HUMANIDADES | ACERVO

Paixão e história PESQUISA EXPLORA ARQUIVOS DE CLUBES PARA DESCOBRIR COMO FUTEBOL SE TORNOU O ESPORTE DO POVO

omo explicar a magia que uniu retomada em março de 2003, quan- C o futebol — europeu na origem Vasco da Gama do chegará às livrarias a reedição de — à mística brasileira, de forma tão O negro no futebol, lançado em 1947 perfeita, a ponto de se confundir o foi o primeiro pelo jornalista Mário Filho. Brasil com o esporte? a romper com o O Vasco da Gama impulsionou Há dois anos, os pesquisadores modelo elitista que as transformações. “O arranjo so- do Laboratório de Estudos do Tem- cial abrangente e includente, reali- po Presente (Tempo), da Universi- impedia ingresso zado pelo clube na década de 20, dade Federal do de pobres e negros antecedia e previa o próprio arran- (UFRJ), foram buscar respostas pa- jo social organizado na década de ra essa questão e deram início ao nos times 30, em especial durante o Estado projeto Memória Social dos Espor- Novo”, destaca a historiadora Clara tes, uma análise da construção da Emília Sanches Monteiro de Barros identidade nacional a partir do fu- Clube já contava com jogadores ne- Malhano, que, ao lado do arquiteto tebol. A proposta é fazer um estu- gros e operários, mas recuara anos Hamilton Botelho Malhano, é auto- do documental profundo nos ar- depois diante das pressões. ra de São Januário — Arquitetura e quivos dos clubes, contemplando, “A iniciativa do Vasco abriu es- história. A obra é fruto de uma também, outras modalidades es- paço para um futebol nacional e pesquisa histórica enriquecida pela portivas. popular”, destaca o historiador análise arquitetônica do estádio. A primeira etapa do projeto foi Francisco Carlos Teixeira da Silva, “São Januário é um dos raros re- concluída em dezembro de 2002, coordenador do Laboratório Tempo manescentes da arquitetura neo- quando foi lançada uma caixa com e do projeto Memória Social dos Es- colonial e o único projeto compro- três CD-ROMs, que resgatam a his- portes. “À medida que se transfor- vadamente do arquiteto português tória do Club de Regatas Vasco da mava em esporte de Gama, e um livro sobre a arquitetu- massa, o futebol repro- ra do Estádio de São Januário. A duzia as disputas dos opção pelo clube tem razões histó- últimos anos da Repú- ricas: fundado em agosto de 1898, o blica Velha”, explica. O Vasco da Gama foi o primeiro a que acontecia na época conseguir romper com o modelo era o conflito entre elitista da Liga Metropolitana de dois modelos. Um era Desportos Terrestres ao escalar ne- velho, elitista e exclu- gros e assalariados no time que dente, e o outro, novo, conquistou o seu primeiro título nacional e popular, carioca, em 1923, passados 35 anos sintetizado pela acei- da Abolição. Em represália, os gran- tação de negros, assa- des clubes fundaram uma nova liga lariados e operários sem o Vasco, que resistiu e acabou nos times de futebol. A aceito. Em 1908, o Bangu Atlético questão da raça será

34 NEXO Fevereiro de 2003 Ricardo Severo, na cidade do Rio panha todos os momentos da his- A HISTÓRIA DO VASCO de Janeiro.” tória do clube e suas conquistas. “O EM NÚMEROS Entre os detalhes da arquitetu- maior mérito dessa primeira fase ra, Clara Emília Malhano destaca a do projeto foi salvar essas fichas”, O primeiro dos três CD-ROMs traz textos e fachada, as grades em volta das afirma Francisco Carlos Teixeira. as fichas dos atletas do futebol, do atle- cadeiras e a azulejaria encomenda- As fichas são reproduzidas no tismo e do futebol de salão. O segundo da aos artistas lusitanos Jorge Co- CD em sua apresentação original, volume é dedicado às demais modali- laço e Manuel Igrejas em épocas com informações escritas a caneta dades, como o remo — que marca o início diferentes. Os painéis de azulejos ou a lápis. A equipe do projeto op- do clube —, o basquete, a natação e o ci- de São Januário serão o tema do tou por digitalizar os documentos, clismo, entre outras; e o terceiro reúne o próximo livro da historiadora. O em vez de dar a eles qualquer tipo acervo fotográfico. Ao acessar as fichas, estádio, inaugurado em 1927, foi de tratamento estatístico. “Com a é possível rever o placar de partidas que edificado com uma argamassa es- digitalização, o pesquisador fica remetem a momentos significativos, co- pecial, pois o então presidente da em contato direto com o documen- mo a vitória por 2 a 0 sobre o Interna- República, Luís, não to, sem qualquer tipo de interferên- cional, dia 25 de novembro de 1971, no autorizou a importação de cimento. cia que poderia resultar em erros de Maracanã, em partida válida pela pri- Já os CD-ROMs são uma parce- interpretação”, explica. meira edição do Campeonato Brasileiro. ria entre o Laboratório Tempo, a Além da caixa com os CDs e o Naquele jogo, o atacante Carlos Ro- FAPERJ, a Mauad Editora e o Vas- livro, foi realizado um intenso tra- berto de Oliveira, então desconhecido e co da Gama. Também reúnem mi- balho de pesquisa, que resultou na ainda na categoria juvenil do clube, en- lhares de documentos inéditos, co- criação do Centro de Memória Vas- traria em campo no segundo tempo e mo as fichas de cerca de 8 mil atle- co da Gama. O espaço, instalado marcaria o seu primeiro gol no time tas de várias modalidades esporti- em duas salas de São Januário, profissional do Vasco. Foi um chute vas que são uma espécie de pron- reúne edições de jornais desde fortíssimo de direita, que valeu ao jovem 1909, as fichas dos atletas, foto- de 17 anos o apelido de “Dinamite”. grafias e os livros de atas do clube Nascia ali a fama de Roberto Dinamite, o desde a fundação. maior artilheiro da história do clube, que, Mas o projeto Memória Social em 1.069 partidas, marcaria 617 gols pela dos Esportes não veste apenas as equipe profissional e outros 34 pela cores do time de São Januário. Será amadora. lançado em março, pela Mauad Além das 26 fichas de Roberto, é pos- Editora, Futebol e identidade na- sível pesquisar os números do atacante cional, que pretende explorar de pernambucano Ademir Marques de Mene- forma profunda essa paixão popu- zes, grande ídolo do Vasco antes da era lar. “A proposta do livro é fazer Dinamite, que marcou 307 gols em 246 jo- uma análise de como o futebol gos disputados pelo clube nas décadas de chegou ao Brasil e como ele se 40 e 50. Também estão lá os registros de transformou em um esporte de outros jogadores que formaram o chama-

UM DOS DESTAQUES DA ARQUITETURA DO massa”, adianta Francisco Carlos do “Expresso da Vitória”, como Jair Rosa ESTÁDIO É A SUA AZULEJARIA, ASSINADA POR Teixeira. Para os torcedores dos Pinto, Danilo e . ARTISTAS PORTUGUESES outros clubes uma esperança: já Naquela época, o goleiro era Barbosa,

FOTOS LEWY MORAES FOTOS foram iniciados contatos com o que acabaria estigmatizado pela derrota tuário que registra o resultado e Botafogo e o Fluminense para pos- da Seleção Brasileira na final da Copa do outras informações de cada jogo ou síveis trabalhos no futuro. Mundo de 1950. As fichas do clube, entre- competição de que eles tenham tanto, contribuem para recuperar a participado. Os pesquisadores pre- Marcos Patrício memória de Moacyr Barbosa, que em 1948 pararam textos para cada modali- defendeu um pênalti na final do Sul- dade analisando o momento histó- Apoio | FAPERJ Americano de Clubes no Chile. Ao garantir Título | Memória Social dos Esportes rico. Há, ainda, croquis, caricaturas o empate sem gols contra o River Plate, Modalidade | Auxílio à Pesquisa (APQ1) e um acervo com mais de 500 fo- Valor | R$ 656.871,00 Barbosa deu ao clube e ao futebol brasi- tografias digitalizadas, que acom- Ano | 2001 leiro o seu primeiro título internacional.

35 NEXO Fevereiro de 2003