras e cafezais, que tiramos este amor, esta imensa ternura brasileira (...) (FRANCO, 1980, p. 17).

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Tais observações de Afonso Arinos apontam para aproximações com a poética autobiográfica de Murilo Mendes, oferecendo dados para caracterizar um lugar de contraponto em que estão presentes a tradição ocidental e os saberes populares contaminados por elementos não ocidentais. Podemos também considerar como resultado de tais contaminações a dimensão cosmológica da abertura de Idade do Serrote e da escrita poética dos anos 1930/40, tanto quanto a construção dos vários poemas de Contemplação apresentados nos ritos e atos católicos, como se tem observado, ao longo desta dissertação. O Roteiro Lírico de Ouro Preto é citado por Drummond na crônica “Contemplação de Ouro Preto”, de 1942, como um livro delicioso. Pensando-se, então, na contemplação de Drummond e Murilo, aparentemente, encontra-se uma apropriação do Barroco mineiro como um projeto modernista de construção política do patrimônio histórico no Brasil – projeto impulsionado por Mário e Oswald de Andrade –, bem como a busca de uma identidade do estilo criador modernista em sua ligação com uma tradição tão singular. A diferenciação está na proposta estética de ambos. Em carta a Alphonsus Guimaraens Filho, Murilo escreve o seguinte: “Em Ouro Preto deu-me a louca, e não pude escrever mais nada a não ser poesia e em torno de Ouro Preto” (MENDES, 1950, p. 02). Já Drummond esquiva-se de uma possível prosa poética na crônica, ao comentar, antes da chegada à Ouro Preto, em uma estação de trem do Rio: “ Musa, não cante este carname lúgubre, dedicado à glória de um general, mas na realidade exprimindo antes a escuridão das vidas humildes, sem horizontes e sem esperança” (DRUMMOND, 1975, p. 35). Já em Ouro Preto, ao narrar sobre as ruínas de um episódio ocorrido em julho de 1720, quando o Conde de Assumar ateou fogo no arraial de Ouro Podre, na antiga Vila Rica, mantém a posição de não contaminar a crônica com lirismo: “Mas este será apenas ponto de partida, para a imaginação literária, de pungente meditação sobre a poesia das ruínas. Descanse leitor: não a faremos” (DRUMMOND, 1975, p. 41). Do Rio a Minas, Drummond inicia a crônica em um tom melancólico: “o desejo de voltar segue conosco, entrelaçado ao propósito de ir” (DRUMMOND, 1975, p. 33). Ao falar sobre a Inconfidência, elege uma bacia de urinar, objeto menor, para compor a história maior da nação: “é o episódio da Inconfidência, desdobrado pelos meandros dos autos de sua devassa, que iam envolver pessoas e bens espalhados por toda a região, e a que não escaparam nem mesmo uma ‘bacia de urinar, pequena de estanho’, sequestrada ao Padre Manuel Rodrigues da Costa” (DRUMMOND, 1975, p. 36). O cronista sugere as duas formas de se falar sobre Ouro Preto: “ a grave e a lírica (...), porque Ouro Preto é história e poesia, é sentimento dramático dos conflitos sociais, e graça esquiva de moças cantando ‘ se a vida

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perpétua cheirasse’” (DRUMMOND, 1975, p. 36). Drummond vai percorrendo Ouro Preto e deixando rastros que sugerem um Murilo leitor e companheiro de viagem. Nos poemas de Contemplação, esses rastros são reconhecidos nos temas de uma história menor compondo uma maior: múltiplo Barroco, afeição a Alhphonsus de Guimaraens, e até mesmo na menção à grande figura afetiva e intelectual na vida de Murilo, o sogro Jaime Cortesão.

3.1.1.1 A viagem de 24: Murilo e a Antropofagia

Iniciada com a viagem a Ouro Preto, a mirada em direção a Minas na obra de Murilo propõe o seguinte questionamento: qual a perspectiva de Murilo ao passar por essa espécie de lugar-comum do Modernismo? O poeta juiz-forano, que até a fase madura, nos anos 1950, não havia estampado em sua obra, de forma contundente, sua mineiridade, parece não ter resistido a uma espécie de trabalho poético de encomenda, sobre Ouro Preto, cidade ligada ao projeto nacionalista do modernismo e do Estado. Em carta a Alceu de Amoroso Lima, o juiz-forano demonstra certa curiosidade e resistência com relação à atmosfera mineira: “Vim passar algumas semanas aqui, à procura dessa coisa metafísica que é ‘o clima de Minas’. Ainda não o encontrei, mas acabo encontrando” (MENDES, 1936, p. 1). Nesse sentido, carregada do interesse em captar a cor local de Minas Gerais, a viagem da caravana de São Paulo a esse Estado foi emblemática para o Modernismo. A redescoberta do legado Barroco em uma vanguarda de cunho nacionalista transforma Ouro Preto em um lugar de visitação obrigatória, símbolo de um patrimônio apropriado como movimento artístico. O ponto de vista de Murilo Mendes sobre essa jornada aponta para o valor da incorporação de ideias advindas de outros lugares culturais, influenciado pela intenção antropofágica: “Tarsila inaugura um eixo inesperado: Sabará-Paris. Encontram-se num território ideal Henri Rousseau, Léger, Gleizes, Lhote e nossos ingênuos decoradores de capelas, arcas e baús, muitos deles anônimos.” (MENDES,1994, p. 1003). Nesse sentido, a visão de Murilo é a de ampliação do espaço artístico mineiro para o mundo. Ao afirmar, poeticamente, que Tarsila inaugura um eixo inesperado “Sabará-Paris” e realiza uma síntese de culturas, desfaz-se o mito de que os antropofágicos buscavam em Minas apenas uma arte genuinamente brasileira em oposição à cultura europeia. Apesar de certo ufanismo, Mário de Andrade, em viagem a Ouro Preto, em 1919, ressalta o cosmopolitismo da arquitetura barroca mineira que “assume a proporção dum verdadeiro estilo, equiparando-se, sob o ponto de vista histórico, ao egípcio, ao grego, ao gótico. E é para

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nós um motivo de orgulho bem fundado que isso tenha se dado no Brasil” (ANDRADE, 1993, p. 79). De fato, redescoberta na produção textual de Oswald, Tarsila e Mario de Andrade, a importância do Barroco mineiro foi incorporada à agenda governamental. Quando Murilo se propõe a escrever sobre a cidade, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral,Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Cecília Meireles e Drummond já o tinham feito. O que tem se delineado nessas comparações é a dimensão do tratamento dado por Murilo ao tema de Ouro Preto em função do projeto modernista desenhado a priori pelos autores já citados. Observando a maneira particular como Murilo insere sua obra ao lado de outras que compõem o alto modernismo brasileiro, o espaço mineiro traz novas nuances para questões complexas, como a da Antropofagia e da identidade nacional, num redimensionamento da importância dada pela crítica a essas problemáticas. Em artigo intitulado “Ismael Nery”, na revista Festa, Murilo Mendes é assertivo ao se proclamar “contra todas as concepções de folclore e nacionalismo que constituíram moda nesses últimos anos” (MENDES, p. 71, 1935). Ao contrário de Mário e Oswald, o poeta mineiro não se define como voltado à consciência nacional. Enquanto na primeira fase do Modernismo Mário, ironicamente, proclamava que “(...) livres, pelo exemplo dos europeus, vamos seguir o nosso caminho que é todo diverso do da Europa desinteressante” (ANDRADE apud DUARTE, 1971, p. 300), Murilo, em seu primeiro livro, Poemas (1930), assumia uma postura de não ensejar um choque entre centro e periferia, na legitimação da literatura nacional:

Ninguém tem a cabeça no lugar Malazarte pegou uma tesoura e cortou e o passado em mil pedaços, o índio, o português, o africano deram o fora mas os tártaros ainda perturbam o sono das crianças mineiras e o poeta tem a metade do corpo enfiada na noite do Brasil e da Rússia porque as cabeças do poeta e dos brasileiros pertencem ao pensamento de Deus (MENDES,1994, p. 94 ).

Mesmo que o convívio com as vanguardas tenha contribuído para a consolidação de outros padrões estéticos, é muito particular, nos destaques de Idade do Serrote, o conhecimento das babás negras, dos tipos de rua e dos artistas do povo, certamente indicando ligações afetivas muito mais antigas e arraigadas do que os contatos do artista crítico com a máscara africana ou objetos e artigos através de proposições surrealistas. O contato com culturas não ocidentais é de infância, que o poeta continua buscando, mas é bem anterior à

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amizade de Ismael Nery e ao interesse pelo surrealismo. No poema “Casamento”, a referência ao catolicismo na afirmação de que as cabeças dos poetas estão entre o Brasil e a Rússia e pertencem ao pensamento de Deus, resvala o nacional em segundo plano. O mesmo com os versos “Malazarte pegou uma tesoura e cortou o passado em mil pedaços, /o índio, o português, o africano deram o fora” (MENDES, 1994, p. 94), que impelem todas as etnias a uma integração e servem de crivo para uma leitura da história muito mais apoiada em um movimento cíclico do que linear, constituindo a memória não como preservação do passado, mas como coordenada vital do presente. Dessa forma, o verso “os tártaros ainda perturbam o sono das crianças mineiras”, transfere o mito grego, nascido a partir do caos,15 para o provinciano universo mineiro. Faz-se, a princípio, um caminho alternativo ao da Antropofagia para romper com o circulo vicioso da dependência cultural brasileira. Provavelmente, consciente das intervenções de muitos artistas críticos nas políticas culturais do Estado , que no governo Vargas e posteriormente oscilou entre autoritarismo e democratização, Murilo procurou retirar uma função nacional de sua arte, ao trabalhar com diferentes heranças, de maneira que os traços culturais seguem lado a lado. Nesse sentido, os textos com referências predominantemente européias relacionam-se com as heranças populares nacionais. A relevância estratégica estimulará o discurso literário sobre o patrimônio histórico nacional. O diálogo com a tradição é situado na esfera da criação x preservação: a prática modernista brasileira, em sua variedade e complexidade de propostas estéticas diferentes (surrealismo, cubismo, dadaísmo, etc.), associa-se às políticas nacionais de ações de tombamento do patrimônio histórico, que visa à preservação e, ao mesmo tempo, à institucionalização da memória pelo regime do Estado. Vale ressaltar uma possível recepção de Mário de Andrade em Murilo no soneto “Ao Aleijadinho”. O escultor é como um mito ufanista para os modernistas ao fazer a ponte Minas-mundo e ideologicamente inspirar a criação contemporânea. O próprio Mário de Andrade, sem a radicalidade da originalidade ufanista puramente brasileira, vai interpretar Aleijadinho da mesma forma que Murilo configura o escultor em Contemplação, sob o viés do mestiço, cuja voz passará a ser ouvida e elevada como arte do Brasil em uma relação positiva com as influências europeias:

15 Dado do Livro de Ouro da Mitologia

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Pálida a lua sob o pálio avança Das estrelas de uma perdida infância. Fatigados caminhos refazemos Da outrora máquina da mineração.

É nossa própria forma, o frio molde Que maduros tentamos atingir, Volvendo à laje, à pedra de olhos facetados, Sem crispação, matéria já domada,

O exemplo recebendo que ofereces Pelo martírio teu enfim transposto (...) (MENDES,1994, p. 533).

Murilo sugere que tanto ele quanto os modernistas sigam os passos do Aleijadinho, de forma que o escultor transforma-se nesse heroí intelectual dos modernistas: "É nossa própria forma o frio molde, / que maduros tentamos atingir / o exemplo que recebemos ofereces" (MENDES, 1994, p. 533). Talvez possamos observar o Modernismo sob a estética barroca, já que o Barroco não rompe com o clássico, antes, vai buscar a liberdade das formas, rompendo com o academicismo clássico. Igualmente, o modernismo não rompe com a base clássica e com a barroca, já que os artistas são eruditos e valorizam o diálogo com a tradição para que esta não se perca. Mario de Andrade diz o seguinte sobre o Aleijadinho:

Mas abrasileirando a coisa lusa, lhe dando graça, delicadeza e dengue na arquitetura, por outro lado, mestiço, ele vagava no mundo. Ele reinventava o mundo. O Aleijadinho lembra tudo! Evoca os primitivos itálicos, bosqueja a Renascença, se afunda no gótico, quasi francês por vezes, muito gêrmânico quasi sempre, espanhol no realismo místico. Uma enorme irregularidade vagamunda, que seria diletante mesmo,si não fosse a força de convicção impressa nas suas obras imortais. É um mestiço, mais que um nacional. Só é brasileiro porque, meu Deus aconteceu no Brasil. E só é o Aleijadinho na riqueza intinerante das suas idiossincracias. E nisto em principal é que ele profetizava americanamente o Brasil (ANDRADE, 1975, p. 11)

O comentário lúcido e poético do artigo de Mário de Andrade historiador poderia muito bem ser um comentário de Murilo Mendes. O caráter mestiço abordado por Mário parece não se referir à raça, mas sim à apropriação de outros estilos europeus, o hibridismo da forma e das vozes que se percebem no texto de Murilo. Pensando em Murilo que olha o Brasil na fase madura, especificamente Minas em Idade do Serrote e Contemplação , pode-se até parodiar o mesmo que Mário observou em Aleijadinho, na obra de Murilo: e nisto em principal é que ele profetizava europeizantemente o Brasil.

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Em uma outra possível recepção antropofágica, com Tarsila do Amaral, a questão do patrimônio relaciona-se com a crise do mundo pós-guerra, cujo senso de perda os modernistas, em geral, pontuarão. Embora, nas guerras mundiais, as cidades brasileiras não tenham sofrido nenhuma perda física, Ouro Preto será signo concreto dessa possibilidade, quer seja pelo medo de a guerra atingir o espaço nacional, quer seja pela perda de uma cidade que é um museu tão singular em nossa paisagem. As ruínas do Barroco mineiro seriam reflexos das ruínas modernistas na crise do mundo moderno. Sendo assim, Murilo Mendes, pouco político no quesito partidário e muito político no sentido de estar no mundo, exercitou a tarefa de escrever um livro de poemas sobre Ouro Preto, corroborando um projeto modernista em momento de crise e reavaliação ideológica do movimento. Na ideia nacionalista de patrimônio histórico, no período pós-guerra, em que o senso de um mundo em ruínas assombra as nações, e o instinto de preservação se faz emergente, os planos alegórico e político da realidade social por parte do poeta associam-se. No entanto, os motivos de Ouro Preto também sugerem um caminhar pelas ladeiras da cidade para se descobrir o Outro e sua pluralidade, por meio de um choque positivo entre as diferenças – uma marca da poética muriliana. Há uma espécie de otimismo na cidade de ruínas e assombração, quando se veem “voltarem à vida” os personagens que compõem a fabulação, oficial ou não, do passado da cidade no seu presente:

Como tantos outros, vi tantas cidades. Cada uma delas se me afigura uma entidade de fisionomia própria, rica de personalidade e quase antropomórfica. E todas elas diante de mim, desfilam, uma a uma, evocadas pela minha saudade. (...) que restará depois, quando os canhões silenciarem? (AMARAL, p. 6, 1944).

A resistência poética insurge também contra o aspecto destruidor da massificação urbana. Dos textos escritos pelos antropofágicos paulistas sobre essa questão nas cidades brasileiras, os artigos de Tarsila do Amaral para o Diário de São Paulo atentam, por um lado, para o problema da veloz urbanização que devora a memória das cidades, por outro, para um certo romantismo do ideal de retorno às origens, que traria uma pureza na mitificação de algumas paisagens. A pureza dos tempos coloniais representa quase uma integração da arquitetura colonial à natureza:

Enquanto a Bahia vai crescendo, vai-se alargando, vai-se expandindo na conquista das alturas, os seus arranha-ceús vão subindo como blocos de silêncio, esmagando a rua que grita, buzina, briga, corre, estafada numa fadiga obrigatória na cidade viva. Bem contrastada com ela está escondida entre montanhas, escondida em serenidade, dorme nas terras pioneiras a cidade-museu que é Ouro Preto. Ali tudo se conserva com a pureza dos tempos coloniais (AMARAL, 1938, p. 6).

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No retrato-relâmpago de Tarsila, Murilo chama a atenção para a influência das obras da pintora na poesia modernista: “a pintura pau-brasil e a pintura antropofágica aplainam os caminhos posteriores da poesia” (MENDES, 1994, p. 1003). No entanto, não só a pintura, mas a própria crítica de arte feita pelos autores como exercício de autocrítica serviria como preparação para a obra, ou mesmo para sua defesa. A pintora antropofágica influencia Murilo no trânsito entre o signo verbal e o signo plástico: “Telas como ‘Distância’, ‘A cuca’, ‘O sono’, ‘A Negra’, viajarão clandestinamente ao longo dos meus ‘Poemas’, alternando com outras de Max Ernst, do Primeiro Cícero Dias e do primeiro De Chirico” (MENDES, 1994, p. 1003). O poema “Aquarela” apresenta uma possível relação entre Murilo e Tarsila:

Mulheres sólidas passeiam no jardim molhado da chuva, o mundo parece ter nascido agora, Mulheres grandes, de coxas largas, de ancas largas, Talhadas para se unirem a homens fortes (MENDES, 1994, p. 101).

São essas “mulheres sólidas” (MENDES, 1994, p. 101) que a tela “A Negra” representa:

Fig.4: A Negra. Fonte: Catálogo Raissoné.

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O “jardim molhado da chuva” (MENDES, 1994, p. 101) se apresenta em telas como “Distância”:

Fig. 5 Distância. Fonte: Catálogo Raissoné.

A mundivivência de Murilo situa Tarsila, De Chirico e Marx Ernest no mesmo plano na composição de um signo plástico em Poemas, de 1930. Finalmente, a relação entre a prosa de Idade do Serrote e Retratos-relâmpago, como itinerário de formação de um poeta do mundo, aponta um Murilo antropofagista:

Mas na prosa de Murilo há um elemento a mais, um denominador comum capaz de abrasileirar, por assim dizer todo o conjunto. Falo da antropofagia. Uma antropofagia de espécie superior, mas consubstancial à do primitivo comendo ritualmente o corpo do adversário para adquirir suas qualidades. Desde A Idade do Serrote, até ao Espaço Espanhol e aos Retratos-relâmpago, esta prosa é um eterno processo antropofágico, uma contínua tensão dirigida a captação do Outro, à sua deglutinação, não nos moldes aplicados ao Bispo Sardinha, mas na sua reinvenção por Oswald e pela antropofagia brasileira de letras (PICCHIO, 1980, p. 11).

Sua principal interlocutora em Roma, Picchio faz pensar Murilo, a partir da análise de sua prosa-poética, como o antropofagista do olho armado que transita do Brasil a Roma.

3.2 UMA POÉTICA DA AMIZADE: MINAS-ROMA

Concomitantemente com as referências a espaços regionais e a relação com artistas contemporâneos europeus e brasileiros das mais diversas áreas, a ambiência intelectual de Murilo Mendes na Europa é a tônica da relação entre as figuras afetivas e intelectuais selecionadas no mapa de Roma e Juiz de Fora. Direciona-se para a questão da memória, que reafirma o ideal de constante vanguarda em Murilo, em que a amizade se configura como

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dado fundamental. As obras Idade do Serrote e Retratos-Relâmpago são vistas de forma relacional, na medida em que o poeta trabalha com um conceito de memória operativa e transformadora, transitando do conceito tradicional de autobiografia para a recriação das memórias pessoais como legado cultural e intelectual. A riqueza temática de Murilo Mendes é revista sob a ótica da amizade na comparação com outros autores. A relação brasileira e europeia é permeada pela interdisciplinaridade: psicologia, filosofia, política, pintura, cinema e literatura são depurados a partir do trânsito do olho armado, como simbolizam as colagens abaixo:

Fig. 5: Colagem Idade do Serrote. Fig. 6: Colagem Retratos-relâmpago. Fonte: De minha autoria. Fonte: De minha autoria.

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As colagens do mapa de Minas com os personagens de Idade do Serrote e o olhar armado de Murilo em direção à Itália representam o deslocamento espacial para o eixo europeu, em Roma, representada pelo mapa da Itália. Sobre esse processo antropofágico, Picchio observa:

A forma extremada desta antropofagia poética é o “retrato-relâmpago” em que o Outro procura ser definido englutido, com todas as suas características, com uma curiosidadade que às vezes se torna convivência, simbiose, parasitismo. Mas o jogo antropofágico estende-se ao passado, aos objetos entregues à memória, vivendo no substrato do eu profundo (PICCHIO, 1980, p. 12).

A mesma entrega do instante de viagem a Ouro Preto pode ser então percebida na convivência em Roma. A leitura das memórias de Murilo é enciclopédica e afetiva: o passado pessoal do escritor é composto por figuras humanas conhecidas, como nome de ruas, referências culturais e alguns mitos. As memórias do autor resgatam um passado coletivo que é tanto regional quanto universal. Nesse caso, a linha que separa o que é universal do regional é tênue, na maneira vanguardista de o autor mesclar tais conceitos, criando uma dicotomia pela qual atravessa toda a obra literária. Murilo faz uma investigação não cronológica e cultural como um poeta, narrador, historiador, crítico de arte e amigo, que por ser multifacetado, acaba criando um novo conceito de memória, como gênero de vanguarda. Merecidamente reconhecido pelo cânone, A Idade do Serrote figura como um grande livro da literatura nacional, em que prosa e poesia são mescladas na visão do poeta sobre sua infância em Juiz de Fora, interior de Minas Gerais. No entanto, A Idade do Serrote não é apenas o ponto de partida, é a primeira sala da coleção de Murilo, que construiu o seu museu de papel. As memórias de Murilo apontam sempre para o futuro: trata-se das memórias de um homem que é seu próprio contemporâneo, que só pode sê-lo na medida em que as recria a partir das referências culturais. O diálogo entre tradição e modernidade aponta para o futuro que é baseado nas referências passadas. Nesse aspecto, a amizade configura-se como dado “fundamental não apenas pelo lado afetivo – intimista, mas também (ou principalmente) pelo aspecto de vida para fora de si, para o mundo, para o outro” (PEREIRA, 2004, p. 54). A leitura de diversas obras murilianas relacionadas à poética memorialística proporciona uma visão esclarecedora de seu sistema poético; é possível reconhecer os temas do cosmos da obra do poeta: o nascimento, o surrealismo, as relações afetivas, o futuro, a eternidade, a reinvenção da tradição, a ironia, o estar no mundo, o caos e a morte.

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Na tentativa de leitura dos setenta e três imagens pintadas por Murilo, em Retratos- relâmpago, o leitor penetra em um universo íntimo das interfaces entre o plano literário e o pessoal, em que a amizade construída na intelectualidade oferece a possibilidade de se enxergar uma reconstrução íntima do contexto externo. As amizades intelectuais de Murilo refletem a ação dos outros no em seu espírito. Como nos diz Drummond:

O que há de mais importante na literatura,sabe? É a aproximação, a comunhã que ela estabelece entre seres humanos, mesmo à distância, mesmo entre mortos e vivos. O tempo não conta para isso. Somos contemporâneos de Shakespeare e Virgílio. Somos amigos pessoais deles (DRUMMOND, 2008, p. 52).

Em entrevista concedida por Silviano Santiago, ainda não publicada e realizada pelo aluno João Paulo Silvéro dos Reis e pela Prof. Dra. Terezinha Maria Scher Pereira, em 2006, sugere-se ler Murilo pelo viés da philia platônica. Em seu contexto platônico, philia engloba amor/amizade entre dois. É interessante pensar o conceito em oposição com as categorias da retórica clássica endeia (a falta) e aemulatio (igualdade ou superação). Ao analisar as relações de philia entre escritores contemporâneos, os críticos estebelecem questões como: “Um autor preenche algo que falta a outro?” ou “Quem forneceu o paradigma a quem?”. Tais questões propostas por Silviano Santiago se definem a partir da retórica clássica que tinha um vocábulo para explicar a complexidade dos sentimentos contraditórios(...). Trata-se de um conceito de emulação (aemulatio). A positividade da philia está na aemulatio (e não na “cordialidade”): sentimento que leva o indivíduo a tentar igualar-se a ou superar outrem, como coloca Silviano Santiago. Não pretende-se, neste trabalho, fazer uma análise dos “retratos-relâmpago”, de forma que os conceitos explicitados são um mecanismo para elucidar o que Picchio (1980) considera a Antropofagia em Murilo, podendo também ser lido pelo viés da amizade. A intenção é a de explicitar como Retratos-relâmpago funciona como um projeto associado ao das poéticas de Contemplação e Idade do Serrote: enquanto, no primeiro, a amizade transparece nas dedicatórias aos amigos, no segundo a descrição das figuras afetivas liga-se ao território mundominas. Em Idade do Serrote já se percebe que há algo além da cidade: a figura humana é muito mais importante; os intelectuais da vanguarda retroagem no espaço mineiro reconstruído pelos saberes populares; e esses saberes da convivência de Murilo com a ambiência cultural do Brasil modernista, assim como as dedicatórias, contém uma potência relâmpago.

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Isso já está claro logo no primeiro poema de Contemplação dedicado ao crítico de arte Ruben Navarra, “Motivos de Ouro Preto”. O ritmo caótico revela a pluralidade de visão, ressaltando a presença do assombramento, dos espectros, da arte barroca, da imagem da loucura na viúva de Ouro Preto, e, finalmente, a visão da morte e da piedade divina nas expressões latinas do ritual da missa católica: “Kyrie eleison. Memento mori. Kyrie eleison” (MENDES, 1994, p. 461). Pode-se dizer que o poema é um espelho da própria figura de Navarra e que a dedicatória contém a potência de um “retrato-relâmpago”. De fato, uma espécie de retrato de Ruben foi feita em Roma, em dezembro de 1957, compondo o livro Conversa Portátil, que reúne textos esparsos de 1931 a 1974. Murilo fala de como conhecera Navarra, da primeira impressão hostil sucedida de grande confiança e admiração intelectual, das impressões em relação ao seu pensamento e ao seu conhecimento:

Ruben cedo percebeu que a distinção entre arte antiga e moderna era fictícia, boa para os manuais escolares. Via na arte, não apenas uma das expressões mais altas da cultura, mas, pela sua própria continuidade, identificava-a com o destino do homem (...) Tive a sorte de viajar com ele em terras de Minas Gerais. (...) Essa viagem forneceria muitos elementos ao meu livro Contemplação de Ouro Preto, cujo primeiro poema é justa e precisamente dedicado a Ruben Navarra. Meu amigo sentia Ouro Preto como poucos. Além do conteúdo propriamente histórico da cidade, breve assimilou Ouro Preto transfigurada pelo mito, a cidade magra que ele opunha à robusta Bahia (MENDES, 1994, p. 1483).

Murilo segue com o retrato do amigo dizendo que faltava a Ruben uma viagem a Europa, o que acabou acontecendo entre 1949 e 1950. No entanto, o impacto renascentista e as visões do antigo mundo europeu levaram-no a um desligamento do mundo. Depois de receber uma carta de Navarra, endereçada de Roma, Murilo passou a se preocupar com o futuro do amigo: “Sua ruptura com o mundo atual crescia paralelamente à sua integração no mundo clássico ou barroco” (MENDES, 1994, p. 1484). Tal gesto representa o oposto da poética da aprendizagem e vocação para as artes e o Outro, que integra Murilo ao cosmo: uma estratégia de sobrevivência entre mundos diversos. No final do retrato de Ruben Navarra, Murilo registra que o amigo deixara muitos escritos importantes sem publicação, e os identifica como três possíveis livros. Parece que o poeta empenha-se na tarefa de uma edição póstuma, feita por um possível leitor do texto- epitáfio de Ruben. Com essa intenção, o longo texto, poético e reflexivo, termina por fornecer informações exatas e objetivas sobre Ruben: nome completo, vida profissional data e local de nascimento e de morte. Nesse sentido, a amizade configura-se como forma de resistência contra a morte. O “epitáfio” contém uma pontencialidade de realização futura, a

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partir do conhecimento gerado nas relações afetivas. É dessa maneira que Murilo inscreve em Roma, na fase final de sua vida, uma poética da amizade. Percebemos como a amizade funciona, como na atividade política, como tática de escape ao controle dos aparelhos de Estado. A sua escrita e viagens de trabalho, apoiadas nos elos da philia, portanto elos fraternais, permitiram-lhe cumprir missões de tipo paternalista, subvencionadas e dirigidas pelo governo, – sem se deixar cooptar. Seu apego às relações entre companheiros, fora das hierarquias, é que lhe teriam permitido participar, a seu modo crítico e autocrítico, de atividades de construção de um patrimônio nacional, sem nunca ter-se apegado ao poder da nação, ao contrário, desqualificando sempre esse tipo de centralização de forças. Foi através de deslocamentos para o local e o internacional, que logrou incentivar, pela divulgação da arte, filiaçõs fraternas capazes de aumentar e multiplicar o pode e o valor do patrimônio em resíduos artísticos que se sustentam, através dos tempos, pela potência de sua própria constituição estética.

3.2.1 Professor Aguiar-Spinoza

Segundo a ideia de que Retratos-relâmpago realiza um projeto intelectual de Murilo, que estaria em gérmen em Contemplação e Idade do Serrote, propõe-se a leitura do texto “O Professor Aguiar”, de Idade do Serrote, e “Spinoza” de Retratos-relâmpago. A leitura demonstrará como o olhar armado serve como ponto de intercessão entre as duas obras:

PROFESSOR AGUIAR

“(...) lê-me páginas de Spinoza, “meu pai espiritual”, diz, que não entendo mas que me acendem a cabeça; repete muitas vezes: segundo Spinoza o poder de Deus é sua própria essência; entrega-me uma folha de papel com um aforismo de Spinoza que mais tarde meditarei: o desejo é a própria essência do homem, que dizer, o esforço pelo qual o homem se aplica em perseverar no seu ser. (MENDES,1994,p.938)

SPINOZA

Baruch Spinoza escapa de nascer em . Traz o selo da raça alegórica, predestinada, perseguida. (A diáspora é uma figura humana desviando-se do Criador.) Teólogo livre, aprofunda o território da pesquisa racional, designa os atributos conhecidos de Deus: pensamento e extensão. Constrói todo um sistema em formas geométricas. Nasceu para observar o exterior e o íntimo dos corpos: fixado em Amsterdam aperfeiçoa a lente, que já agora corresponderá ao valor significante do espelho na pintura holandesa e flamenga. O homem do pormenor adere ao cosmo.Sim: contemporâneo de Rembrant, Vermeer e Pieter de Hooch, está para a filosofia como eles para a pintura.

“Os espíritos e os corpos de todos compõem por assim dizer um só espírito e um só corpo.” *

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“O desejo é a essência mesma do homem, o esforço pelo qual o homem tende a perseverar no próprio ser.” * “O supremo orgulho ou a suprema depreciação de si (abjectio) constituem a suprema ignorância de si” (MENDES, 1994, p. 2999).

De um texto de Idade do Serrote a um texto de Retratos-relâmpago, percebe-se que Retratos é também um livro de memórias. O último capítulo de Serrote, “O Olhar Precoce”, pode ser considerado como uma introdução para Retratos. A metáfora do olho armado pode representar a transição da Belle Époque de Juiz de Fora, anterior às guerras mundiais, para um tempo de reflexão sobre as vanguardas, momento em que, na relação espacial, o poeta mora na Itália. No fragmento lido, o Professor Aguiar entrega ao jovem Murilo um aforismo que o poeta não entende, mas cujo conteúdo irá gerar desdobramentos decisivos de sua (po)ética. Se o autor das memórias da infância não entendia Spinoza, a mesma dúvida instaura-se em um leitor que não tenha conhecimento prévio da ética de Spinoza. Mais tarde, Murilo, já maduro, meditará sobre o aforismo e o repetirá. Estabelece-se um vínculo na associação entre Professor Aguiar, Murilo e o leitor. O jogo muriliano acontece pelas possibilidades de desdobramentos da leitura do retrato. Para compreender o que parece desconhecido, o leitor poderá apropriar-se do olho armado para descobrir Spinoza em outras leituras de textos sobre filosofia e até mesmo biografia. Dessa forma, o caráter pedagógico de Retratos está no cruzamento de conceitos tradicionais de biografia (o Outro) e autobiografia (Murilo) como um conceito de memória reveladora. O aforismo tantas vezes repetido pelo professor Aguiar serve como uma introdução para se conhecer o sistema filosófico de Spinoza, para quem a essência consiste “no conhecimento da união que a alma tem com a Natureza inteira, isto é, com Deus” (GLEIZER, 2005, p. 10). Esse Deus “em nada se confunde com o Deus transcendente, pessoal e criador da tradição judaico-cristã”, assim, “é imanente à Natureza, e o conhecimento de nossa união com ele nada mais é do que o conhecimento intelectual de nós mesmos como partes na natureza” (GLEIZER, 2005, p. 17). A partir dessa ideia introdutória de Deus como essência, pela sua incorporação, e a do próprio homem à natureza, pode-se ler o poema sob os aspectos da vida e da filosofia de Spinoza. Três peculiaridades chamam atenção de Murilo. Todas elas revelam questões que atravessam suas próprias experiências: a do intelectual em trânsito, a liberdade de um pensamento interdisciplinar e as técnicas de pintura. A primeira questão aparece na referência

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à “raça alegórica”, que seria a ressignificação de raça pela diáspora. Segundo Giovanni Reale e Dario Antiseri, a família de judeus espanhóis de Spinoza refugiou-se na Holanda para escapar às perseguições da Inquisição em Portugal. Como teólogo livre, Spinoza rompeu com o credo da religião judaica e jamais aceitou uma cátedra universitária, por ver um cerceamento das ideias e pensamentos pela função institucional. No entanto o filósofo mantinha sua subsistência cortando vidros óticos, o que Murilo habilmente associa ao advento da técnica especular surgida na pintura holandesa e flamenga no mesmo período.

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4 O SIGNO PLÁSTICO

“No mundo das coisas e dos bichos tudo está ainda cheio de acontecimentos de que o senhor pode participar.” Rainer Maria Rilke

4.1 DA GÊNESE PESSOAL À LINGUAGEM

Partindo das memórias de A Idade do Serrote, os pares (Adão e Eva, prosa e poesia, literatura e crítica, poesia e pintura, passado e presente) fundem-se na descrição do nascimento do poeta menino, sob uma perspectiva mitológica, cristã e folclórica. A cidade natal é reconstituída por um Murilo que dá o devido reconhecimento a Juiz de Fora e afirma que o olho armado – oráculo muriliano – terá sido precoce. No entanto, a cidade é apenas um ponto de partida que descortinará a eternidade, a abstração do tempo. Com efeito, como nota em “O Tomate”, acontece outro “nascimento” do poeta pelas afinidades intelectuais do adulto, como no contato com os movimentos da pintura de vanguarda: “Li ‘Anicet’ aí pelas alturas de 1926. Eu acabara de nascer, como diria Cecília Meireles” (MENDES, p. 1003, 1994). Ainda nesse texto de Poliedro, uma referência ao romance de Aragon remete à crítica de arte na relação entre o crítico e o seu objeto: “Monsieur est-il critique d’art? Que Monsieur me permette de regarder Monsieur”.16 Em um jogo performático de palavras bem-humoradas em francês, Murilo propõe que o crítico de arte seja o objeto de contemplação. A relação entre o olho armado e o seu objeto de escrutínio comporá a poesia. O olhar reforça a liberdade da crítica de arte diante do objeto prático que, transformado pelo artista, será descartado como objeto legítimo por muitos críticos. Face ao crítico especializado, muitas vezes, a intencionalidade artística é desconfigurada na recepção da obra de vanguarda. Mesmo com o esvaziamento da proposta da crítica vanguardista na contemporaneidade, ainda é considerável o apelo do processo de fragmentação surrealista, servindo como “ponto de partida para a reflexão sobre o enlaçamento do passado no presente, cujas consequências são do interesse dos estudos contemporâneos de crítica, arte e cultura” (PEREIRA, 1999, p. 90).

16 O Senhor é critico de arte? Permita-me contemplar o Senhor?

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Carpeaux citado por Fábio Lucas observa o seguinte na leitura da obra de Murilo:

Os valores musicais e os valores óticos e táticos descobrem-se em qualquer um dos versos de M. Mendes. Contudo, não convém demorar-se nessas descobertas, compensadoras, mas não reveladoras. Atrás delas é necessário procurar as ambigüidades psicológicas dos dois lados, que são fonte da tensão poética e da poesia hermética (CARPEAUX apud LUCAS, 2001, p. 19).

Considerando-se a importância da relação dos valores óticos e táticos da poesia em comparação com a pintura, nas mais diversas discussões contemporâneas e clássicas, a configuração da gênese do signo plástico é fabulada através de exemplos da pintura e da música, nos textos da poética memorialística. Num movimento de autocrítica, o próprio Murilo ressalta, em seu Gênesis do Serrote, a dificuldade de lidar com as “palavras-bacantes” (MENDES, 1994, p. 703). É algo tão árduo quanto a criação do mundo, tão repressor quanto o desejo do corpo em formação. Nesse sentido, A Idade do Serrote pode ser considerada uma autobiografia de formação do corpo, já que, ao mesmo tempo em que vai desenvolvendo a cognição intelectual nas experiências do livro, algumas mulheres17 que fazem parte das memórias revelam o aspecto amoroso e sexual de Murilo adolescente, que ia ao confessionário relatar pensamentos libidinosos. O corpo é uma extensão do pensamento e, consequentemente, da cidade que, como produtora de ideologias, está ligada ao corpo e ao contexto íntimo do escritor. Desde a fase inicial, em poemas como “Mapa”, e pela influência da pintura, o corpo do poeta é o tema poético. Nesse poema, o tempo está em constante movimento, transportando a cabeça do poeta que não aceita o fato de que o colaram no tempo:

Estou com meus antepassados, me balanço em arenas espanholas, é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários, depois estou com meus tios doidos, às gargalhadas, na fazenda do interior, olhando [os girassóis do jardim. Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações... (MENDES, 1983, p. 30).

17 Entre elas estão: Analu, Claúdia, Desdêmona, Marguí, Prima Julieta, as gêmeas Florinda e Florentina, Adelaide, Asta Nielsen, Carmem, Abigail, Hortênsia, Teresa.

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No itinerário desterritorializado, associam-se as letras ao som torcionário e repressor do serrote:

As primeiras letras. As primeiras lutas. Perto do colégio uma serraria.

Primeiros instrumentos hostis: serra, serrote, machado, martelo, tesoura, torquês, via-os por toda parte, símbolos torcionários (MENDES, p. 24, 1999).

Ainda sobre as inusitadas combinações clássicas e folclóricas, como alegorias da memória, há outras alusões à forma de composição do poeta. Em vários momentos das lembranças juiz-foranas, percebem-se os desdobramentos de Eurídice em Etelvina, Claúdia e Adelaide como mulheres que exerceram fundamental impacto na formação do poeta. Elas têm o talento divino de tocar a harpa: “eu pedia a Adelaide que soasse a harpa um pouco, só para mim...” (MENDES, p. 940, 1994). No enfoque mitológico e cristão, complementar e adversativo para Murilo, essas mulheres também desdobram-se em Eva, revelando a modernidade através da forma dos manequins de Abigail.

Se a aprendizagem intelectual e religiosa do adolescente faz-se representar nos encontros com personagens masculinas (o padre Júlio Maria oferece-lhe uma fé viril e politizada, Primo Nelson contagia-o com seu entusiasmo pela literatura, Almeida Queirós torna-se seu modelo de humanista competente), são as figuras de mulher que lhe comunicam energia vital e sensibilidade artística. (...) Em especial uma delas, Abigail, revelou a modernidade para o “futuro poeta”, mostrando-lhe “que um simples manequim de costureira é mais belo e sugestivo que qualquer estátua grega” (CARDOSO, apud MENDES, 2003, p. 5).

Essas alegorias da gênese do signo plástico no tempo da infância atravessam poemas da fase inicial muriliana que “descendem – direta ou colateralmente – do primeiro De Chirico, aquele dos manequins” (MENDES, 1994, 1270). As mulheres também participam de sua formação intelectual de forma incisiva na infância, desdobrando-se nos mitos de Eurídice e Eva. Incisivo ao escrever sobre a madrasta, risca do vocabulário a palavra. O poema “Romance da Visitação” de Contemplação de Ouro Preto, é uma alegoria para a gênese dessa linguagem plástica. Na história que conta sobre a gravidez de Maria e Isabel, as duas mulheres carregam no ventre a poesia, a visita de Maria é a “festa da comunicação” (MENDES, 1994, p. 508):

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Naquele tempo Maria - São Lucas escreverá – Levantou-se bem cedinho, Dirigiu-se toda a pressa Às montanhas de Judá, Comunicar a alegria Que lhe fora anunciada, Pelo Arcanjo Gabriel, Comunicar poesia À sua prima Isabel (MENDES, 1994, p. 508)

Na efabulação de uma gênese da linguagem são duas mulheres que darão luz à poesia. O poema de ritmo tradicionalmente popular é marcado pelas repetições, rimas e musicalidade, e contrasta com os outros de Ouro Preto, por não tratar da cidade em questão e apresentar um tom alegre e esperançoso. Nesse mesmo poema, o ato de escrever poesia é comparado ao ato de pintar uma tela, São Lucas passa a ser o primeiro pintor de Maria e Isabel:

Assim te entreviu São Lucas, Primeiro pintor da Virgem, E teu primeiro pintor, Que pinta as primas queridas unidas ao mesmo amor! Desde então quantos pintores Começando em Isabel Se inspiraram nesse abraço Completado no pincel, De São Lucas até hoje, E quantos se hão de inspirar Até o final do mundo! (MENDES, 1994, p. 510)

Assim, se a essência original da poesia se perdeu entre “palavras-bacantes Visíveis tácteis audíveis” (MENDES, p. 703, 1994), mesmo entre ruínas de uma humanidade entregue às violências e atrocidades, o Orfmurilo irá dispor dessa linguagem corrompida e torcionária, associando som, imagem e escrita:

Admitindo e servindo-se habilmente das imagens associativas do inconsciente, postas em voga pelo surrealismo, não permite, todavia, que a sua poesia se realize apenas pelo impacto verbal, mas intervém nela criticamente, emprestando-lhe uma organização interna e final em que, ao táctil, ao auditivo e ao visual, ao concreto, se insere a dramaticidade barroca, as matrizes filosóficas que alimentam como veias a tessitura agreste da palavra (ARAÚJO, p. 95, 2000).

Traduzido e ampliado pelo verso poético, o signo plástico se constrói na dimensão verbal, propondo a difusão de imagens mentais na leitura do texto. Por outro lado, a imagem das cidades que lemos nos livros da fase madura de Murilo, como Contemplação de Ouro Preto, Idade do Serrote e Retratos-relâmpago, em sua difusão caótica e aparentemente sem sentido, são, de acordo com as opções estéticas e éticas de Murilo, associativas, conciliando

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como propõe Fábio Lucas “o ímpeto criador com a inteligência seletiva” (LUCAS, 2001, p. 23). As confluências e impasses das imagens de Contemplação de Ouro Preto e Idade do Serrote, diferentes na forma e no estilo, ensejam um confronto de soluções que abarca duas perspectivas pontuais nos textos de prosa e poesia: visão barroca e surrealista de Murilo: “A visão de Ouro Preto acentuou sua feição pelo Barroco e a convivência com poetas e pintores europeus o fez mergulhar no surrealismo” (LUCAS, 2001, p. 118). Ao lermos Contemplação, percebemos a caracterização de uma dimensão fônica da linguagem, para inserir na dicção popular as sensações auditivas e visuais da convivência com o Barroco em Ouro Preto. Os outros textos murilianos, como Idade do Serrote e Retratos- relâmpago, são predominantemente visuais, trabalhando, o signo plástico. Em Contemplação de Ouro Preto chama a atenção a musicalidade. Esse movimento de Murilo parece ser uma tática de ressiginificação do passado. Nesse sentido, encontram-se apenas momentos esparsos da contaminação barroquista no surrealismo, sendo difícil encontrá-los em Contemplação, embora haja elementos do Barroco e do surrealismo, não de forma significativa, mas perdidos como finalidade no texto. Há alguns momentos como uma imagem surrealista em “Acalanto de Ouro Preto”:

O espectro de Cláudio Manuel Contorna a Casa dos Contos; Presa a um cadarço vermelho Traz a cabeça na mão, Rogando uma ave-maria Para obter perdão (MENDES, 1994, p. 537).

Assim como traços simbolistas em “Contemplação de Alphonsus”:

Aos seus versos polidos pelo ofício, Patinados no tempo, nobres versos Que geram em nós a lua e sua espuma, O sete-estrelo geram, e o resplendor Do céu noturno, a fantasmagoria De trágicas imagens, e de acordes Percurtidos em címbalo e celesta, Geram o mito maior, o mito da morte Mais uma vez nascida de mulher (MENDES, 1994, p. 491).

Nesses dois exemplos citados, é significante o contraste do ritmo popular, na redondilha maior do poema “Acalanto de Ouro Preto”, que resgata o poeta inconfidente do imaginário coletivo, e a dicção mais erudita em decassílabos na homenagem a Alphonsus

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registrada nas lembranças pessoais. Nesse poema, erudito – que estuda um poeta simbolista, cujo movimento nunca se tornou popular no Brasil – a dicção é trazida para as memórias da infância, mais um nexo com Idade do Serrote. Murilo reconhece uma dívida do vazio a Alphonsus:

Desde cedo meu espírito impelido Pela força da morte, que alterando Minhas próprias origens e meu rumo, À borda do vazio me inclinara, Desde cedo meu espírito gemendo Achou adequação exata nos teus livros Que nos lentos serões assimilei. O que o clarão do Halley começara (MENDES, 1994, p. 492).

Essas observações demonstram como o olhar armado de Murilo transita entre o visual e o verbal quando trata o acúmulo do vazio para compor o signo plástico característico do poeta-crítico, crítico da poesia, da música e das artes, cuja poesia é caracterizada pela imagética da plasticidade como junção do táctil, sonoro e visual.18 A essência do Barroco mineiro não serve de índice para uma leitura de Contemplação como um livro Barroco. O mesmo acontece nas outras produções de escritores modernistas sobre o Barroco mineiro: o sentido da escola é sempre encoberto pelo signo do novo. Ou seja, a preservação ocupa lugar ideológico. Em Contemplação associa-se a um contexto religioso simbólico de vinculação das partes a um todo, como a criação de um lugar estético, povoado por imagens espectrais da cidade barroca. Quanto à “dramaticidade barroca” comentada por Araújo (1972), comum em diversas obras de Murilo e mais esparsa em Contemplação, pode-se encontrar uma resultante barroca no estado de crise do Simbolismo expresso nas imagens do poema “Contemplação de Alphonsus”. Para Fábio Lucas (1973), esta resultante barroca é observada pelo próprio Murilo, quando o poeta mineiro encontra características pouco usuais na obra do poeta simbolista:

Conhecendo que o símbolo é Barroco, Por natureza ornado de folhagem Espessa e de elementos vários ricos, Apuraste uma técnica ajustada Ao tema do conflito permanente Entre matéria e sonho, língua plástica, A mesma pedra sabão aparentada (MENDES, 1994, p. 493).

18 Leitura de poemas proposta por pela Profa. Dra. Marília Rothier Cardoso, na banca de qualificação para esta dissertação de mestrado, em 14 de junho de 2010.

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Ao pensarmos na poética muriliana em geral, um certo barroquismo é observado na fragmentação, na idéia de repouso e movimento, na tensão entre vida e morte, tempo e eternidade. Para além da temática do surrealismo como coloca o poeta em carta à Laís Corrêa de Araújo:

Interessei-me vivamente pelo surrealismo. Do Rio, acompanhava com grande interesse o movimento, que representava a vanguarda cultural da época. Encomendava da Europa livros e revistas, informando-me também através de amigos que iam a Paris como Ismael Nery, Mario Pedrosa e outros. Entretanto, nunca fui um surrealista ortodoxo, menos convicto de sua força doutrinária do que da dimensão poética, da atmosfera insólita criada, seja na literatura, seja nas artes plásticas, pelo movimento. A moderna psicologia do estilo considera, talvez, ‘barroca’, toda esta classe metáforas. Nesse caso, podemos dizer que o barroco literário é tão velho quanto a Bíblia. (MENDES apud ARAÚJO, 1972, p. 102)

Assim, a partir de Contemplação, apesar das contaminações, temos percebido que Murilo abandona esse estilo metáforico entre o surrealismo e o Barroco, voltando-se para uma estrutura poética mais sistematizada, no sentido da expressividade e experimentação, como representação da própria visão da vida. Isso acontence tanto no trabalho com diferentes estilos e métricas que marcam o ritmo de Contemplação quanto na novidade da prosa de Idade do Serrote, prosa esta tão fragmentária como a memória. Na experiência plástica da linguagem muriliana, a intervenção crítica de organização interna e final, citada por Araújo (1972), converge no táctil, auditivo e visual. O aspecto autocrítico interno da obra permite uma interpretação mais inventiva dos textos de Murilo, que, na descrição de sujeito e objeto em sua proximidade com a pintura, soma a alegoria lúdica de memória inventada à plasticidade da linguagem poética. Ao fabular sobre sua gênese e formação pessoal, pretende também expor as influências da gênese e processo linguístico na criação literária. O surrealismo proposto na leitura de Murilo, neste estudo, concretiza-se como fato de cultura que propicia a libertação total das imagens na poética, “pela tensão dialética imposta a uma expressão apoiada numa lógica de contradição, e não de identidade” (SENA, 1975, p. 14). A linguagem literária de Murilo se encontra na “capacidade dela, para em vez de descrever, ou de sugerir, continuamente dar forma a uma consciência sempre superada da realidade, seja ela qual for” (SENA, 1975, p. 14).

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4.1.1 Mapas

Em Poliedro, pelo reconhecimento da forma e dos contornos de um queijo de minas, sugere-se a descoberta da criança no adulto: do queijo mineiro aos queijos do mundo. Desterritorializado, o queijo mineiro confirma o prisma sob o qual o adulto retroage na criança através de seu projeto poético. Um queijo abre as portas para a eternidade e para o mundo: “Um dia apareceu lá em casa um queijo do tipo flamenco” (MENDES, 1994, p. 1009), que serviu para pôr em dúvida a lição da eternidade, pois o poeta afirma “entre o redondo e o quadrado, entre o branco e o vermelho meu espírito balança desde o início. E não sei bem se a eternidade é efêmera” (MENDES,1994, 1009). As diferentes formas e nacionalidades em sua compartimentalização estanque, que classifica o tipo de queijo, colocam em xeque a eternidade. As nacionalidades e formas brutas impossibilitam a conjunção entre outros espaços, em um espaço outro, em movimento. A dimensão física em Murilo pode ser analisada através do Essencialismo, método filosófico de abstração, em que espaço e tempo devem ser rearticulados, pois a fixação cessa o movimento. Murilo configura sua trajetória de deslocamentos em mapas literários:

estou no ar na alma dos criminosos, dos amantes desesperados, no meu quarto modesto da praia de Botafogo, no pensamento dos homens que movem o mundo (MENDES, 1983, p. 31).

A abstração filosófica do tempo e do espaço estende-se a uma dimensão corpórea do eu-artístico na configuração da tela e do poema. A comparação entre um autorretrato de Ismael e um poema de Murilo demonstra o aspecto surreal do Essencialismo: tudo é colocado no mesmo plano, a unidade é atingida através da escamoteação dos elementos espaciais e temporais:

Me colaram no tempo, me puseram Uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou Limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo, a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação. (...) Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso (...) Não acredito em nenhuma técnica (MENDES, 1994, p. 116).

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Fig.7: Autorretrato de Ismael Nery. Fonte: Murilo Mendes e Ismael Nery: reflexos.

Na conciliação de contrários, o corpo desconjuntado de Ismael, entre Rio e Paris, tem a mesma expressão e estranheza do mapa traçado no poema de Murilo. Em sua fase madura, Murilo ratifica o pensamento de vanguarda associado à filosofia ao citar filósofos, como Spinoza, nos livros Idade do Serrote e Retratos-relâmpago: “Os espíritos e os corpos de todos compõem por assim dizer um só espírito e um só corpo” (MENDES, 1994, p. 1205). Percebe- se como a peculiaridade da ilustração dos corpos é depurada por Murilo, utilizando o método filosófico para legitimar uma produção vanguardista. Um novo mapa político de Minas é traçado a partir da herança clássica europeia, de forma que a tensão entre centro e periferia, tantas vezes pregada pelo Modernismo, é ressignificada na geografia muriliana. O mapa de Murilo mescla pinturas de Léger e Guignard, a recepção da cidade barroca mineira pelos modernistas, as amizades na Europa e no Brasil e as obras de arte que hoje configuram o acervo do Museu de Arte Murilo Mendes, em Juiz de Fora. Esse mapa “mundominas” representa o corpus desta dissertação e o eixo em que se pauta.

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Fig.8: Mundominas Fonte: De minha autoria

Dentro da Minas muriliana, cabe uma galeria: a Itália com as figuras de Retratos- relâmpago; o retrato de Murilo Mendes pintado por Guignard, além das telas ouropretanas do mesmo pintor; uma tela de Léger, os arquivos de Murilo no MAMM; a escrita de um poema “Ao pintor”. Enfim, como nos diz o próprio poema, um pintor que não rompe com a tradição, mas a transforma e desenvolve, através de seu olho oráculo, alegoria para ressignificação do espaço mineiro.

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4.2 O VISÍVEL

A imagem ilustra a frase John Berger

Escamoteados, confundindo-se na abstração utópica e não configurando binarismo, espaço e tempo integram-se no movimento caótico das imagens poéticas. A função de ambas as coordenadas são redefinidas a partir das considerações da pintura, que pode fornecer pistas para se entender a utopia da eternidade, tornando, na poesia, visível o invisível – ou táctil – se a barreira entre as especificidades do literário e do pictórico fossem atravessadas. A condição utópica presente na questão da especificidade e no tema da eternidade forma-se pelo caráter espacial da pintura. Na experiência linguística associada à plasticidade visual, a ideia proposta por Ernest Bloch (2005) de utopia como “ainda-não”, tem sua positividade afirmada na eternidade muriliana que ocuparia uma zona “de aurora” ainda obscura, mas possível, no futuro, pela sugestão de cor, contorno, sombra, luz, perspectiva e outros elementos da pintura na poesia. Talvez, a obsessão muriliana, ao se referir à abstração do tempo e espaço em diversos poemas, não se refira apenas a um elemento de valor transcendente e utópico que congrega passado, presente, futuro e espaços diversos, em uma espécie de transcendência, mas também à própria abstração das especificidades da relação espaço-tempo na pintura, principalmente a surrealista. Em Ouvir Contar: textos de história oral, Alberti (2005) faz uma abordagem elucidativa de Gotthold Ephraim Lessing, poeta, dramaturgo e filósofo, nascido em 1729, considerado fundador da literatura alemã moderna:19

Ao contrário do escultor ou do pintor, que representa uma parte da ação parada e visível, o poeta não precisa se concentrar em um único momento; ele pode falar de várias ações, do início até o final, inclusive daquilo que não é visível (da música, por exemplo). Cada arte tem sua especificidade: o objeto da pintura são os corpos no espaço, enquanto o objeto na literatura são as ações no tempo. (...) Estabelecidas estas diferenças, podemos dizer que, para o poeta e para o pintor, representar o objeto próprio da outra arte produzindo um efeito estético é um desafio (LESSING apud ALBERTI, 2005, p. 88).

O desafio das especificidades proposto por Lessing (1991) e outros autores da época propunha que “a poesia também pinta corpos, mas só de maneira alusiva através de ações” (LESSING, 1991 p. 114), ao passo que “a pintura também pode imitar ações, porém só de

19 Dados biografados por Anatol Rosenfeld. (ROSENFELD, 1991, p. 11).

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maneira alusiva através de corpos”. Parte da teoria sobre pintura e literatura de Lessing (1991) se encontra no ensaio “Laocoonte ou sobre os limites da pintura e Poesia” (1766), em que as formulações do autor não dão conta dos processos vanguardistas, mas permitem refletir sobre desenvolvimento dos procedimentos artísticos que irão aproximar literatura e pintura, através das alusões entre a tela e o poema em Murilo. No entanto, na literatura e na pintura românticas, respectivamente, ainda permanece o impasse ação x corpos. Uma exposição de 2008, do pintor Gaspar David Friedrich (1774- 1840), no Putney Art Theather, em Londres, abre o seu catálogo com os seguintes dizeres:

In paiting, however, the popular sucess of romantic artists such as Caspar David Friedrich (1774-1840) was limited. Figurative representation was then the only means of artistic expression available to the painter, an this can only begin to suggest the lyrical feelings conveyed by the poetry of Keats or Schubert’s songs20 (JENNINGS, 2008).

No mesmo catálogo, há uma citação de William Blake, poeta romântico cuja poesia prometeica, segundo Alfredo Bosi, faz lembrar a de Murilo Mendes pelos arrancos erótico- místicos: "Shall painting be confined to the sordid drudgery and facsimile representation of merely mortal and perishing substances, and not be, as poetry and music are, elevated to its own proper sphere of invention and visionary conception?".21 Essa relação com o Romantismo é afirmada por Murilo em carta a Alceu Amoroso de Lima, datada de 23 de Março de 1931:

O espírito romântico é o de desordem e revolução. O espírito clássico é de ordem. Este século é profundamente romântico. Há certas atitudes contemplativas muito fecundas (MENDES, 1931, p. 3).

De fato, parece que o caráter de oposição cultural do Romantismo se perpetuará no século XX por meio da pintura de vanguarda que, nesse sentido, poderia ser vista como legitimação do anseio de liberdade romântica da forma, de que fala Willian Blake. Essa parece ser a atitude contemplativa mais fecunda do Romantismo na poética de Murilo Mendes, que visa transferir para sua prática literária toda a liberdade que insurge na desordem revolucionária das formas e temas da pintura vanguardista.

20 Na pintura, no entanto o sucesso popular de artistas românticos, como Caspar David Friedrich (1774-1840) foi limitado. A representação figurativa foi o único meio artístico de expressão disponível ao pintor, e isso só pode ser o ponto de partida que sugira os sentimentos líricos transmitidos pela poesia de Keats nas Canções de Schuberts. 21 A pintura deverá ser confinada à sórdida labuta e à representação facsímile de substâncias meramente mortais e perecíveis, e não ser, como a poesia e a música, elevadas à sua própria esfera de invenção e concepção visionária?

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A queixa romântica europeia de uma pintura que vá além da mera representação pode ser vista como propulsora das vanguardas que, por sua vez, chega a um grau tão potente de expressão que influirá na poesia. Do Romantismo ao Modernismo, a questão inverte-se a ponto de o pincel sobrepor-se à pena. As artes plásticas alcançam uma nova e própria esfera de invenção e concepção visionária. Os comentários poéticos sobre os elementos da pintura asseguram novo tratamento às temáticas românticas, caras também ao Modernismo: nostalgia da infância e retorno às origens. As telas vanguardistas encontram, na fragmentação e na relação entre tons, e não dos objetos, uma resposta para a mera representação dos corpos. Essa resposta vanguardista pode representar a metáfora da pintura na moldura do texto em uma nova experimentação da força transformadora da natureza em oposição ao mundo prático, que não aceitaria a prática cubista ou surrealista. O espaço configurado na tela é tão móvel quanto à ação temporal em um poema: “Para os cubistas, o visível não era mais aquilo com que apenas o olho se defrontava, mas a totalidade das vistas possíveis, extraídas de pontos ao redor do objeto (ou pessoa) sendo retratado” (BERGER, 1999 p. 20). Essa é a realidade poliédrica da prosa muriliana, com imagens irregulares, frases curtas, substantivações e narrativa entrecortada. Um dos procedimentos das novas funções da pintura absorvidos pela literatura, a partir do processo de composição de colagens, foi a collage, tornando-se força transformadora do texto fragmentado e alterando os sentidos de recepção.22 Segundo Batchelor (1998), a colagem surge no século XX, com o cubismo. Ao inserirem no espaço da tela materiais retirados de objetos do cotidiano, como folhas de jornais, pedaços de madeira, entre outros, pintores como Picasso e Braque realizaram uma série de colagens que redefiniram o paradigma da obra de arte. O quadro é uma construção sobre um suporte, cuja plasticidade derrubará a barreira entre escultura e pintura. A colagem surrealista, para Lima (1984), representa uma linguagem plástica, excessiva e dialética que possui condição de estabelecer uma troca que vai além das limitações dos códigos e dos sinais da linguagem escrita, ou dos idiomas, pois lida com imagens, como observamos na fotocolagem do olho de Guignard:

22 Há certa confusão nas terminologias colagem e collage. De acordo com LIMA (1984), a primeira, a grosso modo, utiliza-se da cola em sua composição, já a segunda, configura-se com sobreposições cênicas, linguísticas e, mais atualmente, digitais, no contexto radical de incorporação da imagem em outras representações simbólicas, como é caso do texto recortado de Murilo. Ocorre a apropriação de uma abordagem técnica (uso da cola) para uma abordagem conceitual da representação das outras artes.

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Fig. 9: Composição Surrealista. Fonte: Catálogo Alberto da Veiga Guignard, 1896-1962.

Sobre um fundo de constelações embaçadas, circundando o olho no centro da tela, delineiam-se imagens díspares: uma nebulosa; uma imagem de escultura clássica distorcida por estampas de flores sobrepostas ao vestido; uma figura sugerindo mastro de caravela ou o topo de construção moderna; finalmente, a fumaça de uma bomba que explode. Esse olho armado, além de inserir-se no espaço da constelação, é um olho-constelação, através do qual observam-se vasos estrelares, ao invés de pequenas veias oculares. Nas imagens e referências que se apresentam como caos, Murilo desenvolve um princípio de associação que não ordena totalmente a sucessão de imagens, mas compartimenta-as em ideias-constelação, apontando índices de leitura. A forma de organização constelar, na aparente desordem do céu estrelado, está relacionada com a problematização de racionalidade e acaso, proposta por Haroldo de Campos, na leitura de Mallarmé:

(...) a disciplina controladora do acaso, já foi apontada por Maurice Blanchot: “o acaso, se não é assim vencido, é, pelo menos, atraído através do rigor da palavra e elevado à firme figura duma forma onde ele se encerra” (...) A procura do absoluto, fadada por definição à falência, entrevê um êxito possível na conquista relativa sancionada por um talvez: a obra-constelação, evento humano, experiência viva e vivificante, sempre a ponto de se recriar – véspera de um novo lance (“toute pensée, émet un coup de dês”23) (CAMPOS, 1975, p. 95).

2 Todo pensamento emite um lance de dados (Tradução de Haroldo de Campos).

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A ideia de “obra-constelação” (CAMPOS, 1975, p. 95) permeia a relação Murilo e Guignard, na interpretação de “Acalanto de Ouro Preto”, último poema do livro Contemplação de Ouro Preto, publicado em 1954 e dedicado a Guignard. Sua analise conduz a uma leitura política que envolve a vida e a arte dos dois artistas, em suas passagens pela cidade barroca. Depois de uma série de poemas que conjuram espectros de pedras, igrejas, escravos, figuras históricas, e dos próprios videntes no mesmo plano, os personagens que saíram dos “cemitérios aéreos”, subindo e descendo ladeiras, voltam ordenadamente ao seu sono- história. O primeiro fantasma a voltar a ser estrela é o de Tiradentes, cuja cabeça é transformada em “constelação” (MENDES, 1994, p. 485) na noite “de água, animais e astros conjugados” (MENDES, 1994, p. 470):

Dorme, Dorme, inconfidente. Nos teus membros reunidos Pela técnica divina (MENDES, 1994, p. 536).

O verso final do poema é como um emblema rebelde da cidade institucionalizada na cartilha cívica do governo Vargas:

Dorme, Ouro Preto assombrada, O sono da libertação (MENDES, 1994, p. 540).

A noção de que Ouro Preto dorme entre montanhas é um tema dos antropofágicos que realizaram a histórica visita modernista de 1924, como nota Tarsila do Amaral, em artigo do Diário de São Paulo, em 1938: “Dorme nas terras pioneiras a cidade-museu que é Ouro Preto” (AMARAL, 1938, p. 6). Enquanto a intervenção dos antropofágicos aconteceu na esfera da preservação, Murilo e Guignard falam em outro momento, quando as ruínas estão protegidas pelas ações governamentais. Como foi visto, o tema do sono também é tratado por João Cabral no texto “Considerações sobre o poeta dormindo”, de 1941. Já no final do relato de sua formação, o olhar onipotente do menino-artista cumpre a proposta da colagem surrealista de elementos da natureza, do universo, da mitologia e figuras intelectuais que posteriormente serão material poético inserido no contexto da arte do século XX. Além disso, o advento do cinema consolida e reconfigura a ideia de movimentação da imagem na tela e no texto. Essa a definição é introduzida pelo diretor de “Vertov e sua Câmera”, do soviético Dziga Vertov, dizendo muito sobre os modos como Murilo Mendes vê o mundo:

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Liberto das fronteiras do tempo e do espaço, coordeno qualquer um e todos os pontos do universo, onde quer que eu deseje que eles estejam. Meu caminho direciona-se no sentido de cria uma nova percepção do mundo. Dessa maneira explico, de uma forma nova, o mundo que é para você desconhecido (VERTOV apud BERGER, 1999, p. 19).

Em Murilo, associam-se os fragmentos da matéria-bruta clássica e experimental na constelação de um novo cosmo. A passagem do cometa Halley serve de alegoria para a interpenetração do clássico e do moderno, como resistência da arte que, em movimento circular, atravessa a tradição. O cometa pode ser lido como espectro do clássico, que subsiste apesar das novidades artísticas, mas retorna sempre como novidade para novos espectadores. Assim, traz consigo “a subversão da vista” (MENDES, 2003, p. 26) e o caráter universal e ambíguo da arte em suas origens: “A primeira ideia de cosmo” (MENDES, 2003, p. 26). Os cadernos do Murilo criança indicam sua opção estética pela pintura na collage literária por meio do olho armado. Constantemente, Murilo cita autores em várias línguas, e aleatoriamente, transcreve textos do Outro sem referências. Além de preencher uma falta e organizar uma emulação, há um processo de identificação com esse Outro. É como se Murilo estivesse fazendo uma montagem surrealista com diversos tipos humanos e intelectuais, como fazia colagens em seus cadernos de infância:

Ainda menino eu já colava pedaços da Europa e da Ásia em grandes cadernos. Eram fotografias de quadros e estátuas, cidades, lugares, monumentos, homens e mulheres ilustres, meu primeiro contato com um futuro universo de surpresas. Colava também fotografias de estrelas e planetas, de um ou outro animal, e muitas plantas (MURILO, 1980, p. 77).

Direcionado pela associação de olhares, aponta-se para o futuro nas memórias. Assim, a tradição, a astronomia, costumes e lendas estão presentes para o poeta, mas seu compromisso é com a novidade do mundo. Sob o signo do novo constrói-se a poética memorialística, repleta de metáforas do universo muriliano: “a metáfora literária, plástica, musical e científica” (MENDES, 1994, p. 973). Na reorganização do olhar Murilo ilustra uma inusitada imagem de Sebastiana, em Idade do Serrote: “Sebastiana só tem peito e mão, eu nunca vi os pés de Sebastiana, de resto Picasso disse a um discípulo que não existem pés na natureza.” (MENDES, 2003, p.35) Uma das mais perceptíveis preocupações da estética modernista e pós-moderna, o tempo, nas memórias de Murilo, é tratado na perspectiva imaginativa do passado, na

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fragmentação do tempo cronológico em tempo mítico e na fusão do tempo contemporâneo e dos tempos da história. O Modernismo parece situar a questão do tempo cronológico burguês no estreitamento entre tempo e espaço, potencializando não só a noção espacial com colagens e collages surrealistas, com o cinema, mas também desconstruindo a temporalidade da literatura clássica, no âmbito da ação, como discutimos em Lessing (1991). Em Cultura Pós-Moderna, Connor (1996) critica essa relação de espacialização do tempo:

Mesmo quando seguiram (e muitos o fizeram) o conselho de Henri Bérgson de que o tempo deveria ser representado como um processo puro e fluido, e não congelado artificialmente em instantes, os escritores modernistas viram-se condenados a espacializar ou suspender o tempo ao tentarem ser fiéis a ele (CONNOR, 1996, p. 99).

A fim de não espacializar, convencionalmente, e pintar a fluidez do tempo, Murilo cria uma atmosfera vaporosa através da simulação da memória, consequentemente uma possibilidade de organização do futuro, como prevê sempre em sua “antevisão do futuro”. O espaço fixo da memória evapora para o futuro ou para uma eternidade em movimento, através de associações e colagens de fragmentos das ideias e das palavras. Sob esse viés, Murilo encontra, nas telas ouropretanas de Guignard, um correspondente visual para poemas como “São Francisco de Assis de Ouro Preto”. O tema da festa de São João, as figuras de um cristo negro e expressões de formas naifs nas obras de Guignard aderem à mesma perspectiva popular, mas de forma a se resvalar do nacionalismo controlador do Estado, atingindo um cosmopolitismo maior em obras que compõem um projeto pictórico-poético preciso. Nesse sentido, o verso de Murilo evoca uma igreja-espectro suspensa no ar, caracterizando as igrejas pintadas na série “Paisagens Imaginárias”, de Guignard. As montanhas diluem-se na vaporosa atmosfera:

Solta, suspensa no espaço, Clara vitória da forma E de humana geometria Inventando um molde abstrato (MENDES, 1994, p. 490).

Sumindo em um quadro acinzentado, sem as montanhas de Minas, a igreja é o oposto da mitologia do Barroco mineiro, revelando uma desnaturalização, negação positiva, que descentraliza a ideia fixa de patrimônio, revelando-a em sua imaterialidade e subjetividade.

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Fig. 10: Paisagem Imaginária (Ouro Preto, Minas Gerais). Fonte: Catalogo Alberto da Veiga Guignard 1896-1962.

4.3 O TÁCTIL

O exercício de uma poética táctil em Murilo é bastante significativo em Contemplação de Ouro Preto, “livro que não despertou interesse, e que considero dos melhores que escrevi” (MENDES, 2001, p. 139). Alfredo Bosi considera Contemplação como o ponto mais alto da carreira de Murilo, relacionando o táctil e o audível:

Nesta obra a história e a paisagem de Vila Rica desdobram-se em compactas séries de nomes, verbos para se fundirem depois na música envolvente da evocação. O poema procura colher a essência mesma do Barroco mineiro – tacteando ainda nos ternos labirintos,/ palpando-se nos planos pensativos/ das origens, de antigas estruturas, - e da arte de Aleijadinho feito de espanto e de unção (BOSI, 1991, p. 450).

O aspecto táctil se dá no plano do pensamento, pelo símbolo das imagens dos poemas, como em “Crucifixo fixo”, cujo aspecto táctil é marcado pela fixidez do crucifixo, mas

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desaparecendo na imagem de Cristo. O crucifixo fixo, a coisa prática não gera mais do que o sentimento frio do tato: Crucifixo fixo fixo / Crucifixo Deus parado / Para eu poder te fixar” (MENDES, 1994, p. 514); entretanto a sensação táctil do arrepio religioso, da sonda da poesia insurge em um Cristo palpável a partir da personificação do Crucifixo: “Crucifixo fixo fixo / Nosso irmão Cristo Jesus”. Essa subversão do tato como simples toque, como sensação poética atravessa o livro de Ouro Preto em versos como: “Rude apetite dessa coisa eterna / Retida na estrutura de Ouro Preto” (MENDES, 1994, p. 490), de “Montanhas de Ouro Preto”; “Ó luminárias / Incendiárias” (MENDES, 1994, p. 504), de “Luminárias de Ouro Preto”; “Luar é verbo / quase não é / Substantivo” , de “A Lua de Ouro Preto” (MENDES, 1994, p. 515). O desafio da realização táctil na poesia é representado através do trabalho de Aleijadinho: pode-se tocar a lua no pálio, graças ao escultor que tocou primeiro a pedra dura e barroca de Ouro Preto. O legado de Aleijadinho é matéria já domada, cuja potencialidade artística os modernistas tentam alcançar dando forma à pedra-linguagem, através de uma poesia táctil, tão poética, significante e cosmopolita quanto a do escultor

4.4 O AUDÍVEL

No artigo de 13 de Outubro de 1946, para o suplemento Letras e Artes, Murilo Mendes defende a musicalidade e a sonoridade na configuração de um signo plástico:

Seria surpreendente que o som não pudesse sugerir a cor, que as cores não pudessem sugerir uma melodia, e que o som e a cor fossem impróprios para traduzir idéias; as coisas tendo-se exprimido sempre por uma analogia recíproca, “desde o dia em que Deus proferiu o mundo como uma complexa e indivisível totalidade” (MENDES, 1996, p. 54).

Nos poemas “Exergo” e “Final e Começo”, respectivamente, inicial e final do livro Convergência (1964), a musicalidade da poesia também é associada à cor e ao tato, por meio da desmistificação do mito de Orfeu. A desmistificação se dá através da linguagem e da escamoteação do sujeito, que se desdobra em Outros: “Orfeu Orftu Orfele / Orfnós Orfvós Orfeles” (MENDES, p. 703, 1994). A atualização da tradição pelo modernismo acontece a partir da noção de um Orfeu “lacerado pelas palavras-bacantes / Visíveis tácteis audíveis” (MENDES, p. 703, 1994, grifo nosso). Se a música é mais próxima das bacantes do que as palavras, ela vai determinar a influência na obra e na vida do poeta. Etelvina de A Idade do Serrote “foi a primeira a cantar

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para nós o tristíssimo Quindum sererê”( MENDES, 2003, p. 28). Logo depois de transcrever a música, comenta: “Esta cantiga entrou nos meus poros, assimilei-a: começava a música, o ritmo do homem começava, era uma vez e será para todo sempre. “(MENDES, p. 899, 1994). Ainda sobre os seus nascimentos para o mundo poético diz: “Nasci coisando, nasci com a música. Recordo-me perfeitamente de ouvir nosso Orfeu n° 1 Isidoro...” (MENDES, p. 900, 1994). Segundo Trielle (1995), uma antologia de poemas sobre música e caracterizados pela musicalidade não poderia deixar de incluir, em ordem cronológica, os seguintes: “O menino sem passado”, “Mapa”, “A sesta”, “Modinha do Empregado de Banco”, “Noturno Resumidos”, “Sonata de Luar”, “Cantiga de Malazarte” e “Ritmos Alternados”, de Poemas (1930); “Mozart”, de Os quatro Elementos; “Poema Lírico”, “Novíssimo Orfeu” e “Começo de Biografia”, de As Metamorfoses (1938-1941); “Canção Pesada”, “Murilo Menino” “Janela do Caos” e “As Lavadeiras”, de Poesia Liberdade (1943); “Despedida de Orfeu”, de Parábola (1946-1952); “Canção de Términe Imerese”, de Siciliana (1954-1955); “Murilograma a Dallapiccola”, de Convergência (1970). Além disso, a terceira parte de Retratos-relâmpago é toda dedicada a músicos. Trielle (1995) aponta os procedimentos estilísticos de orientação nacionalista como a paródia, os elementos do folclore e cantigas populares. Além de processos de composição, que envolvem variação e repetição de melodia, como a suíte, que, segundo Aurélio (1993), é uma sequência de dança destinada a um coro ou à interpretação musical em contrastes, em poemas como “O Menino sem Passado”, “A sesta”, “Mapa”, “Noite Carioca” e “Marinha”. Por fim a técnica dodecafônica, em “Janela do Caos”, de Poesia Liberdade (1930) que, de acordo com o Dicionário Musical Del Chiaro (2010), consiste de doze sons livres, fugindo do sistema e da harmonia tonal tradicional. Se houve a encarnação do novo Orfeu na incorporação da tradição, Mozart é um outro alter-ego. O livro As Metamorfoses é “dedicado ao meu amigo Wolfgang Amadeus Mozart” (MENDES, p. 331, 1994). O compositor romântico é a “manhã da vida”, “aero-amigo”, “poeta sem véspera” que, como músico pode abrir o arquivo do poeta – o mundo –, representado pela caixinha de música do pai desmontada na infância, em um texto de Poliedro. A música tem um sentido amplamente político para Murilo:

A missão das Bachianas é política, no mais alto sentido do vocábulo: trabalham para da construção da cidade ideal, onde um dia se apagarão todos os ressentimentos e todos os ódios, onde a família humana verificará, enfim, que procede de uma origem única, reconhecendo-se e amando-se na unidade da música. (MENDES, 1993, p. 127)

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Assim, podemos ler a caixinha de música da infância de Murilo como objeto fetichizado que, sendo desmontado, revelará o sentido de modernidade na busca de uma imagem do som e sua gênese no projeto muriliano:

Embora objeto nostálgico, crepuscular, resolvi, movido pela pietas, anexá-lo aqui.

Na infância desmontei na casa de meu pai uma caixinha de música existente no oco dum grande álbum de retratos, com os mortos de sobrecasaca ressuscitados posteriormente pelo poeta Drummond, mais as mortas de vestido de cauda, espartilhos e cabelos frisados. Eu queria ver a música da caixinha. Os meninos (não só os meninos) gostam mais de desmontar do que de montar coisas (MENDES, 1994, p. 1005, grifo nosso).

A imagem da caixinha, desmontada na infância, forma um quadro fragmentado moderno. Na continuação do poema ela se desdobra no gramofone e na figura feminina que fará com que o poeta pinte um novo quadro abstrato ao quebrar a caixa com um martelo:

Mais tarde me aconteceu uma certa Carmem, terrível espanhola, goyesca sem sabe- lo furiosa, excedia-se, lançava altos gritos de revolta, exigindo-me uma tal atenção do ouvido e outros sentidos que um dia, colérico, decidi toureá-la com o martelo à guisa de muleta, olé! Rompeu-se em pedaços, nem ao menos chorei porque não disponho – aí de mim – do “dom das lágrimas” (MENDES, 1994, p. 1006).

Outro quadro vanguardista de fragmentos plásticos e mecânicos surge na imagem da caixa espatifada ao produzir um som familiar e estranho ao poeta. Essa metáfora da epifania poética do menino e do adulto através de imagens poliédricas irregulares, como objeto de indagação para o leitor, poderia representar uma proposição total do poema na união dos fragmentos mecânicos da caixinha como possibilidade plástica de ruptura com objeto nostálgico. O poeta consegue ver e tocar música nos cacos tocáveis da caixinha que, nos contrastes das formas plásticas e peças mecânicas, lembra um quadro de Léger (1989), equilibrando e controlando a subjetividade da nostalgia pela matéria-prima objetiva que a move. Visível, táctil e audível molduram os retratos vanguardistas de Murilo, em seu aspecto fantástico e de infinitas possibilidades, configuram o signo plástico de sua poesia. Na tênue fabulação memorialística entre sujeito e objeto, sua escrita é além-modernismo: um contrassenso que enseja a tradição filosófica e política do senso comum modernista, em um conjunto de imagens produzidas por discursos conflituosos que associam movimentos literários, objetos, animais e afetos.

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4 CONCLUSÃO

A leitura de Retratos-Relâmpago, A Idade do Serrote e outras obras memorialísticas de Murilo revelam novos caracteres da poética biográfica e da conceituação sobre a amizade que, não raro, em Murilo, acontece pela diferença e pelo desejo de absorção intelectual das obras e ideias de outros artistas e pintores, quer seja por fruição quer seja por influência direta na própria obra muriliana. Os arquivos-espectro do “mundominas” de Murilo, se distanciam do lugar-comum do mito da mineiridade. Através de novas leituras da história mineira e da abertura ao mundo, o poeta vai além do aspecto convencional de leitura da decadência do ouro ou do provincianismo, que são identidade de Minas ainda hoje, quando se percorre o Caminho Real. Este se tornou um fenômeno da mídia, ilustrando até mesmo uma série especial de um carro da Fox. Ao contrário do roteiro dos itinerários de Grande Sertão Veredas, por exemplo, que não encontra a mesma popularidade e cuidado do Estado. A vivacidade do espectro do caminho do ouro, do rastro Barroco ainda parece exercer certa fascinação que exercera aos modernistas. Considerando-se a formação da identidade nacional, os modernistas compartilham de uma crença similar à da ideia de associação, que confere à arte nacional o status de originalidade e potência artística. A figura de Aleijadinho definitivamente ganha, na análise modernista, certa distinção de primeira expressão da arte brasileira. Com isso, a história da decadência é sempre superada nos textos murilianos pela ideia de positividade do futuro: “Ouro Preto para o futuro um dia se voltará, / Gerando no seu bojo a nova tradição” (MENDES, p. 459, 1994). Dessa forma, essa postura política e estética do Modernismo mantém-se ainda hoje. Em entrevista ao jornal O Globo, sobre o tombamento da cidade, o diretor do Museu da Inconfidência, Rui Mourão, afirma que Ouro Preto não é uma cidade do interior, mas uma cidade metropolitana, já que sua mentalidade não é pronvinciana, e os estrangeiros que a visitam transmitem algo de novo a ela. Embora a intenção aqui não seja a de tratar o conceito de província, é indiscutível que a vida interiorana contamine as imagens da cidade: as ações artísticas de Guignard e de Murilo Mendes elevam essas imagens do cotidiano a um lugar vanguardista, da arte canônica. A arquitetura barroca ouropretana e sua modernidade são assim resguardadas da inércia histórica. Embora poeticamente tão pouco visitada por Murilo, entre as imagens de Ouro Preto e Juiz de Fora, Minas revela muito além do que sua simples imagem evoca: permanência,

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superação e eficácia da crítica no pensamento e na interpenetração de diferentes arquivos culturais. As palavras espectro, assombração e sono, repetidas exaustivamente em Contemplação confirmam essa ideia relacional entre o sono da cidade histórica e a atuação do espectro e seu caráter de assombração. Configura-se uma “vertigem das listas”, nas duas obras, para usar um termo de Umberto Eco. Em seu mais recente livro, lançado no Brasil, em 2010, Eco se propõe a analisar as listas na literatura e artes, justificando que

se alguém resolvesse ler um de meus romances, veria que neles abundam as listas, e as origens desta predileção são duas, ambas devidas a meus estudos juvenis, certos texto medievais e muitos textos joycianos (não se pode negligenciar as influências de ritos e textos da Idade Média na formação do jovem Joyce) (ECO, p. 8, 2010).

Murilo cria livros de listas a partir da influência que se sobrepõe entre afeto e aprendizagem artística. Segundo Eco (2010), enquanto nossa vida tem um limite, as listas acenam com uma existência sem fim. Nossa predileção por elas estaria no fato de que não queremos morrer. Ao tratar o tema da morte, Murilo utiliza essas listas como estratégias, como um item refundador da cultura barroca, do Modernismo e da sua história pessoal. Principalmente em sua obra memorialística, são encontradas listas de familiares, agregados, cidades, santos, figuras da literatura, música, filosofia e artes, compondo um mosaico. Representado pelo símbolo torcionário do serrote e pelos fantasmas de Ouro Preto, esse mosaico produz unção e espanto. Nas diversas analogias entre lugares, pessoas e objetos, os leitores podem criar constelações sugeridas por Murilo: há um ordenamento da obra, conferindo certa harmonia à vastidão. Embora não se perca a sensação de pânico e impossibilidade de abarcar algo que parece infinito, pode-se deleitar com a limitação daquilo que é inapreensível. Dessa forma, como a origem nunca pode ser recuperada, Murilo efabula sua gênese tanto poética quanto histórica, entre o olhar domado e olhar armado. A tensão dos arquivos do centro e periferia passa por uma reestruração crítica que, na colagem poética, é conjurada em um mesmo plano. Ainda que as diferenças não sejam desfeitas, em suas memórias ligadas à imagem, Murilo as transporta pra um mesmo lugar. Inventadas, modificadas por impressões posteriores, sem o compromisso do documento, essas memórias são sempre relacionadas com o futuro. À guisa de conclusão, tentamos mostrar, por meio desta pesquisa, como a ideia do olhar transgressor em Murilo, configura um olhar político (SARLO, Beatriz, 1997. p. 61).

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Segundo a crítica argentina, Beatriz Sarlo, a lógica que deveria presidir à articulação do discurso sobre a estética deveria ser consoante com os procedimentos políticos próprios da obra artística. Esta tem o potencial de funcionar como uma máquina de transformação, pela própria natureza desse tipo de discurso (que pode ousar todo o tipo de invenção, de bricolage, de paródia, etc.) e pelo peso moral que a arte tem na sociedade, funcionando como resistência a toda tendência homogeneizadora e mercadológica. Os autores em foco, na análise do texto de Murilo, possibilitaram uma leitura que pode ser vista como um posicionamento crítico revelador de uma possibilidade de reordenamento do material crítico presente nos arquivos da literatura, história e arte. Esta possibilidade visa a uma relação entre passado e presente da história e da cultura, numa possibilidade de utopia. Sarlo define olhar político como o que deveria unir os discursos da arte e sobre a arte. Em outras palavras, segundo a crítica argentina, devem-se aproximar os atos críticos de leitura, tanto os elaborados nas obras artísticas quanto os propostos como ensaio. A obra de Murilo, principalmente em Retratos-relâmpago, aproxima-se da ideia de ensaio, corroborando o projeto intelectual das citações, fragmentos e dedicatórias que trazem em si uma marca de cultura:

O olhar político atenta na alternativa e esboça percursos entre as formas dispersas e, às vezes, inaudíveis do novo. Descobre e relaciona. Como refutação dos costumes estéticos na esfera pública e como intervenção para a mudança no terreno dos discursos e das práticas, o novo também se vê obrigado a produzir o seu lugar (as polêmicas, a ironia, as paródias vanguardistas são uma estratégia dessa produção: o escândalo pode ser sua modalidade. Um olhar político descobriria também os espaços virtuais, em disputa, do novo. E dali pode enunciar-se um discurso no qual se reconheçam linhas, talvez fragmentárias, pontos de contato, estratégias formais e semânticas nas vozes dispersas da alternativa e da dissidência (SARLO, 1997, p. 61).

Como se pode depreender, há formas diversas do discurso e do lugar da crítica. Tentamos fazer com a presente pesquisa uma leitura que vai dos temas aos tons. Com isso pretendemos que a dinamização do espaço da crítica seja permanentemente mantida, por acreditarmos que é de máxima urgência um comprometimento por parte leitor e do intelectual com as possibilidades da crítica hoje, reorganizando conceitos e encontrando parâmetros de reflexão e de resistência intelectual. Nessa leitura política, os textos de Drummond serviram como crítica da mineiridade para ler Minas em Murilo. Com um enigmático poema de Drummond, “Meu irmão pensado em Roma”, de BoiTempo & A Falta que Ama (1979), podemos concluir a leitura do mundominas em Murilo Mendes.

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MEU IRMÃO PENSADO EM ROMA

Conclui em Minas o trabalho de conviver. Em Roma, começa a nascer. Sua morte, Piazza Vulture, penetra num desconhecido. Quando ele mesmo já não pensa, eis que começa a ser pensado. Ser revestido, refletido nas fontes; no restaurante, mastigado. Meu irmão habitando Roma como habitam informações. Parecia que estava em Minas e em Minas fora sepultado. Estava circulando em Roma atomizado, meu irmão em Roma pensado pensada Roma pensada (DRUMMOND, 1988, p. 756).

Afinal, em Roma, Murilo escreve A Idade do Serrote, seu trabalho de convivência em Minas. Em Roma, realiza um projeto de vida ao se aproximar dos principais artistas da vanguarda europeia, compartilhando as ideias do Modernismo brasileiro. Um novo nascimento se dá na Itália, em contato com a cultura que tanto o fascinava. No entanto, nos anos em que viveu na Europa, Murilo foi, de certa forma, esquecido no país, como reclama o próprio Drummond: “Engraçada, nossa faculdade de arquivar o companheiro, logo que ele dobra a esquina; se vai de jato ou de navio, então, desabam séculos de esquecimento” (DRUMMOND, 1972, p. 9). Logo após sua morte, ressurge o interesse pelo poeta. Dessa forma, faz sentido o verso “Parecia que estava em Minas e em Minas fora sepultado” (DRUMMOND, 1988, p. 756). Pensar Murilo em Roma é pensar em Minas, assim como pensá-lo em Minas é pensar na Europa.

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PINAKOTHEKE. Alberto da Veiga Guignard – 1896-1962. Rio de Janeiro : Edições Pinakotheke, 2005.

PROPAGANDA GRANDE HOTEL DE OURO PRETO. Diário de Notícias. 2 mar. 1945, p. 5.

SENA, JORGE de. Préfacio. In : Líricas Portuguesas-3°série. Lisboa : Portugália Editora, 1958. p.9-66.

______. Prefácio a Breton. In : Manifestos do Surrealismo. Lisboa : Editora Moraes, 1985. p.7-15.

SILVA, Terezinha Vânia Zimbrão da. Crônicas da Província. In : PEREIRA, Maria Luiza Scher (org). Imaginação de uma biografia literária: os acervos de Murilo Mendes. Juiz de Fora: Edufjf, 2004. 133-140.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA. História de Juiz de Fora – Portal – UFJF. Disponível em: http://www.ufjf.br/portal/universidade/a-cidade/historia-de-juiz-de- fora/ Acesso em 3 jan. 2011.

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ANEXO A – ITINERÁRIO POÉTICO DE MURILO MENDES1

Luciana Stegagno Picchio

Poeta católico, Murilo Mendes, mesmo em Roma, não perdeu a fé. Contra qualquer regime ditatorial, de esquerda ou de direita, durante os anos de ditadura no Brasil, sofreu sob o ponto de vista ideológico. Ao mesmo tempo que sentia-se culpado por ficar fora, também sentia-se culpado por ser brasileiro; queria voltar, mas uma força impulsionava-o a ficar. Esse sentimento conflituoso resultou na última obra em Italiano, Ipotesi: livro triste, espécie de testamento do autor que expressa sua angústia pelo mundo dividido, pela bomba atômica, pela Guerra Fria, pelo Muro de Berlim, pela cortina de ferro, por tudo que fosse divisão. Embora não fosse o homem político das mãos dadas, como Drummond, desejava a paz universal. Como não tinha interlocutores no Brasil, escrevia em italiano, seguindo uma inspiração italiana. Vivendo de sugestões do ambiente, habitava-lhe uma angústia de ser estrangeiro em toda parte. No Brasil já havia escrito prosa, como Discípulos de Emaús, continuou na Itália com um livro de aforismos cristãos. Mais que católico, Murilo era adepto de um cristianismo das origens numa Roma barroca. Tendo sofrido terrivelmente durante um período, na Itália, começou a gostar da Espanha, a magra e românica Espanha, de João Cabral. Em Barcelona, ia visitá-lo, conhecia as catedrais e igrejinhas românicas de barro. Chegava a Roma e se deparava com a civilização que ele não queria. Não que odiasse Roma, mas sua relação com ela era ambíguo. Visando, na última parte da vida, perceber o mundo, começou a escrever livros de viagem. Não se sentia essencialmente brasileiro tropical: não era contente no sol e nas praias do Rio; odiava o mar; não ia à praia e, quando ia, ficava vestido e de chapéu. Ressentido, “eu não tive Idade Média”, era um brasileiro com fome da Europa, onde buscou seu tempo medieval. Com a idade, que também é um ressentimento, sua poesia se torna árida. Exatamente por ser enxuta, representa a desmedida brasileira, aquela cordialidade da qual ele também sentia saudades. Às vezes, comia as comidas italianas com saudades da farofa brasileira. Quanto aos livros de prosa, os tive durante 20 anos, caixas de Murilo por toda a parte. Meu marido dizia: “Quando vamos nos libertar desse Murilo todo?”. Eu fazia sempre uma

1 Transcrição da palestra de Luciana Stegagno Picchio, feita pelos acadêmicos João Paulo Silvério dos Reis e Lucas Mendes Fereira no Lançamento da obra “Poesia Completa e Prosa de Murilo Mendes”, no antigo Centro de Estudos Murilo Mendes (CEMM), em 26 de março de 1994. A transcrição foi adaptada, pelo acadêmico Lucas Mendes Ferreira, para a presente dissertação.

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caixas grandes e colocava no armário do meu quarto, no armário do quarto do meu filho. Aquela prosa era inédita, agora eu a vejo publicada e nestes dias às vezes abro-as e vejo que a poesia e a prosa são mais semelhantes do que eu pensava. Por exemplo, Saudade, que é uma mulher muito inteligente, muito fina, era a musa de Murilo, que vocês verão quando ela vier em Agosto. Ela era muito cartesiana, filha de Jayme Cortesão dizia: “Aí, Murilo! Você agora só faz diários de viagens”. Saudade dizia isto, mas aqui [no livro] a prosa demonstra a viagem. Da Vieira e Silva, colocava linhas e traços e eu publicava como se fosse um verbete português com fotografias de cidades portuguesas. Vendia nos aeroportos e ganhava muito dinheiro escrevendo isso, pois se vê que era um livro muito requintado e com bolinhas e desenhos da Vieira da Silva. Foi publicado parcialmente em Portugal, livro caríssimo e que agora está aqui, muito mais barato, embora o livro seja caro. E depois também tem o livro espanhol, vocês conhecem a poesia de Murilo em Tempo Espanhol. E esta [ a prosa do livro] é um pandango em prosa do Espaço Espanhol. O livro de poesia é um livro metafórico no eixo da vertical, o dos poemas é um livro metonímico, com uma sucessão horizontal. Ou pode-se dizer que o livro Tempo Espanhol do Murilo é um livro auditivo, enquanto esse Espaço Espanhol é visual. Ele se tornou um poeta muito visual e inventou uns gêneros poéticos que se chamavam Murilogramas e grafitos. Via uma pessoa, via um personagem e a resumia ou em um grafito ou em um Murilograma. O Murilograma era da parte do emitente, do emissor era um grafito. Nos últimos anos em Roma, era muito amigo dos artistas plásticos e passou a vida fazendo catálogos para pintores. Esses catálogos eram uma pequena obra-prima, porque tinham um poema ou uma definição do autor, portanto isso está incluído nos Retratos- Relâmpago e no livro Invenção do Finito. Este livro tem uma segunda parte com variantes e notas de cada livro que eu escrevi. E tem uma característica, por exemplo, muitos poetas morrem sem saber que morrem e deixam tudo desorganizado; há uns que morrem deixando uma viúva que faz toda a edição; há uns que têm uma amiga, de acordo com a saudade o faz. Só que há uns homens que morrem, como Fernando Pessoa, deixando o espólio dentro do mar e que fazem uma equipe enorme trabalhar por 10 anos para fazer a edição. E aqui foi feito por uma senhora. Tudo isso, durante 18 anos, mas fiz outras coisas também. E a edição deste livro hoje é como se estivesse devolvendo o Murilo ao Brasil. Eu entrego Murilo, é um Murilo vosso e nosso, porque o Murilo foi também Italiano. Murilo escreveu em Italiano, foi também nosso personagem na última parte da vida, um senhor muito

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requintado e um pouco triste e curvo. Um pouco diferente do Murilo da lenda que vocês fizeram aqui e se via na nossa memória. É um Murilo que sofreu muito, que sofreu ideologicamente, que sofre na sua ideologia própria, católica cristã, por que Roma é um lugar péssimo para ser católico. É o Murilo que nós todos vimos, enriquecido na Europa.

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ANEXO B – ENTREVISTA COM SILVIANO SANTIAGO SOBRE A RELAÇÃO ALEXANDRE EULÁLIO E MURILO MENDES

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ANEXO C – ARTIGO “CIDADES BRASILEIRAS” DE TARSILA AMARAL, DIÁRIO DE SÃO PAULO, 19 DE JAN. 1938

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ANEXO D – ARTIGO “QUE RESTARÁ DEPOIS?” DE TARSILA AMARAL, DIÁRIO DE SÃO PAULO, 10 DE MAIO. 1944

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ANEXO E - PROPAGANDA DO GRANDE HOTEL DE OURO PRETO, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 2 DE MARÇO DE 1945

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ANEXO F- REPORTAGEM ANTI-PEDAGÓGICA DE OURO PRETO, POR RENATO ALENCAR, DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 29 DE ABRIL DE 1945

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