O Jongo de Vassouras. História, Identidade, Poesia The Jongo Renascer de Vassouras. History, Identity, Poetry

José Jorge Siqueira¹, Luís Carlos Rodrigues dos Santos².

Resumo

Trata-se de um renascimento de antiga forma de expressão do afro-brasileiro, onde se misturam história, identidade Como citar esse artigo. Siqueira cultural e poesia. JJ, Santos LCR. O Jongo Renascer Palavras-Chave: Jongo. Vassouras. História e Identidade Cultural. de Vassouras. História, Identidade, Poesia. Revista Mosaico. 2015 Jan./Jun.; 06 (1): 05-15. Abstract

It is a revival of old african-brasilian form expression, where is mixed history, cultural identity and poetry. Keywords: Jongo. Vassouras. Hisrory and Cultural Identity.

O jongueiro é um feiticeiro da palavra. aquela alegria, aquela coisa genuína, aquela coisa que (Anônimo, passado por seu Zé Bolero) é nossa, sktan, sktan, sktan, aquele baita negão... eu era muito colado com ele, ele me ensinara a fazer pipa e Refazendo a teia tal, a arte de fazer pipa. Logo eu, que me considerava o aluno mais burro do grupo escolar... Não se falava mais de Jongo em Vassouras, Havia a rainha da escola, a rainha da bateria, muito menos lá em casa. Eu nasci no samba. Meu pai, que era a minha tia Marilene. Zé Jorge, vou dizer uma o Zé Bolero, possuía uma escola de samba famosa na coisa pra você, era encantador, aquela arte de dançar, cidade, chegava a reunir, nos anos de 1960, mais de mil aquela manha... Onde ela aprendeu assim? Isso é pessoas num desfile, isto numa cidade pequena como coisa dela, já veio junto... As pessoas ficavam assim é Vassouras não era pouca coisa. Era uma negrada só, deslumbradas, o prefeito, no palanque, sabe como havia uns poucos brancos, mas era uma negraiada só. é... Meu tio comandando a bateria, com aquele apito, Revista Mosaico. 2015 Jan./Jun.; 06 (1): 05-15 E era pra valer! De tanta musicalidade, encantamento, pririiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, priripipi, priripipi, priripipi, vigor, da arte popular; cada um querendo fazer melhor sktan, sktan, sktan, olha... Pesada, minha bateria é uma que , alas impecáveis, o público ficava perplexo, bateria pesada, dizia seu Zé Bolero. como pode? Tudo fruto de muito ensaio, lá em cima, A escola de samba do velho foi até os anos 80. na rua de terra batida ainda; aquilo ficava entupido de Do caxambu não se falava mais em Vassouras. Lá em gente. Havia um parceiro do pai, que desenhava os casa era uma espécie de tabu, de proibição. Morei modelitos, as costureiras. uns tempos na cidade do Rio de Janeiro, ali na Ana Eram três casais de mestre sala e porta bandeira, Néri, próximo da Mangueira, trabalhando na central mais um casal mirim, que vinha ser eu e minha irmã de medicamentos do governo, onde muitos negros Rosângela. Eu via o seu Nelito, e ele era um mestre sala trabalhavam. Aquela turma do Império Serrano, da extraordinário, porta bandeira com ele passava sufoco, Portela, me levava pro samba. Nunca me esqueci do dia ele não parava; aquilo me encantava. Havia meu tio em que dançando na quadra da Mangueira despertei a Joãozinho, de quase dois metros de altura, 1,98m, meu atenção de Xangô da Mangueira, do Delegado - mesmo pai lhe dera um chocalho grandão. Nunca vi até hoje sem saber da importância dele como mestre sala, que alguém dançar e tocar um chocalho como ele... com tanto daria o que falar -, que se aproximou e veio tirar

1. Historiador. 2. Cacalo. Amo do Jongo Renascer de Vassouras.

5 Siqueira & Santos, 2015. uns passos comigo. Me transformei em animador social negro no tempo do cativeiro. Hoje em dia se cultural, por indicação do Darcy Ribeiro. Morei uns reconhece que a escravidão não significou simplesmente tempos também em Copacabana, ali na Barata Ribeiro, senhores dominadores e escravos aterrados. Não, entre mas o interessante é que nunca fui me banhar no mar. um e outro havia uma série infindável de intermediações, Um dia voltei a Vassouras. onde a necessidade de negociar se impunha como imprescindível para garantir um mínimo de estabilidade Barra 70 e sobrevivência ao sistema, que, afinal, durou mais de trezentos anos. Se sabe, por exemplo, da existência de Olha a noite, olha o dia Porto da barra, maresia quilombos no próprio espaço dos latifúndios, com os Acarí, Merití, Piabetá senhores, incapacitados de acabar, tendo de negociar a Asfalto de bagaço convivência; diversos tipos de quilombos existiram aos Metais cortantes, vivelas milhares ao longo dos trezentos de escravidão, inclusive De senzalas na panela Olha noite, olha o dia nas barbas do imperador na quinta da Boa Vista. Se Porto da barra, agonia sabe da existência de negros (pretos e pardos) feitores, Africano talvez, pernambucano quiçá, republicano nem sei mesmo, no caso do Vale do Paraíba, de barão negro (o Olha noite, olha o dia de Guaraciaba), proprietário de várias fazendas. Outras Porto da barra, hipocrisia formas de resistência e concessões poderiam ser aqui Dos brutos que chegaram, de tudo o que deixaram Tanto mar, tanto fazia enumeradas, passando pela política de possibilidades de Bela tarde que sorria. constituição de famílias de cativos, a concessão de terras para cultivo próprio dos escravos, as alforrias diversas, José Jorge a abertura nas leis propiciando a defesa nos tribunais dos direitos adquiridos, como ocorre especialmente nos Nos anos 90 resolvemos botar nosso bloco na rua, século XIX; as grandes rebeliões e levantes, a exemplo certamente em sintonia com o que ocorria no país com de Manoel Congo e Mariana Crioula em Vassouras. o despertar de uma nova consciência sobre a Questão E certamente o uso da cultura como uma forma do Negro no Brasil. Afinal, no governo do presidente também de resistência cultural e política: insidiosa, Fernando Henrique Cardoso, o próprio Estado brasileiro envolvente, como no caso da importância assumida reconhecia finalmente ser a sociedade brasileira racista pela culinária de base africana, com seus temperos, uso e preconceituosa para com os afro-brasileiros e que era de legumes, formas de preparar a carne, o peixe, que necessário enfrentar isso, sob pena de manchar de forma dominou a cozinha na Colônia e mesmo no Império indelével a projeção internacional do país no concerto brasileiro, inclusive nas casas grandes. Assim com a das nações, para não falarmos nas deformações sociais transferência de saberes econômicos, como os ligados internas cada vez mais insuportáveis. Nesse contexto à extração do ouro, atestada em nomes bantu de vários ganha assento ministerial a Fundação Cultural Palmares, instrumentos de trabalho de escavação, bateia e forja, o 20 de Novembro (dia do nascimento mitológico de usados nas Minas Gerais. Também na incorporação Zumbi dos Palmares, que correu terras, céus e mares dos talentos africanos para a música dos conjuntos e influenciando a Abolição) transforma-se nacionalmente orquestras, ou no aperfeiçoamento dessa mão de obra em Dia da Consciência Negra, num contraponto ao pelos artífices europeus nos ofícios mecânicos e artísticos caráter extremamente conservador significado pela – como atestam os escravos ocupando praticamente Abolição do Treze de Maio; as terras das comunidades todas as funções do trabalho manual naquela sociedade; negras ocupadas desde o período escravista passam a no valor de sua presença atestada na arte e arquitetura objeto de jurisprudência na Constituição de 1988, a do barroco pernambucano, baiano, mineiro, fluminense, difusão do black is beautiful, a valorização da mulher de igrejas e mosteiros, no embelezamento das cidades, negra, etc. etc. Então, na terra tida como dos barões, resolvemos Neste contexto se encaixa o jongo do Sudeste botar o bloco na rua, apresentar tudo, a caninha verde, brasileiro. Esta “brincadeira” bantu, concedida pelos a folia de reis, as rezadeiras, os sanfoneiros, o calango, senhores escravocratas para alegrar os cativos nos a culinária afro-brasileira, realizar um desfile da beleza terreiros, desviando-os de maus pensamentos, realizada negra. em feriados e dias santos, tida pelo etnocentrismo A negra Fátima comentou comigo na ocasião: branco dominante como manifestação de selvageria e Cacalo, havia muito aqui em Vassouras o caxambu, lascívia, transforma-se em valiosa forma de recuperação em festejos memoráveis no largo da igreja do Rosário. da identidade, típica de uma cultura lúdica, feliz e de Agora só em Barra do Piraí, com o Tio Juca. – Ah, é? grande religiosidade. Os feiticeiros africanos e afro- Pois eu vou lá nele. brasileiros encontravam ali uma forma de escapar à Cacalo, meu irmão, agora digo eu, José Jorge. censura das casas grandes e cultuar seus ancestrais Todos sabem da importância do caxambu para o meio (sim, pois a religiosidade africana tradicional, em

6 Siqueira & Santos, 2015. grande medida, tem por base o culto aos seus ancestrais José Jorge, é que lembro agora de um aluno nosso não valorosos), recuperar seus ritos e preceitos religiosos propriamente de História, pois ele fazia Engenharia tão ligados ao dia-a-dia da vida; também se divertir Ambiental na Universidade, mas que conheci, pois nos pura e simplesmente, além de transmitir em linguagem hospedávamos na mesma pousada, o Fandé, da Guiné cifrada (na língua bantu de existência milenar e hoje Bissau (recebera bolsa de estudos da Universidade normativa, pois se fala e se escreve em bantu) toda uma Severino Sombra e está por concluir os cinco anos de cultura de deboche ao estabelecido, tornando implícita curso), ao me relatar da linguagem dos tambores em sua a consciência que se tinha dos males da escravidão. A terra. Para minha perplexidade, a ponto de ter sido (a capa de legalidade, ao ritmo do sincretismo, explica linguagem emitida pelos tambores) importante meio de as realizações festivas em dias dedicados aos santos comunicação nas lutas de libertação nacional, avisando católicos, muitos deles negros ou negras, ou a eles às comunidades e aos guerrilheiros os deslocamentos identificados, a exemplo de Nossa Senhora do Rosário, e posição das tropas portuguesas – e isto a grandes e São Benedito, já então apropriados e assimilados de distâncias, pois são tambores vazados, tocados na forma sincera à devoção daqueles, e em igrejas muitas horizontal, batidos a pau. Fandé me dizia que um seu vezes construídas pelos próprios negros e libertos, irmão ainda domina essa linguagem, embora ele não geralmente organizados em irmandades. mais. - Sabe, Zé Jorge, um belo dia estou na cidade e Questão de Fé encontro o seu Dejair. Ele me fez saudações calorosas e confidencia: - Você tem mesmo a quem puxar! Seu Em matéria De religião avô vai estar orgulhoso de você, rapaz! Você é neto Estou de Waldemar, Grande. Seu avô era um negro de dois Como Nietzsche metros de altura, quatro por quatro! Cacalo, ali na igreja (embora não tenha necessitado de sua opinião) do Rosário, na subida de onde é hoje a Universidade, Só acredito num Deus que dance! havia as festas dos pretos. A roda de caxambu de seu José Jorge Waldemar, Grande era muito respeitada, ai de quem desrespeitasse a roda de caxambu de Waldemar, Grande. - Do jongo não se falava lá em casa, mas ele estava Seu avô, rapaz, era um homem respeitadíssimo aqui. lá. Quantas vezes peguei minha mãe cantalorando na Fiquei sem entender nada. Papai, o que é isso? cozinha coisas tipo, “eu tenho pena, meu pai, eu tenho – Vou te explicar. Seu avô foi acusado de ter roubado dó, o galo preto bateu no carijó”. E isto é jongo puro! um rádio. Seu avô foi preso. Ele era um homem muito Tio Juca tocou alguns pontos do jongo para mim. íntegro. Sabe o que ele fez? Muito respeitado, pediu ao Aquilo me subiu pelas veias, tomou meu corpo, saí carcereiro que lhe trouxesse uma lata de salsicha, no dançando. – Machado! (que é uma forma de interromper que foi atendido. Ele então abriu a lata e se abriu de uma ponta a outra, e jogou tudo dele de dentro para fora! E

as cantigas, ou indicar a solução das demandas de um Revista Mosaico. 2015 Jan./Jun.; 06 (1): 05-15 ponto), ordenou Tio Juca. – Nego véio falou pra você foi aquele corre-corre, levaram para o hospital, mas não que não tem mais idade para brincadeira. Meu filho, teve jeito. Nisso, quando soube, o rapaz se acusou: fui você está brincando com nego véio? Você não disse eu quem roubou o rádio! que veio aqui para aprender? Você dança jongo como - Aí é que fui entender porque meu pai jamais ninguém, o que é isso? – O senhor acha que eu ia sair falara de meu avô, porque o assunto caxambu lá em de Vassouras para vir aqui brincar com o senhor? Eu casa era um tema proibido. quero aprender, eu quero montar um grupo de jongo em - Na ocasião, Cacalo, continua o velho Zé Bolero, Vassouras. eu tinha doze anos, era o mais velho de uma turma de Comentei com minha mãe. Ela sorriu. Meu pai oito filhos. Caí em campo, tinha de ajudar sua avó. Eu me chamou e disse: - Vem cá filho, você anda mexendo limpava as ruas, os córregos, ali defronte à reitoria da com essa coisa de jongo, aprendendo a batida, não Universidade, onde passava a linha de trem. Ganhava é? Pois eu vou te mostrar a língua do tambor, escuta meu dinheirinho, ajudava a sustentar a família. Seu avô, só (numa tradução livre): “quando eu morrer, minha rapaz, não tinha medo de nada. – Agora é que meu pai mulher vai ficar pra quem? Quando eu morrer, minha anda soltando alguma de meu avô. mulher vai ficar pra quem? Tundum, dundum, tac, - Cacalo, você me contou a mim, José Jorge, que tundum, dundum; ficar pra mim, ficar pra mim, ficar ele (seu avô) matava um boi num abraço de pescoço. pra mim, katac, katac, katac”. Compreendeu? O tambor Pois olha, fui, faz algum tempo, a uma exposição no grande pergunta, “quando eu morrer, minha mulher vai Museu Histórico Nacional sobre um povo, uma etnia ficar pra quem?”; e o candongueiro responde, “ficar pra africana dita hereros, que vive no Sul de Angola, mim, ficar pra mim, ficar pra mim”. Compreendeu? próximo ao deserto da Namíbia. Aliás, a escolha desse - O interessante disso tudo Cacalo, comenta o lugar inóspito, difícil, se deve às migrações desse povo evitando a escravidão que trouxera para as Américas

7 Siqueira & Santos, 2015. e o Brasil milhões de africanos. É um povo milenar, das fazendas, a escravaria chegava a representar mais resultante da expansão civilizatória bantu de 2500 atrás, de 50% do valor estimado das propriedades. Mesmo vindos do leste do continente. Estão na região desde fins considerando, no caso dos latifúndios, os gastos do século XV. exorbitantes das residências luxuosas, desproporcionais Pois bem, esses hereros são um povo nômade ao tamanho das famílias, ornadas do bom e do melhor e que vive do pastoreio, sendo o gado bovino a sua importados de França, Itália, Alemanha, etc. A lógica da principal riqueza – é incrível o tudo o que eles retiram produção previa mais e mais mão de obra para o aumento do gado para viver. Observei nas fotos, no vídeo quantitativo do produzido, às custas da melhoria na realizado, como são fortes, altos, as mulheres formosas, produtividade e, sobretudo, no caráter mais humano no todos com dentes bonitos, não vi ninguém obeso. Você trato com os trabalhadores, invariavelmente expostos a sente a liberdade plena com que vive cada indivíduo, jornadas diárias de trabalho de 14 a 18 horas. incluindo aí as mulheres. Todos se excedem no trato Os métodos arcaicos, entrando em contradição com os cabelos, em configurações surpreendentes, e que face às sofisticadas bibliotecas encontradas nos casarões, hoje se vê por aí nos jovens do mundo. Têm contatos possuíram outro agravante. Sim, pois se pode argumentar com outras sociedades para, em regime de troca, obter ser aquela a “racionalidade” do sistema, mas não se o que não produzem – ainda que sejam críticos do que pode sustentar a ausência de alternativas científicas e percebem estar acontecendo no mundo. Consultaram os de inovação tecnológica postas ao alcance do mercado, ancestrais para saber se poderiam permitir o trabalho de dada a revolução agrícola ocorrida na Europa desde fotografia e vídeo. meados do século XVIII. Por aqui se privilegiou antes Infelizmente tenho de dizer que já em pleno a vigilância sobre os trabalhadores à melhoria de seu século XX – após, portanto, terem sobrevivido ao trabalho. A cinza foi considerada durante muito tempo tráfico atlântico de escravos – os hereros por pouco não um dos melhores adubos para o plantio. Resultado: foram totalmente exterminados, perdendo cerca de 70% estima-se que entre 1788 e 1888 a devastação da floresta de sua população. Agora feito realizado pela civilizada primária, da incomparável Mata Atlântica localizada ali Alemanha, de Hegel, Goethe, Kant, Beethoven, Wagner, há milênios, tenha consumido o equivalente a trezentos mas que entre 1904 e 1907 invadiu as cobiçadas terras milhões de toneladas de biomassa florestal transformada e riquezas naturais dos hereros, massacrando o povo, em fumaça, isto para produzir cerca de 10 milhões de pois, país industrial, já dispondo das armas de repetição; toneladas de café, de baixíssima produtividade por também usaram o envenenamento das fontes de água. hectare e onde não se prezava o café pela qualidade. Em 1985 a Organização das Nações Unidas (ONU) Por sua vez, a arroba de café à época era vendida, por reconheceu ser esse um verdadeiro genocídio. média, a 5$, ao passo que os atravessadores estrangeiros Pois bem, na exposição acima referida, vi herero monopolizadores da atividade, sem botar a mão no matando boi num abraço de pescoço! Alguém segura trabalho de plantio, colheita e transporte até o porto do o rabo na contra mão, o outro lhe torce o pescoço! Rio de Janeiro, vendiam a mesma arroba por 16$ no Sem trauma para o bicho, rapidamente. Como me mercado final. impressionou muito quando você me falou de seu avô, A natureza não tardou a cobrar o preço a essa lembrei imediatamente dele! Eis aí um bantu!, pensei, verdadeiramente irresponsável relação com o futuro Waldemar, Grande! Obviamente que ele não aprendeu do país: chuvas torrenciais fora de época, entupimento isso por aqui, na cultura do baronato do café, que vivia de riachos e córregos com uma lama que a tudo recomendando, a exemplo do barão do Paty do Alferes, esterilizava, chuvas essas acompanhadas por longos que, serra acima, não se dá (ao escravo) carne; comem períodos de secas, alteração nas temperaturas médias, feijão temperado com sal e gordura e angu de milho, pragas (a lagarta e o gafanhoto insaciáveis, os túneis três vezes ao dia. intermináveis de formigas vorazes), a morte de um tesouro inestimável de fauna e flora, o definhamento Um pouco de História da navegabilidade pelo rio Paraíba do Sul que corta a região dando-lhe ligação com o mar. Em muitos lugares, via de regra, pouco a pouco restaram os casarões O primeiro Censo Demográfico do país, ainda em inertes, carregados de reminiscências de um passado de plena época proto estatística, o de 1872, aponta ¾ da pompa e circunstância – dizem ser prática em algumas população de Vassouras (o que incluía as paróquias de dessas sedes de fazenda receber turistas com negros Nossa Senhora da Conceição, Mendes, Paty do Alferes, e negras vestidos à feição dos tempos da escravidão, Ferreiros e Sacra Família) como sendo de pretos e além dos senhores e senhoras também a caráter; estes, pardos. Às vésperas da Abolição, portanto, num regime certamente, muito bem vestidos, pois eram os alfaiates que durara mais de trezentos anos, era insofismável o e modistas franceses os profissionais mais bem pagos e peso e a importância da descendência afro brasileira procurados naquela Vassouras. na região. Referência fundamental na contabilidade

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Na floresta da liberdade”. tombaram jequitibás De resto, não se cumpriram os receios das classes vidas e perobas que-não-são-mais-do-campo dominantes de se seguir ao 13 de Maio uma anarquia generalizada, atos de vandalismo, de vingança, e que J.J. tais. Para a massa de libertos o fundamental de seu projeto político havia se realizado. Malgrado a aguda Ainda tanto tempo depois, temos de discordar consciência dos limites daquilo que acontecera, como de um autor clássico da história de Vassouras, o norte- expresso no ponto de jongo até hoje recitado, como um americano Stanley Stein, quando conclui que, com a clássico do gênero, Abolição, negros (pretos e pardos) libertos não foram integrados à sociedade, posto que, “despreparados” para A princesa deu liberdade, a liberdade, foram entregues à própria “sorte”. Essa mas não deu banco pra sentar. idéia é também defendida por vários outros autores, e E diríamos, acrescentando, nem os escolares, pois disseminou-se em sociedade. se a Constituição Imperial de 1824, a primeira do país, Ora, a pergunta que não quer se calar é a seguinte: garantia o ensino primário por parte do Estado (ainda que quem estava preparado para Liberdade? excluísse os escravos de frequentá-la), aquela de 1891, O baronato e, em geral, como tendência, a da República, dita da civilização e da modernidade, seus descendentes mais imediatos? Aqueles que em retirava aquele preceito prerrogativa do Estado e, ato março (repito, março) de 1888 reunidos em duzentos contíguo, proibia o voto do analfabeto! Isto significaria participantes, no Paço Municipal de Vassouras, uma verdadeira rasteira no povo brasileiro, tanto que ameaçaram surrar um de seus iguais ao ouvir dele não ultrapassaria a 5% o percentual de eleitores nas claramente que o melhor a fazer era mesmo acabar de primeiras eleições presidenciais da jovem (e tão velha) vez com a escravidão, sem mais, nem menos? Baronato República. aquele, em grande maioria, provindo da ralé européia Neste sentido vem nossa (obviamente não estamos (alemães, franceses, italianos e, sobretudo, portugueses), sós) discordância acima referida. O afro brasileiro não a fazer a América como se dizia, e que abandonaria no estava “despreparado”, ou não fora abandonado “à mesmíssimo 1888 os títulos de nobreza recebidos da própria sorte”, como pretenderam as análises. Mesmo monarquia que extinguira a escravidão sem indenizações seu português truncado dos pontos de jongo, em língua como eles pretendiam, passando-se incontinentes à de preto velho, misturando o português ao bantu (não República que se anunciava. Ou seus descendentes que é à-toa que existe um Dicionário Bantu do Brasil, com simplesmente aferroaram-se às oportunidades “abertas” mais de dois mil vocábulos, escrito por Nei Lopes) que a república burguesa lhes ofereceria, dadas as tinha mais que razões para assim ser. Quanto mais não transformações mínimas nas estruturas econômicas do seja retiram-lhes a língua materna em curso natural de país face ao seu modelo agrário dominante – portanto, desenvolvimento (o bantu, já se disse, é hoje uma língua Revista Mosaico. 2015 Jan./Jun.; 06 (1): 05-15 garantindo aos grandes proprietários o peso de suas normativa, pois se fala e se escreve em bantu; se sabe influências retrógradas e iminente hegemonia política? da tradução da Bíblia para o guese etíope no século IV Tanto pau no mato, embaúba coroné! - repitimos, século IV -, e assim por diante), e ainda por cima lhes dificultaram ao máximo a escolaridade No Treze de Maio de 1888, após três dias cidadã. consecutivos de festa, justamente de muito jongo, no Em outras palavras, o ambiente pós-Abolição que puderam, negros e mulatos trataram de abandonar da I Republica no Brasil, 1889/1930 (e por muito aquela cena de horror que se extinguira, rejubilando-se mais tempo ainda) seria extrema e conscientemente com a liberdade. As mulheres negras foram as primeiras adverso ao afro brasileiro, num regime que em muito se a abandonar em massa as casas grandes, deixando-as aproximou do apartheid, embora muito especial e único inertes, aparvalhadas, pois eram sua cozinha, a cama, no mundo, posto que dissimulado e aparentando ser o sua mesa. Mudavam de propriedade, trocavam de região, que não era. Por exemplo, concursos para aspirantes a migravam para a cidade do Rio de Janeiro, aboletando- oficiais do Exército brasileiro, durante a I República e se na Baixada Fluminense, nos subúrbios, nos morros, anos 30 e 40 afora, não proibiam, mas pela fotografia cortiços e favelas que então surgiam na cidade. Ora, barravam os candidatos pretos e pardos eventualmente o senhor não vive sem o escravo, sendo que o inverso aprovados. Por sua vez, o que dizer do Itamarati? não é verdadeiro, daí a sabedoria expressa no verso de No atacado, os cerca de dois milhões de imigrantes Dona Ivone Lara, da gloriosa Escola de Samba Império recebidos na virada do século XIX para o XX sob o Serrano, do morro da Serrinha - terra de Vó Maria Joana, signo da modernização, da civilização e, diga-se, do rezadeira, emblemática figura do jongo, mãe de Mestre branqueamento da população – veja-se isto defendido Darci – quando diz num samba famoso, “negro é a raiz abertamente na apresentação do Censo Demográfico de

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1920, escrito por Oliveira Vianna - tenderam o ocupar para o funcionamento econômico-social por mais de todas as profissões competitivas surgidas com a expansão trezentos anos, alimentado pelo tráfico atlântico de do capitalismo e da urbanização moderna, inclusive as escravos, e defendido até a derradeira hora pelas classes educacionais e científicas, especialmente em São Paulo, ditas superiores, passa a ser visto como um empecilho centro dinâmico daquelas transformações – ainda que ao que consideravam “progresso”, “modernidade”, muitas vezes também eles fossem penalizados pelas “civilização”, pois o meio social negro/mulato teria regras duras do sistema que mal ensaiava os primeiros sido “estragado” pela escravidão. Invertia-se a ordem passos. das coisas, portanto. Ora, se o trabalhador era corrompido, anti- Diplomaticamente social, degenerado por costumes incivilizados, tratava- se de corrigi-lo, trazê-lo à ordem, em nome da moral Vi Muitos negros burguesa então em emergência. Nada escaparia ao zelo Servindo normativo: a família negra “desorganizada”, o jovem Cuidando dos cisnes negro cobiçado como aprendiz ao se educar, os costumes É pouco. e tradições como praticados pelos negros tidos como J. J. antros de arruaças, bebedeiras, orgias, a religião de base africana jamais entendida como tal, transformando-se Às massas populacionais negras (as exceções em objeto de perseguição policial, etc. sempre existiram desde sempre, sob certas condições) Todavia, contraditoriamente, era necessário restaram, em geral, o emparedamento e a adversidade ordenar o trabalho da massa social negra. Ainda que com culturais, econômicas e políticas de aviltantes e todo o cuidado para não parecer a retomada da escravidão duradouras consequências a serem debitadas na auto- – até porque inaceitável pelo homem e mulheres negros estima e limitações de horizontes sociais os mais – tornam-se visíveis os traços extremamente opressivos diversos, estigmatizando-lhes gerações e gerações, daquelas iniciativas. Consideram os fazendeiros que como ainda hoje se faz sentir. Essa marginalização o liberto devia continuar o trabalho em ternos ou paradoxalmente ensejou neste meio social a criação grupos, dirigidos por fiscais ou vigilantes. Dificultava- de alternativas culturais e sociais próprias, singulares, se ao máximo a autonomia e mobilidade desse dando origem a expressões das mais genuínas no trabalhador, atribuindo-lhe a peja do “despreparo”, da concerto cultural da nação, que o digam o caxambu, o “irresponsabilidade”, da “preguiça”, etc. O trabalhador tambor de crioula, os maracatus, a capoeira, o chorinho, liberto devia, por via de regra, restringir-se ao salário. o samba, a tradição cultural dos Orixás. Por sua força No limite, o imigrante europeu encarnaria o modelo avassaladora tais manifestações acabariam por se do novo trabalhador ideal – ainda, como foi o caso na transformar em preponderantes no seio da cultura popular maioria das vezes, estivesse nas mesmas condições do país, conferindo a este último notória singularidade do trabalhador nacional. Existe estudo a demonstrar no concerto das nações. Mesmo a cultura erudita seria que até mesmo em fábrica (de tecidos) que viria a se altamente influenciada por tais criações, especialmente desenvolver na cidade de Vassouras no princípio do a partir do Modernismo de fins da República Velha, século XX, o trabalhador afro brasileiro foi rejeitado, quando ocorre uma volta sobre si mesma da percepção por força do racismo e da discriminação, a incorrer e realizações estéticas no Brasil; assim com os trabalhos inclusive entre os operários. de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazaré, Villa Lobos, Portinari, Di Cavalcanti, na literatura de Mário de Questão de cor? Andrade, Jorge Amado, Jorge de Lima, e mesmo, no interesse despertado nas ciências sociais a exemplo da Datilógrafo, não antropologia, da sociologia, da história. Tabelião, não Empreiteiro, não Em Vassouras o peso demográfico dos afros Industrial, não brasileiros daria prova contundente nos anos pós- Oficial de Justiça, não Abolição: a população involuiu! No 1º e mais importante Relojoeiro, não distrito (o de Conceição), por exemplo, o número de Hoteleiro, não habitantes passava de 10.664 para 9.666, entre 1872 Barbeiro, não Capitalista, não e 1900, correspondendo à reação imediata da massa Administrador de fazenda, não de libertos: sair daquele ambiente hostil para si e seus Fazendeiro, não descendentes. Neste sentido, a Abolição tinha sido para Engenheiro, não valer. Eis que o liberto passou a ser visto como uma Professor, não Muitos mendigos espécie de estorvo à nova sociedade, ergueram-se as Jornalista, não ideologias do vagabundo, do bêbado, do desordeiro, do Eletricista, não “primitivo” e inferior. Aquilo que tinha sido a solução Advogado, não

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Comerciante, não se a partir dai as dificuldades legais para outros Dentista, não procedimentos civis. Ai de mim! Avulta também o número de cônjuges filhos José Jorge naturais, de pais não casados oficialmente. Por sua (A partir da identificação de pretos e pardos segundo vez, abundam na imprensa comentários maledicentes as profissões, num dos raros documentos de época que ironizando a nova condição social daqueles que relacionam profissão e cor – os atestados de óbito -, entre continuavam a maioria da população e tinham sido 1920 e 1943. Conforme o Arquivo Municipal de Vassouras) os maiores responsáveis por todo o trabalho direto que construíra o patrimônio do país. Num exemplo Se sabe que os imigrantes italianos que vieram paradigmático, Machado de Assis, fundador e primeiro para o Brasil possuíam em sua maioria níveis econômicos presidente da Academia Brasileira de Letras, nascido e culturais os mais baixos - muitas vezes, por exemplo, no morro da Providência, pertinho do extinto cais do analfabetos em sua própria língua. Entretanto, recebidos Valongo, de triste memória, neto de libertos por parte de com a auréola dos estereótipos positivos face aos novos pai, quando adolescente, tinha verdadeiro pavor de ser ideais do trabalho livre, lograram com muito mais confundido como um liberto, dada a insegurança social chances que os afros brasileiros integrarem-se e, mesmo que cercava tal condição. a duras penas, ascender a padrões sociais mais seguros Há um interessante caso da fazenda Cantagalo, ou promissores. Foram mais aceitos como colonos e em Paraíba do Sul, que precisa ser relembrado ainda arrendatários nos latifúndios decadentes – em geral, uma vez. Legada pela Condessa do Rio Novo, em 1882, ao liberto, apenas a jornada de trabalho -, e como tais aos seus 244 escravos, muitos desses entrados no país passaram produzir alimentos para si e não raro para a pós 1850, portanto, livres em teoria. Todavia, o ato de venda, além do que recebiam pelo trato dos cafezais e alforria e doação das terras, tido como de piedade cristã, pela colheita; sendo-lhes possibilitado, com parcimônia conteria alguns limites constrangedores e que jogariam e moderação, o acúmulo de pecúlio. Recebiam moradia no fracasso a intenção caridosa da ilustre senhora, irmã como era comum, contavam com incentivos dos remida das Ordens de S. Francisco de Paula, Santa fazendeiros, a lhes dar segurança no trabalho; eram Teresa de Jesus e de Nossa Senhora da Piedade, na pagos por tarefas extraordinárias. Corte, e das de S. Francisco de Assis, Nossa Senhora Tudo isso lhes permitiu, em muitos casos, de Sant’ Ana, na freguesia de Cebolas, e do Santíssimo a formação de capitais para a compra de terras, Sacramento, na cidade de Paraíba do Sul. geralmente a prazo, agregando propriedades aos poucos Eis que o testamento referido, ao conceder a - os casamentos entre si podia ser uma estratégia liberdade aos cativos (dizem que liberdade não se da acumulação. Possuiriam, os imigrantes, maior ganha, se conquista), criava uma colônia agrícola, sob credibilidade para empréstimos, hipotecas, comumente a denominação de Nossa Senhora da Piedade, à qual entre eles mesmos. Não raro transformar-se-iam em foram distribuídos lotes de terras a serem repassados comerciantes (padarias, vendas a retalho, etc) ou Revista Mosaico. 2015 Jan./Jun.; 06 (1): 05-15 aos libertos adultos, para o cultivo do cafezal e de pequenos “industriais”. Desenvolveriam verdadeira cereais para a subsistência. Ao mesmo tempo, o paixão pela terra e pelos negócios em família, certamente testamento também criava a Irmandade também dita a significar a liberdade de ação, e com isso, as estratégias de Nossa Senhora da Piedade, que fica encarregada de da parcimônia enfim das primeiras gerações. administrar a colônia agrícola referida, através da mesa Já se percebeu que não se formou na região, nem diretora da entidade, fiscalizada, por sua vez, pelo Juiz no Brasil, um campesinato negro, de pretos e pardos, na de Direito e pelo presidente da Câmara Municipal local. proporção de sua importância demográfica e histórica Ora, está a se ver, as terras concedidas aos libertos não com relação à terra, a não ser nos quilombos? Pode a se transformaram em propriedade plena, ao contrário, do negro ser senão uma felicidade guerreira? seriam supervisionados pela elite local, obviamente com Portanto, tudo aquilo era o inverso do que interesses ligados à grande propriedade. Por sua vez, se destinava ao afro brasileiro. Proveniente de um ditava o testamento ser a metade da produção obtida quadro familiar dilacerado pela escravidão tornar-se- pelos trabalhadores destinada à Irmandade criada, a ia extremamente difícil a recomposição desses laços, qual se esforçaria, na medida de seus recursos, em criar dadas as adversidades conscientemente montadas pelos asilos ou recolhimentos para criação e a educação de novos tempos. Jornais do Vale do Paraíba de época, menores desamparados, hospícios de loucos e hospital por exemplo, apontam a onda de casamentos entre afro de lázaros. brasileiros no imediato pós Abolição, como a apressar a Em suma, como poderia um empreendimento um busca da dignidade social – malgrado suas reclamações comercial sustentar-se doando a metade do produzido a quanto aos elevados preços desse procedimento à outrem e a fundo perdido? época; e ser comum, entre os nubentes, a identificação Ainda assim, conforme o insuspeito relatório do apenas pelo primeiro nome, sem sobrenome – imagine- Boletim da Sociedade Central de Imigração dos anos de

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1883 e 1884, malgrado todas aquelas adversidades, o Diversão, consciência histórica e modernidade que se sabe é que os pretos fizeram progressos notáveis na propriedade enquanto puderam suas forças: ergueram rapidamente, em um ano apenas, 58 casas de moradia, Negro Velho todas separadas e independentes, algumas já com Esta sua roupa azul e branca relativa comodidade (portas e janelas pintadas, quartos não é mais roupa, é manto assoalhados, etc); aumentaram a produção de cana de de tradição, poesia, resistência cultural açúcar de 4 para 10 carradas, entre 1883 e 1884; idem esta sua cabeça negra, branca de cabelos na produção de café, com a manutenção de 500 mil pés não é mais razão, é sonho de mulher, criança, de um país. da planta (beneficiadas no engenho central administrado pela Irmandade referida). A produção de milho, base da J. J. alimentação dos colonos e dos animais, passou de 40 a 110 alqueires no terceiro ano de concessão - milho, Ao contrário do que previram algumas análises por sinal, inteiramente pertencente aos colonos, não e prognósticos, o jongo não se acabou com a chegada necessitando dividi-lo com a Irmandade. O mesmo da industrialização, da urbanização e da sociedade de aconteceu com o feijão, de produção quase nula, consumo capitalista, burguesa. Em grande medida, não passando a 80 alqueires no segundo ano de trabalhos, se acabou porque não se acabaram antigas questões ou o que se repetiu com a mandioca, o amendoim, o arroz, dinâmicas histórico-sociológicas de tempos atrás, como a batata, o inhame, a banana. Os cafezais mantiveram- vimos. se limpos e entre as plantas, nos intervalos, cultivaram o milho, o feijão; passaram a sobrar laranjeiras nas “A liberdade não ficou do nosso jeito. orlas dos cafezais. Os caminhos achavam-se muito bem Deram liberdade, cadê nossos direitos?” mantidos, posto que desembocavam na estrada de ferro. (Seu Manoel Moraes, Quilombo de Santa Rita do Bracuí). A felicidade voltou à cara dos trabalhadores, anota o circunspecto Boletim. Ao passar aos novos tempos, ao conviver com eles, Afinal, foi ou não foi uma covardia histórica o transformando-se e atualizando-se simultaneamente, que fizeram com a massa de libertos da escravidão no aquelas demandas se permitem sobreviver. Por sua vez, país inteiro, sob a peja de para que preto quer terra? O enriquecidas, mais do que simplesmente conviverem grandioso país, fabuloso legado deixado pela colonização com os novos tempos, passam a oferecer a estes portuguesa, perdeu ou não perdeu ali a primeira grande alternativas promissoras, fecundas, para sua própria oportunidade de se transformar numa sociedade mais transformação, rumo a algo melhor em síntese. justa e plural; mais, desatando um tremendo potencial Jean-Paul Sartre dizia que ao mudar o mundo, implícito em seu povo? Veja-se bem, estamos evitando muda-se a filosofia de interpretá-lo. Uma outra reserva ao máximo idealizar um africano e seus descendentes moral de nosso tempo, o economista historiador no Brasil como pairando acima do bem e do mal, Celso Furtado ponderava, como pioneiro da teoria da “puros”, coisa inexistente na realidade; antes, buscamos dependência no Brasil e na América Latina: “não adianta analisar, isto sim, as tendências gerais porque passaram crescer, se o desenvolvimento é tão desigual”. De fato, tais segmentos tão expressivos enquanto coletividade o PIB (Produto Interno Bruto, o resultado de todas as na história do país. riquezas produzidas pelo país) do Brasil multiplicou- André Rebouças, negro retinto, foi competente e se em cem vezes ao longo do século XX, segundo o destacado engenheiro de fins da monarquia, responsável IBGE. Todavia, ficaram quase intocadas as mazelas por grandes obras de infra-estrutura no país, pela dos sucessivos momentos desse desenvolvimento: a modernização das docas do Rio de Janeiro, então o concentração fundiária, o extraordinário êxodo rural, o segundo maior porto das Américas, atrás apenas de Nova inchaço das cidades, o subemprego, uma das maiores York, professor na Escola Politécnica, abolicionista de concentrações de renda do planeta, o alto padrão primeira hora, autor de interessantes estudos sobre como de consumo das elites, somente comparável àquele amenizar os males do latifúndio na vida econômica dos países ricos (senão a superá-los), deformando as e social do país e dos libertos da escravidão. Por que prioridades econômico-financeiras de uma sociedade será que ele auto exilou-se em África no imediato pós realmente independente, etc. Abolição, morrendo por lá de forma abrupta (fala-se O Jongo, pois, não se acabou. Muito embora em suicídio), amargurado com os rumos tomados pela não seja mais o grito parado no ar entre a casa grande República face à Questão do Negro no Brasil? e a senzala, entre a liberdade e o insano pelourinho. Ao contrário, emite sinais inequívocos de uma sobrenatural Tanto pau no mato, embaúba coroné! sobrevida.

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“Deixa a moreninha passear, Leite, sobrinha do barão de Vassouras, filha do mais deixa a moreninha passear” importante comerciante de café da cidade ao seu tempo. (São José da Serra – Valença). De forma insólita Eufrásia legou grande parte de sua fortuna para a cidade de Vassouras, sua terra natal. Senão vejamos. Em 2005 o velho Jongo se O “Buraco” é um lugar incrível: um túnel de remoça quando se institui o Registro de Bens Culturais bambuzal, um largo, sombreado por frondoso pau d’arco, de Natureza Imaterial, a configurar o patrimônio cultural árvore símbolo de espaços onde negros se reuniam brasileiro e se cria o Programa Nacional de Patrimônio no tempo da escravidão. É preciso colocar uma placa Imaterial. Ato contíguo, em dezembro daquele mesmo identificando o significado desse logradouro! A chácara ano, o Jongo do Sudeste foi inscrito no Livro de Registro está muito bem cuidada, transformada em museu vivo, das Formas de Expressão como Patrimônio Cultural do prestando-se à visitação turística, a aulas e práticas Brasil, conforme instrução do IPHAN. de múltiplos saberes, no centenário e belo arredor da propriedade. A própria ex-senzala foi adaptada para “Ê, ê, me Salve todos os jongueiros! acolher os arquivos históricos do município e do IPHAN Ó Deus nos Salve o Cruzeiro!” local. Não fora o Cacalo, nascido e criado em Vassouras, jamais saberia estarmos ali no Buraco do Negro, assim (Lazir Sinval – Serrinha, RJ) como na ex-senzala, onde também pesquisamos. - Até que comecei a resgatar essa história, continua No plano estadual, a Comissão de Cultura da o Cacalo. Aquilo estava guardado ali. A família toda Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, estabelece 26 sabia dançar. Havia ali guardado um presente, entende? de Julho como “Dia Estadual do Jongo”, expressando as O caxambu, ao se apresentar, trouxe todo esse tesouro conquistas de antigas e novas gerações de jongueiros e de volta, aquela magia. Você parar, ficar olhando de fora, jongueiras nessa luta. e sentir aquele prazer estampado no rosto das pessoas, aquela gana. E entender tudo o que o jongo trazia de “Oh gente eu vou pro jongo, para tocar o meu tambu volta... Aquela voz ancestral, espiritual, aquela catarse, Quero disparar meu ponto, como flecha de ticum”. aquele grande descarrego, digamos assim. As pessoas assistindo o jongo, as lágrimas Délcio J. Bernardo – Angra dos Reis aflorando. Senhores afro-descendentes virem cumprimentar, te agradecer, “obrigado, obrigado, Em 2007, gestores do IPHAN e do Ministério obrigado”. Essa dimensão do caxambu foi uma enorme da Cultura implantam o Programa Cultura Viva, para surpresa para mim. E o principal, Zé Jorge, o resgate não potencializar com recursos os bens registrados como estava só na minha família. Estava no povo vassourense, patrimônio imaterial, através dos chamados Pontões no povo negro vassourense! Que dizia, “sou muito isso. de Cultura. No ano seguinte, 2008, estabeleceu-se o Meu avô dançou muito, minha mãe fala de tanto”. Até Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, constituído hoje as pessoas te reconhecendo na rua, agradecendo, Revista Mosaico. 2015 Jan./Jun.; 06 (1): 05-15 como programa de pesquisa e extensão da Universidade cumprimentando. Federal Fluminense, em parceria com o IPHAN e as comunidades jongueiras. O Jongo Renascer de Negro sou Vassouras é uma das dez comunidades do estado do Rio de Janeiro a integrar o programa, ao lado daquelas Filho de Orixá de Tupã, do Senhor do Bonfim da região da Costa Verde (Angra dos Reis, Paraty), do das cataratas do Nilo, ventre do Níger Noroeste do estado (Miracema, Porciúncula e Santo mistura de barro e floresta amazônica Antônio de Pádua), da cidade do Rio de Janeiro (o Jongo trago em minha senda o aparecimento do homem da Serrinha), além daquelas do próprio Vale do Paraíba pirâmides, a gazela, o tambor (Arrozal, Barra do Piraí, Pinheiral, Valença). atravessam meu coração os barcos negreiros a espada e a cruz, o fel do açúcar, livros, estátuas de - Zé Jorge, vou te dizer uma coisa. Na primeira mármore branco apresentação do Jongo Renascer de Vassouras, em palácios pintados com o sangue de meu avô 1998, as pessoas juravam ser esse um grupo muito sou o café e o cacau alienados, o fogo na chaminé, a antigo. Na verdade, elas não estavam erradas, não. Veja matéria prima da rebeldia mal de mim não falarão o jongo, o maracatu, o luar do bem, minha mãe era jongueira, minha família toda era sertão, as greves do cais, a negra flor jongueira, sou neto de jongueiro... Apenas não sabia, os profetas de Congonhas. não é? Era um mistério. Estamos aqui, Cacalo e eu, José Jorge, no José Jorge chamado Buraco do Negro, nas dependências da Casa da Hera, bucólica residência transformada em museu, - Pois é, lá se vão dezesseis anos de caxambu, e onde morou a benemérita da cidade Eufrásia Teixeira essa luta. Mas o principal é isso, o resgate da auto-

13 Siqueira & Santos, 2015. estima. Você atingir lá, ter certeza que mexeu lá. Eles Costa – continua o José Jorge -, em sua dissertação de sentirem orgulho, baterem no peito, “isso é coisa mestrado defendida na Universidade Severino Sombra/ nossa, isso é coisa de negro, de nossa raiz”. Negros que Vassouras, em 2013, intitulada Livros Didáticos, História nunca tinham falado desse modo, sabe como é? E isso da África e Cultura Afro-Brasileira nas Instituições da repercutiu em Valença, em Três Rios, essa discussão Rede Estadual de Ensino de Volta Redonda: Um Estudo invadiu a Universidade, pondera o Cacalo. de Caso, reproduz a seguinte entrevista que, dentre outras, realizou com alunos, professores e militantes da Tava drumindo causa negra naquele município: Angoma me chamou Nome: Tatiana Guedes Paiva Santos Levanta povo! Idade: 18 anos Escola: Colégio Estadual Rio Grande do Norte Deixa estar que desde 2003 está estabelecido Data: 14/03/2013 nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Você conhece a Lei 11.645 de 2008 (a que a necessidade do ensino de História da África e da regulamenta o ensino dos conteúdos da História da Cultura Afro-Brasileira em todos os níveis da educação África e da cultura Afro-Brasileira)? nacional, abordada não como uma nova disciplina, R. Não. e sim inserindo-a nos diferentes conteúdos já então 2. Você acha importante que o ensino de História lecionados da Literatura, Artes, Sociologia, Educação da África e da Cultura Afro-Brasileira faça parte dos Física e, é claro, da História propriamente dita. Afinal, conteúdos escolares? Por que? como registramos acima, o Estado brasileiro finalmente R. Sim. Porque estamos envolvidos de todas reconhecera o caráter racista e preconceituoso da as formas, então precisamos saber da cultura desses sociedade, e isto não tem mais retorno. povos. - Pois é, Cacalo, comenta o José Jorge, 3. Quais os conteúdos que você estudou sobre conforme você sabe, desde 1978, somando-se às forças a História da África e da Cultura Afro-Brasileira em democráticas do país nas jornadas contra o arbítrio outros anos escolares ou nesse? dos governos militares pós 1964, essa coisa chamada R. Nenhum. O que sei da África é apenas em Movimento Negro brasileiro tem realizado conquistas documentários na televisão, na escola não estudei sobre memoráveis – como aqui mesmo neste trabalho estamos a África. constatando. A Questão do Negro no Brasil é hoje, sem 4. Quando se fala em África o que vem à sua dúvida, parte da agenda política, econômica e cultural mente? do país. R. Infelizmente apenas pobreza e miséria, porque Em 1988, com a abertura democrática, na é o que a mídia nos passa. chamada Constituição cidadã, como ficou conhecida, o 5. Quais assuntos sobre esse ensino você mais racismo tornou-se crime inafiançável e imprescritível, gostou? sujeito de reclusão nos termos da lei. Também nos R. Não estudei sobre a África. anos de 1980, em pleno centenário da Abolição, a mobilização do Movimento Negro centrou foco no Questão de Cor sistema educacional, a fim de conseguir ações concretas que viessem modificar as concepções sobre a história Os negros do Zimbabue Derrubaram do negro no Brasil e, mesmo, enfrentar os estereótipos a Cuspiram propósito da história da África. Chutaram Mas há uma distância entre intenção e gesto. Dançaram Me lembro, Cacalo, que tenho graduação, Deram de picareta especialização, mestrado e doutorado em História sem Na estátua de Cecil Rhodes E eu? jamais ter estudado África na Universidade! Num país Por que não posso fazer o mesmo? como o Brasil, não estava na hora de mudar? José Jorge Ivone Costa Souza no livro “Crianças negras, deixei meu coração embaixo da carteira”, publicado Machado! em Porto Alegre em 2005, diz lá: “É muito difícil você combater um inimigo que se esconde, um inimigo que A título de conclusão se disfarça, um inimigo que diz que não existe. É muito mais complicada a desconstrução do racismo quando ele Encimado pela bela igreja de Nossa Senhora da tem formas sutis e mutantes como é o caso do racismo no Conceição, eis em boa medida o centro da cidade de Brasil”. De fato, a coisa por aqui, é muito mais sentida, Vassouras: Praça Barão de Campo Belo, Rua Barão de internalizada, que exposta e discutida. Ou era. Vassouras, Rua Barão de Capivary, Rua Visconde de Uma ex-orientanda minha, a Diana Maria de Lima

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Araxá, Rua Barão do Tinguá, Rua Barão de Massambará. Ainda mais acima, no largo da igrejinha de Nossa Senhora do Rosário, paira a memória das festas dos pretos de Vassouras – eles que tanto fizeram e amaram esta cidade. Ali, a igreja bate o sino, mas é na dança do Jongo que eu vou. Os autores deste artigo, em memória de nossos antepassados, reivindicam de forma respeitosa mas determinada, de quem sabe onde tem o nariz, o nome da rua lá de cima, onde um dia brincou o Jongo de Waldemar, Grande, com seu nome – sem o quê este trabalho jamais estará concluído. Angoma e candongueiro, o chocalho, a roda da saia dela estão batendo, e é pra valer.

Referências

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