UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO PRIVADO

IRENA CARNEIRO MARTINS

A IMPORTÂNCIA DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DE SÓCIOS E DA DELIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DE ADMINISTRADORES PARA AS RELAÇÕES ECONÔMICAS NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

Salvador 2008 IRENA CARNEIRO MARTINS

A IMPORTÂNCIA DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DE SÓCIOS E DA DELIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DE ADMINISTRADORES PARA AS RELAÇÕES ECONÔMICAS NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito Privado.

Orientadora: Profª. Drª. Roxana Cardoso Brasileiro Borges

Salvador 2008

M386 Martins, Irena Carneiro, A importância da limitação da responsabilidade de sócios e da limitação da responsabilidade de administradores para as relações econômicas no ordenamento brasileiro / por Irena Carneiro Martins. – 2008. 149 f.

Orientador : Profª. Roxana Cardoso Brasileiro Borges. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito, 2008.

1. Direito empresarial 2.Responsabilidade (Direito) 3. Administradores de empresas I. Universidade Federal da Bahia II. Título

CDU – 347.725 CDD – 346.03

A Tito Carneiro Martins, meu único e queridíssimo irmão, e a sua coragem, que tornaram necessariamente menores todas as adversidades, dificuldades e resistências próprias que enfrentei para concluir este trabalho.

AGRADECIMENTOS

Uma coisa descobri quando o processo de escrita deste trabalho começou: não é verdade que trabalhos dessa natureza sejam solitários. Nem mesmo o momento da escrita o é, diferentemente do que eu imaginava. Senão, como justificar minha dependência musical, materializada nas vozes de Tom Jobim, , Ella Fitzgerald, , , , Los Hermanos, João Gilberto, dentre outros?

Enfim, o fato é que até chegar a depositar a dissertação, foi necessário um sem-número de pessoas e, com elas, divido – se houver – os bons frutos deste trabalho, ficando exclusivamente para mim a responsabilidade pelo que não fiz ou pelo que deixei de bem explorar.

Agradeço à minha orientadora, Profª Dra. Roxana Cardoso Brasileiro Borges, pela aceitação do pedido de orientação, pela compreensão e pela condução generosa, porém sem indulgências.

À Profª Dra. Mônica Aguiar, pelo exemplo de fibra. Acho que ela desconhece isso, mas, não fosse a mesma, talvez tivesse cogitado postergar a conclusão deste trabalho.

Ao Profº Dr. Armando Castellar Pinheiro, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA/RJ), pela solicitude.

À Rosani Romano, pela compreensão para com as minhas necessidades de redução de horas no escritório, pelo entendimento do meu desejo de fazer o mestrado e pelo estímulo de seguir adiante. Nada disso teria sido possível sem essa atitude de compreensão e, sobretudo, generosidade.

Ao Flavio Maia Fernandes dos Santos, pelo exemplo de profissional no qual busco me espelhar, desde o meu primeiro estágio extracurricular.

À psicanalista Tânia Gerde, por ter me auxiliado a enxergar que eu podia passar por algumas “muitas e boas” e sair delas. Inteira.

Aos companheiros de “calvário” e amigos Kaline Davi e Eugênio Kruschewsky. Não sei, honestamente, como teria chegado aqui - principalmente em função do último ano - sem eles.

Aos amigos de longe, que fazem parte da minha vida e do que sou, e que – à maneira de cada um, claro – alimentaram minhas forças à distância: Beto Junior, Cecília Zeraik, Daniele Nunes, Fabiana Nunes, Fabiana de Moraes, Leonardo Brandão, Leonardo Martins Vieira e Penha Rocha.

Aos meus amigos de perto, mas, em especial, à Fernanda Pigeard e Marta Cunha. Sei que fui uma amiga menos disponível, menos atenta, menos tudo durante a creditação de disciplinas e durante a escrita. Apesar de ter sido – temporariamente – essa amiga, contei com a crença (excessiva) delas de que eu iria conseguir. Não sei se tudo vai sair bem, mas o apoio e a compreensão dessas duas figuras foram fundamentais.

Aos meus pais, Conceição e José Martins, mãos invisíveis que me guiaram por toda a vida e que transmitiram, cada um a seu modo, os valores que prezo e cuja certeza do amor que têm por mim fez-me uma pessoa com razoável, friso, apenas razoável sanidade mental.

A Sandro, pelo estímulo incessante, pelas cobranças, pela compreensão, mas sobretudo, pelo amor que somente com o meu amor eu posso retribuir.

O real não está na saída e nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. João Guimarães Rosa Grande Sertão: Veredas

RESUMO

Este trabalho tratou de investigar as origens do instituto da limitação da responsabilidade dos sócios e estabelecer a importância de tal limitação – a partir da harmonização entre os princípios constitucionais de proteção aos direitos sociais e os princípios – igualmente constitucionais – da livre iniciativa, do qual decorre, também, o princípio da preservação da empresa. De modo semelhante, buscou se estabelecer a importância da delimitação da responsabilização dos administradores que não possuem vínculo societário com as empresas por eles administradas, tanto no âmbito legislativo, quanto no judicial. Nesse contexto, buscou-se demonstrar – para além dos prejuízos – a ociosidade da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, em face dos remédios jurídicos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro para as ocasiões em que se verifique a ocorrência de fraude, simulação e prática dos atos ultra vires. Advoga-se, neste trabalho, a possibilidade de se buscar a preservação da empresa atendendo ao chamado do devido processo legal e – simultaneamente – ao chamado da busca pela satisfação do crédito ou reparação de prejuízos ensejados mediante o abuso da pessoa jurídica, seja por administrador, seja por sócio, fortalecendo, assim, os caros institutos da segurança jurídica e previsibilidade das decisões judiciais. Concorrem, também, para a consagração do tudo quanto aqui exposto, uma redução do ativismo judicial que se verifica em preterimento de direitos processuais que gozam de status constitucional, como os da ampla defesa e do contraditório. Além disso, buscou-se evidenciar a necessidade de diálogo entre Direito – através dos magistrados – e Economia, a partir da compreensão, por parte daqueles, dos reflexos de sua atuação para o desenvolvimento econômico e, conseqüentemente, para o desenvolvimento social. Nesse tocante, acredita-se útil a colaboração que pode ser fornecida pela Psicanálise a partir de uma das três instâncias do aparelho psíquico: o superego, no entendimento do Judiciário como superego da sociedade.

Palavras-chave: Direito Comercial, Direito empresarial, limitação da responsabilidade de sócios, responsabilidade direta de administradores, desconsideração da personalidade jurídica, ponderação de princípios, atuação do Poder Judiciário, superego, custo Brasil, risco Brasil.

ABSTRACT

This work has investigated the genesis of the limitation of partners’ liability and tried to set forth the importance of such limitation – by means of a harmony amongst the constitutional principles of protection to civil rights and protection to free enterprise principle either, from which the principle of company’s preservation arises out. Likewise, this work aimed to set forth the importance of the delimitation of directors and officers’ liability (with no equities in the companies managed by them) in both legislative and judicial venues. In this context, the work tried to evidence – beyond the losses – the lack of necessity of the disregard doctrine in the light of the legal remedies already existent in Brazilian legal system that can be applied in fraud, simulation and performance of ultra vires acts. This work defends the feasibility to reach company’s preservation obeying due process of law principle and – at the same time – the credit’s payment or losses indemnification promoted by the legal entity’s abusive use, by the officer or by the partner, providing strength to legal safety and predictability of judicial decisions institutes. A reduction to the judicial activism – verified in prejudice of some procedural rights – with constitutional status – such as wide defense and contradictory. Besides all such questions, this work tried to evidence the necessity of a dialogue between Law – through judges – and Economics, as of the understanding that judges’ performance reflects in economical development and – thus – social development. In such aspect, it is believed that Psychoanalysis can cooperate with the notion of one the three instances of the psychic set: the superego, by understanding Judicial Power as society’s superego.

Keywords: Commercial Law, Entrepreneurial Law, partners’ liability limitation, directors liability, disregard of legal entity doctrine, principles balance techniques, Judicial Power performance, superego, overall competitive inefficiencies Brazilian rate (“custo Brasil”), risk-Brazil. SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 13

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE: DA ROMA ANTIGA AOS DIAS ATUAIS 19

2.1 NA ROMA ANTIGA 19

2.2 NO PERÍODO MEDIEVAL 21

2.2.1 As Companhias Medievais e a Responsabilidade dos Sócios 22

2.2.2 As Sociedades em Comandita 23

2.3 A LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE MODERNA E CONTEMPORANEAMENTE 24

2.3.1 O Fundamento da Natureza Creditória dos Direitos dos Acionistas aos Resultados 24

2.3.2 O Fundamento da Personalidade Jurídica e de sua Autonomia 26

2.3.3 O Fundamento da Função Econômica da Limitação da Responsabilidade 29

2.3.3.1 Os Custos de Informação 34

2.3.3.2 Os custos de agência 35

3 RESPONSABILIDADE DIRETA DE SÓCIOS E ADMINISTRADORES 42

3.1 RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES E SÓCIOS: CONSIDERAÇÕES GERAIS 42

3.1.1 As diversas teorias acerca da natureza jurídica da relação administrador- companhia 44

3.1.2 Os deveres dos administradores e dos sócios 46

3.2 RESPONSABILIDADE DIRETA DE SÓCIOS E ADMINISTRADORES EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA E PREVIDENCIÁRIA 49

3.3 RESPONSABILIDADE DIRETA DE SÓCIOS E ADMINISTRADORES EM QUESTÕES AMBIENTAIS 56

3.4 RESPONSABILIDADE DIRETA DE SÓCIOS E ADMINISTRADORES EM QUESTÕES DE CONCORRÊNCIA E DE CONSUMIDOR 60

3.4.1 Questões Concorrenciais 60

3.4.2 Questões Consumeristas 61

3.5 RESPONSABILIDADE NO ÂMBITO DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS 63

3.6 RESPONSABILIDADE NO ÂMBITO PENAL 66

3.6.1 Em questões ambientais 67

3.6.2 Em questões concorrenciais 68

3.6.3 Em questões de consumo 68

3.6.4 Em questões relativas às Instituições Financeiras 69

3.7 RESPONSABILIDADE NO ÂMBITO TRABALHISTA 70

3.8 CONSIDERAÇÕES FINAIS DO CAPÍTULO 70

4 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 72

4.1 ORIGEM DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 72

4.1.1. As origens históricas da teoria da desconsideração da personalidade jurídica 73

4.1.2. O desenvolvimento da disregard doctrine no Brasil 76

4.2 APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO BRASIL 79

4.2.1 Aplicação da teoria pela Justiça do Trabalho 80

4.2.2 Aplicação da teoria nas questões de Direito do Consumidor 85

4.2.3 Em Questões Tributárias 89

4.2.4 Em Questões Concorrenciais 91

4.2.5 Em Questões Ambientais 92

4.3 CRITICAS À APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO 92

4.4 DO PROJETO DE LEI EM ANDAMENTO 99

5 ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO 104

5.1 AVALIAÇÃO DO JUDICIÁRIO 104

5.1.1 O Judiciário pela Sociedade Brasileira 105

5.1.2 O Judiciário pelo Empresariado 108

5.1.3 O Judiciário pelo Judiciário 115

5.1.4 O Judiciário como Superego da Sociedade 118

6 IMPACTOS DA ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO NA ECONOMIA 122

6.1 DA COMUNICAÇÃO ENTRE JUDICIÁRIO E ECONOMIA 122

6.1.1 Do Risco País 122

6.1.2 Da Tensão entre Função Social e Livre Iniciativa 126

6.2 RISCOS PARA O ORDENAMENTO DECORRENTES DOS DESCOMPASSOS ENTRE APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ECONÔMICOS E SOCIAIS 130

7 CONCLUSÃO 133

REFERÊNCIAS 139

13

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Brasileira costuma ser bastante criticada por acabar revelando uma série de incongruências a exemplo do número de direitos sociais que buscou salvaguardar na antevéspera da queda do muro de Berlim, que ensejava uma fronteira que representava – de maneira física – a bipolaridade do mundo entre os regimes capitalista e comunista, em Estado liberal e Estado social. A despeito de não se considerar aqui que isso seja exatamente um vício da Carta Magna, talvez esta acabe por representar todas as faces desse enorme país de dimensões continentais, que abriga tantas preocupações distintas.

Uma das principais questões – e ao redor da qual este trabalho gravita em grande parte do tempo – é a necessidade de harmonização dos princípios constitucionais relativos aos direitos sociais de proteção ao trabalhador, ao consumidor, ao meio- ambiente com o igualmente constitucionalmente privilegiado princípio da livre iniciativa e das questões que são cruciais ao exercício desse princípio.

Dentre as mais relevantes premissas seguidas por este trabalho para o exercício da livre iniciativa encontra-se o regime da limitação da responsabilidade de sócios e administradores, considerando-se a possibilidade de empresas serem administradas por não-sócios; e a autonomia da pessoa jurídica, o que inclui autonomia patrimonial, que estabelece a segregação entre o patrimônio social e o patrimônio pessoal dos sócios e, com mais razão ainda, dos administradores.

O regime de responsabilidade dos sócios e administradores vem sendo constantemente flexibilizado (para utilizarmos uma palavra neutra) pelo Poder Judiciário, mais notadamente pela justiça trabalhista e pelos juizados do consumidor, que – com certa freqüência – ao alvedrio de outros princípios constitucionais que são caros, como o do devido processo legal, por exemplo, decretando a desconsideração da personalidade jurídica de determinadas sociedades com o fito de atingir o patrimônio pessoal de sócios e, também, de administradores, a despeito de muitas vezes estes não terem qualquer participação societária na empresa cuja personalidade jurídica é desconsiderada, em uma extensão bastante questionável

14

da disregard doctrine.

Muitas das vezes, os administradores são surpreendidos por tais decisões uma vez que eventualmente sequer trabalham mais para a empresa que teve sua personalidade desconsiderada.

Eventos como esses, que cada vê mais tem ganhado espaço na mídia, em especial os jornais de economia e negócios, tem feito com que haja certo fluxo de sócios e administradores de sociedades aos escritórios de advocacia com o questionamento: o que fazer para proteger meu patrimônio. Antes que se pense, não se está falando de pessoas mal-intencionadas (que existem, por óbvio), mas de pessoas que trabalharam para construir um patrimônio pessoal e que temem que uma decisão judicial prolatada à margem do direito processual civil e constitucional lhe suprima outros direitos patrimoniais.

Não se defende, por bastante óbvio, o sistema da irresponsabilidade ilimitada. Quando houver fraude, simulação ou qualquer outro expediente ilícito com o objetivo de fraudar credores, os remédios legais já existentes para a situação deverão ser lançados para impedir (ou reparar) o dano a terceiros, sejam credores, trabalhadores ou consumidores. O que deve ser enxergado de maneira crítica é a presunção de ilicitude da qual desfrutam boa parte dos sócios ou administradores de pessoas jurídicas no contexto de uma relação processual na qual empresas figurem como rés, o que faz crer que “já entrem perdendo”. Isso é admissível?

Ao mesmo tempo, engana-se o magistrado que, em preterimento das normas processuais, alça o trabalhador, consumidor ou credor em uma ação contra uma empresa a uma posição de início vantajosa pela crença de assim estar fazendo justiça. Nem sempre estará. Pois, da mesma forma que a presunção de ilicitude a todos os casos se revela indevida, a presunção de probidade e dignidade a todos que estejam na condição de consumidor, trabalhador ou credor também é imprópria.

Também equivoca-se o magistrado que não atribui conseqüências para além das

15

partes naquele processo ou da mera formação ou aderência a uma já existente jurisprudência. As decisões judiciais, tomadas conjuntamente, em casos que dizem respeito às unidades geradoras de riquezas do País, a exemplo das indústrias e empresas prestadoras de serviço, merecem toda a atenção seja por parte daquele que pensa em investir (nacional ou estrangeiro), seja por parte daquele que já está no sistema produtivo do Brasil.

Agradando ao não, pode-se dizer que o Brasil vive em um contexto capitalista. Diz- se contexto, pois há fervorosos pensadores liberais que consideram que o Brasil vive em um atraso sem precedentes – ainda hoje – e que dizer que o Brasil é capitalista não refletiria a realidade pátria.

Sendo, assim, ainda que existam outros princípios do capitalismo moderno, partindo- se da premissa de que dentre eles figuram, dentro da esfera da consecução da livre iniciativa, a responsabilidade limitada dos sócios ao montante investido, a participação dos sócios nos lucros auferidos e nas perdas conforme legitimamente ajustado, o que resta desses no Brasil diante de tamanho descompasso existente entre as leis societárias e as demais?

O objeto deste estudo é a investigação da possibilidade de uma mudança na cultura de ativismo judicial possuir reflexos benéficos para o contexto sócio-econômico brasileiro. Será que a existência de regimes de responsabilidade de sócios e administradores conflitantes em decorrência da atuação judicial gera um cenário de incerteza ou até mesmo de desestímulo para o empreendedorismo? A existência de responsabilidade limitada pelas leis societárias (Código Civil e Lei das Sociedades Anônimas) e de responsabilidade ilimitada para fins trabalhistas, consumeristas, ambientais, etc não gera uma desnecessária falta de segurança e de previsibilidade das decisões judiciais, que são caras ao ordenamento de qualquer país?

Através da apropriação de temas e conceitos da economia e da psicanálise, além de, por óbvio, perpassar âmbitos do direito societário, civil, penal, tributário, ambiental e administrativo, se busca indicar que a falta de harmonização entre os já referidos princípios constitucionais pode – e deve – ser remediada e que através

16

dessa harmonização talvez se possa efetivamente haver uma relação mais eficiente entre a atuação do Poder Judiciário e os propósitos da república, que prestigia os direitos sociais e a livre iniciativa.

Para isso, busca-se apurar o papel desempenhado pela responsabilidade de sócios e administradores (ou sócios-administradores) no cenário jurídico-econômico brasileiro. Além disso, buscou-se apurar a existência de medidas que – de maneira eficaz – podem representar a punição do responsável efetivo ao mesmo tempo que prestigia o princípio de preservação da empresa, bastante mitigado pela aplicação indiscriminada e pouco cuidadosa da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Também se buscou, com base em trabalhos e pesquisas já existentes, apurar o papel do Judiciário nessa questão, através da investigação da imagem que sociedade e empresariado têm do referido poder, bem como a auto-imagem que o Judiciário tem de si.

Este trabalho buscou demonstrar a importância que o instituto da limitação da responsabilidade de sócios e administradores tem para o contexto empresarial e, por conseguinte, econômico e também social.

No início, logo no primeiro capítulo, há uma reconstrução histórica daquilo que pode ter sido a gênese do instituto de limitação da responsabilidade, cujas raízes inspiradoras remontam ao direito romano e, de maneira mais específica, ao período medieval, no qual sua origem – através das sociedades em comandita – se verificou como forma de abrandar os riscos da atividade comercial, fundamentalmente ultramarina e muito arriscada; até chegar aos dias atuais, passando, necessariamente, pela fundamentação econômica da limitação da responsabilidade.

No segundo capítulo, tratou-se da responsabilidade de sócios e administradores, buscando-se estabelecer as condições gerais da mesma, através da apresentação de diversas teorias sobre a natureza jurídica da relação administrador-companhia,

17

pela exposição dos deveres dos sócios e administradores para com a sociedade que detenham participação ou administrem, até abordar de maneira mais específica as questões relativas à responsabilidade direta de sócios e administradores e matéria tributária, previdenciária, trabalhista, ambiental, concorrencial, consumerista, no contexto das instituições financeiras e da responsabilidade penal de sócios e administradores.

No terceiro capítulo, que trata da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, críticas são feitas à aplicação demasiada e pouco criteriosa da formulação doutrinária em questão, revelando a existência de outros institutos cuja revisão dogmática poderia representar uma atuação mais eficiente na punição de fraudes, satisfação de créditos e preservação da empresa mediante a responsabilização dos reais agentes que ensejaram práticas fraudulentas, o que torna a disregard doctrine – até mesmo – ociosa no sistema romano-germânico, ao qual o Brasil se filia.

Contudo, sem desprezar o alcance que a aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica ganhou no nosso ordenamento brasileiro, cuidou o terceiro capítulo de avaliar o principal projeto de lei que pretende regular a matéria, numa tentativa de tornar sua aplicação mais criteriosa e consentânea com outros princípios que comunicam o sistema pátrio.

O quarto capítulo trata da atuação do Poder Judiciário, o qual tem seu papel social comparado ao do superego na estrutura psíquica do indivíduo. Além disso, é possível avaliar a opinião que a sociedade, o empresariado e o próprio Judiciário têm a respeito de sua atividade, sugerindo uma mudança de cultura, sob pena de a cidadania ter sempre aspecto verticalizado, no qual Ministério Público e Judiciário assumem papel de tutor de pessoas de modo a conferir-lhes, se possível for, cidadania, não importando a responsabilidade que as pessoas tenham sobre suas próprias vidas e demandas.

O quinto capítulo, que antecede as conclusões, trata de aspectos relativos à economia, passando por questões relativas a Custo Brasil, Risco Brasil e função social da Empresa e a ligação existente entre esses assuntos e a atuação do Poder

18

Judiciário. Além disso, faz breve exposição de alguns riscos decorrentes da atuação ineficiente do Judiciário, bem como da falta de harmonia entre princípios que comunicam a ordem econômica e a ordem social do Brasil.

É importante ressaltar que as questões econômicas não foram vistas de maneira aprofundada até porque faltariam subsídios teóricos à autora do trabalho, mas, em realidade se tratou de uma tentativa de se abordar – sob um viés econômico – as questões submetidas ao exame do Poder Judiciário, para o bem da orientação interdisciplinar, que ainda encontra algumas resistências dentre os operadores do Direito, por demais afetos à dogmática jurídica pura e simplesmente, o que acaba ensejando um indesejável isolamento teórico. O mesmo se pode dizer com relação ao diálogo que se estabelece com a psicanálise.

Por fim, apenas à guisa de esclarecimento, repisa-se que não se defende o princípio da irresponsabilidade social, mas, sim, que a responsabilidade seja transferida ao sócio que realmente, conforme apurado pelo devido processo legal, tenha concorrido para a fraude, preservando-se a unidade geradora de riqueza e empregos, através do emprego razoável dos remédios jurídicos postos à disposição.

19

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE: DA ROMA ANTIGA AOS DIAS ATUAIS

Este capítulo pretende oferecer um panorama introdutório do tema desta dissertação no tocante ao surgimento da limitação da responsabilidade do sócio e sua evolução até os dias atuais, com ênfase na cara questão do fundamento da limitação da responsabilidade.

Não é objetivo deste capítulo resolver controvérsias históricas, mas, sim, com base no entendimento dominante dos historiadores do Direito e doutrinadores, apresentar um retrato, tanto quanto possível, fiel dessa evolução.

2.1 NA ROMA ANTIGA

Conforme referido na introdução deste trabalho monográfico, parte-se da premissa de que o instituto da limitação da responsabilidade de sócios data do período do império romano e a responsabilidade patrimonial dos mesmos decorria da relação direta entre proveito obtido por um sócio ou não, para determinar a limitação ou a ilimitação de tal membro da societas, sendo esta premissa uma das conclusões da tese de doutorado de Walfrido Jorge Warde Júnior (WARDE JÚNIOR, 2007, p. 337).

Ainda que não represente com fidelidade o conceito de sociedade hodierno, dentre outros motivos por conta da ausência de affectio societatis, a societas romana, amálgama da associação de bens e de pessoas, é tida como o principal instrumento de organização empreendedora na Roma antiga (SALOMÃO FILHO, 1991, p.66; WARDE JUNIOR, 2007, p.16; PEROZZI apud WARDE JUNIOR, 2007, p.16) e, por sua vez é derivada de uma antiga espécie de consórcio entre irmãos, o ercto non cito, por força da qualidade indivisa dos bens herdados, o que, a partir da Lei das XII Tábuas, passou a poder ser dividido através da legis actio per iudicis postulationem ou actio familae eriscundae. (ARANGIO-RUIZ, 1950, p.6; WARDE JUNIOR, 2007, p. 20)

20

Contudo, a associação de bens e pessoas em torno de um objeto econômico não era instituto privativo de irmãos ou pessoas com laços sangüíneos ou herança comum. Pessoas que não apresentassem o liame acima aludido poderiam obter os mesmos efeitos do ercto non cito através de uma legis actio.

Seja através de um ercto non cito seja através de uma legis actio, era atribuído a cada um dos membros – que convencionaremos chamar de sócios entre aspas – o direito de dispor do patrimônio comum, em um tratamento bastante similar ao que é conferido modernamente à compropriedade.

Entretanto, a consensualidade na constituição de um patrimônio, para uma finalidade específica de natureza empresarial, como na formada por terceiros sem vinculações familiares (que obrigatoriamente formavam o ercto non cito) é fundamental para o desenvolvimento da societates unius alicuius negotii, sociedades que possuíam finalidade negocial.

As societates eram caracterizadas principalmente pela comunhão patrimonial de maneira consensual (e não por determinações hereditárias), pela vontade de formar uma sociedade (animus contrahendae societatis) e pela persecução de um objetivo comum.

Questão que é relevante, em termos de responsabilidade e para este trabalho, é a identificação da relevância ou da irrelevância, em relação a terceiros, do vínculo societário para determinar a responsabilidade daquele “sócio” que age como dono do patrimônio social e da irresponsabilidade (ou da ausência de imputação de responsabilidade) aos demais “sócios” das societates unius alicuius negotii (ARANGIO-RUIZ, 1950, p.29; ASCARELLI, 1964, p.31; WARDE JUNIOR, 2007, p. 25).

A posição dominante entre romanistas é a de que o liame societário era externamente irrelevante, de modo que na ausência de ente abstrato e distinto das pessoas físicas que o constituíram, a condição de sujeito de direito era atribuída aos

21

sócios que, contudo, não eram solidariamente responsáveis pelos atos praticados (ZULUETA, 1953, p.180), de modo que a comunhão do patrimônio era relevante apenas entre os “sócios”, conforme pacto anterior havido entre os mesmos. Internamente, tratavam-se de condôminos de um patrimônio formado pelas versões individuais do patrimônio pessoal de cada um dos membros, porém eram tidos como credores, na proporção de suas quotas, no que diz respeito ao lucro auferido (CANCELLI, 1970, p. 508).

Externamente, todavia, aquele “sócio” que praticasse atos que permitisse a terceiros acreditar que se tratava do dono do patrimônio respondiam ilimitada e pessoalmente perante terceiros ao passo em que aquele “sócio” que não tivesse praticado tal ato não assumia qualquer responsabilidade externa, assim, os terceiros eventualmente prejudicados possuíam direito de ação não contra a sociedade, mas com relação ao “sócio” que tivesse celebrado negócio ensejador do prejuízo de tal terceiro (ZULUETA, 1953, p. 180; WARDE JUNIOR, 2007, p. 30).

Assim, o status de dono seja do patrimônio social seja dos resultados auferidos pela societas, tornava o “sócio” praticante de ato negocial o único sujeito passível de ter sua responsabilidade imputada. Aquele “sócio” que tivesse se aproveitado do crédito eventualmente conseguido se tornaria devedor do empréstimo contraído pela societas, os demais “sócios” eram tidos como meros titulares de direito de crédito sobre os resultados da societas (MONTANARI, 1990, p.21).

Destarte, é possível chegar à conclusão de que o pressuposto para estabelecer a limitação da responsabilidade de “sócio” da societas residia na condição de credores dos eventuais e futuros resultados desta, ao passo que a ausência de limitação da responsabilidade “decorria da natureza real dos direitos de um ou vários sócios sobre o patrimônio destinado à atividade e os resultados dela decorrentes” (WARDE JUNIOR, 2007, p. 47).

2.2 NO PERÍODO MEDIEVAL

22

A partir da queda do Império Romano que, malgrado a dificuldade de determinação precisa de sua época, convenciona-se aqui neste trabalho como século VII, no Ocidente e século VIII no Oriente (BURNS, 1980, p.198), passando pela Antigüidade tardia até a Baixa Idade Média (a partir das Cruzadas até o século XV), o direito romano passou por várias alterações decorrentes das transformações do mundo, em particular, quando em confronto com os costumes bárbaros e, ainda mais especificamente, as disciplinas destinadas ao regramento das formas societárias e responsabilidade dos sócios (WARDE JUNIOR, 2007, p. 50).

No ambiente pós-queda do Império Romano, surgem, como costume bárbaro, as relações associativas preponderantemente a partir do núcleo familiar, com a finalidade de cultivar e praticar o escambo de produtos agrícolas. Tratam-se das fraternae societates que persistiram até a Baixa Idade Média, posto que as companhias mercantis medievais surgiram como fraternae societates (WARDE JUNIOR, 2007, p. 53).

Nas fraternae societates a família gozava de importância jurídica notável, pois havia uma relação dominial direta com os resultados da empresa (todos da família aproveitavam, potencialmente, os lucros auferidos), exercida pelos seus membros, o que fez com que, no campo da responsabilidade dos sócios, estes tornassem-se solidários entre si ativa e passivamente, o que equivale a dizer que a vinculação societária, outrora irrelevante, passou a ser determinante da responsabilidade.

Deixou de haver, perante terceiros, a disposição do patrimônio social por este ou por aquele sócio em particular – e, via de conseqüência, o aproveitamento de resultados deu-se de forma solidária [...] aproveitando-se [todos os sócios] diretamente dos seus resultados (que se inseriam no patrimônio comum), deixavam de ser meros titulares de direito de crédito em face do gestor. (WARDE JUNIOR, 2007, p. 56).

2.2.1 As Companhias Medievais e a Responsabilidade dos Sócios

As companhias medievais, surgidas das fraternae societates, inicialmente eram

23

fundadas de maneira semelhante aos ercto non cito, ou seja, com base na compropriedade hereditária indivisa. Entretanto, posteriormente, pôde ser estabelecida mesmo entre estranhos, mediante pacto celebrado entre os mesmos, ou seja, pela livre manifestação de vontade (SCHUPFER, 1921, apud WARDE JUNIOR, 2007, p. 69), de modo que se tornava essencial para apurar a condição de membro da companhia a morada conjunta, o compartilhamento de vida em família.

2.2.2 As Sociedades em Comandita

Em contraponto à responsabilidade ilimitada das fraternae societates, forma originalmente adotada pelas companhias medievais, surgia, na mesma Idade Média, as sociedades em comandita, decorrentes do interesse de limitar a responsabilidade do sócio capitalista. Este trabalho não adentrará no mérito de a sociedade em comandita se tratar ou não de primeiro tipo societário medieval.

O que se faz mister ressaltar é o descompasso existente entre os tipos societários existentes e as demandas econômicas emergentes à época, de intenso comércio ultramarino, atividade que, dados os riscos de uma época com parcos recursos tecnológicos, era de per si arriscada.

Em uma companhia medieval típica, a responsabilidade dos sócios seria ilimitada e solidária e, se assim tivesse permanecido, é muito provável que o comércio, o Direito e, quem sabe, a própria História não tivesse se desenvolvido da mesma forma que se sucedeu, a partir da atipicidade das sociedades em comandita, onde o sócio comanditário (ou capitalista) era, tal como na societas romana, mero detentor de direito de crédito.

A sistemática era a seguinte: o sócio comanditário transferia o direito real sobre suas quotas ao sócio comanditado – este sim, ilimitadamente responsável – em troca de um direito de crédito correspondente ao valor da parcela de seu patrimônio pessoal

24

investido na sociedade, acrescentado de juros. Ou seja, o comanditário equipara-se a credor e, em caso de perdas, limitadamente responsável perante terceiros (WARDE JUNIOR, 2007, p. 80).

Assim, temos que, em especial na Baixa Idade Média, os elevados riscos imputados aos comerciantes, acrescido da necessidade de captar investimentos, que por sua vez, eram condicionados à mitigação dos riscos daquele que investe, foram fatores determinantes para o surgimento das sociedades em comandita, ou seja, para o surgimento de uma sociedade em que houvesse um sócio cuja responsabilidade não fosse solidária e ilimitada (FERREIRA, 1958, p.183).

A limitação da responsabilidade medieval decorre, conforme se aduz do acima exposto, do interesse de abrandar os riscos da atividade comercial.

2.3 A LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE MODERNA E CONTEMPORANEAMENTE

Moderna e contemporaneamente falando, a limitação da responsabilidade sofreu não apenas mudanças decorrentes da evolução de seus fundamentos anteriores, mas, também, acréscimos por parte de teorias que, seja numa abordagem direta, seja como conseqüência de suas constatações, implicavam reconhecimento – ao menos – da utilidade da limitação da responsabilidade.

2.3.1 O Fundamento da Natureza Creditória dos Direitos dos Acionistas aos Resultados

A Companhia das Índias Orientais e em especial a Ocidentais é tida por muitos como das primeiras organizações societárias mais aproximadas das atuais sociedades por ações. A combinação de geografia desfavorável que impulsionou os holandeses a se lançarem na exploração do comércio ultramarino como meio

25

essencial de subsistência com o momento da coalizão contra a coroa espanhola, visando acabar com o monopólio da Espanha sobre especiarias, ouro e o comércio de um modo geral fizeram com que o poder econômico das sociedades holandesas, até então disperso, se fundisse para fazer surgir a Companhia das Índias Orientais (1602) e a Companhia das Índias Ocidentais (1621) (FERREIRA, 1958, p. 226- 228).

Ambas as companhias tiveram seus capitais integralizados mediante oferta pública de suas partes (ações) e tais partes podiam ser comercializadas na Bolsa de Amsterdã, eram administradas por diretores e tinham assembléias gerais e conselho de administração. Na Companhia das Índias Orientais, os administradores eram vitalícios, já na das Índias Ocidentais, havia um mandato de 6 (seis) anos acrescido de maiores obrigações no tocante à prestação de contas aos acionistas, distribuição de lucros. Os acionistas das Companhias das Índias eram irresponsáveis perante terceiros, dado o caráter de credores da companhia a eles atribuído, já que sua responsabilidade estava limitada ao valor total da parte do capital social integralizado, ou seja, sua responsabilidade limitava-se ao valor de suas ações.

Dessa trilogia – a criação de ações, representativas do capital e materializadas em títulos específicos; a negociabilidade dêsses títulos, ou seja das ações; e a limitação da responsabilidade dos acionistas ao valor das ações subscritas ou adquiridas – nasceu, inequivocamente, a sociedade anônima, tal qual hoje se conceitua. (FERREIRA, 1958, p. 228).

Na Companhia das Índias Orientais, os administradores respondiam ilimitadamente perante terceiros. Contudo, quando a Companhia das Índias Ocidentais foi criada, o papel do administrador sofreu ampla revisão, de modo que os administradores deixaram de atuar como “donos” e passaram a ser mandatários dos acionistas, por um curto (para os padrões da época) período de tempo e, credita-se a essas inovações a razão pelas quais os administradores também deixaram de ser ilimitadamente responsáveis perante terceiros (WARDE JUNIOR, 2007, p. 89).

Essa nova sistemática trazida pela Companhia das Índias Ocidentais não representou, contudo, um retorno à responsabilidade ilimitada e solidária dos acionistas, pois os mesmos, em realidade, renunciavam ao direito real sobre seus aportes de capital e ainda que se considere que a gestão da companhia era

26

destinada à satisfação dos interesses dos acionistas, tais interesses resumiam-se – por força da renúncia acima aludida – a direitos à participação nos eventuais resultados superavitários (WARDE JUNIOR, 2007, p. 95).

Diante do já exposto, pode-se concluir que – de certa maneira – as sociedades por ações são derivadas das sociedades em comandita, principalmente no que diz respeito à limitação da responsabilidade dos sócios/acionistas que, a exemplo do comanditário, decorre da natureza creditória dos seus direitos aos resultados da empresa. Ou seja, “essa, que já era então a principal causa de limitação de responsabilidade na Idade Média, persiste, na modernidade, como seu primeiro fundamento”. (WARDE JUNIOR, 2007, p. 97).

2.3.2 O Fundamento da Personalidade Jurídica e de sua Autonomia

A personalidade jurídica é classicamente tratada como causa da limitação da responsabilidade dos sócios, sendo todos – sócios e pessoa jurídica – centros autônomos de imputação de direitos e de deveres.

Desde a societas até as Companhias das Índias, por exemplo, o fundamento da limitação da responsabilidade dos sócios/acionistas repousava sobre a natureza creditória dos direitos destes à participação nos lucros da empresa, como vimos, por meio de uma renúncia a direito real sobre o aporte de capital realizado.

Contudo, em uma sociedade na qual não remanescia nenhum sócio com propriedade sobre o patrimônio social da empresa, a solução da renúncia já não cabia, já não seria aplicável. Afinal, quem iria adquirir tal direito real? O surgimento do conceito de pessoa jurídica, em realidade, veio promover uma solução técnica – ainda que não isenta de problemas – a um problema que, na época, apresentava-se como um obstáculo ao desenvolvimento dos modernos tipos societários e, por conseguinte, da economia.

27

Assim, teríamos que o estabelecimento da personalidade jurídica – com sua autonomia patrimonial – não seria causa da limitação da responsabilidade. O que este trabalho especula, dentre outras coisas, é que tal limitação seja uma das conseqüências trazidas pela solução técnica da criação da personalidade jurídica.

O conceito de pessoa jurídica no Direito é algo que passou, ao menos desde o século XVII, por diversas fases de concepção e, ainda hoje, é objeto de muita discussão e pouco consenso, principalmente com relação a seus desdobramentos e efeitos.

Na forma da divisão proposta por Orlando Gomes, são duas as posições doutrinárias a respeito das pessoas jurídicas, sendo a primeira a referente à negação da personalidade e a segunda a da sua afirmação (GOMES, 2007, p. 168).

As teorias do primeiro grupo (o da negação) “não constituem explicação da natureza das pessoas jurídicas, visto que não admitem o fenômeno da personificação” (GOMES, 2007, p.168). Teóricos como Ihering, Bekker e Barthélèmy acreditavam, respectivamente que a associação dos indivíduos para um fim comum não representavam nada além do que eles próprios como sujeitos de direito, que o fato associativo é traduzido por um patrimônio destinado a um fim, patrimônio que esse que não teria titular, sendo direito sem sujeito; e, por fim, que o fenômeno associativo era, na realidade, uma propriedade coletiva (GOMES, 2007, p.168-169).

As formulações teóricas do grupo que defendia a inexistência da pessoa jurídica têm valor ilustrativo ante a realidade fática e legal da pessoa jurídica.

Savigny definiu a pessoa jurídica como uma ficção, uma artificialidade a qual o Estado, por sua vontade, atribuía condição de sujeito de direito. (SAVIGNY, 2004, p. 300), cuja capacidade jurídica resumir-se-ía e justificar-se-ía por suas finalidades eminentemente patrimoniais. A teoria de Savigny, conhecida por Teoria da Ficção atribuiu solução técnica para o problema gerado pela limitação da responsabilidade (oferecendo um ente capaz de adquirir os direitos reais sobre os aportes de capital).

28

Ao mesmo tempo, e talvez, por causa da solução oferecida, a teoria de Savigny acabou por formar a fundamentação da limitação da responsabilidade decorrente da capacidade patrimonial da pessoa jurídica.

A Teoria da Ficção de Savigny sofreu (e sofre) diversas críticas. Dentre as quais a elaborada por Otto von Gierke, que fundou sua teoria em critérios da realidade para explicar a existência de entes não humanos, titulares de direitos e obrigações, com capacidade jurídica.

Segundo Gierke, sua teoria baseava-se na constatação de que o homem se insere em organizações sociais destinadas a alcançar um objetivo comum. A formulação teórica de Gierke não tinha por fim tornar-se uma teoria da personalidade jurídica, mas, sim, identificar as razões para reconhecer capacidade jurídica em ente não humano.

Já Ferrara teve pensamento bastante pragmático no tocante à atribuição de capacidade jurídica a uma pessoa jurídica, uma vez que o citado jurista justifica a personalidade por meio de mera atribuição de subjetividade e de capacidade jurídica a um ente, bastando, para ser um sujeito de direito, que se titularize deveres ou um poder jurídico por determinação da ordem jurídica e de seus fins. Para Ferrara “o reconhecimento da pessoa jurídica é a tradução jurídica de um fenômeno empírico”. (FERRARA, 1956, p. 37).

Com o mesmo pragmatismo, pode-se dizer, Ferrara entende a limitação da responsabilidade dos sócios, ou seja, é decorrente – de forma direta – da lei. Indiretamente, dos interesses e conveniências que determinaram a atribuição de capacidade jurídica a um ente não humano, a uma sociedade.

Já para Kelsen, que desconhece a legitimação do direito com base em valores suprapositivos, a pessoa jurídica se trataria de mero ponto de imputação, não sendo, portanto, titular de direitos ou do patrimônio, que, por sua vez, pertenceria aos homens que formam a pessoa jurídica, ainda que a faculdade de dispor sobre tal

29

patrimônio seja restrita pelo que ele convencionou chamar de ordem jurídica parcial (como o estatuto), que, também, limita a responsabilidade dos sócios. Ou seja, a limitação da responsabilidade decorreria apenas da norma jurídica.

A ordem normativa que constitui a entidade é o seu estatuo, que entra em vigor através de um ato de direito associativo definido pelo ordenamento jurídico estatal [...] o estatuto de uma entidade representa uma ordem jurídica parcial, que se distingue do ordenamento jurídico estatal como ordem de direito total. (KELSEN, 2006, p.181)

Ainda no âmbito normativista, Leon Duguit, considerava a limitação da responsabilidade como resultado da vontade individual, juridicamente protegida por conta das finalidades coletivas que ali – pessoa jurídica – jazem.

Para Duguit, a limitação da responsabilidade do sócio decorre de interesse humano juridicamente tutelado, posto a existência de uma função social a ser cumprida pela empresa, uma vez que “todo ato de vontade que tende ao cumprimento dessa missão, à realização dessa necessidade [função social], deve ser socialmente protegido”. (DUGUIT, 1920 apud WARDE JUNIOR, 2007, p. 69).

2.3.3 O Fundamento da Função Econômica da Limitação da Responsabilidade

As causas econômicas para a limitação da responsabilidade dos sócios tratam de fundamentação da limitação que ganhou corpo principalmente na modernidade, mas não é possível negar sua existência desde a época do mercantilismo, conforme já abordado acima, pois não foi por outro motivo que a sociedade em comandita surgiu, de maneira atípica, para contornar a questão do risco e, ao mesmo tempo, viabilizar os investimentos necessários à arriscada atividade comercial ultramarina.

A empresa, seja qual for a sua forma societária, em análise neste trabalho, ou seja, limitada ou sociedade anônima, estabelece um sem número de relações econômicas e sociais, para a consecução de seu objetivo social – a exploração de determinado segmento no setor industrial, comercial ou de serviços -, e percepção de lucros.

30

As atividades empreendidas por uma empresa sempre implicarão risco.

Em maior ou em menor escala, o risco é um fator sempre presente na exploração de determinado segmento empresarial. Também em certa medida, o risco pode ser mensurado, mas, independentemente do conjunto de informações disponíveis ou obtidas pelo futuro empreendedor, é preciso frisar que sempre há o imponderável ou aquilo que, embora se cogite a ocorrência, não se pode prever a sua intensidade, e para ficarmos em um exemplo, podemos citar uma brusca queda qualquer em uma também qualquer bolsa de valores do mundo, para que as demais bolsas apresentem quedas em efeito dominó e, para ficarmos no Brasil, normalmente essa queda representa uma abrupta elevação na cotação do dólar que, normalmente, costuma acarretar efeitos perversos em algumas empresas, mais notadamente, as de importação, ao passo em que a repentina desvalorização do dólar impacta negativamente as empresas de exportação, que, por conseguinte, afeta o equilíbrio da balança comercial.

Logo, é importante repisar a presença perene do imponderável, do risco não passível de previsão ou do risco cujos efeitos devastadores não sejam passíveis de antecipação e, em alguma medida, pode-se atribuir o questionamento acerca dos cuidados que tenham sido tomados pelo empresário, mas a partir da falta de liquidez decorrente de tais eventos adversos não se pode – de antemão – determinar a ocorrência de fraude, a verificação do dolo ou a intenção de lesar credores e/ou fornecedores.

O economista John Maynard Keynes, mais conhecido como Lorde Keynes, denominou a intersecção entre o cálculo racional (dos componentes relativos à decisão de empreender) e a ação empresarial (o efetivo investimento) de animal spirits:

[a maior parte das nossas decisões] de fazer algo positivo [...] só pode ser entendida como o resultado de animal spirits [...] e não como o fruto de benefícios mensurados multiplicados por probabilidades mensuradas [...] A iniciativa individual somente será adequada no momento em que o cálculo racional for complementado e sustentado por animal spirits, de tal modo que

31

a antecipação da perda final que por vezes alcança os pioneiros, como a experiência sem dúvida revela a eles e a nós, seja afastada e posta de lado, assim como um homem saudável afasta a expectativa da morte. (KEYNES, 1973 apud GIANNETTI, 2005a, p.59).

De acordo com o entendimento keynesiano acima aludido, pode-se deduzir que essa certeza subjetiva (o animal spirits) que impulsiona o empreendedor é exatamente o que o diferencia daquele que desiste ao ponderar todos os riscos envolvidos em uma operação, o que por vezes desestimula a realização do empreendimento ou – possivelmente - o brilho do êxito.

É essa certeza subjetiva do empreendedor que resulta na constituição de uma empresa, que gera relações sociais, através da criação de empregos; que gera relações comerciais, através da celebração de diversos tipos de contratos; que torna a balança comercial positiva seja pelo aumento de produção, seja pelo aumento de exportações. Enfim, que faz movimentar e crescer a economia de qualquer país.

Não deve ser difícil supor que, acaso fosse imposta aos empresários a responsabilidade ilimitada e solidária com as dívidas sociais de uma empresa, a maior parte das empresas sequer chegaria a ser constituída, uma vez que é difícil imaginar a sobrevivência do animal spirits keynesiano, diante da idéia de que o patrimônio pessoal do empresário será ilimitada e irremediavelmente atingido, mesmo que não tenha atuado de maneira fraudulenta ou com intuito lesivo, em caso de débitos que montem quantia superior ao patrimônio social ou, máximo do insucesso, em caso de falência da sociedade.

Diante disso, tem-se a primeira sustentação – e que também é uma premissa fundamental – mantida por este trabalho, qual seja, a de que o desenvolvimento da atividade empresarial tem como um dos pontos de sustentação a limitação da responsabilidade de sócios e administradores (RIPERT, 1947, p. 59).

Independentemente de a limitação da responsabilidade dos sócios decorrer da autonomia da pessoa jurídica, de seu aspecto institucional ou da norma jurídica, este trabalho se sustenta – dentre outros – no fato de que as razões econômicas possuem, sim, uma relevância bastante significativa (NUNES, 2007, p. 41).

32

Neste tocante, este trabalho não se filia à afirmativa de Warde Júnior, para quem o fundamento das causas econômicas da limitação da responsabilidade ganhou importância ao longo dos tempos “à medida que o direito aceitou a influência que as ciências econômicas pretendiam exercer sobre ele” (WARDE JUNIOR, 2007, p. 129).

Não se coaduna com tal afirmação posto que seja entendimento deste trabalho que o Direito, como ciência social que

precisa de cada vez maiores aberturas; necessariamente sensível a qualquer modificação da realidade, entendida na sua mais ampla acepção [...]. A transformação da realidade social em qualquer dos seus aspectos (diversos daquele aspecto normativo em sentido estrito) significa a transformação da ‘realidade normativa’ e vice-versa. (PERLINGIERI, 2002, p. 1-2).

Ou seja, a recepção pelo Direito das causas econômicas não é um requisito de validade para as mesmas. Acreditar nisso, de certo modo, representa a crença em uma sociedade súdita, serva do Direito, quando, em realidade, o que se busca não é uma relação de submissão, mas, sim, de interpenetração entre realidade social e realidade normativa.

Assim, é entendimento deste trabalho que o que se deu com a questão da limitação da responsabilidade, por exemplo, expressa na criação das sociedades em comandita simples, foi uma clara tentativa do Direito atender a um chamado surgido da realidade econômico-social de que para haver investimento e, conseqüentemente, crescimento econômico do País, era preciso uma forma jurídica que permitisse a alguém simplesmente investir em um empreendimento, sem que isso representasse, ao menos em condições regulares, um comprometimento do patrimônio pessoal ou familiar do investidor.

Partindo da premissa acima, pode-se afirmar ser corrente entre os teóricos do Law and Economics, que pode ser sintetizado como uma abordagem econômica do Direito, que a limitação da responsabilidade tem o condão de mitigar os riscos ou prejuízos envolvidos em um negócio o que acaba por ser um fator relevante na

33

diminuição dos custos do capital necessário. Do contrário, ou seja, sendo ilimitada a responsabilidade, uma série de custos, a serem efetuados por diversos motivos, teria de ser considerada. A começar pelo custo de informação.

É importante destacar que, ainda que a Análise Econômica do Direito (ou Law and Economics) não se trate de uma abordagem que conte com apoio unânime da doutrina, há registro de crescimento significativo de associações de Law and Economics (COOTER E RUBINFELD, 1989; e STIGLER,1992).

Pode-se indicar ao menos três pontos de interação entre o direito e a economia. São eles os casos de assessorias em casos anti-truste e anti-dumping, a assistência que a economia empresa na compreensão dos incentivos ao litígio e aos custos que isso implica e, por fim, o ponto que se relaciona à análise do papel desempenhado principalmente pelo Judiciário no desenvolvimento econômico dos países (PINHEIRO, 2000, p. 13-14).

Para a Análise Econômica do Direito um conceito de importância é o de Instituição. Instituições, para a referida escola, são as regras do jogo numa sociedade, ou mais formalmente, são restrições criadas pelo homem que dão forma às interações humanas e, nesse contexto, o Judiciário (a exemplo do direito de propriedade, do federalismo, etc) é uma instituição que, na medida em que evolui para reduzir os custos de transação, é fundamental para explicar o desempenho de uma economia. (NORTH apud WILLIAMSON, 2005, p. 45).

Contudo, Stigler revela o diálogo surdo entre essas duas áreas e seus agentes:

Enquanto a eficiência constitui-se no problema fundamental dos economistas, a justiça é o tema que norteia os professores de direito [...] é profunda a diferença entre uma disciplina que procura explicar a vida econômica (e, de fato, toda a ação racional) e outra que pretende alcançar a justiça como elemento regulador de todos os aspectos da conduta humana. Esta diferença significa, basicamente, que o economista e o advogado vivem em mundos diferentes e falam diferentes línguas (STIGLER, 1992, p. 462-463).

A teoria econômica neoclássica, quando se refere à eficiência, remete à eficiência de Pareto. Um sistema é dito ser Pareto eficiente – ou ótimo Pareto – se não há

34

como melhorar o bem-estar de qualquer indivíduo sem que se piore a situação do outro. “Se uma situação não é eficiente de Pareto, isso significa que existe alguma forma de melhorar a situação de alguém sem prejudicar nenhuma outra pessoa” (VARIAN, 1994, p. 16).

Conforme se verá ao longo deste trabalho, não há motivos tampouco justificativas para que se perpetue o diálogo surdo acima referido.

2.3.3.1 Os Custos de Informação

Considerando-se a ilimitação da responsabilidade, a decisão teria de – forçosamente – conter muito menos daquilo que Keynes nomeou como animal spirits e muito mais de elementos racionais, para a tomada de decisão igualmente racional sobre a constituição de uma empresa. Sobre a decisão de empreender ou não empreender. Arriscar ou não arriscar.

Para decidir-se sobre a perseguição de lucros através da exploração de uma atividade econômica deveria, desta sorte, ser precedida pelo levantamento de todas as informações relevantes e sustentadoras da tomada de decisão, quais sejam, desde as razoáveis e corriqueiras acerca das quantias necessárias para investimento inicial, custos operacionais e não operacionais, até pesquisas de mercado a fim de averiguar a aceitação de um serviço ou produto, estudos econômico-financeiros a fim de avaliar a expectativa de retorno dos investimentos, custos de monitoramento dos administradores e contratação de seguros a preços elevadíssimos.

A informação que se tem não é a informação que se quer. A informação que se quer não é a informação da qual se precisa. A informação da qual se precisa não é a informação que se pode obter. A informação que se pode obter custa mais do que se quer pagar. (ANONIMO apud GIANNETTI, 2005a).

35

A citação anônima acima retrata bem o valor da informação, um item de elevada importância que, se tivesse de ser obtida de modo a eliminar as incertezas, há fortes razões para se crer que grande parte dos empreendimentos permaneceria como projetos não executados.

Após os custos de informação – ou de obtenção de informação – teríamos de considerar, em um hipotético cenário de ausência de dispositivos limitadores da responsabilidade, os custos de caução e monitoramento dos administradores, sejam eles sócios ou não. E esses custos seriam mais relevantes quão maiores a pulverização do capital, a exemplo do ocorrido nas sociedades anônimas de capital aberto. Contudo, também seriam verificáveis em estruturas societárias menos complexas.

2.3.3.2 Os custos de agência

Para a abordagem dos custos de agência, faz-se necessária breve digressão acerca da Teoria da Firma (Theory of the firm), para fins de uma melhor contextualização de tais custos.

A separação havida – mormente nas complexas estruturas societárias – entre controle da propriedade (ações) e controle de gestão (administração) faz surgir quase inevitáveis conflitos de interesses entre acionistas e administradores.

A separação entre propriedade e controle produz uma condição em que os interesses do acionista e do gestor podem divergir e isso ocorre frequentemente, e muitos dos mecanismos que formalmente eram operados para limitar o uso do poder desaparecem. (BERLE e MEANS, 1932 in GOMEZ-MEJIA e WISEMAN, 1997).

A teoria da firma acaba por propiciar um arcabouço teórico com vistas à análise das variadas questões e relações contratuais que ocorrem no âmbito da empresa, sendo que a estrutura de tal teoria repousa no conceito de relação de agência, que vem a ser a relação estabelecida entre uma ou mais pessoas (designadas principal ou

36

principals, ou, simplesmente, acionistas) e outra pessoa, designada agent ou representante, que – por força da relação contratual – presta serviços no interesse dos primeiros (principals) mediante remuneração.

São nucleares à teoria da firma as noções de interesses conflitantes entre principals (acionistas) e agents (administradores), bem como, conforme asseverado no trabalho de Sandra Alves, Julio Martins e Carlos Ferreira, “algum grau de oportunismo entre eles” (ALVES, MARTINS e FERREIRA, INTERNET, p. 344), de modo que a relação acaba por ensejar os custos de agência (ou agency costs), definidos por Jensen e Meckling como o somatório dos custos de monitoramento (os monitoring costs), dos custos de obrigação (bonding costs) e das perdas residuais (residual losses). Todos eles, conjuntamente, teriam por fim a redução da atuação em interesse próprio do agente, em detrimento do interesse dos acionistas, bem como reduzir os custos suportados pelos acionistas no caso do monitoramente não ter sido suficientemente eficaz.

Os custos de obrigação (ou bonding costs) seriam aqueles associados às garantias – em um sentido financeiro – necessárias à atuação do administrador que, eventualmente, poderá não agir – independentemente de uma análise da boa ou da má-fé – em consonância com os interesses dos acionistas ou dos constituency groups, formado por trabalhadores, consumidores, comunidade de um modo geral, em face da função social da empresa. São os custos associados à garantia do cumprimento de uma obrigação.

Logo, os bonding costs teriam por fim evitar o conflito entre interesses dos acionistas e/ou dos constituency groups e a atuação do administrador ou agent (ou as resultantes econômico-financeiras de tal conflito). (JENSEN e MECKLING, 1976, p. 8).

Os bonding costs seriam acrescidos pelos monitoring costs, que representam um custo de fiscalização freqüente da atuação dos administradores e, por fim, às perdas residuais, que implicam nas perdas sofridas pelos acionistas para mitigar os conflitos de interesses acima referidos.

37

Todos esses custos, coletivamente designados agency costs, que têm por fim minimizar os conflitos entre contratantes (principals e agents ou acionistas e administradores) bem como a redução da possibilidade de descumprimento de obrigações, acabam por representar uma redução muito significativa – mesmo nos casos de investimentos menores – das benesses que se espera ao investir em um dado empreendimento que, muitas vezes, pode representar – repita-se, em um cenário de responsabilidade ilimitada – a perda do patrimônio pessoal originada por um investimento infinitamente menor àquele.

Dois autores da Law and Economics, da escola de Chicago, Frank Easterbrook e Daniel Fischel são favoráveis à limitação da responsabilidade por conta de sua capacidade de reduzir os chamados agency costs, em particular, os de monitoramento (EASTERBROOK e FISCHEL, 1985, p. 52).

De maneira resumida, a limitação da responsabilidade apresentaria, para tais autores, os seguintes aspectos positivos: (a) a redução de agency costs, em especial, dos custos de monitoramento; (b) a diversificação dos investimentos como estratégia racional para redução de riscos e custos operacionais da empresa; (c) incentivo para o investidor aumentar os níveis de versão de seu patrimônio pessoal para o empreendimento, ou seja, aumentar o investimento; (d) incentivo à administração eficiente, principalmente nas companhias de capital aberto, pois a livre transferência de ações faz com que os grupos de acionistas mudem de tempos em tempos que, por sua vez, podem se organizar em blocos que determinem a substituição da administração por uma outra mais eficiente.

Dentre as diversas críticas sofridas pela limitação da responsabilidade, encontra-se uma de grande relevância: a elevação dos custos sociais decorrentes externalização dos riscos decorrentes da atividade empresarial para trabalhadores, fornecedores e demais credores, voluntários e involuntários, possibilitada pela adoção de um regime de responsabilidade limitada (WARDE JUNIOR, 2007, p.148).

Embora concordem que a limitação da responsabilidade implica externalização dos

38

riscos e, conseqüentemente, na incidência de um custo social, a dupla de autores de Chicago considera que a tendência, que já se observava na modernidade, de securitização minimiza aqueles custos. Principalmente, quando se coloca em confronto os custos sociais advindo da limitação da responsabilidade com os custos sociais da ilimitação da responsabilidade, em um aspecto macroeconômico, já que tal ausência de limitação inviabilizaria a existência, principalmente, de grandes empresas.

De modo que, mesmo com o aspecto dos custos sociais acima aludidos, Easterbrook e Fischel consideram que a limitação da responsabilidade é uma resposta eficiente à questão apresentada pelos elevados custos de monitoramento, à exceção dos chamados credores involuntários, como é o caso daqueles titulares de direito de indenização, por exemplo, os quais poderiam lançar mão de uma série de recursos visando a redistribuição dos custos advindos da limitação, a exemplo da desconsideração da personalidade jurídica, seguro obrigatório e responsabilidade de administradores.

Os autores também se referem ao capital mínimo, o que, no contexto brasileiro, não possui aplicabilidade, ao menos nos tempos atuais. (EASTERBROOK e FISCHEL, 1985, p. 69 e ss), uma vez que não há exigência no tocante a capital mínimo para a maioria das sociedades. Nem mesmo para as sociedades anônimas de capital aberto há um valor fixado em lei, embora a Comissão de Valores Mobiliários desempenhe importante papel – antes da constituição de uma S/A de capital aberto – no tocante à fixação do capital, dentre outras matérias.

Contudo, mesmo com a proposta de securitização levantada por Easterbrook e Fischel como algo capaz de reduzir a externalização dos riscos e, portanto, reduzir os custos sociais, é inegável que a existência de tais custos somada à dificuldade de concreção das funções da responsabilidade – diminuição dos riscos empresariais e dos custos de capital – sem enfraquecer a proteção dos direitos dos credores acabou por trazer à tona uma relativização das funções econômicas da limitação da responsabilidade.

39

Entretanto, a relativização não implica – no entendimento aqui apresentado – supressão da solução trazida pela limitação da responsabilidade, como é proposto por muitos teóricos do direito, posto que, repita-se, no entender deste trabalho, a supressão acabaria por trazer mais ônus do que bônus sociais e econômicos, sob o pretexto de operacionalizar a ‘justiça’.

Se por um lado, por força da limitação da responsabilidade, tem-se a externalização dos riscos do empreendimento e conseqüentes custos sociais decorrentes de tal externalização, em um cenário de ausência de limitação da responsabilidade – ou de responsabilidade ilimitada – talvez alguns aventureiros deixassem de empreender com o manto relativamente protetor da limitação da responsabilidade, mas há fortes razões para se crer que muitos empreendimentos com razoáveis chances de desfrutar de sólida posição econômico-financeira deixassem de ser executados.

A idéia defendida neste trabalho é a de que a supressão da responsabilidade limitada empresarial normativa não é – tampouco deve ser - panacéia para os males decorrentes da crise ensejada por tal limitação ou mesmo pela crise – quase que crônica – da personalidade jurídica.

Embora esta monografia apresente muitos conceitos relativos ao Law and Economics e, conseqüentemente, expor-se ao risco de ver contra-argumentada a proposição de que as idéias dessa escola não teriam aplicabilidade em outros contextos, o que não parece verdade, mesmo e principalmente no Brasil, não haveria razão econômica, conforme já visto anteriormente, social e jurídica para a supressão da responsabilidade limitada como uma resposta à crise da limitação da responsabilidade.

No tocante à ausência de razão social, é preciso repisar o argumento constitucionalista.

A Constituição da República Federativa do Brasil prestigiou a função social da empresa, derivada da função social da propriedade, em diversos de seus artigos, em seu artigo 5º, inciso XXIII, que determina o atendimento da função social pela

40

propriedade.

Os artigos 170 et seq. da Constituição também comunica importantes funções sociais da empresa:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. [...] Art. 173. [...] § 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. § 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1º - A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.

Desta forma, a função social é prescrita através de uma série de condutas a serem adotadas ou evitadas em prol da promoção da justiça social; da livre iniciativa (artigo 170); da busca pelo pleno emprego e redução das desigualdades sociais, do valor social do trabalho, da dignidade da pessoa humana, do patrimônio ambiental, dentre outros princípios constitucionais e infraconstitucionais, todos sem prejuízo da promoção da solidariedade social, prescrita no artigo 3°, inciso I.

Com o advento do Novo Código Civil, na esteira do movimento de constitucionalização do Direito Civil, o parágrafo único do artigo 2.035 prescreve:

41

Art. 2.035. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

No tocante à ausência de fundamentação jurídica para o desprestígio da limitação da responsabilidade, temos que o próprio ordenamento pátrio já provê alguns mecanismos de apuração e execução da responsabilidade de administradores e/ou de sócios que podem ser aplicados sem que, para isso, haja o sacrifício da empresa pela via de sua extinção, por impossibilidade de seguir adiante.

Ou seja, é preciso voltar os olhos àquilo que a ordem jurídica já possui em sede de responsabilidade de sócios e administradores, orientados pelo aludido princípio da função social da empresa.

Por fim e em caráter extraordinário, malgrado a aplicação exagerada e, portanto, muitas vezes indevida, o ordenamento jurídico nacional dispõe, ainda, da desconsideração da personalidade jurídica, que será objeto de um capítulo mais adiante e, como veremos, deve ser pontual e específica, tendo-se em mente que o instituto se refere a um aperfeiçoamento da personalidade jurídica e não, como querem fazer crer, um exterminador da mesma.

42

3 RESPONSABILIDADE DIRETA DE SÓCIOS E ADMINISTRADORES

Foi visto no primeiro capítulo deste trabalho que a limitação da responsabilidade veio no esteio da dissociação entre o fato de deter ações de uma determinada sociedade e o fato de gerir os negócios sociais, ou seja, da cisão entre as noções de propriedade e gestão, principalmente a partir das Companhias das Índias Ocidentais.

Foi por este motivo que este trabalho optou por tratar, também, da responsabilidade dos administradores e de fazê-lo conjuntamente com a análise da responsabilidade dos sócios.

Ao contrário do que grande parte da produção jurisprudencial pode fazer crer, principalmente em uma análise perfunctória das sentenças produzidas em primeiro grau de jurisdição, que tem criado jurisprudência sem distinguir as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica das de responsabilidade direta dos sócios e/ou administradores pelas dívidas sociais, há diferenças não apenas teóricas, mas, também no tocante ao fundamento legal.

Neste capítulo, serão abordadas as principais hipóteses - em matéria tributária, previdenciária, ambiental e criminal – e dispositivos legais sobre a responsabilidade direta dos sócios e administradores pelas dívidas sociais, bem como algumas considerações serão feitas a respeito do tema, suas peculiaridades e as cautelas que devem anteceder ao uso desses importantes institutos.

3.1 RESPONSABILIDADE DOS ADMINISTRADORES E SÓCIOS: CONSIDERAÇÕES GERAIS

Antes do advento do Novo Código Civil, o tema “Responsabilidade dos Administradores” de sociedades tratava-se de um amálgama entre as regras da Lei

43

nº 6.404/76 (a Lei das Sociedades Anônimas - LSA) e entendimentos jurisprudenciais, principalmente no tocante a questões fiscais.

O vínculo contratual entre sócio e sociedade faz com que se estabeleça uma relação de participação, uma vez que ele não detém bens da sociedade, mas, por força de ter vertido parte de seu patrimônio pessoal para a formação do capital social da sociedade, ele recebe quotas representativas de frações de tal capital e, por conta dessa participação, o “sócio mantém em relação a esta [sociedade] direitos e deveres” (BORBA, 2003, p. 27).

Com relação aos sócios, ao menos no tocante à relação entre estes e a sociedade, a doutrina segue sem grandes percalços. Os pontos mais tormentosos acabam por se relacionar à relação dos administradores.

Até o advento do Código Civil de 2002, as sociedades por quotas de responsabilidade limitada (hoje apenas sociedades limitadas), eram reguladas pelo enxuto Decreto nº. 3.708/19, que não possuía normas atinentes à responsabilidade de seus administradores (outrora, sócios-gerentes) e, supletivamente, tais questões eram reguladas pela LSA, por força do próprio Decreto.

Com a promulgação do Novo Código Civil e do crescente movimento de constitucionalização do direito privado (o que resulta na atribuição de função social às empresas dentre outros novos contornos exegéticos à atividade empresarial), a questão da responsabilidade dos administradores de sociedades tornou-se bastante discutida no âmbito do direito societário, e não apenas no direito civil, como seria de se esperar, uma vez que a partir da edição do novo Código Civil:

[...] o direito societário ganha maior integração, tanto que a regulação típica da sociedade simples, como se fora o regime geral das sociedades, aplica- se subsidiariamente a todas as demais sociedades, inclusive à sociedade limitada (art. 1.053, § único) e à sociedade anônima (art. 1.089). (BORBA, 2003, p. 11).

Entretanto, considerando a relevância doutrinária dos estudos relativos às sociedades anônimas aplicáveis às limitadas dos últimos quarenta anos, muito

44

embora tenha se verificado a partir da promulgação da nova codificação civil um deslocamento teórico das sociedades anônimas para as sociedades simples, que passaram – não sem equívocos – a representar as normas gerais de direito societário, se faz importante uma análise de algumas teorias acerca da natureza jurídica da relação entre administradores de sociedades anônimas e as companhias por eles geridas, feitos sob a influência longeva da LSA.

3.1.1 As diversas teorias acerca da natureza jurídica da relação administrador- companhia

O objetivo aqui é apresentar as teorias de modo a situar o arranjo teórico adotado pelo Brasil em seu ordenamento para definir a natureza jurídica da relação objeto deste sub-tópico.

Durante muito tempo, principalmente no direito continental europeu, vigorou a noção de que a relação entre administrador e companhia teria natureza contratual, por mandato através do qual o administrador locava seus serviços de gestão.

Ora, se, pensando no sistema brasileiro, a Assembléia Geral de Acionistas se trata de órgão deliberativo que não possui poderes de gestão, como seria possível admitir a existência de um mandatário (administrador) com poderes outorgados por quem não os detém? Com mais poderes que o próprio outorgante? “Não tendo a assembléia geral os poderes de gestão e de representação, próprios dos administradores, não se pode falar em mandato, na medida em que não pode haver mandatários com mais poderes que o mandante”. (CARVALHOSA, 2003, v. 3, p. 21).

Em sentido diverso da teoria contratual acima aludida, a teoria institucionalista entende que os poderes da administração decorrem do ato jurídico instituidor da companhia (uma instituição de direito privado).

45

Para tal corrente doutrinária, a administração não possui qualquer relação jurídica com a companhia, uma vez que se trata de um órgão, ou seja, está em sua própria estrutura, faz parte da própria existência da pessoa moral.

A teoria institucionalista referida acima não pôde sustentar sua força uma vez que é patente que há, sim, uma relação entre sociedade e aqueles que ocupam cargos na administração (CARVALHOSA, 2003, v. 3, p. 21). Ou seja, independentemente do órgão fazer parte da pessoa moral, aqueles que titularizam cargos em tais órgãos não estão na estrutura da empresa e com ela estabelecem uma relação jurídica.

Ao seu turno, a teoria da fiduciary relationship, formulada pelo direito norte- americano, entende que “os administradores mantêm com a companhia e seus acionistas uma relação fiduciária” (PARENTE, 2005, p. 28).

Os administradores, de acordo com a teoria da fiduciary relationship ou da relação fiduciária, no âmbito de suas funções externas, isto é, perante terceiros, são representantes da companhia e no âmbito de suas funções internas, isto é perante acionistas e à própria companhia, são classificados como quasi-trustees, “na medida em que são responsáveis pela gestão dos bens sociais e condução dos negócios da sociedade em seu benefício” (PARENTE, 2005, p. 29).

Por fim, há a teoria organicista que, em alguns aspectos tangencia-se com a da relação fiduciária e que foi a doutrina adotada no Brasil, a exemplo do direito italiano, que também a seguiu.

De acordo com a teoria organicista ou teoria do órgão, o administrador deixa de ser considerado como um mandatário ou como parte da estrutura da companhia, como pretenderam as tradicionais formulações teóricas contratualistas e institucionalistas, para ser entendido como um órgão da sociedade ao qual a lei, o estatuto social e a assembléia geral, se aplicável, conferem direitos e obrigações.

A concepção doutrinária organicista buscou, no direito público, seus fundamentos de

46

sustentação (PARENTE, 2005, p.25), uma vez que os órgãos públicos são, de acordo com Celso Antonio Bandeira de Mello, “círculos de atribuições, os feixes individuais de poderes funcionais repartidos no interior da personalidade estatal e expressados através dos agentes neles providos” (1975 apud DI PIETRO, 1999, p. 350) ou, nas palavras de Hely Lopes Meireles, são “centros de competência instituídos para o desempenho de funções estatais através de seus agentes, cuja atuação é imputada à pessoa jurídica a que pertencem”. (MEIRELLES, 1991, p. 58).

Fazendo-se uma mudança para o âmbito do direito societário, a administração – Conselho de Administração e Diretoria – é órgão da sociedade anônima com atribuições definidas na LSA e, na medida autorizada ou orientada por esta, no Estatuto Social ou pela Assembléia Geral. Tal como no Estado, o órgão (diretoria e conselho de administração) não tem qualquer relação jurídica, mas os titulares do órgão têm, na medida em que são nomeados e destituídos, que possuem deveres e responsabilidades. (CARVALHOSA, 2003, v. 3, p.23).

Dessa forma, a sociedade anônima expressa a sua vontade por intermédio de seus órgãos, na pessoa de seus titulares, motivo pelo qual as manifestações de vontade de conselheiros e diretores são consideradas da própria companhia. (PARENTE, 2005, p. 26).

3.1.2 Os deveres dos administradores e dos sócios

Em primeiro lugar, cumpre aqui esclarecer que quando se lê deveres dos administradores estão incluídos os sócios-administradores, uma vez que os deveres dos sócios que não possuem qualquer poder de gestão em uma sociedade limitada ou dos acionistas não-controladores em uma sociedade anônima podem ser resumidos ao dever de integralizar as quotas ou ações que houverem subscrito, bem como atuar com lealdade para com a sociedade.

O dever básico e fundamental do sócio em relação à sociedade é o de integralizar suas cotas. [...]. O contrato social poderá estabelecer outros deveres para o sócio, cumprindo lembrar que, independentemente de previsão contratual, há um dever – o dever de lealdade – que, embora difuso, estará tanto mais presente quanto maior for o grau de identificação

47

do sócio com a vida social. (BORBA, 2003, p. 28-29).

Cabe, também, lembrar da responsabilidade do acionista controlador determinada no art. 117 da LSA, que traduz as hipóteses de responsabilidade direta do acionista controlador pelos danos que este causar por atos praticados com abuso de poder, resumidamente entendidos como aqueles que tenham por fim (i) a orientação da companhia para negócios estranhos ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional; (ii) a liquidação de companhia bem sucedida ou realização de operação de reorganização societária para obtenção de vantagem indevida; (iii) alteração estatutária ou adoção de políticas ou estratégias que não tenham por fim o interesse da empresa; (iv) eleição de administrador inapto moral ou tecnicamente; (v) indução de administrador ou fiscal à prática de ilícitos ou a descumprimento de dever; (vi) aprovar contas irregulares para favorecimento pessoal ou deixar de apurar denúncias de irregularidades, dentre outras condutas impróprias enumeradas no referido artigo.

O abuso de direito foi uma teoria desenvolvida para coibição de atos a principio lícitos mas que se tornam contrários ao sistema jurídico por cruzar limite que demarca o início da proteção ao direito alheio.

O exercício de um direito é acompanhado de responsabilidade; ele é abusivo quando constitui uma falta. Não é, de modo algum, necessário que esta falta seja intencional. Uma falta não intencional geral a responsabilidade de seu autor; porque seria diferente se o prejuízo é causado no exercício de um direito? O que se deve verificar é a conduta de um indivíduo prudente, sujeito às mesmas circunstâncias. Teria ele exercido seu direito da mesma maneira? No momento em que se constata uma imprudência ou uma negligência cometida pelo titular de um direito, se configura sua responsabilidade. Simples aplicação das regras gerais que regem o ato ilícito. (MAZEAUD apud ROCHA, 2004, p. 12-13).

Tal responsabilidade do acionista controlador é derivada, em realidade, de um dever contido no artigo anterior, ou seja, no artigo 116, em seu parágrafo único, que determina que o acionista controlador deve usar o poder que tem para que a companhia realize seu objeto social e cumpra sua função social, à luz dos deveres que tem perante a comunidade, trabalhadores e acionistas.

48

Art. 116. [...] Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objetivo e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.

Ao ensejo, é importante destacar que na legislação em comento, datada de 1976, ou seja precisos 12 (doze) anos antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, já havia uma referência à função social da empresa, que somente ganhou destaque nos últimos anos, mas desde a primeira edição da lei já era uma diretriz estabelecida para o acionista controlador, o que justifica a responsabilização direta acima aludida.

No que tange aos administradores, por força da gestão dos negócios sociais, os mesmos possuem deveres estabelecidos de maneira pormenorizada tanto na LSA quanto no Código Civil, embora este apresente um detalhamento menor do que o apresentado por aquela.

Os principais deveres dos administradores encontram-se listados nos artigos 153 a 157 da LSA e são, com efeito, o dever de diligência (art. 153), o dever de cumprimento das finalidades sociais (art. 154), o dever de lealdade (art. 155), o de evitar situações de conflitos de interesses próprios com os interesses sociais (art. 156) e o dever de informar (art. 157). Além desses há outros que se encontram de maneira esparsa na própria lei, a exemplo do dever de providenciar as demonstrações financeiras (art. 176) e o de convocar assembléia geral (art. 123).

Em seguida, o artigo 158 da LSA determina:

Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: I-dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II-com violação da lei ou do estatuto

Já o Código Civil, em seu artigo 1.011, dispõe o que se segue:

Art. 1011. O Administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas

49

funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios. Parágrafo 1º - Não podem ser administradores, além das pessoas impedidas por lei especial, os condenados a pena que vede, ainda que temporariamente, o acesso a cargos públicos; ou por crime falimentar, de prevaricação, peita ou suborno, concussão, peculato; ou contra a economia popular, contra o sistema financeiro nacional, contra as normas de defesa da concorrência, contra as relações de consumo, a fé pública ou a propriedade, enquanto perdurarem os efeitos da condenação.

Embora entre o artigo 158 da Lei das S/A e o artigo 1.011 do Código Civil acima transcritos haja a diferença de que este, diferentemente daquele, é desprovido de sanção, o que - em suma – os dois artigos traduzem é que o administrador deve proceder com prudência e diligência e deve cuidar dos negócios da sociedade como se seus fossem. Deve ainda ser pessoa de idoneidade comprovada, não estando, portanto, impedido de ser administrador, por nenhuma das hipóteses elencadas no §1º artigo 1.011 do NCC, que nada mais são que as hipóteses impeditivas também listadas no §1º do art. 147 da LSA.

Atendidos os requisitos acima, pode-se dizer que os administradores não são pessoalmente responsáveis pelas obrigações que contraírem em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão. Entretanto, podem vir a responder perante terceiros e perante a própria sociedade, com o patrimônio pessoal, aqueles administradores que venham a agir em desacordo com a lei ou com o contrato social, ou que venham a agir culposamente excedendo seus poderes de gestão.

Considerando a ampla gama de relações e obrigações estabelecidas pela sociedade em sua vida social, será inescapável a análise da responsabilidade dos administradores e sócios nos âmbitos do direito civil, penal, tributário, previdenciário, ambiental, muito embora o foco do trabalho não seja exatamente uma análise pormenorizada de cada um dos aspectos da responsabilidade de sócios e administradores nessas esferas, mas, sim, a correlação da aplicação do instituto da responsabilidade e o desenvolvimento econômico pátrio.

3.2 RESPONSABILIDADE DIRETA DE SÓCIOS E ADMINISTRADORES EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA E PREVIDENCIÁRIA

50

Tanto o Código Civil em seu artigo 1.052, quanto a LSA em seu artigo 1º asseveram a limitação da responsabilidade de sócios ou acionistas ao valor das quotas ou ações por eles integralizadas.

Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social. Art. 1º. A companhia ou sociedade anônima terá o capital dividido em ações, e a responsabilidade dos sócios ou acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas.

Os artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional, que tratam da responsabilidade de sócios ou de terceiros, determinam:

Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis: [...] III- Os administradores de bens de terceiros pelos tributos devidos por estes; [...] VII – Os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas. Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto: I – As pessoas referidas no artigo anterior; II – Os mandatários, prepostos e empregados; III – Os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

Ou seja, mesmo no âmbito da legislação tributária, a condição objetiva de sócio não dá azo à atribuição de responsabilidade direta e solidária para com as obrigações tributárias da pessoa jurídica, uma vez que estabelece, sim, a condição de gestor e isso por si só também não basta para a atribuição de tal responsabilidade, uma vez que é preciso que tal administrador tenha atuado com excesso de poderes ou em infração à lei, contrato social ou estatuto.

Não obstante tal requisito, não raro a Fazenda Pública busca estabelecer como infração à lei a falta de pagamento. Contudo, em sede jurisprudencial, ao menos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o entendimento consolidado de que o sócio não gerente – ou seja, não administrador – só responde no caso de dissolução irregular; o administrador, por infração à lei ou atuação com excesso de poder. Tal

51

entendimento se apresenta acertado e em consonância com boa doutrina a respeito do assunto:

[...] se o não-pagamento do tributo fosse infração à lei capaz de ensejar a responsabilidade dos diretores de uma sociedade por quotas ou de uma sociedade anônima, simplesmente inexistira qualquer limitação da responsabilidade destes com relação ao Fisco. Aliás, inexistira essa limitação mesmo em relação a terceiros [...]. Não se pode admitir que o não- pagamento do tributo configure a infração de lei capaz de ensejar tal responsabilidade, porque isto levaria a suprimir-se a regra, fazendo prevalecer, em todos os casos, a exceção. (MACHADO, 2005, p. 167-168).

O mesmo STJ vem confirmando, também, o entendimento no sentido de que o mero inadimplemento ou a simples mora não configuram infração à lei para fins de aplicação da responsabilidade de administradores ou sócios-administradores. A exemplo do acórdão nos EDv 374.139-RS:

Tributário – Embargos de divergência – Responsabilidade do sócio-gerente – Inadimplemento. 1-A ausência de recolhimento do tributo não gera, necessariamente, a responsabilidade solidária do sócio-gerente, sem que se tenha prova de que agiu com excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto da empresa. 2-Embargos de divergência rejeitados. (STJ, 1ª Seção, EDvREsp 374.139- RS, rel. Min. Castro Meira, j. 10.11.2004, v.u., DJU 28.02.2005).1

Ou seja, conforme visto acima, apesar das reiteradas tentativas de a Fazenda Pública tentar caracterizar o inadimplemento como infração de lei e, com isso, imputar responsabilidade de sócios e administradores com fulcro na mora e no inadimplemento de tributos, o STJ não tem encontrado obstáculos a confirmar seu entendimento no sentido oposto ao fazendário.

Entretanto, quando se parte para as questões das contribuições sociais – inseridas no contexto da seguridade social – apresenta-se a dificuldade de aplicação do artigo 13 da Lei nº. 8.620/93, objeto de 02 (duas) Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) em tramitação do Supremo Tribunal Federal (STF).

O referido artigo determina o que se segue:

1 Também neste sentido, o EResp. N. 100.739 – DJ-28.02.2000.

52

Art. 13. O titular de firma individual e sócios das empresas por quotas de responsabilidade limitada respondem solidariamente, com seus bens pessoais, pelos débitos juntos à Seguridade Social. Parágrafo único. Os acionistas controladores, os administradores, os gerentes e os diretores respondem solidariamente e subsidiariamente, com seus bens pessoais, quanto ao inadimplemento das obrigações para com a seguridade social, por dolo ou culpa.

Ou seja, o artigo determina a responsabilidade objetiva e solidária das pessoas nele indicadas e, no caso do parágrafo único, o inadimplemento ensejado pela mera culpa determina a solidariedade do acionista controlador.

Os problemas criados pela interpretação – e aplicação – do artigo acima transcrito ainda não foram solucionados pela jurisprudência, que ainda não firmou entendimento pacífico sobre a questão. E a ausência de entendimento claro a respeito do assunto não é irrelevante, tendo em vista o papel importantíssimo exercido pelas contribuições sociais para a política arrecadatória do País, considerando-se que no orçamento federal a receita global das contribuições excede a a um terço daquele, consoante informações da Receita Federal2.

Considerando os bens tutelados mediante a instituição de uma contribuição social, no sentido de conferir exeqüibilidade às normas programáticas, é certo que é preciso ter em mente o eventual contraponto entre as normas que prestigiam a solidariedade social e não apenas à tributação de um modo geral.

E, seguindo o raciocínio de que as normas programáticas não são despidas de eficácia e que, portanto, direciona, preordena a atuação do legislador e do aplicador da lei, ou seja, dos juízes e que o objetivo primeiro da República brasileira, firmado em sua Carta Magna, é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a liberdade individual precisa ser garantida concomitantemente com o valor da solidariedade social. São valores que devem ser compostos, coexistentes e não justapostos, impostos, excludentes de maneira recíproca.

Assim, neste trabalho, que lida com temas afeitos ao Direito Privado, para fazer uso

2 Disponível em http:. Acesso em: 08.02.2008.

53

da clássica divisão existente no Direito (entre Público e Privado), ou seja, com temas da liberdade individual, da autonomia da vontade e outros igualmente relevantes institutos, é correto afirmar que a postura liberal diante dos problemas aqui relatados em matéria tributária não pode ser imposta, pois, com isso se sobreporia à intenção constitucional de construção de uma sociedade solidária em detrimento da sociedade livre.

Em paralelo, a leitura, a produção e a interpretação das normas tributárias não podem se dar apenas a partir da perspectiva social, que justifique quaisquer meios para a finalidade do interesse geral da sociedade, porque, deste modo, a solidariedade social seria colocada em sobreposição aos igualmente prestigiados valores de liberdade individual.

Importante destacar que a mesma Constituição programática no sentido da sociedade solidária, situou a tributação como instrumento para a sociedade civil alcançar seus objetivos, retirando do Estado um poder até então tido como uma prerrogativa única e pura do Estado, para seus fins, pois se o governo tem uma função, esta determina a necessidade prestar contas, justificar seus atos, encontrar sua posição relativa no âmbito de suas relações com a sociedade civil.

O deslocamento do debate tributário de poder para função apresenta conseqüências práticas que determinam, dentre outras coisas, que o interesse arrecadatório do Estado cede quando confrontado com os objetivos fundamentais do artigo 3º da Constituição, dentre os quais está garantir o desenvolvimento nacional. Quando se fala em desenvolvimento nacional, não obstante as atuações do Estado na economia, cada vez mais tímidas, está se referindo à iniciativa privada.

A preocupação com a arrecadação também cede quando confrontada com algum dos princípios fundamentais do artigo 1º, como é o caso do valor social atribuído à livre iniciativa. As duas situações são exemplares de que não basta, nem cabe, ao Estado evocar sua competência tributária para criar ou cobrar tributos, mas é fundamental no Estado descrito pela Carta Magna, que se discutam os meios pelos quais essa competência deve ser exercida.

54

Retomando-se o problema decorrente da interpretação e aplicação do supra- mencionado artigo 13 da Lei nº. 8.620/93, os argumentos pró-solidariedade concentram-se no fato de que o artigo 3º, inciso I da Carta Magna prevê a construção de sociedade solidária e que o artigo 195 da carta prevê a contribuição a cargo de toda sociedade. Será que o fim justifica todos os meios? Até que ponto o comando do artigo 13 e de seu parágrafo único atinge o já referido valor, também fundamental, da liberdade de iniciativa?

De acordo com a teoria da imputação objetiva, para alguém ser considerado responsável por algo é preciso que seu ato objetivamente gere risco injusto materializado no resultado. E – consoante a teoria da imputação objetiva pergunta- se: que risco é gerado por alguém que se associa a outro (ou outros) para constituir uma pessoa jurídica? Ora, o risco inerente à liberdade de iniciativa é o insucesso, o fracasso no empreendimento.

Entretanto, o artigo 13 em comento acaba tendo (ou pretendendo ter) o condão de tornar a livre iniciativa algo arriscado para todos (sócios, administradores, acionistas, empregados, credores de um modo geral), menos para a seguridade social. Ou seja, o dispositivo legal acaba por impor, por sobrepor o interesse arrecadatório à própria liberdade de iniciativa, mediante a instituição de uma onerosidade excessiva, incompatível com dispositivos constitucionais, como os que se seguem:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes: [...] XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II – Propriedade privada; III – Função social da propriedade; [...] VIII – Busca do pleno emprego;

Ademais, o artigo 174 determina que o Estado possui, dentre outras, a função de

55

incentivo da atividade econômica, o que acabaria por conferir à tributação realizada do modo previsto no artigo 13 da Lei nº. 8.620/93 como instrumento de desestímulo à atividade econômica. O poder pode ser exercido positiva ou negativamente, mas a função só pode sê-lo na direção imposta pelos valores e objetivos constitucionais.

É certo que não se advoga neste trabalho o princípio da irresponsabilidade, e que onde haja fraude, simulação, abuso ou excesso de poder, autofinanciamento com recursos tributários, etc, deve haver a justa responsabilização dos agentes praticantes. O que se defende neste trabalho, em específico neste capítulo, é que se o mundo está sob a égide do risco e da responsabilidade, indevida a imposição desses fatores apenas às empresas, seus administradores e eventuais credores e isentar a seguridade social do inerente risco do fracasso já assumido por aqueles nas situações que não tenham sido evidenciados ilícitos.

Além disso, como bem asseverou Daniel Peixoto em tese aprovada no XX Congresso Brasileiro de Direito Tributário, “a responsabilidade solidária dos sócios, estabelecida pelo caput do art.13 da Lei 8.620/93, não se ajusta aos parâmetros constitucionais para a regulamentação do tema, visto que (i) a matéria [...] deve ser tratada por lei complementar”. (PEIXOTO, 2006, p.260-261)

Outro problema, ainda em sede tributária, alude à responsabilidade dos administradores pelos planejamentos tributários realizados e que tenham como resultante a lavratura de autos de infração – frise-se – procedentes.

Independentemente de uma cuidadosa análise sobre a presença de dolo ou culpa, de boa ou má-fé ou mesmo se o planejamento tributário foi utilizado como ferramenta para atuação com excesso de poder ou em infração ao contrato social ou estatuto, uma situação é inescapável: a de que um administrador pode se ver solidariamente responsável pelas infrações lavradas em auto sem sequer ter sido autor do planejamento tributário gerador de tal responsabilidade solidária, o que, de acordo com o texto do §1 do artigo 158 da LSA seria inadmissível, uma vez que o mesmo determina que o administrador não “é responsável por atos ilícitos de outros administradores”.

56

Se a própria lei faz a ressalva da ausência de imputação de responsabilidade pessoal por ato ilícito de outro administrador, o que se poderá dizer de ato que não seja ilícito?

Usualmente, os sócios e acionistas controladores acabam por ser incluídos no rol dos pessoalmente responsáveis nas situações de autuações por conta de planejamentos tributários sob a alegação de que eles lucraram com o referido planejamento. E, nesse particular, cabe trazer ao presente trabalho um aspecto curioso da atitude do acionista em relação ao planejamento tributário da sociedade.

Mihir Desai e Dhammika Dharmapala, professores de Harvard e Connecticut se propuseram a analisar em artigo se há alguma correspondência direta entre planejamento tributário e valor das ações da empresa que efetua tal planejamento, pela perspectiva do acionista (DESAI; DHARMAPALA, 2005, internet).

A conclusão a qual os pesquisadores chegaram foi no sentido de que não há correlação entre planejamento tributário e aumento do valor da ação, embora possa ter como efeito daquele o aumento do lucro passível de distribuição, gerador de dividendos. De modo que o eventual intuito lucrativo do acionista se demonstra, para fins de realização do planejamento tributário, indiferente, diante das questões de governança corporativa, competência gerencial e eficiência do empenho dos recursos destacados para a atividade empresarial, esses sim, itens determinantes da majoração (ou diminuição) do valor das ações.

3.3 RESPONSABILIDADE DIRETA DE SÓCIOS E ADMINISTRADORES EM QUESTÕES AMBIENTAIS

O pensador francês Félix Guattari defendeu que mais do que nunca “a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar ‘transversalmente’ as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referências sociais e

57

individuais” (GUATTARI, 1999, p. 25) e tal defesa veio em um contexto de uma narrativa de uma experiência científica televisionada, reportada por Guattari, que consistia na apresentação de duas bacias de vidro, uma com água do mar poluída, na qual um polvo evoluiu e estava vivo e outra contendo água do mar isenta de poluição. Ao se mudar o polvo para a bacia que continha água do mar limpa o animal morreu em poucos segundos. (GUATTARI, 1999, p. 25).

Não se pretende aqui fazer uma apologia da poluição. Pelo contrário, o que se almeja mostrar é que a natureza de hoje, não é a natureza de 50 anos atrás, de um século passado, é uma natureza que precisa estar – hoje – integrada à cultura (ou seja, à produção humana) e vice-versa ou, nas palavras de Guattari, ao falar da limitação do entendimento das questões dos riscos ambientais aos danos causados pelas indústrias:

[...] só uma articulação ético-política – a que chamo ecosofia – entre os três registros ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana) é que poderia esclarecer convenientemente tais questões. (GUATTARI, 1999, p. 8)

Ou seja, em sede de pensamento ecológico nem poderia haver um antropocentrismo que não confira ao meio ambiente tutela digna, nem biocentrismo que negue o estado atual do desenvolvimento tecnológico, característico da sociedade de risco, expressão cunhada por Ulrich Beck que propôs o risco como noção fundamental para se compreender a sociedade em que estamos.

No sentido de uma teoria social e de um diagnóstico de cultura, o conceito de sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial (BECK, 1997, p.17).

Não deve haver um centro, mas, sim uma articulação daquilo que Guattari chamou de registro ecológico do meio-ambiente, das relações sociais e da subjetividade humana.

Partindo-se das premissas integrativas acima passamos a tratar das questões da responsabilidade ambiental.

58

No já aludido artigo 170 da Constituição Federal consta a determinação de que um dos princípios a serem observados pela ordem econômica é o da defesa do meio ambiente. Ao mesmo tempo, em seu artigo 225, a Carta Magna determina:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º- Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] V- controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.

A Lei nº. 9.605 de 1998, que dispõe sobre sanções penais e administrativas a condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, determina o que se segue em seus artigos 2º, 3º e 4º:

Art. 2º Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la. Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato. Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

O também já referido art. 158 da LSA, por sua vez, determina que o administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade, mediante ato regular de gestão, respondendo, porém, por aqueles atos que praticar com excesso de poder ou em infração à lei ou ao estatuto.

Diante das remissões legais acima realizadas, fica evidente que o problema acaba por gravitar em torno da infração de lei, uma vez que, se uma empresa for autuada por algum órgão estadual ou federal por ilícitos ambientais, acaba representando uma infração de lei.

59

Entretanto, as decisões de um administrador não são tomadas de maneira isolada, muito embora, muitas das vezes, ele tenha o poder de materializar tais decisões. Contudo, quase sempre, e principalmente nas grandes corporações (usualmente as mais autuadas por ilícitos ambientais), trata-se de decisões tomadas com base em opinião de equipe técnica integrante dos quadros da empresa e que, muitas das vezes, não possuem os encargos nem as potenciais responsabilidades da administração.

E, mais uma vez, mediante tudo o quanto já foi exposto neste capítulo acerca da natureza da relação jurídica entre administrador e companhia é preciso frisar, através da lição de Pontes de Miranda que:

Quando o órgão da pessoa jurídica pratica o ato, que há de entrar no mundo jurídico como ato da pessoa jurídica, não há representação, mas presentação. O ato do órgão não entra no mundo jurídico como ato da pessoa, que é órgão, ou daquelas pessoas que compõem o órgão. Entra no mundo jurídico como ato da pessoa jurídica, porque o ato do órgão é ato seu. (MIRANDA, 1984, t. 3, p.333).

Independentemente de eventuais responsabilidades do administrador, a exemplo de decisão tomada em sentido frontalmente oposto ao recomendado pelo corpo técnico competente, que poderão ser resolvidas mediante propositura de ação pela companhia em face do administrador, a responsabilidade é da sociedade, da pessoa jurídica eventualmente poluidora.

O administrador, situado em uma Sociedade de Risco nos termos propostos por Beck, seria como um gestor de riscos, através de sua consciência reflexiva, que lhe possibilita a tomada de decisões com autonomia e responsabilidade, a partir do momento em que deve ser capaz de identificar as melhores estratégias para evitar ou minimizar riscos. Contudo, tal liberdade racional de gestão dos riscos “não se pode efetivar no plano estritamente individual. Se o risco é produzido e compartilhado socialmente, sua gestão não pode prescindir de um projeto coletivo” (CHEVITARESE e PEDRO, 2005, p. 11).

Assim, por força da presentação acima aludida quando da citação a Pontes de

60

Miranda, por força dos demais dispositivos legais acima referidos e por tudo o quanto exposto neste capítulo, o comprometimento do patrimônio pessoal dos administradores deve se dar em ação regressiva da empresa contra o mesmo, após esta ter dispendido o montante determinado em sentença e caso o administrador tenha contribuído culposa ou dolosamente para com o evento danoso ao meio ambiente.

A responsabilidade direta e objetiva seria aplicável apenas quando tal administrador tivesse, no desempenho de suas funções, praticado condutas em afronta à lei ou ao estatuto da companhia.

As considerações sobre as questões ambientais na esfera penal serão tecidas a posteriori neste capítulo, no subtópico 2.6 abaixo.

3.4 RESPONSABILIDADE DIRETA DE SÓCIOS E ADMINISTRADORES EM QUESTÕES DE CONCORRÊNCIA E DE CONSUMIDOR

3.4.1 Questões Concorrenciais

No sistema jurídico-econômico baseado na livre concorrência e na livre iniciativa, como é o sistema brasileiro por força de sua Constituição Federal, é inerente a orientação empresarial, em relação a seus concorrentes, a tentativa de obter uma fatia mais expressiva do mercado consumidor de produtos ou de serviços.

Apesar do princípio da livre iniciativa ser um tanto quanto vago, impreciso, o mesmo deve ser lido como algo destinado à proteção do regular funcionamento dos mercados e que, portanto, merece tutela tanto do ponto de vista da coletividade, que tem interesse na preservação justa de um mercado competitivo, que ofereça produtos ou serviços de melhor qualidade a preços menores, quanto dos

61

empresários que eventualmente sejam lesados por práticas anti-concorrenciais de seus concorrentes.

No ordenamento jurídico brasileiro, os ilícitos concorrenciais podem ser praticados de duas formas: mediante a prática de atos em infração à ordem econômica ou atos de concorrência desleal.

A lei antitruste brasileira – Lei nº. 8.884/94 –, também conhecida como a Lei do CADE, na esteira da proteção ao princípio da livre concorrência estabelecido na Constituição Federal, imputa, em seu artigo 20, a responsabilidade objetiva aos empresários praticantes de atos em infração à ordem econômica, independentemente de ter ou não ter conseguido (i) prejudicar – sob qualquer forma – a livre concorrência ou a livre iniciativa; (ii) dominar mercado relevante de bens ou serviços; (iii) aumentar arbitrariamente os lucros; (iv) abusar da posição dominante desfrutada no mercado.

A responsabilização objetiva no campo da livre concorrência tem por fim manter o livre mercado cujo status é constitucional, para o desenvolvimento satisfatório da economia, tutelado por meio dos artigos 20 e 21 da Lei do CADE, que sustentam a responsabilização objetiva dos agentes que incidirem nas práticas ali descritas.

É importante destacar que no próximo capítulo deste trabalho haverá nova abordagem à Lei do CADE, sob a perspectiva da desconsideração da personalidade jurídica nela indevidamente prevista.

As considerações acerca da responsabilidade criminal relativa às praticas anticoncorrenciais serão feitas, a exemplo das questões ambientais, no subtópico 2.6 abaixo.

3.4.2 Questões Consumeristas

62

Em sede de direito do consumidor se verifica aquilo que é – na maior parte das situações fáticas – uma disposição legal desarrazoada, ou seja, onde o remédio é desproporcional ao mal causado, uma vez que o artigo 28 do da Lei nº. 8.078/90 – o Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica.

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 1° (Vetado). § 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa. § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Ora, sem prejuízo da abordagem específica que dar-se-á no Capítulo III deste trabalho, que tratará do tema, o que interessa ao consumidor lesado a priori não é a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade para atingir o patrimônio do sócio, mas, sim, o ressarcimento, a reparação.

A leitura do artigo 28 dá a entender que, por exemplo, a falência enseja a desconsideração da personalidade jurídica, estabelecida como punição. Diante disso, pergunta-se: falir é crime? Há alguma presunção de má-fé daquele empresário que não foi bem sucedido em seu empreendimento? A falência sempre vem acompanhada de crime falimentar? Não é isso que diz a própria Lei de Falências tampouco o sistema no qual a mesma foi concebida.

O artigo 28 acaba por potencialmente consagrar o direito de um consumidor em detrimento de um empreendimento que congrega diversas relações sociais (emprego, contratos, etc), o que faz denotar um excessivo zelo com o crédito de uns em detrimento de direitos de outros.

63

As previsões de responsabilidade dos diretores no CDC acabam por se cingir à responsabilidade criminal dos mesmos, prevista no art. 75 e que será tratada no sub-tópico 2.6 abaixo.

As considerações sobre as questões de consumo em âmbito criminal também serão feitas no subtópico 2.6 abaixo.

3.5 RESPONSABILIDADE NO ÂMBITO DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS

A Lei nº. 6.024/76, que dispõe sobre a intervenção e liquidação extrajudicial das instituições financeiras, estabelece em seus artigos 39 e 40 o que se segue:

Art. 39 – Os administradores e membros do Conselho Fiscal de instituições financeiras responderão, a qualquer tempo, salvo prescrição extintiva, pelos atos que tiverem praticado ou omissões em que houverem incorrido. Art. 40. – Os administradores de instituições financeiras respondem solidariamente pelas obrigações por elas assumidas durante sua gestão, até que se cumpram. Parágrafo único. A responsabilidade solidária se circunscreverá ao montante dos prejuízos causados.

O primeiro artigo reproduzido acima trata da responsabilidade dos administradores perante a própria instituição financeira, em virtude dos atos ou omissões que resultem em danos ou prejuízos à instituição, independentemente de ter ou não ter atingido terceiros, por força dos deveres, função e responsabilidade dos administradores perante a instituição financeira.

Já o artigo 40 alude à responsabilidade dos administradores perante terceiros pelas obrigações assumidas em nome da instituição por meio de atos ou omissões dos administradores.

Há, na doutrina pátria, um embate acerca da responsabilidade prevista no artigo 40, sobre o fato de se tratar de responsabilidade objetiva ou subjetiva e, apesar das

64

conseqüências de o Código de Defesa do Consumidor ter incluído os contratos bancários na categoria de serviços, este trabalho afilia-se ao entendimento de que se trata de responsabilidade subjetiva.

Os teóricos que defendem se tratar de responsabilidade objetivista entendem, de maneira abreviada, que o legislador quis abarcar solidariamente todos os administradores de instituições financeiras. Os subjetivistas, entretanto, afirmam que a expressão "prejuízos causados" do parágrafo único do art. 40 significa que o legislador adotou o regime subjetivo de imputação de responsabilidade dos administradores de instituições financeiras. Além disso, afirmam que a responsabilização de maneira indistinta e generalizada de toda a diretoria seria uma anomalia jurídica no sistema.

Como o legislador não atribuir aos administradores de instituições financeiras responsabilidade com inversão do ônus de prova ou independente de culpa – nenhum dispositivo legal o estabelece expressamente –, a conclusão a se impor é a de que vige o regime de responsabilização subjetiva, do tipo clássico. Ou seja, o administrador responderá pelo prejuízo que causar à sociedade anônima de cuja administração participa sempre que descumprir dever que alei ou os estatutos lhe impuseram. (COELHO, v2, 2006, p. 268).

Suponha-se, por exemplo, um administrador que é empossado logo após a sua eleição. Não chega ele a tomar nenhuma decisão importante, ou simplesmente, apenas pratica alguns atos de gestão ordinária. Horas depois sobrevém a intervenção do Banco Central e a subseqüente liquidação, sendo apurado no exercício de sua gestão enorme prejuízo. (LUCCA, 1987, p. 37)

Deste modo, malgrado concepções doutrinárias diversas, entende-se que a aplicação da responsabilidade solidária e objetiva de todos os diretores como pretendem os objetivistas seria consagrar a injustiça, responsabilizando-se aqueles que não praticaram atos ruinosos o que, ao mesmo tempo, representa uma afronta a um dos corolários mais importantes do direito, qual seja, a tutela da boa-fé.

Contudo, após a edição do Código de Defesa do Consumidor, as discrepâncias de entendimento entre objetivistas e subjetivistas foram – equivocadamente – dissipadas pelo §2º do artigo 3º do CDC, que incluiu a atividade bancária no conceito de serviço e, portanto, dentro dos domínios do CDC e, portanto, sujeita à responsabilidade objetiva, consoante determinação do artigo 14 da referida

65

legislação.

A referência ao equívoco do encerramento da discussão acima se deve ao fato de que, conforme asseverado, é injusto atribuir responsabilidade a todos os diretores de maneira solidária, indistinta e objetiva.

É certo, também e de outro modo, que a adoção da responsabilidade subjetiva simples pode ensejar risco de promoção de afronta a um outro corolário do direito, qual seja, o da vedação do enriquecimento sem causa.

Por conta disso, as responsabilidades de cada administrador deveriam ser apuradas de maneira segregada, através da teoria da responsabilidade civil subjetiva com presunção de culpa, para fins de verificação da extensão do prejuízo causado por cada um, para, somente a partir daí, determinar a solidariedade com os que eventualmente tenham contribuído para o dano em questão.

Exemplo relativamente recente fica por conta do Banco Santos S/A, cuja falência foi decretada em 20.09.2005, pela 2ª Vara de Falências e de Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo – Foro Central Civil em 20/09/2005, processo nº 000.05.065208-73, precedida pela intervenção extrajudicial em 12.11.2004, de modo a adimplir o passivo encontrado, estando inclusive bloqueados os bens do ex- administrador Edemar Cid Ferreira e outros 22 administradores que são acusados de desvio de alguns milhões, segundo notícia publicada no sítio da Folha de S. Paulo, em 20/9/2005.4

Tal bloqueio de bens encontrou fundamento legal na responsabilidade objetiva direta dos administradores, fixada pela Lei n. 6.024/74, acima transcrita nos artigos 39 e 40 da Lei 6.024/74.

As considerações sobre a responsabilidade criminal dos administradores em relação

3 Disponível em http://www.tj.sp.gov.br Acesso 20.08.2007 4 Disponível em www.folhaonline.com.br Acesso em 20.06.2007.

66

às normas atinentes às instituições financeiras feitas, a exemplo das demais, no subtópico 2.6 abaixo.

3.6 RESPONSABILIDADE NO ÂMBITO PENAL

Ainda é tormentosa a questão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas e, embora este não seja objeto deste trabalho, se torna necessário pontuar algumas questões posto que as pessoas físicas dos administradores ou dos sócios de uma pessoa jurídica são, hoje no ordenamento jurídico brasileiro, os únicos que efetivamente são penalmente responsabilizados.

A polêmica em torno da responsabilização na esfera criminal ou não gira em torno das teorias da ficção e da realidade da pessoa jurídica, uma vez que, para o Direito Penal, o elemento volitivo é de extrema importância, logo, é preciso verificar a possibilidade de emissão de vontade por uma pessoa moral.

Os que entendem que a pessoa jurídica é uma ficção, cujas origens remontam ao Direito Romano e que teve seu aprimoramento por Savigny, rechaçam a responsabilidade criminal de pessoa jurídica, seja com base na inexistência de responsabilidade sem culpa, seja no princípio da personalidade das penas, que determina que uma pena não pode ser aplicada àquele que não seja considerado autor do tipo penal.

Igualmente, não podem ser sujeitos de ação penalmente relevante, ainda que possam sê-lo em outros ramos do ordenamento jurídico, as pessoas jurídicas. Do ponto de vista penal, a capacidade de ação, de culpabilidade e de pena exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, que não existe na pessoa jurídica, mero ente fictício ao qual o direito atribui capacidade para outros efeitos distintos do penal. (CONDE apud KIST, 1999, p. 90).

Já os seguidores da teoria da realidade, a pessoa moral não se trata de um engenho artificial, pois uma vez reunidas duas ou mais pessoas para a persecução de um objetivo social, se dá a origem de um centro de interesses que se diferem dos interesses individuais de cada sócio ou acionista isoladamente considerado.

67

Porém, quando se reconhece que os indivíduos [...] ora deliberam e atuam com uma motivação vinculada a considerações de grupo, tomando atitudes que jamais adotariam em seu universo particular, se é forçado a admitir que, psicologicamente, tais indivíduos comportam-se [...], não como sujeitos tomados em suas individualidades, razão pela qual os comportamentos devem então ser atribuídos ao próprio organismo coletivo. A partir daí, é viável pretender enquadrar a pessoa jurídica como sujeito criminal ativo [...]. (ROTHENBURG, 1995, p. 363).

Independentemente do ponto de vista adotado, se em termos efetivos a admissão de responsabilidade criminal de pessoa jurídica poderia se dar por via administrativa ou de se considerar que a “responsabilidade penal da pessoa jurídica não se apresenta inconciliável com [...] a Constituição Federal” (COSTA, 2004, p.125), em coexistência com a responsabilidade das pessoas físicas (COSTA, 2004, p.132), importante se faz a contextualização acima realizada para introduzir a questão da responsabilidade dos administradores ou sócios em sede criminal.

3.6.1 Em questões ambientais

A já aludida Lei nº. 9.605/98 determina expressamente em seu artigo 2º responsabilidade criminal dos administradores, sócios ou quem quer que concorra para a prática dos crimes ambientais ali previstos, na medida de suas respectivas culpabilidades.

Art. 2º Quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.

Assim, diante da verificação de qualquer dos tipos penais ali relacionados, a participação e a culpabilidade dos agentes na materialização dos resultados danosos ao meio ambiente serão apuradas, de modo que deverá se buscar a verificação de o ilícito ter ocorrido em benefício exclusivo da empresa ou do(s) administradores.

68

Desta forma, e como não poderia deixar de ser, a responsabilidade do administrador (ou do sócio-administrador) não se dá de forma direta, posto que depende de sua efetiva participação no evento danoso e de, quando da apuração dos fatos, se restar evidenciada sua ação em benefício próprio, em desconsideração da empresa cuja gestão está sob sua responsabilidade.

3.6.2 Em questões concorrenciais

Os artigos 15 e 16 da Lei 8884/94 determinam o alcance do referido diploma legal:

Art. 15. Esta lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividades sob o regime de monopólio legal.

Art. 16. As diversas formas de infração da ordem econômica implicam a responsabilidade da empresa e a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores, solidariamente.

Ou seja, a Lei da CADE tratou de determinar que as penalidades por ela descritas são aplicáveis não apenas às empresas infratoras, mas, também, aos seus administradores e de maneira solidária.

Contudo, o artigo 23 da mesma lei dispõe que no caso do administrador direta ou indiretamente responsável este será pessoalmente e exclusivamente apenado em um valor equivalente a uma margem de 10 a 50% da penalidade aplicada à empresa infratora, ou seja, ao se tratar de responsabilidade direta ou indireta, está se referindo à apuração da responsabilidade e do nível de participação do referido administrador, o que determina as seguintes conclusões: (i) a diretoria não é indistinta e genericamente punida; (ii) cabe análise de culpa ou dolo; e, portanto (ii) a responsabilidade não é direta na esfera criminal.

3.6.3 Em questões de consumo

69

O artigo 75 do CDC determina o que se segue:

Art. 75. Quem, de qualquer forma, concorrer para os crimes referidos neste código, incide as penas a esses cominadas na medida de sua culpabilidade, bem como o diretor, administrador ou gerente da pessoa jurídica que promover, permitir ou por qualquer modo aprovar o fornecimento, oferta, exposição à venda ou manutenção em depósito de produtos ou a oferta e prestação de serviços nas condições por ele proibidas.

Ou seja, o texto é claro no sentido de atribuir aos administradores ou a quem quer que seja que concorra para a prática dos tipos penais descritos no CDC. Convém lembrar, inclusive, que há previsão de penas privativas de liberdade àquele administrador que, por exemplo, aprovar o fornecimento ou oferta de produtos ou serviços nas condições vedadas pelo CDC, em processo penal a ser conduzido consoante ditames dos Códigos Penal e de Processo Penal, além dos dispositivos correlatos no próprio CDC, ou seja, a condenação se dá mediante apuração dos fatos, condutas volitivas, omissivas, comissivas e tudo o mais que determina a apenação ou não de um determinado réu em ação penal.

3.6.4 Em questões relativas às Instituições Financeiras

A Lei nº. 6.024/74, que trata da intervenção e liquidação das instituições financeiras, determina, em seu art. 46, que a responsabilidade de ex-administradores – e por força da interpretação sistemática com o artigo 39 já transcrito, os administradores também – poderá ser apurada tanto em ação proposta no juízo de falência ou, se não for o caso, no juízo competente, ou seja, se se tratar de questão relativa à responsabilidade criminal e esta não tiver dado azo – de maneira direta à liquidação da instituição financeira, a ação será proposta no juízo criminal competente.

Se na esfera da responsabilidade civil já foi advogado previamente que o que se aplica é a responsabilidade subjetiva, ou seja, na medida da efetiva participação do administrador (ou ex-administrador), na esfera penal, com mais razão ainda, a responsabilidade criminal merece ser atribuída (ou não) ao administrador ou ex-

70

administrador após ter sido objeto de exame em ação penal própria.

3.7 RESPONSABILIDADE NO ÂMBITO TRABALHISTA

No âmbito trabalhista, as disposições mais próximas que se tem acerca da responsabilidade de administradores são as que se seguem:

Art. 2º [...]

§ 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.

Art. 722 - Os empregadores que, individual ou coletivamente, suspenderem os trabalhos dos seus estabelecimentos, sem prévia autorização do Tribunal competente, ou que violarem, ou se recusarem a cumprir decisão proferida em dissídio coletivo, incorrerão nas seguintes penalidades: a) multa de 300 (trezentos) a 3.000 (três mil) valores-de-referência regionais; b) perda do cargo de representação profissional em cujo desempenho estiver c) suspensão, pelo prazo de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, do direito de serem eleitos para cargos de representação profissional. § 1º - Se o empregador for pessoa jurídica, as penas previstas nas alíneas b e c incidirão sobre os administradores responsáveis.

Contudo, através da ferramenta da penhora on-line e com fundamento na extensão dos efeitos da desconsideração da personalidade jurídica, objeto de 422 recursos ao TRT da 5ª região5, a justiça trabalhista tem sido pródiga em estabelecer a responsabilidade direta aos administradores, valendo-se da analogia aos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, conforme se verá no próximo capítulo, a partir de reporte doutrinário.

3.8 CONSIDERAÇÕES FINAIS DO CAPÍTULO

Ao final deste capítulo, o que se espera ter demonstrado em primeiro lugar é que o

5 Disponível em: Acesso em: 10.11.2007.

71

deslocamento da preocupação com o devedor e a caracterização de seu débito ou de seus deveres para a preocupação com o credor e seu crédito está levando o sistema a cometer algumas medidas desarrazoadas e que, inclusive, lesam outros direitos de terceiros de boa-fé.

Além disso, espera também ter se demonstrado o franco descompasso em que se encontram as normas societárias bem como a doutrina acerca das sociedades e a responsabilidade dos sócios e administradores e as normas contidas em diversos diplomas legais, o que acaba por gerar uma enorme insegurança jurídica não apenas para aqueles que pretendem empreender ou administrar uma sociedade, mas, também, para aqueles que nela trabalham, que com elas contratam e que tributam suas atividades e, em última análise, mas não menos significativa, para a sociedade de um modo em geral.

Por fim, é preciso frisar que não se busca a consagração da irresponsabilidade. A responsabilidade direta de sócios e administradores é legítima, mas deve estar adstrita a certas condições, que muitas das vezes são frontalmente desprezadas e que a lógica do sistema de que o responsável deve ter sido – de fato – responsável deve vigorar, sob pena de se gerar um dano, sob o pretexto de reparar outro.

72

4 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

4.1 ORIGEM DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Normalmente, a doutrina se divide ao tecer comentários acerca das razões que deram origem à teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou disregard of legal entity doctrine. Há os que defendem o aspecto de aprimoramento do instituto da personalidade moral e há os que argumentam que, em realidade, a teoria corresponde a uma resposta à crise da limitação da responsabilidade dos sócios, consagrada – em definitivo – na Era Industrial.

A primeira abordagem pode ser resumida pelo entendimento do jurista Fábio Ulhoa Coelho, que defende a idéia de aprimoramento da personalidade jurídica através da desconsideração da personalidade jurídica:

O objetivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine ou piercing the veil) é exatamente possibilitar a coibição da fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica, isto é, sem questionar a regra da separação de sua personalidade e patrimônio em relação aos de seus membros. Em outros termos, a teoria tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude. (COELHO, 2006, v.2, p. 34-35).

Já o entendimento de que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica veio em resposta à crise da limitação da responsabilidade pode ser sintetizado através da compreensão de Walfrido Warde Júnior:

De um lado, o desprestígio de supostas funções de incentivo à concorrência e, de outro, a notória capacidade de externalizar custos sociais (que os valores éticos jurisdicizados determinam indenizáveis) causaram o que chamamos de crise da limitação da responsabilidade. (WARDE JÚNIOR, 2007, p.163).

E conclui que “a crise da limitação da responsabilidade foi a causa do aparecimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica como técnica de imputação de responsabilidade aos sócios”. (WARDE JÚNIOR, 2007, p.338).

73

Este trabalho, não obstante os entendimentos acima, se filia à compreensão de que tais argumentos não são reciprocamente excludentes, ou seja, advoga-se aqui que o sistema - diante de determinadas situações anômalas - oferece como resposta o remédio da desconsideração da personalidade jurídica, como uma maneira de, até mesmo, preservá-la. Ao menos, na teoria.

Contudo, uma das questões que se impõe neste capítulo (e que é definitiva para algumas das conclusões deste trabalho) diz respeito à utilidade da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento brasileiro. Mais do que um olhar crítico sobre a aplicação da teoria, cumpre uma investigação breve – posto que não se trata do tema central deste trabalho – acerca da real utilidade ou da ociosidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil, para utilizarmos expressão de Marcio Guimarães Nunes (2007), em sua obra Desconstruindo a Desconsideração da Personalidade Jurídica.

4.1.1 As origens históricas da teoria da desconsideração da personalidade jurídica

A desconsideração da personalidade jurídica teve sua origem no ordenamento jurídico americano e não no sistema inglês, através do bastante referido caso Salomon & Salomon Brothers Co. e foi exatamente ao analisar a solução aplicada pelos juízes americanos que o teórico alemão Rolf Serick sistematizou, em sua tese de doutorado, no ano de 1953, as soluções aplicadas judicialmente, através da busca pelos critérios gerais ensejadores do afastamento da autonomia das pessoas jurídicas – e, consequentemente, de sua autonomia patrimonial -, formulados e adotados pelos tribunais norte-americanos.

O sistema norte-americano foi o responsável por ter identificado – de maneira original – que uma pessoa natural em um processo deveria ser demandada em uma corte própria para pessoas jurídicas, pois ali, em realidade estava uma pessoa jurídica e não uma pessoa física e, à ela, se dá o tratamento como se pessoa

74

jurídica fosse no caso Bank of Unites v. Devaux, em 1809.

No caso do sistema inglês, que muitos reputam ter sido o vestibular, o ocorrido, consoante Piero Verrucoli (apud COELHO, 2006, p.40; LAMY FILHO, 2007, p. 204- 205 e NUNES, 2007, p. 90-91) foi o seguinte: Aaron Salomon, um comerciante individual (atualmente designado como empresário) acumulou muitas dívidas e, em um dado momento, teve a idéia de, na qualidade de comerciante individual, convocar seus outros irmãos e com eles constituir uma empresa na qual Aaron Salomon era o controlador.

Aaron transferiu o seu estabelecimento, ou seja, seus ativos, para a empresa Salomon & Co. para integralizar sua participação no capital social, frustrando, evidentemente, os seus credores no contexto de sua qualidade de comerciante individual, uma vez que os bens que poderiam satisfazer os créditos em aberto passaram a constar do patrimônio da sociedade, por força da integralização.

Em primeiro grau, o juiz inglês aplicou a teoria ora em destaque, todavia, segundo grau, a Corte dos Lordes modificou a decisão, afirmando que o juiz não aplicou a lei de maneira correta, a pessoa jurídica tratava-se de uma pessoa distinta da pessoa natural. Na Inglaterra, a teoria perdeu a força, para se desenvolver no contexto do sistema norte-americano.

Rolf Serick não foi o primeiro a abordar as questões relativas ao afastamento da autonomia das pessoas morais, mas foi o primeiro a sistematizá-la e, sem dúvida, o primeiro a organizar o assunto sob a ótica do direito continental europeu, modelo ao qual se filia o Brasil e, por essas razões, sua abordagem será efetivamente considerada para fins deste trabalho.

A pesquisa engendrada por Serick o conduziu a formulação dos 4 (quatro) princípios que devem ser observados para determinação do afastamento da autonomia das pessoas morais ou para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. O primeiro deles informa:

75

Se a estrutura formal da pessoa jurídica é utilizada de maneira abusiva, o juiz poderá desprezá-la para que fracasse o resultado contrario ao Direito, para o que prescindirá da regra fundamental que estabelece uma radical separação entre a sociedade e os sócios (SERICK, 1958, p. 241).

A situação descrita pelo princípio acima transcrito, pode ser exemplificada quando se a fraude contra obrigações contraídas contratualmente, o prejuízo de terceiros de maneira fraudulenta ou a burla da legislação ocorre apenas porque pode contar com o auxílio da pessoa jurídica, para revestir as condutas eivadas de má-fé.

O segundo princípio que compõe a sistematização de Serick determina que

Não basta alegar-se que se não houver a desconsideração da personalidade jurídica não poderá lograr-se a finalidade de uma norma ou de um negócio jurídico. É que se trata da eficácia de uma regra do Direito de Sociedades de valor tão fundamental que não deve ser obstada nem de maneira indireta. (SERICK, 1958, p. 246).

O segundo princípio é o que determina que sem a presença do abuso descrito pelo primeiro princípio, não há que se falar em desconsideração da personalidade jurídica, nem mesmo para proteger a boa-fé. Ou seja, o mero não atingimento de um objetivo contratualmente posto, o mero descumprimento contratual, a mera frustração da boa-fé de terceiros ou descumprimento de lei não ensejam de per se a desconsideração da personalidade jurídica, posto que seu elemento essencial é o abuso da forma da pessoa moral. Tais fatos, decerto, terão outras repercussões mas dentre elas não está incluída a desconsideração da personalidade jurídica.

O terceiro princípio é o que determina que “as normas que se fundam em qualidades ou capacidades humanas que pertinem a valores humanos também se devem aplicar às pessoas jurídicas quando a finalidade da norma diga respeito a esta classe de pessoas” (SERICK, 1958, p.251). Tal princípio refere-se à solução de questões como nacionalidade das sociedades.

Por fim, o quarto enunciado de Serick, que determina:

76

Se a forma de pessoa jurídica é utilizada para ocultar que de fato existe identidade entre as pessoas que intervêm em determinado ato, poderá ser ela descartada quando a norma a aplicar pressuponha que a identidade ou diversidade dos sujeitos interessados não é puramente nominal, mas verdadeiramente efetiva. (SERICK, 1958, p. 256).

Não se pretende aqui dizer, de maneira indiscutível ou refratária a discussões e debates, que os princípios formulados por Rolf Serick são isentos de reformulação ou de aprimoramento, afinal o próprio Juiz Sanborn, sempre citado por ter firmado o princípio geral de acordo com o qual quando a pessoa moral fosse utilizada para fins contrários à lei (e não ter agido de maneira contrária é lei, é preciso frisar por se tratarem de coisas distintas) o Direito enxergará a pessoa jurídica como um conjunto de pessoas naturais, afirmou que cada situação precisa ser considerada pela corte em seus próprios méritos. Em outras palavras, cada caso mereceria um exame circunstanciado de seus aspectos objetivos e subjetivos (SANBORN apud LAMY FILHO, 2007, p. 203).

4.1.2 O desenvolvimento da disregard doctrine no Brasil

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi introduzida no Brasil por Rubens Requião, que a apresentou em um congresso no final da década de 60, como “superação do conflito entre as soluções éticas, que questionam a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar sempre os sócios, e as técnicas, que se apegam inflexivelmente ao primado da separação subjetiva das sociedades” (COELHO, 2006, v2, p. 37).

Naquela ocasião, Requião sustentou a aplicabilidade da teoria no ordenamento jurídico brasileiro, tendo defendido, inclusive, sua aplicação pelos juízes independentemente de previsão legal.

Entretanto, quando Requião apresentou a teoria e defendeu sua adequação ao ordenamento brasileiro e dispensou, importante frisar, a seu juízo, a edição de leis instituidoras e regulamentadoras da desconsideração da personalidade jurídica, ele

77

o fez no contexto do Código Civil de 1916, revogado desde o início da vigência da lei nº. 10.406/2002, em janeiro de 2003, cujo artigo 20 determinava a distinção entre a pessoa física dos sócios e a personalidade jurídica da sociedade. “Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros. (Revogado pela Lei 10.406/02)”

Dessa distinção – entre sócios e sociedade – decorre um dos aspectos das pessoas jurídicas mais importantes e mais polêmicos: a autonomia patrimonial.

A autonomia patrimonial implica distinção entre o patrimônio dos sócios e o patrimônio da empresa, da sociedade. O sistema existente hoje no Brasil é claro: sócio é uma pessoa, sociedade é outra, desde que regularmente arquivados o ato constitutivo e suas alterações. Essas são as conclusões retiradas da leitura dos artigos 50, 967, 998 e 1.150 do Código Civil atualmente em vigor, dentre os quais se destaca o primeiro:

Art. 50 Em caso de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Malgrado a presença dos conceitos jurídicos indeterminados no acima transcrito artigo 50e embora não haja no atual Código Civil um dispositivo com o teor correspondente ao conteúdo do artigo 20 do código revogado, caso não se tratasse de pessoas distintas, qual seria a razão de ser do artigo 50 da atual codificação estabelecer a desconsideração em casos de abuso da autonomia da sociedade? Nenhuma. O artigo 50 seria absolutamente dispensável caso não houvesse tal distinção entre a pessoa jurídica e a pessoa física do sócio. (NUNES;GRAU;FORGIONI).

Destarte, pode-se afirmar que, desde o Código Civil de 1916 o sistema brasileiro vem pautando sua evolução, no tocante às pessoas jurídicas, na autonomia destas e sua conseqüente titularidade obrigacional, processual e responsabilidade patrimonial. E o Código Civil atualmente em vigor não se desviou dessa rota e tratou de estabelecer – no artigo 50 – que situações excepcionais, nas quais o abuso da

78

forma da personalidade jurídica tenha sido verificado, dar-se-á a desconsideração da personalidade jurídica. A desnecessidade do remédio oferecido pelo artigo 50 será vista mais adiante, mas é importante destacar que o próprio dispositivo legal tratou de atribuir o caráter excepcional da medida.

Um pouco acima, foi destacado o fato de Rubens Requião ter defendido a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica sem que se fizesse necessária a edição de leis instituidoras. O que – no ver deste trabalho – é causa de grande parte das teratologias que se vê sobre a matéria no sistema brasileiro de aplicação da aludida formulação teórica.

Apenas para citarmos algumas das formas através das quais a teoria da desconsideração da personalidade jurídica se manifesta no Brasil, se tem a teoria maior e a menor, teoria direta, teoria inversa, despersonalização, etc. Contudo, a imprecisão terminológica não impediu que a disregard doctrine assumisse, no Brasil, roupagem de regime jurídico geral substantivo para várias ramificações do direito ou regime jurídico subsidiário de “todas as lacunas por onde penetram supostas injustiças”.

Como espécie de sanção própria, nessa função substantiva, portanto, a desconsideração da personalidade jurídica não poderia ser usada como instrumento para coibir simulações, fraudes, nulidades e demais descumprimentos diretos da lei, que dão ensejo a ilícitos de toda ordem, porquanto o ordenamento resguarde, para estes, diretamente, medidas sancionatórias próprias, prazos específicos de decadência e regimes jurídicos típicos. A sanção de desconsideração da separação patrimonial, na função substantiva é um conceito vinculado diretamente à casa da pessoa jurídica, com o conceito de finalidade do instrumento societário. (TÔRRES, 2005, p.47)

O princípio de subsidiariedade vem a significar que a teoria do “levantamento do véu” deva ser aplicada como última ratio, apenas quando o caso não possa ser resolvido através de outros institutos como a simulação, pela doutrina dos atos próprios, etc. (BOLDÓ RODA,1993,p.19)

A leitura dos trechos acima nos leva a crer que seja pela via da regra geral substantiva ou subsidiária, o Brasil vem pecando pelo excesso no que diz respeito à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, principalmente se considerar-se que o direito brasileiro já dispõe de um regime de responsabilização de sócios próprio. Assim lembram Walfrido Warde Junior e Ana Caroline Ceolin,

79

respectivamente:

O direito brasileiro, deve-se lembrar, dispõe de uma disciplina da responsabilidade dos sócios e, portanto, para além da teoria da desconsideração dispõe de regras precisas para imputação da responsabilidade. Muitas vezes, essa disciplina – quando aplicada – simplesmente por determinar imputação de responsabilidade, é associada à disregard doctrine. Em verdade, ambas não se confundem, quer pela técnica, que pelos fundamentos empregados.(WARDE JUNIOR,2007,p.286).

Embora tenha sido classificado por alguns doutrinadores como hipótese autorizativa da desconsideração da pessoa jurídica, o abuso do direito de limitar a responsabilidade enseja a aplicação de meio repressivo próprio: o instituto da responsabilidade pessoal e direta dos administradores disciplinado pela legislação societária brasileira.(CEOLIN,2002,p.170).

Ou seja, o Brasil vem sendo tributário a uma teoria que no mais das vezes é ociosa, desnecessária, para seu ordenamento, uma vez que se dispõe de regime jurídico de responsabilidade direta dos administradores e, além disso, dos institutos da simulação, abuso de direito, fraude à lei que uma “revisão da dogmática clássica [...] aponta para uma caminho mais seguro na aplicação de responsabilidade pessoal aos sócios e/ou administradores em virtude de atos irregulares” conforme se verá mais adiante, no capítulo 5, mas não sem antes lembrar a lição de Eros Roberto Grau e Paula Forgioni:

Cumpre, contudo, repudiarmos a açodada transposição de institutos e teorias, de um para outro direito. Transplantes jurídicos quase sempre causam rejeição quando não se tem ciência de que o direito não são somente as leis; direito é vida. Quem faz o direito no Brasil possui vantagens comparativas que hão de ser antropofagicamente exploradas: comemos de tudo, sem grandes preconceitos [...] e, num balanço malandro, absorvemos/compreendemos nossa realidade, criamos o nosso direito. (GRAU,2006,p.12).

4.2 APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO BRASIL

É provável que em seus momentos iniciais, de introdução aos doutrinadores, juízes e advogados, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica tenha causado espécie, tal era o apego ao sistema da autonomia patrimonial como dogma inquestionável e insuperável.

80

Contudo, hoje a teoria sistematizada por Rolf Serick não encontra obstáculos à sua aplicação pelos juízes brasileiros, mas isso não é motivo de celebração, tampouco significa que sua aplicação esteja sendo adequada, necessária ou mesmo razoável pelos juízes, principalmente os de primeira instância.

O que se pretende nos subtópicos deste item 3.2 é menos uma análise quantitativa das decisões prolatadas pelo Poder Judiciário brasileiro e mais uma análise qualitativa, no sentido de estabelecer a crítica ao status da aplicação da teoria pelos magistrados na atualidade, salvo raras e honrosas exceções e apresentar alternativas, tendo em vista o princípio constitucional – olvidado na grande maioria das decisões acerca do tema – da valorização da livre iniciativa, da livre concorrência e da função social da empresa e tendo em vista, também, que o deslocamento das preocupações do magistrado para com os créditos postos à sua avaliação está criando verdadeiras teratologias, com efeitos perversos para outros credores e – quem sabe até – para a macroeconomia brasileira.

4.2.1 Aplicação da teoria pela Justiça do Trabalho

A Justiça trabalhista tem sido – desafortunadamente – um campo fértil para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica e o faz, com todo o respeito aos magistrados trabalhistas, em absoluta afronta a princípios, direitos e garantias tão constitucionais quanto aqueles que alega proteger, através ativismo ora político ora ideológico ou ambos, presentes nas decisões judiciais, como se verá adiante. O status desfrutado pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica na seara trabalhista inspira fundadas preocupações, principalmente se for considerada a ausência de previsão legal da referida teoria na legislação trabalhista. Diante das críticas estabelecidas nesse sentido, argumentam os magistrados que se valem, para aplicar a desconsideração da personalidade jurídica, ou do § 2º do artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho ou de analogia com outros diplomas legais, o que é infeliz considerando-se os efeitos que podem alcançar tais decisões.

81

O artigo 2º § 2º da CLT trata-se de artigo que tenta regular a responsabilidade dos grupos de sociedades “sob o manto de uma espécie de teoria dos ‘grupos econômicos informais’”, não se relacionando à responsabilidade da pessoa física do sócio. De modo que situações destacadas como aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica “constituem na verdade outras hipóteses, sem motivar a aplicação da teoria. Assim por exemplo, ocorre em relação ao art. 2º, §2º, da Consolidação das Leis do Trabalho”.( ZUCCHI, 2004, p.164).

No tocante à analogia, têm-se as seguintes opiniões:

Mas, enquanto não sobrevier lei que autorize a ampliação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações trabalhistas, o juiz não poderá ingressar no patrimônio individual dos sócios sob pena de violação ao princípio da liberdade matriz, cuja restrição estatal somente se dá em virtude de lei. [...] inconcebível argumentar que a analogia com outros regimes jurídicos, como por exemplo, o Código Tributário Nacional e o Código de Defesa do Consumidor possa justificar a ampliação da responsabilidade dos sócios em relação aos créditos trabalhistas, haja vista que cada diploma disciplina relações jurídicas próprias e específicas, enquanto que o direito do trabalho cuida tão-somente de relações empregatícias.(NOGUEIRA,2002,p.41).

Ou como nas palavras do ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho em artigo citado por Alfredo Lamy Filho:

A migração, por falsa analogia, do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, ou do artigo 50 do Código Civil, para as execuções trabalhistas, tem provocado situações constrangedoras e inaceitáveis, como a perseguição, a apreensão e o bloqueio de bens de antigos sócios e até familiares, procuradores, em nome da necessidade de se saldar a dívida com o reclamante. (ano, p.211).

Principalmente sobre o aspecto levantado pelo último trecho acima, o que se vê na prática atualmente são decisões que desconsideram a personalidade jurídicas com vistas a atingir o patrimônio dos sócios em fase de execução – no caso, trabalhista – sem que se tenham atendidas a ampla defesa e o contraditório, princípios constitucionalmente prestigiados e consagradores do Estado Democrático de Direito.

Não por outro motivo, um pouco acima foi referida a afronta a princípios constitucionais por parte daqueles magistrados que aplicam de maneira pouco (ou

82

nada) criteriosa a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em suas decisões, já que, assim os efeitos da coisa julgada alcançam um terceiro estranho à lide.

Sim, é preciso frisar, por maior que seja a resistência encontrada. O sócio que teve seu patrimônio atingido por uma decisão judicial, no âmbito de processo em fase de execução, o qual não compôs o pólo passivo da demanda e, portanto, não pode exercer a ampla defesa e o contraditório é terceiro estranho àquela relação processual.

Até mesmo o próprio Tribunal Superior do Trabalho já havia reconhecido a distinção acima afirmada através do enunciado 205 lastimavelmente revogado, cujo conteúdo é in verbis:

Enunciado 205-TST: O responsável solidário, integrante do grupo econômico que não participou da relação processual como reclamado e que, portanto, não consta no título executivo judicial como devedor, não pode ser sujeito passivo na execução.

Entretanto, se o Enunciado 205 foi revogado pelo TST, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou a distinção entre sociedade e sócio no tocante à execução deste por dívidas daquela, conforme abaixo:

Nas hipóteses de execuções fiscais ajuizadas contra a empresa, em que não há discussão acerca da desconsideração de sua personalidade jurídica, não há possibilidade de se atingir o patrimônio dos sócios. Quem figura no pólo passivo da demanda não são os sócios, mas a sociedade – pessoa jurídica de direito privado.(BRASIL,2004).

Como agravante a essas situações de inclusão do sócio que não compôs o pólo passivo da ação principal no pólo passivo da execução, por vezes os magistrados desconsideram a personalidade jurídica ex officio, ou seja, sem que a desconsideração tenha sido sequer pleiteada pelo autor da demanda.

O poder geral de cautela, normalmente invocado como um salvo-conduto para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ex officio,

83

conforme entendimento esposado por Ana Caroline Ceolin:

[...] é uma medida processual de caráter excepcional em relação ao princípio da demanda, segundo o qual cabe às partes alegarem os fatos, formularem seus pedidos, enfim, suscitarem as questões que se submeterão ao crivo do Poder Jurisdicional [...]. Enquanto exceção, referida medida (aplicação de ofício de normas legais pelos juízes) deve estar prevista expressamente na lei.(CEOLIN , ano, p.159)

O poder cautelar geral está previsto no art. 798 do Código de Processo Civil e se trata de uma autorização concedida ao magistrado para atuar – para além das medidas cautelares típicas – de maneira a conceder medidas cautelares atípicas quando as usuais revelam-se impróprias ou inadequadas para garantir a efetividade do processo principal:

Art. 798. Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação.

Como afirmado pelo processualista Alexandre Câmara (2000,p.41), “o instituto é considerado necessário em todos os quadrantes do planeta, e decorre da óbvia impossibilidade de previsão abstrata de todas as situações de perigo para o processo que podem vir a ocorrer em concreto” mas, ao mesmo turno, trata-se de poder com limitações que, nem sempre, são observadas.

Como limitações ao poder geral de cautela podem-se estabelecer (1) a ausência de discricionariedade de tal poder, o que implica presença de requisitos de concessão de medida cautelar atípica e adequação aos pedidos postulados pelo autor da demanda; (2) a necessidade da medida cautelar atípica; (3) observância do aspecto de que a medida cautelar atípica trata-se de tutela jurisdicional não satisfativa, ou seja, o juiz não pode, por força dessa natureza, conceder medidas “capazes de satisfazer o direito do demandante”, sem com isso extrapolar os limites da tutela cautelar.( CÂMARA,2000,p.46).

Outra argumentação para a desconsideração ex officio tem sido a interpretação do devido processo legal à luz dos artigos 592, II e 596 do Código de Processo Civil, sendo o primeiro aquele que estabelece a sujeição dos sócios, nos termos da lei, à

84

execução de bens. Já o artigo 596 estabelece o que se segue:

Art. 596. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade.

Nesse sentido, para filiar-se ao entendimento de que a complementação – em sede de interpretação constitucional (status desfrutado pelo princípio do devido processo legal) – da Constituição pela lei infraconstitucional apenas quando se está diante de formulações gerais previstas na própria Carta Magna, reproduz-se, abaixo, a lição de Luis Roberto Barroso:

Simétrica à interpretação da lei conforme a Constituição situa-se a interpretação da Constituição conforme a lei. Quando o Judiciário, desprezando outras possibilidades interpretativas, prestigia a que fora escolhida pelo legislador, está, em verdade, endossando a interpretação da Constituição conforme a lei. Mas tal deferência há de cessar onde não seja possível transigir com a vontade cristalina emanada do Texto Constitucional.(2004, p.187).

E não se pode olvidar: a Constituição emitiu a aludida “vontade cristalina” ao estipular, em seu art. 5º, inciso LIII, que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e não cabe à Justiça do Trabalho, no intuito de buscar o estabelecimento da “justiça”, acabar por mais do que cometer uma injustiça que poderá, até mesmo, representar a cessação de uma das unidades motoras da economia, mas, colocar em xeque um sistema garantias constitucionais.

É preciso harmonizar o princípio dos direitos sociais do trabalho com os direitos da livre iniciativa. Mais do que preciso, é imperioso, conforme dizer de Marcio Guimarães Nunes, sob pena de fatais resultados para a economia. Afinal, não é possível encontrar razoabilidade – em sede de regime de responsabilidade – no fato das empresas serem submetidas a uma dualidade confusa e pouco criteriosa que vem se estabelecendo através das decisões judiciais:

Ora, não se pode conceber essa dualidade de responsabilidade: uma limitada, para fins de direito comum, e outra subsidiária, em face das

85

obrigações trabalhistas. A limitação da responsabilidade, prevista em lei, não exclui os créditos laboristas, por mais privilegiados que seja. (CEOLIN, 2002, p. 93).

4.2.2 Aplicação da teoria nas questões de Direito do Consumidor

Outra seara bastante delicada no que se refere à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é a do direito do consumidor, onde se pode verificar, mais uma vez a rota de colisão da aplicação da teoria com garantias constitucionais e que está produzindo distorções patológicas no sistema, uma vez que além do devido processo legal, assegurados pelo contraditório e pela ampla defesa, garantias constitucionais expressas que vedam que a condenação ultrapasse a pessoa do condenado.

A preocupação gerada pela aplicação da teoria em matéria consumerista por conta da abrangência das relações de consumo, que representam quase tudo que se constitui em torno de compra de produtos ou de serviços, possui causas bastante semelhantes às referidas no tópico imediatamente anterior a este, porém com tintas diferentes e, infelizmente, adicionais.

O artigo 28 da Lei 8.078/90 – o Código de Defesa do Consumidor (CDC) – determina:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 1° (Vetado). § 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código. § 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa. § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

86

Pela leitura do artigo 28 uma constatação se faz quase que imperiosa, qual seja, que diante de uma demanda consumerista, a exemplo do que ocorre também quando do exame de reclamações trabalhistas, o pressuposto é o da má-fé do empresariado, da conduta fraudulenta, da intenção de lesar credores e consumidores, o que, evidentemente, avilta aos já invocados princípios do devido processo legal e da ampla defesa. E mais: ainda que estes sejam formalmente garantidos no curso do processo, na prática parte-se da premissa da delinqüência presumida de sócios, acionistas e administradores das empresas com as quais se estabelecem relações de consumo.

A afirmativa acima não exagerada. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, cujos princípios para aplicação foram descritos no item 3.1.1 acima em nenhum momento fala do mero inadimplemento da obrigação, insuficiência patrimonial, falência e/ou estado de insolvência como ensejadores de sua aplicação. A base da aplicação é a fraude e esta não pode ser presumida:

Entre duas exegeses verossímeis, prefere-se a que se aproxima da regra geral fixada em norma positiva. Na dúvida, presume-se que as partes quiseram conformar-se com a lei.( MAXIMILIANO,1998,p.147)

Não se raciocina por analogia a respeito de uma intenção [...](1998,p.148)

Em um passado não muito distante, mais precisamente no início do ano de 1999 o dólar, que em 04 de janeiro de 1999 estava cotado a R$ 1,20780 chegou ao dia 29 de janeiro do mesmo ano a 1,98320, na esteira do abandono da política de bandas cambiais pelo Banco Central, que resultou na repentina maxidesvalorização do Real. O objetivo deste trabalho não é tratar da política cambial do governo da época e pode-se dizer que o dólar chegou bem próximo dos R$ 4,00, mas o aumento acima descrito em um único mês foi o equivalente a 64,2%(2008,p.1).

Considerando-se que o pagamento dos tributos incidentes se dá mediante conversão do dólar de acordo com a cotação no momento do desembaraço aduaneiro, não é difícil supor que vários carregamentos foram deixados na Receita Federal por ser menos oneroso o abandono da mercadoria comparado ao pagamento dos tributos no momento do desembaraço aduaneiro.

87

Em um cenário hipotético, eventuais compra e vendas não foram honradas com seus consumidores, falências podem ter sido requeridas, mas pergunta-se: teria havido fraude em um caso situado no contexto acima? Que justiça poderia ter sido feita através da desconsideração da personalidade jurídica? A interpretação corrente de que verificadas as bastante abrangentes hipóteses do caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor parte-se para a desconsideração da personalidade jurídica parece não deixar muitas dúvidas, uma vez que questões como abuso de direito, desvios e má-gestão acabam sendo deixadas de lado sempre sob a justificativa da salvaguarda dos interesses dos consumidores.

Se, ao menos em princípio, não há dúvidas de que diante de uma empresa o consumidor é hipossuficiente, vulnerável essa qualidade não coloca o mesmo em posição confortável para que em seu nome se cometam abusos, apesar dos entendimentos em sentido contrário, como o expresso por Márcio André Medeiros Moraes:

Todos esses dispositivos analisados supra evidenciam o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo; logo quando o legislador consumerista cria todo um aparato legal para proteger o consumidor, tratando desigualmente os desiguais, não está desrespeitando o princípio constitucional da isonomia. Desta forma, entendemos que esses princípios se completam e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica prevista no bojo dessa lei é um reflexo desses princípios (vulnerabilidade e isonomia), dado a amplitude que foi atribuída a essa teoria dentro desse novo microssistema. ( MORAES,2002,p.114).

Em que pese às considerações acima reproduzidas, repisa-se que a despeito de se tratar os desiguais na medida em que se desigualam, não se pode abrir mão de todo um sistema de garantias constitucionais para dar abrigo a uma pretensão e negar proteções mínimas ao réu.

É preciso que se tenha em mente que o princípio da defesa do consumidor não é um salvo-conduto teórico, tampouco um subterfúgio libertador para iniciativas ativistas no âmbito dos direitos sociais, motivo pelo qual deve-se ter redobrada atenção com as visões facilitadoras que decorrem do manejo do citado princípio a fim de evitar abusos tanto no campo legislativo quanto no judicial. (NUNES,2002, p.45).

Essa ampla discricionariedade judicial – quase sempre justificada com base na (má)

88

ponderação de interesses – recebeu críticas de Ana Paula de Barcellos e Luis Roberto Barroso em artigo conjunto:

No estágio atual, a ponderação ainda atingiu o padrão desejável de objetividade, dando lugar a ampla discricionariedade judicial. Tal discricionariedade [...] deverá ficar limitada às hipóteses em que o sistema jurídico não tenha sido capaz de oferecer a solução em tese, elegendo um valor ou interesse que deva prevalecer. A existência da ponderação não é um convite para o exercício indiscriminado de ativismo judicial. BARCELOS;BARROSO,2007,p.1).

Os abusos nas relações de consumo existem e devem ser coibidos, mas em nome desses abusos o Estado não pode, através do Legislativo e do Judiciário, perpetrar outros abusos, principalmente se forem considerados os mecanismos existentes, postos à disposição no próprio ordenamento brasileiro, como se verá adiante, no item 3.3.

O sistema dual de responsabilidade, também presente em sede de proteção ao consumidor, a ampla discricionariedade judicial sobre o tema revelam, de maneira semelhante ao que ocorre em esfera trabalhista, a necessidade de harmonização entre os princípios da defesa do consumidor e o da livre iniciativa, sob pena de resultados sociais e econômicos funestos.(NUNES,2002,p.87).

Decisões do STJ como as do Shopping Osasco6 em que a orientação vencedora é a de que se aplica a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, que objetiva responsabilidade sem considerar as questões subjetivas que a aplicação da teoria maior requer representam um perigoso atalho tomado pelo Judiciário rumo à “justiça”.

É uma solução, com a devida vênia, simplista, pois generaliza a aplicação da teoria, desvinculando-a da responsabilidade individual dos agentes envolvidos, a qual possui fundamentos distintos e autônomos entre si, motivo pelo qual é uma exigência constitucional a individualização das responsabilidades, sobretudo para fins punitivos, mais ainda no campo da responsabilidade objetiva [...] (NUNES,2002, p.214).

6 Em 1996 ocorreu em Osasco/SP o desabamento parcial do Osasco Plaza Shopping no qual 40 pessoas morreram e aproximadamente 300 ficaram feridas. A ação civil pública movida foi julgada procedente para condenar solidariamente os réus, incluindo administradores. A orientação de aplicabilidade da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica se deu nos autos do Recurso Especial nº 279.273. A crítica que se faz é que o ordenamento dispõe de outros mecanismos que não implicam banalização do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

89

Ou, conforme entendimento de Tânia Negri Paschoal(1984, p.155), “é preciso evitar que a busca da justiça no caso concreto se dê em detrimento da certeza do direito”.

4.2.3 Em Questões Tributárias

Em sede de Direito Tributário, há uma cisão na doutrina acerca da aplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. De um lado situam-se aqueles que admitem a aplicação da referida teoria às questões tributárias mediante lei especial que preveja ou norma geral positivada que autorize a desconsideração nas relações jurídicas tributárias.

À essa corrente filiam-se, dentre outros, Heleno Taveira Tôrres(2003), José Lamartine Correa de Oliveira (1979), Luciano Amaro(2005) e Osmar Vieira da Silva(2002), que entendem pela necessidade de existência de norma positiva para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ao direito tributário uma vez que este “ramo do direito é regido pelo princípio da estrita legalidade, e há, na lei, disposições expressas a respeito da responsabilidade dos sócios”.

O direito tributário tem como princípio fundamental o da legalidade, de tal modo que a desconsideração somente seria admitida nos caso em que a lei tributária expressamente a autorizasse, ao contrário da aplicação da teoria em outros ramos do direito. (SILVA,2002,p.137).

Ou, como de maneira bastante precisa asseverou Heleno Taveira Tôrres:

A desconsideração da personalidade jurídica, para os fins de aplicação da legislação tributária, poderá ser praticada tanto quando se esteja em presença de leis especiais quanto na hipótese de aplicação de uma regra geral que a autorize, à luz de determinados pressupostos, por esse motivo, em lei específica que a previna, quanto ao cabimento de desconsideração em certo caso concreto, ou regra geral seus demais elementos suficientes para isolar a conduta elisiva, nenhuma desconsideração poderá ser admitida como instrumento válido para imputar aos sócios efeitos que se deveriam atribuir diretamente à pessoa jurídica. ( TÔRRES,2003,p.470).

Ainda no tocante à doutrina que entende pela não-aplicabilidade da

90

desconsideração da personalidade jurídica ao direito tributário, restam os argumentos de que esta, por força do artigo 50 do Código Civil está prevista em lei ordinária, ao passo que as normas tributárias dependem de positivação em lei complementar (MELO, 2004).

Por outro lado, há aqueles teóricos que se filiam à concepção de que a desconsideração da personalidade jurídica aplicável ao direito tributário independe de lei específica que a preveja, bastando, para tanto, a fixação jurisprudencial da aplicabilidade da teoria.

A esse entendimento filiam-se Sacha Calmon Navarro Coelho e André Mendes Moreira (2004), Ricardo Lobo Torres(2004) e José Augusto Delgado (2005).

Por fim, cumpre-nos anotar que o NCC trouxe nova disposição que evita fraudes no meio societário e permite, para tanto, a punição do administrador, com a desconsideração da personalidade jurídica da empresa e a persecução dos bens pessoais do sócio, gerente ou diretor que de algum modo se locupletou ilicitamente às custas da sociedade. (COÊLHO, 2004).

José Augusto Delgado (2005, p.228) chegou a tecer considerações no sentido de que a “personalidade da pessoa jurídica não goza do privilégio de ser regida por um direito absoluto. Em conseqüência, ela encontra-se sujeita às teorias da fraude contra credores e do abuso do direito” e é preciso assentir com essa afirmativa, mas não no sentido de consubstanciar a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica às relações jurídicas tributárias, mas, sim, para reforçar que o ordenamento brasileiro dispõe dessas figuras – dolo, fraude, simulação, abuso do direito – que, se aplicadas, tornam a teoria da desconsideração da personalidade jurídica ociosa no contexto jurídico brasileiro, como se verá no item 3.3 deste capítulo.

Ademais, a exemplo do que já foi referido no tocante às questões trabalhistas e consumeristas, é desconectado assumir-se que, no Brasil, as sociedades dispõem de um regime de responsabilidade limitada para algumas questões e para fins tributários, trabalhistas e consumeristas vige sistema de responsabilidade ilimitada, ou seja, à exceção de poucos contratos, as demais dimensões assumidas pela empresa (como empregadora, fornecedora de bens ou serviços e como contribuinte)

91

sujeitam sócios e administradores a um regime de responsabilidade ilimitada, dissonância essa combatida por este trabalho.

4.2.4 Em Questões Concorrenciais

O artigo 18 da Lei 8.884/94, também conhecida como Lei do CADE fixa – a exemplo do já estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor – o que se segue:

Art. 18. A personalidade do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Como se vê e como Fábio Ulhoa Coelho bem asseverou o legislador da lei Antitruste brasileira “acabou incorrendo nos mesmos desacertos”, contudo o mesmo teórico entende que “apesar dos equívocos na redação dos dispositivos legais, a melhor interpretação deste é a que prestigia a formulação maior da teoria da desconsideração”.(COELHO,2006,p.53).

Não poderia ser mais acertada a recomendação exegética de Fábio Ulhoa Coelho, em que pese a consideração de que o próprio direito interno brasileiro já dispõe – prescindindo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica – de ferramentas bastante apropriadas tanto na esfera dos atos e negócios jurídicos quanto no próprio regime de responsabilidade de administradores e sócios.

Para não se correr o risco da repetição demasiada, este tópico limitar-se-á a remeter ao que já foi abordado nos tópicos anteriores deste mesmo capítulo e reforçar: é preciso que haja harmonia entre os diplomas legais brasileiros no tocante ao regime da responsabilidade de sócios e administradores, sob severos riscos sociais e econômicos advindos da exacerbação da responsabilidade desses.

92

4.2.5 Em Questões Ambientais

O artigo 4º da Lei 9.605/98, que dispõe sobre as condutas lesivas ao meio ambiente – também a exemplo do Código de Defesa do Consumidor e da Lei do CADE – fixou:

Art. 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio-ambiente.

O único motivo para elogios nesse caso, como bem asseverou também Fábio Ulhoa Coelho(2006,p.53), é que o legislador não confundiu “desconsideração com outras figuras do direito societário [...] Mas não se pode, também, interpretar a norma em descompasso com a teoria maior” Aqui – em sede ambiental – ainda reside um agravante, posto que se trata de responsabilidade objetiva da empresa condenada por práticas lesivas ao meio ambiente, ou seja, com base no acima transcrito artigo poderá haver um sócio ou acionista considerado responsável por um ato que pode sequer ter sabido de sua prática e – se fosse o caso – tentar impedir sua materialização.

4.3 CRITICAS À APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

A aplicação da teoria da desconsideração no direito brasileiro tem se demonstrado um terreno fértil para equívocos que foram elencados no trabalho de Ana Caroline Ceolin, a saber:

Com a sistematização dos arestos pátrios coletados, foi possível identificar os seguintes abusos: a) a presunção da fraude; b) a inversão do ônus probatório; c) a ausência de prévio acertamento da responsabilidade do sócio; d) a insuficiência de bens sociais como critério para a desconsideração; e) a restrição do princípio da autonomia da pessoa jurídica às obrigações negociáveis; f) a aplicação da teoria da desconsideração na generalidade dos casos de dissolução irregular da sociedade; g) o uso da desconsideração nos casos de fraude a credores ou a execução; e h) a possibilidade do juiz aplicar a teoria da desconsideração ex officio.(CEOLIN, 2002,p.57).

93

Em realidade, pode-se dizer que os equívocos da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica começam pela própria concepção por parte dos legisladores e dos magistrados da necessidade dessa importação doutrinária.

No trabalho de Márcio Tadeu Guimarães Nunes (2002, p.47-48) o mesmo defende que o direito brasileiro já dispõe de institutos que oferecem resposta à crise da pessoa jurídica, evidenciada pela questão da responsabilidade pelas obrigações sociais:

[...] revelando (o trabalho) que o sistema dá respostas (ideais talvez não sejam, como diversos autores também atestam no Direito Comparado) para o fenômeno da crise da pessoa jurídica através do uso adequado dos seguintes institutos:

(i) abuso de direito (aí também entendido em sua variável referente ao direito societário, ou seja, abuso do poder de controle); (ii) simulação; (iii) negócio jurídico indireto com fins ilícitos; (iv) fraude à lei; (v) fraude contra credores; (vi) fraude à execução; (vii) teoria da aparência; (viii) teoria ultra vires; (ix) relação obrigacional (sobretudo pelo emprego do atributo da garantia que se faz presente, embora pouco percebido quanto ao tema); (x) capital social (numa renovada idéia do seu alcance, revista em função da garantia dos credores); (xi) função social do contrato e as exigências que daí decorrem, sobretudo a tutela externa do crédito; (xii) boa-fé objetiva, seus deveres anexos e demais cláusulas gerais trazidas pelo Novo Código Civil, tudo sem prejuízo das diversas hipóteses previstas em lei, por meio das quais os sócios respondem quando violam norma legal pré-existente e/ou contrato/estatuto social.

Este trabalho segue no mesmo sentido do quanto advogado por Marcio T. Guimarães Nunes e defende que o ordenamento brasileiro prescinde senão em todos os casos, pelo menos na maior parte deles, da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, sem desmerecer a mesma como formulação teórica, mas por entender que se trata – lembrando das palavras de Paula Forgioni e Eros Roberto Grau (2006,p.12) de um “transplante jurídico” que pode trazer sérios danos à ordem econômica brasileira e, por conseguinte, a ordem social, sob a ótica da segurança jurídica, da previsibilidade das decisões judiciais e

94

das garantias constitucionais expressas relativas ao devido processo legal, contraditório e à ampla defesa.

Os artigos 167 e 187 tratam da simulação, do negócio jurídico indireto e do abuso de direito:

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou se válido for na substância e na forma.

§ 1º. Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I. aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem ou transmitem;

[...]

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exerce-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costmes.

Ao socorro de eventuais críticas às dificuldades probatórias da simulação, por exemplo, e por conta de tal dificuldade optar, por leviandade ou simplicidade, pela aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, Fábio Konder Comparato(1983, p.258) expõe a admissibilidade de se comprovar a simulação “no curso do processo por meio de indícios e circunstâncias” diferentemente do que seria admissível no processo penal.

Com essa postura displicente no tocante às ferramentas já postas à disposição dos operadores do direito, a objetivação das responsabilidades assume proporções que podem chegar à despersonificação societária por operação do artigo 50 do Código Civil, com efeitos ainda mais gravosos do que a desconsideração:

A doutrina diferencia desconsideração de despersonificação. A primeira, conforme já mencionado, visa desconsiderar apenas no caso concreto, o instituto da pessoa jurídica, enquanto a segunda tem por finalidade anular a personalidade jurídica, por lhe faltar condições de existência, como em casos de invalidade do contrato social ou dissolução da sociedade. (AMORIM, 1999,p.56).

Assim, por força do caput do art. 167 do Código Civil, se mantém o negócio que se

95

pretendeu dissimular e imputam-se as conseqüências aplicáveis através “de fórmula mais consentânea com os princípios constitucionais, sobretudo o do devido processo legal e o da preservação da atividade empresarial regular”. Ademais, e por força do exame dessas questões, apenas os sócios e/ou administradores efetivamente envolvidos com a simulação, fraude ou abuso do direito seriam passíveis de sofrer a devida punição estatal o que a objetivação das responsabilidades, trazida no bojo da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, acaba por prejudicar, promovendo, mediante ativismo legislativo e judiciário, injustiças sob o pretexto de trazer justiça a determinadas situações.

A aplicação da teoria da aparência como alternativa à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica revela-se, também, mais consentânea com os valores da livre iniciativa e desenvolvimento dos mercados – sem deixar de assistir àqueles que venham a ser prejudicadas por conduta fraudulenta de um sócio.

Assim entendem Leandro Martins Zanitelli(2002), Marcio Guimarães Nunes (2002) e Ana Caroline Ceolin (2002, p.153) que, por sua vez, afirma:

É incorreto aplicar a teoria da desconsideração da pessoa jurídica aos casos de transferência de bens pessoais dos sócios para a sociedade. Não é preciso desconsiderar a personalidade do ente social para se obter a restituição dos bens fraudulentamente alienados [...] Deve-se atacar, através de ação pauliana, o ato negocial que possibilitou a sua transferência e não a sociedade.

Alexandre Ferreira de Assumpção Alves enxerga, com razão, distinção entre a teoria da aparência – e dos atos ultra vires – e a da desconsideração, como autônomas e não como uma (a da aparência) sendo complementar da outra (da desconsideração):

Diferem, outrossim, os institutos em tela da disregard por referi-se esta a ilícitos particulares praticados pelos sócios e a eles somente atinge, enquanto as teorias da aparência e dos atos ultra vires dizem respeito ao objeto do contrato diante de terceiro de boa-fé ou ao não cumprimento do objetivo descrito no ato constitutivo da pessoa jurídica.

96

Todas as teorias, entretanto, não afetam a validade dos atos sociais e, na prática, deverão ser aplicadas após cuidados exame dos fatos e das provas coligidas, já que os resultados alcançados poderão ser semelhantes, mas a utilização do instituto errado poderá levar o autor da demanda à sucumbência pela má escolha da solução jurídica a ser aplicada.(2003,p.134)

Assim, como se vê, uma análise mais detida de institutos clássicos já disponíveis no ordenamento brasileiro se revela mais apropriada à atribuição de responsabilidade pessoal de sócios e administradores, possibilitando uma maior harmonia dos valores sociais do trabalho, da proteção ao consumidor com os princípios – igualmente prestigiados pela Constituição brasileira – do devido processo legal e da livre iniciativa. Mesmo entendimento esposado por Marcio Guimarães Nunes:

Logo, a revisão da dogmática clássica [...] aponta para um caminho mais seguro na aplicação de responsabilidade pessoal aos sócios e/ou administradores em virtude de atos irregulares, sendo certo que o sistema ainda dispõe de inúmeras outras normas específicas que chegam ao mesmo resultado prático que a teoria da desconsideração apresenta, sem o desserviço o que método de aplicação revela quando sacrifica algumas garantias constitucionais em prol de uma suposta ‘celeridade punitiva’.(ano,p.425).

Um outro assunto que mereceria atenção redobrada é o que diz respeito ao capital social das empresas. O Brasil não possui uma legislação que fixe um valor mínimo de aporte para fins de formação do capital social, de modo que, em razão dessa brecha normativa, observa-se com freqüência, na prática (à exceção das companhias de capital aberto ou das sociedades anônimas de capital fechado, porém incentivadas), uma das duas situações: (a) um capital social de baixíssimo valor; ou (b) um capital social robusto mas absolutamente irreal, posto que os sócios não verteram tais valores de seus patrimônios pessoais para a formação do capital social da sociedade.

A despeito da prevalência fática do patrimônio social corresponder efetivamente à totalidade de ativos e passivos da sociedade e, por isso mesmo, ser o que realmente importa para fins de execução, razão pela os credores de certa sociedade buscarem o patrimônio no intuito de ver adimplidos os seus créditos não se pode negar que, em face dos princípios comunicantes do capital social, este possui uma natureza de

97

garantia a credores. Ao menos de garantia mínima. Se assim não fosse, não haveria razão para determinar a responsabilidade solidária dos sócios pela superavaliação de bens utilizados para integralização do capital social, tampouco de se estabelecer como requisito para eficácia da decisão societária de redução do capital social que haja publicação da deliberação em jornal de grande circulação para permitir que credores se manifestem contrariamente a tal redução.

Entretanto, não figura dentre os requisitos formais a serem cumpridos perante as juntas comerciais a evidência de aporte de tais valores, ainda que dentro de um prazo pré-estabelecido após a constituição da sociedade. Tampouco há qualquer tipo de fiscalização nesse sentido, de modo que o terreno torna-se bastante propício para aqueles que querem lesar credores, possuindo ou não um patrimônio pessoal significativo, o que poderia, ao menos ser efetuado nas empresas que se mantêm ativas perante as juntas comerciais, ou seja, aquelas que não ficam sem arquivar atos por período superior a 10 (dez) anos, mediante exigência de comprovação de que o princípio da intangibilidade do capital social não foi violado.

Outra crítica bastante grave no tocante à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (em detrimento dos institutos já positivados no direito interno) refere-se ao fato de a teoria em questão ser punitiva de atos ilícitos e implicar em atribuição de responsabilidade sem a devida reserva legal, desde os anos 60 no Brasil e que apesar de ter sido previsto em diversos diplomas legais – todos já referidos neste trabalho – em nenhum se cuida de como tal desconsideração será procedida, quais serão seus requisitos formais, processuais e materiais, estendendo-se, inclusive, “a aplicação dessa teoria ao administrador, o qual passa, através dessa visão singela da teoria em questão, a ser um verdadeiro garante das obrigações sociais”, ainda que o mesmo não tenha qualquer participação societária na sociedade cuja personalidade seja desconsiderada.

Tal passividade diante desses fatos levou Luis Roberto Barroso a afirmar ser “geralmente aceito que todo e qualquer ato que interfira com o direito de liberdade ou de propriedade das pessoas carece de lei prévia que o autorize. Vale dizer: somente a lei pode criar deveres e obrigações”.(1997,p.2005).

98

Por fim, soma-se à aplicação da teoria da desconsideração sem a prévia reserva legal, considerando-se os impactos supressores de direitos e de patrimônio, os trâmites processuais que não são observados quando da prolação de uma decisão judicial que decida pela desconsideração da personalidade jurídica.

Não raro, como já comentado pela doutrina e periódicos as decisões sobre desconsideração da personalidade jurídica com vistas a atingir o patrimônio pessoal dos sócios e administradores que não figuraram no processo de conhecimento, já na fase de execução e, por mais que se vislumbre como alternativa a Impugnação (Embargos à Execução) ou Embargos de Terceiro que, cabe lembrar, não têm, via de regra, efeito suspensivo e possuem um rol bastante reduzido de matérias passíveis de ser questionadas em favor do devedor após a última reforma do Código de Processo Civil, reforma esta que prevê a possibilidade de se exigir de um terceiro nos mesmos autos do processo ordinário no qual este não figurou, a eficácia de uma decisão (que deve ser restrita às partes do processo), através de um título que foi formado sem que tenha sido dada a chance a tal terceiro (sócio ou administrador) de se defender.

Agora se pretende estender os efeitos da coisa julgada a um terceiro, estranho à lide, e no mesmo processo em que proferida a decisão que dispara a ulterior desconsideração da personalidade jurídica, ferindo-se não só a Constituição, mas também os mais elementares princípios sobre a autoridade judicial da coisa julgada ou da eficácia relativa dos atos processuais decisórios.(NUNES,2002, p.219).

No mesmo sentido, Candido Rangel Dinamarco afirmava antes mesmo da reforma, portanto em um cenário menos restritivo:

Finalmente, para cristalizar o entendimento de que não é possível desconsiderar a personalidade jurídica de uma sociedade sem prévio processo de conhecimento, onde se garanta o contraditório e a ampla defesa, o entendimento de Fredie Didier Junior: A despeito da discussão doutrinária e jurisprudencial sobre o tema – alguns se mostram mais flexíveis quanto à exigência de citação dos sócios na etapa de certificação -, adota-se a posição de Fábio Ulhoa Coelho, para quem, inexoravelmente, deve o membro da sociedade ser citado, já na fase

99

de conhecimento, haja vista ser o entendimento mais afinado à segurança do processo. A garantia do contraditório é um direito fundamental e, nessa condição, qualquer questão que envolva a possibilidade de sua mitigação ou eliminação deve ser vista com muita reserva. (2005, p.398).

A busca pela satisfação da execução e, com isso conferir efetividade ao processo, não pode se dar à margem do devido processo legal, principalmente na “aplicação de uma teoria eminentemente excepcional, que inquina de fraudulenta a conduta deste ou daquele sócio, sem que se lhe dê a oportunidade defesa [...], é afrontar princípios processuais básicos”.(DIDIER JÚNIOR,2005,p.402)

4.4 DO PROJETO DE LEI EM ANDAMENTO

Embora haja se manipulado neste trabalho a noção de que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, à luz dos institutos já existentes, seria ociosa no ordenamento brasileiro, existe projeto de lei em tramitação visando regulamentar a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica o que, diante dos abusos e equívocos perpetrados até o momento, representa uma louvável iniciativa, ainda que, também, dotada de enganos e ambigüidades.

Apenas no Estado da Bahia, há 890 (oitocentas e noventa) empresas regularmente registradas perante a Junta Comercial deste Estado com processos tramitando no Tribunal de Justiça do Estado que incluem a desconsideração da personalidade jurídica de empresas – limitadas ou sociedades anônimas - do estado

Diante do largo uso da teoria da desconsideração da personalidade jurídica atualmente no Brasil reportado na doutrina (NUNES, 2007; TÔRRES e QUEIROZ, 2005; TOKARS, 2007; COELHO, v.2, 2006), parece desconectado da realidade insistir tão somente nos clássicos institutos existentes (e que poderiam de maneira mais adequada atender às situações às quais a desconsideração da personalidade jurídica tem sido aplicada) sem tentar um olhar mais detido sobre o projeto em tramitação na Câmara dos Deputados, apontar equívocos e reconhecer-lhe os méritos.

100

O projeto de lei nº. 2.426/2003, de autoria do então deputado Ricardo Fiúza propõe a edição de lei federal e atualmente em trâmite possui o seguinte conteúdo:

Art. 1º. As situações jurídicas passíveis de declaração judicial de desconsideração da personalidade jurídica obedecerão ao disposto no art. 50 da Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 e aos preceitos desta lei.

Art. 2º. A parte que se julgar prejudicada pela ocorrência de desvio de finalidade ou confusão patrimonial praticados com abuso da personalidade jurídica indicará, necessária e objetivamente, em requerimento específico, quais os atos abusivos praticados e os administradores ou sócios deles beneficiados, o mesmo devendo fazer o Ministério Público nos casos em que lhe couber intervir na lide.

Art. 3º. Antes de declarar que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens dos administradores ou sócios da pessoa jurídica, o juiz lhes facultará o prévio exercício do contraditório, concedendo-lhes o prazo de quinze dias para produção de suas defesas.

§ 1º. Sendo vários os sócios e ou os administradores acusados de uso abusivo da personalidade jurídica, os autos permanecerão em cartório e o prazo de defesa para cada um deles contar-se-á, independentemente da juntada do respectivo mandado aos autos, a partir da respectiva citação se não figurava na lide como parte e da intimação pessoal se já integrava a lide, sendo-lhes assegurado o direito de obter cópia reprográfica de todas as peças e documentos dos autos ou das que solicitar, e juntar novos documentos.

§ 2º. Nos casos em que constatar a existência de fraude à execução, o juiz não declarará a desconsideração da personalidade jurídica antes de declarar a ineficácia dos atos de alienação e de serem excutidos os bens fraudulentamente alienados.

Art. 4º. É vedada a extensão dos efeitos de obrigações da pessoa jurídica aos bens particulares de sócio e ou de administrador que não tenha praticado ato abusivo da personalidade, mediante desvio de finalidade ou confusão patrimonial, em detrimento dos credores da pessoa jurídica ou em proveito próprio.

Art. 5º. O disposto no art. 28 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, somente se aplica às relações de consumo, obedecidos os preceitos desta lei, sendo vedada a sua aplicação a quaisquer outras relações jurídicas. Art. 6º. O disposto no art. 18 da Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, somente se aplica às hipóteses de infração da ordem econômica, obedecidos os preceitos desta lei, sendo vedada a sua aplicação a quaisquer outras relações jurídicas.

Art. 7º. O juiz somente pode declarar a desconsideração da personalidade jurídica nos casos expressamente previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação por analogia ou interpretação extensiva.

Art. 8º. As disposições desta lei aplicam-se a todos os processos judiciais em curso em qualquer grau de jurisdição, sejam eles de natureza cível, fiscal ou trabalhista.

Art. 9º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

101

O projeto em questão justifica-se, de acordo com seu autor, principalmente pelos fundamentos a seguir:

a) Utilização do multicitado instituto com açodamento e desconhecimento das razões que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica;

b) Alargamento – no Brasil – das hipóteses de aplicação, “especialmente pela Justiça do Trabalho, [...] visto que enxergam em disposições legais que regulam outros institutos jurídicos fundamento para decretar a desconsideração da personalidade jurídica, sem que a lei apontada cogite sequer dessa hipótese”; c) A inconveniência de se atribuir a todo e qualquer sócio ou administrador, mesmo os que não se utilizaram abusivamente da personalidade jurídica ou até mesmo daqueles que participam minoritariamente do capital de sociedade sem praticar qualquer ato de gestão ou se beneficiar de atos fraudulentos, a responsabilidade por débitos da empresa, pois isto viria a desestimular a atividade empresarial de um modo geral e a participação no capital social das empresas brasileiras, devendo essa responsabilidade de sócio ser regulada pela legislação societária aplicável ao tipo de sociedade escolhido.

Resumidas as justificativas da propositura, passa-se às considerações a respeito do projeto de lei em questão. As sugestões de mudança para correção de aspectos formais, levantadas por Fredie Didier Junior(2005,p.402-403), merecem acolhida. Quais sejam, a substituição do termo “declarar” ou “declaração” por “decretar” ou “decretação” (nos artigos 1º, 3º caput e § 2º e 7º), haja vista a desconsideração representar uma punição, o que faz com que a mesma deva ser decretada e não declarada; e a substituição da expressão “lide” por “processo” nos artigos 2º e 3º, § 1º, uma vez que não são sinônimos e que o termo “processo” se revela mais adequado à situação.

O artigo 2º do PL 2.426/2003 revela o primeiro mérito do projeto pois trata de estabelecer que aquele que se julgar prejudicado por prática reveladora de abuso da

102

personalidade jurídica deverá indicar objetivamente “quais os atos abusivos praticados e os administradores ou sócios deles beneficiados”, o que evita o terreno fértil das especulações sem provas, pois, não é demais lembrar, o exercício da demanda trata-se de direito condicionado à sua legitimidade, logo não-absoluto:

O exercício da demanda não é um direito absoluto, pois que se acha, também condicionado a um motivo legítimo [...]. Por isso, a parte que intenta ação vexatória incorre em responsabilidade, porque abusa de seu direito.(MARTINS,1997,p.71).

Já o artigo 3º busca assegurar o exercício do contraditório que, nos dias atuais em sede de desconsideração da personalidade jurídica, anda bastante prejudicado. Além do que, no § 2º consta a necessidade de se declarar, antes da decretação da desconsideração da personalidade jurídica, a “ineficácia dos atos de alienação e de serem excutidos os bens fraudulentamente alienados” o que revela um aspecto mais harmonioso com os princípios constitucionais em jogo, conferindo menos espaço para ativismos judiciais.

O artigo 4º é de suma importância, pois estabelece a vedação da extensão dos efeitos da desconsideração a sócios ou administradores que não tenham praticado atos abusivos da personalidade jurídica ensejadores da sanção em questão.

Por fim, os artigos 5º, 6º e 7º acabam por criar uma regra de interpretação, estabelecendo que os dispositivos sejam interpretados restritivamente, sendo vedada a aplicações da teoria da desconsideração “por analogia ou interpretação extensiva”.

Ao ver deste trabalho o projeto falhou – não de maneira irremediável, posto que ainda haja de emendá-lo –, pois poderia ter aproveitado o ensejo para corrigir os excessos que residem no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor e no artigo 18 da Lei do CADE, bem como especificar a limitação da desconsideração àqueles sócios e administradores que abusem da personalidade jurídica que ensejar a aplicação da teoria para fins do artigo 4º da Lei 9.605/98 (Crimes ambientais).

Repise-se não é lógico que o sistema societário disponha pela limitação da

103

responsabilidade dos sócios às quotas ou ações por eles integralizadas e, em paralelo, para fins de relações de consumo, que são bastante abrangentes, de responsabilidade ambiental, trabalhista, de direito concorrencial a regra praticamente contrária ao regime geral de responsabilização de sócios e administradores.

104

5 ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO

5.1 AVALIAÇÃO DO JUDICIÁRIO

Para se entender a atuação do Poder Judiciário em face às questões de atribuição de responsabilidade dos administradores, optou-se por uma análise em três dimensões de tal atuação, ou seja, sob o prisma dos magistrados, da sociedade de um modo geral e do empresariado, com base em estudos e pesquisas existentes (SADEK, 1995; VIANNA, 1997; e IBOPE, 2005).

Quanto à avaliação do papel desempenhado pelo Judiciário, cujo entendimento será importantíssimo para o trabalho que se pretende desenvolver, têm-se alguns enfoques possíveis: sendo o Judiciário um dos três poderes estatais, como os administrados, de uma maneira geral, enxergam sua atuação; demais disso, como o empresariado (leia-se: administradores) enxergam esta atuação, o quão relevante esta é para a procura por proteção patrimonial por parte dos administradores.

Em suma é crucial para este trabalho o levantamento do sentimento de confiança depositado no Judiciário brasileiro. Qual a relevância da crença na austeridade ou da desconfiança de suas capacidades para julgar questões que considerem não apenas as tecnicidades jurídicas, mas, também, os aspectos do cotidiano empresarial.

Se, por um lado, não é imperioso que o juiz seja um experto em economia, administração de empresas, meio-ambiente, ciências contábeis, etc. não seria razoável que esse mesmo juiz fosse bem assessorado tecnicamente no sentido de auxiliá-lo em seu processo de convencimento? Sabemos que entre o razoável e o que efetivamente ocorre há uma distância, e é nesse distanciamento que, acredita- se, repousam, também as incertezas.

105

5.1.1 O Judiciário pela Sociedade Brasileira

Antes de ingressar nas particularidades referentes ao grau de confiança depositado no Poder Judiciário pela sociedade brasileira, cumpre trazer ao conhecimento artigo de autoria da cientista política alemã Ingeborg Maus, intitulado “Judiciário como Superego da Sociedade. O papel da Atividade Jurisprudencial na ‘sociedade órfã’”. (MAUS, 2000)

Em tal artigo, ao tratar da ascensão da justiça à qualidade de administradora da moral pública, notada no século XX, MAUS observa que “Somente a posteriori, por ocasião de um processo legal, é que o cidadão experimenta o que lhe foi ‘proibido’, aprendendo a deduzir para o futuro o ‘permitido’ (extremamente incerto) a partir das decisões dos tribunais [...]” (MAUS, 2000).

E continua:

[...] A expectativa de que a Justiça possa funcionar como instância moral não se manifesta somente em pressuposições de cláusulas legais, mas também na permanência de uma certa confiança popular. Mesmo quem procura evitar ao máximo a precipitada interferência paterna nos conflitos que ocorrem nos aposentos infantis [...] favorece com maior obviedade aquela mesma estrutura autoritária quando se trata da condução de conflitos sociais. [...] O infantilismo da crença na Justiça aparece de forma mais clara quando se espera da parte do Tribunal Federal Constitucional alemão (TFC) uma retificação da própria postura em face das questões que envolvem cidadania (MAUS, 2000).

O texto cujo fragmento foi acima reproduzido traça paralelos entre o papel do Judiciário e a psicanálise que a autora, hábil e talentosamente, alça à condição de superego dos administrados.

Considera, como se pode notar da leitura do trecho acima e, mais notadamente, do texto em sua integralidade, peculiaridades da sociedade alemã, que possui elevado grau de confiança no TFC que – de acordo com o artigo – conta com 62% (sessenta e dois por cento) de aprovação da população, de acordo com pesquisa de opinião pública mencionada no texto (MAUS, 2000).

106

Desta forma, pode-se considerar expressiva a importância atribuída à constituição no referido país e, conseqüentemente, a sua corte constitucional. Guardadas as devidas proporções, em outro turno, é sabido que no Brasil tal assertiva, no que se refere à confiança da população no Judiciário, não guarda correspondência. Pelo contrário. Em uma amostragem de pesquisas realizadas desde 1990 relativas ao grau de confiança depositada pelos brasileiros e/ou reação ante ao Poder Judiciário, os resultados não são alentadores para o referido poder. Senão vejamos:

Em 1990, pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que 2 (dois) em cada 3 (três) brasileiros envolvidos em algum tipo de conflito preferiam não recorrer à justiça. (PINHEIRO, 2005, p. 246).

Em 1993, o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) realizou pesquisa quantitativa na qual se apurou que 87% (oitenta e sete por cento) dos entrevistados afirmavam que o problema do Brasil não estava nas leis, mas, sim, na Justiça, considerada lenta. O mesmo estudo revelou que 80% (oitenta por cento) dos entrevistados enxergavam diferenças de tratamento entre ricos e pobres pela Justiça (PINHEIRO, 2005, p. 246).

Em 1999, o instituto Vox Populi realizou pesquisa que demonstrou que 58% (cinqüenta e oito por cento) dos entrevistados consideravam a justiça brasileira incompetente. A morosidade também aparece como atributo da justiça para alarmantes 89% (oitenta e nove por cento) dos entrevistados. (PINHEIRO, 2005, p. 246).

Numa progressão coerente com os resultados acima, o já referido IBOPE apurou, em pesquisa quantitativa realizada em 2005, junto a um universo de 2.002 (dois mil e dois) eleitores, os índices de confiança depositada instituições e categorias profissionais atuantes no Brasil, dentre elas o Judiciário. (IBOPE, 2005).

O referido estudo logrou, como resultado, a demonstração de que o Judiciário detém

107

a confiança de 45% dos entrevistados, ocupando, dessa forma, a 10a posição em credibilidade pela população, perdendo para médicos (os “mais confiáveis”, com 81%); Jornais (63%); Igrejas Evangélicas (53%), dentre outras instituições (IBOPE, 2005, p.93).

Os resultados acima foram obtidos mediante utilização de amostras representativas da população em estudo, segregada proporcionalmente considerando-se os estados brasileiros.

As regiões metropolitanas e as capitais de cada estado contribuíram com um número de entrevistas proporcional às respectivas populações. Dentro de cada estrato, nas regiões metropolitanas e nos demais municípios de cada estado, foram selecionadas amostras probabilísticas, de conglomerados em 3 estágios que, em suma representam os resultados regionais, os censitários e, por fim, os setoriais, que consideraram as variáveis de gênero, de faixa etária e de atividade econômica (setor de dependência: agricultura; indústria de transformação; indústria de construção; outras indústrias; comércio; prestação de serviços; transporte e comunicação, atividade social, administração pública, outras atividades, estudantes e inativos).

RESPOSTA TOTAL SEXO IDADE GRAU DE INSTRUÇÃO MASC FEM 16 a 25 a 30 a 40 a 50 e Até 5ª a 8ª Ens. Superior 24 29 39 49 + 4ª série Médio série do do fund. Fund. BASE 2002 960 104 479 251 450 369 453 723 502 635 142 2 Confia 45% 46% 43% 44% 39 46 46 46 51% 45% 38% 40% % % % % Não confia 51% 51% 51% 53% 58 50 50 47 43% 53% 59% 55% % % % % Não sabe / 4% 3% 5% 3% 3% 3% 4% 7% 6% 2% 3% 5% Não opinou

108

RESPOSTA TOTAL REGIÃO CONDIÇÃO PORTE DO MUN. EM NÚMERO DE DO HABITANTES MUNICÍPIO N / CO N S SC Pe I A D Mais de 100 mil E E a rif n t e pi eri t é 20 ta a e 2 a l ri 0 10 o m 0 r il mi l 266 5 8 3 48 28 1 4 53 1050 3 9 0 3 7 2 2 2 2 6 8 3 0 2 Confia 45% 47% 5 3 4 42 41 4 4 49 41% 3 9 4 % % 6 9 % % % % % % Não confia 51% 49% 4 5 5 5 55 5 4 48 55% 5 6 0 2 % 0 6 % % % % % % % Não sabe / 4% 4% 2 5 4 5 4 4 4 3 5% Não opinou % % % % % % 5 % %

Malgrado a pesquisa acima referida datar de 2 (dois) anos anteriores à escrita do presente trabalho, não há correntemente razões para crer em uma modificação positiva do quadro acima. Ao contrário, pois, é importante destacar que a pesquisa foi feita em uma época em que notícias que traziam acusações contra juízes por venda de sentenças e outras práticas de conteúdo ilícito não ocupavam as manchetes dos jornais do País.

5.1.2 O Judiciário pelo Empresariado

Em uma abordagem mais aproximada a um dos principais elementos deste trabalho (os administradores das empresas), apresenta-se a seguir o Judiciário sob o enfoque do empresariado brasileiro.

109

Antes de adentrar nas especificidades deste tópico, cumpre tecer uma consideração com funções de esclarecimento. É freqüente – ao se falar em empresariado ou empresas – a associação à grandes corporações, com dimensões financeiras relevantes e outras características que sejam denotativas de poder. Contudo, consoante estudo do SEBRAE – que tem como base nos dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS/MTE), as micro e pequenas empresas correspondem a 98% (noventa e oito por cento) dos estabelecimentos do setor privado da economia.

Considerando-se que as empresas podem ter sua estrutura (micro, pequena, media ou grande) determinada com base no faturamento ou no número de empregados, é importante afastar quando da leitura deste trabalho, a noção de empresa como entidade jurídica de grandes dimensões e, conseqüentemente, a noção de empresariado como membros de um grupo de dirigentes de grandes corporações, com sólida estrutura econômico-financeira.

Feitos os esclarecimentos acima, o presente estudo apresenta o fundamento teórico para este tópico, qual seja, a pesquisa apresentada em publicação organizada pelo Profº Dr. Armando Castelar Pinheiro, intitulada Judiciário e Economia no Brasil (PINHEIRO, 2000).

A pesquisa acima referida tinha por finalidade avaliar como e em que nível as questões referentes ao judiciário no Brasil afetam seu desempenho econômico e, para isso, dentre outros elementos, partiu em rumo à apuração das opiniões – em termos qualitativos e quantitativos – dos empresários acerca do Poder Judiciário.

Para o empresariado brasileiro, a morosidade, os elevados custos de acesso e a parcialidade são, nesta ordem, os três principais problemas do judiciário brasileiro.

Ademais, o mau funcionamento do judiciário é apontado como a terceira causa de impactos negativos sobre as empresas do universo de entrevistados.

110

É importante asseverar que a opinião do empresariado, seja na qualidade de sócios das empresas limitadas, seja na qualidade de administradores – e, portanto, representantes legais – das sociedades anônimas, os dois mais relevantes tipos societários existentes no Brasil,

Neste capítulo, as questões referentes à qualidade das decisões no tocante particular e contextual dos administradores não será abordada, o que ocorrerá no capítulo 5, mas considera-se importante, para fins expositivos deste capítulo como um todo – e não apenas deste subitem em particular – o quilate da avaliação do Poder Judiciário e, nesse sentido, é crucial a compreensão de que há um entendimento de que um bom judiciário funciona como elemento colaborador para o desenvolvimento econômico e que um “judiciário disfuncional aumenta o custo e o risco das transações econômicas, distorcendo os preços e a alocação dos recursos” (PINHEIRO, 2000).

Desse modo, os resultados obtidos através das pesquisas em tela sugerem uma relação entre melhoria no desempenho do judiciário e impacto positivo sobre a economia. Mais precisamente, a partir da média simples das respostas dadas pelos empresários que responderam aos questionários das pesquisas, o avanço do judiciário brasileiro que o conduzisse a padrões de “primeiro mundo” resultaria, nesta ordem, em aumento da produção (18,5%), dos investimentos realizados (13,7%) e do emprego (12,3%).

Com base nesses valores percentuais, separadamente por setor e atribuindo pesos às participações que cada setor tem no produto interno bruto (PIB), no investimento e no emprego, defende o pesquisador, em suas conclusões, que o crescimento do país poderia atingir às médias ponderadas de crescimento nas três variáveis acima de 13,7%, 10,4% e 9,4%, respectivamente.

Partindo de modelo simples de crescimento, estima-se que o judiciário disfuncional reduz a taxa de crescimento do PIB em cerca de um quinto, fazendo-se a ressalva

111

do pesquisador de que número mais preciso somente seria possível a partir, dentre outras coisas, de uma amostra maior. Contudo, ainda que em termos estimados, é possível avaliar o impacto do mau funcionamento do judiciário – ou seu funcionamento deficitário – como significativo sobre o crescimento econômico do país.

À guisa ilustrativa, seguem alguns resultados da pesquisa: a) As pequenas e microempresas evitam o quanto possível recorrerem ao judiciário como agente de resolução de conflitos, seja porque não confiam, seja pela lentidão, seja pelos custos, que abrangem desde as custas judiciais à contratação de advogados; b) As mesmas pequenas e microempresas normalmente figuram como rés em processos trabalhistas, nos quais as empresas vêm a justiça trabalhista como agente parcial de solução de conflitos sempre em benefício do empregado; e tributários (esfera de tributos municipais). A parte ativa processual em matéria tributária é sempre ponderada tendo como referencial o valor de imposto a ser devolvido ou de ter de depositar algum valor em juízo. Não raro, as micro e pequenas empresas chegam à conclusão que o valor do imposto a ser devolvido não compensa os custos a serem incorridos ou que o custo de oportunidade do depósito em juízo (o valor daquilo que se abre mão ao se fazer uma opção) não compensa. c) As empresas que atuam no comércio exterior adotam medidas que têm por fim escapar da necessidade de recurso ao judiciário. Para tanto, contratam seguros de responsabilidade civil, cartas de crédito, análises de riscos e de cadastros de clientes, etc, de modo que, em larga medida, o judiciário não ocupa as preocupações de quem opera com negócios internacionais, posto que esses agentes dispõem (e se valem) de uma série de mecanismos para não deixar que o problema chegue ao judiciário, o que não impede a opinião de exportadores e importadores de que o judiciário é caro e demorado e que as negociações com os parceiros, se necessárias, devem se dar

112

extrajudicialmente. d) Em suas relações internas, as empresas que operam com o comércio exterior lidam amiúde com as reclamações trabalhistas o que reforça a impressão de que, apesar dos méritos e importância, a Justiça Trabalhista “tem servido bem ao mau empregado e ao mau empregador” no dizer de um dos entrevistados, posto que o juízo não é imparcial no afã de proteger o empregado, mas, ao mesmo tempo, negligencia que há maus empregadores que deliberadamente descumprem os comandos legais por preferirem, através do acordo, pagarem muito menos do que deveriam, com o benefício do respaldo que a sentença trabalhista oferece. e) O impacto da avaliação do judiciário por parte das instituições financeiras, ou melhor, dos administradores das instituições financeiras, é, sem sobra de dúvidas, aquele que mais é sentido pelo homem comum, ainda que essa avaliação não seja tema deste trabalho. Tais pessoas jurídicas apontam a morosidade como um dos principais problemas, principalmente no que tange aos processos de execução, que podem chegar a ter sua conclusão em oito anos. Ademais, há a questão dos juros que, independentemente de sua propriedade ou não, acaba por resultar em um aumento dos já elevados juros praticados. Pinheiro aponta, neste tocante, para aquilo que chamou de “círculo vicioso”:

Para compensar e diluir as perdas financeiras causadas pela morosidade da justiça (dificuldade de cobrar, por meio de processos judiciais demorados, empréstimos não pagos), os bancos aumentam os juros; aumentando os juros, elevam a inadimplência e dependem cada vez mais da justiça morosa. (PINHEIRO, 2000, p. 172).

O artifício para se combater o resultado atribuído - pelos bancos – ao mau funcionamento do judiciário, ou seja, o aumento do spread (que, para sua formação, considera custos administrativos, que incluem os custos para manter estrutura, interna ou terceirizada para acompanhamento dos processos que envolvem as cobranças acima referidas; e os riscos, onde também se situa a problemática com o judiciário, através da morosidade), que fica em torno de 20% a 30% (PINHEIRO, 2000, p. 191) acaba por alimentar esse círculo, que, não difícil de se prever, não tem fim.

113

f) Na prática, a eficiência ou ineficiência do judiciário, de acordo com a multicitada pesquisa, não parece ter inibido – de modo isolado – investimento de empresas estrangeiras no Brasil, revelando papel marginal, posto que a decisão de tal investimento é tomada no contexto de uma análise do risco país, que considera um conjunto significativo de variáveis, das quais o judiciário é apenas uma delas. Nem por isso deve ter seu papel desprezado na fixação do risco país. g) Praticamente um terço das empresas reportou ter investimentos prejudicados, retardados ou suspensos em virtude de decisões judiciais, ao passo em que 81% das empresas reportou ter, como principal efeito adverso da atuação do judiciário a necessidade de aprovisionar recursos ou depositar valores em juízo, o que representa elevado custo de oportunidade. h) O temor por certa tendenciosidade apresentada pelo judiciário ao favorecer, de maneira significativa, certas classes de litigantes (trabalhadores, devedores, residentes locais, etc.) representa preocupação para o empresariado. i) Em todos os grupos focais, com algumas variações percentuais, os problemas apontados pelos empresários em relação ao judiciário são morosidade, custos elevados e parcialidade, nesta ordem. j) A sensação de desconfiança da competência e eficiência do judiciário, embora haja alguma variação das causas a depender dos segmentos, é uma constante.

As questões acima trazidas evidenciam não apenas o estado de insatisfação do empresariado com o Poder Judiciário, mas, mais do que isso, a falta de confiança na atuação do mesmo, seja porque, a depender da matéria, não confia na imparcialidade dos juízes, seja porque desconfia da efetividade das decisões ou, até mesmo, porque desconfia da relação de aproveitamento de se recorrer ao Poder Judiciário.

114

É certo que o Poder Judiciário não deve ter como foco uma relação de cortesia e benevolência com o empresariado, mas também não deve ter como método a prolação de sentenças contrárias ao mesmo – e, a depender da matéria, é – a grosso modo – como ocorre, por exemplo, com questões trabalhistas, como reportado pela doutrina (COELHO, v. 2, 2006; TOKARS, 2007; NUNES, 2007).

Exatamente por que se crê na importância da “arte da tensão profícua” (GIANNETTI, 2005) como capaz de ensejar aquilo que se pretende com a democracia, não se advoga aqui que o Judiciário deve ser servil ao empresariado, com base em argumentos como não onerar mais ainda àqueles que geram empregos, mas também não se pode crer na justeza de decisões que se recusam a seguir parâmetros ajustados no sistema jurídico pátrio, para fazer prevalecer aquilo que, isoladamente, o juiz crê ser justiça, a exemplo do que ocorre com os freqüentes casos de decisão sobre desconsideração da personalidade jurídica.

Sem prejuízo das abordagens posteriores e específicas a respeito do tema, enquanto temos que a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, formulada pelo jurista alemão Rolf Serick, determina que a ordem jurídica deverá pontualmente desconsiderar a personalidade jurídica em caso de mau uso da mesma e, assim, corrigir seus desvios.

Por mau uso, frise-se, sem prejuízo do que adiante será abordado sobre o tema, entenda-se que se trata, por exemplo, de confusão patrimonial (considerando-se a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas e conseqüente segregação do patrimônio dos sócios); a utilização da pessoa jurídica para limitar indevida e dolosamente a responsabilidade do agente em detrimento daqueles que com ele contratam; dentre outras utilizações a serem abordadas a posteriori.

Por força da referida teoria da desconsideração da personalidade jurídica, devem ser excluídos do rol das causas do ensejamento de sua aplicação, por exemplo, o insucesso empresarial puro e simples, que pode decorrer de questões do mercado, do momento econômico de um país, de flutuações cambiais, dentre outros

115

acontecimentos ou, até mesmo, uma eventual inabilidade para condução de negócios, o que até o presente momento não configura conduta típica, pois se o ordenamento jurídico existe, dentre outras justificativas, para a proteção da boa-fé, o empreendedor e/ou administrador de um empreendimento não mereceria a tutela da sua também?

O que se observa a partir da descrição dos dois parágrafos anteriores é que, nesse tocante, os juizes (mais notadamente os trabalhistas) não se portam de maneira nem substantiva – não demonstrando nenhum apreço pelo que dispõem as leis e os entendimentos doutrinários -; nem procedimentalista, em atitude que consideram por demais as normas processuais em detrimento do direito substantivo, mas, tão somente, atuam de maneira protetiva.

Seguramente, há outras formas de se fazer aplicar o instituto da responsabilidade dos administradores sem que se prejudique a entidade jurídica, mas – ao que tudo indica – a facilidade de se decidir pela desconsideração da personalidade jurídica para – rápida e nem sempre de maneira apropriada – atingir o patrimônio pessoal não apenas dos administradores, mas, também de sócios que, por vezes, não possuem qualquer papel de gestão, tem sido o atalho seguido pelos magistrados para “fazer justiça”.

Esse modo peculiar de fazer justiça – destaque-se – acaba por mitigar um dos aspectos de maior relevância dentro dos sistemas que seguem o civil law, qual seja, a noção de maior segurança conferida pelo direito codificado.

5.1.3 O Judiciário pelo Judiciário

A partir das reformas estruturais na economia, mais notadas a partir da década de 90, com os direitos estabelecidos pela Carta Magna no tocante aos direitos sociais, as questões relativas à livre iniciativa e as privatizações, se deu um aumento da importância do funcionamento do Poder Judiciário para o bom funcionamento da

116

atividade econômica no Brasil.

Em pesquisa realizada junto a magistrados de diversas esferas e competências por Vianna et al. indicam que o próprio Judiciário (personificado através dos juízes) foi apurado que os juízes têm consciência da relevância de seu trabalho pelo prisma da Economia. Contudo, essa consciência, como se pôde notar também por essa pesquisa, não foi acompanhada de um maior comprometimento com esse papel de destaque, posto que predomina visão entre os magistrados de que o juiz não pode ser mero aplicador da lei, devendo ser sensível aos problemas e que alguns inclusive consideram que esse dever de sensibilidade traduzido pela expressão justiça social deve preponderar – ainda que com o sacrifício à previsibilidade – sobre a estrita aplicação da lei (SADEK, 1995). Justamente esse engajamento social, como não seria de se estranhar, é visto com grande temor não apenas pelo capital externo, mas, principalmente, pelo investidor local, por aquele que empreende ou pretende empreender uma atividade economicamente organizada.

Contudo, apesar de visão quase que messiânica que o Judiciário – através dos juízes – tem de si e de seu dever (e devir), este Poder enxerga como principais vicissitudes de sua estrutura a morosidade (45,03%), seguida do elevado custo de acesso – o que inclui custas, despesas com contratação de advogado e contratação de peritos (31,06%) – e, por fim, a falta de previsibilidade (18,4%) (PINHEIRO, 2000).

No tocante à morosidade, os juízes levantam alguns argumentos em sua defesa, quais sejam, a quantidade considerada excessiva de questões que empresas e/ou pessoas físicas levam ao Judiciário não por quererem exatamente resolvê-las, mas, sim, postergá-las (expediente muito observado nas questões tributárias, mas também praticado em questões trabalhistas, creditícias e locatícias). Além disso, alegam em seu favor, as possibilidades recursais vigentes em nosso direito processual. Além disso, as questões atinentes às formalidades processuais aplicáveis são trazidas como ensejadoras da morosidade, o que explica o fato de 51% (cinqüenta e um por cento) dos magistrados considerarem excessivo o formalismo processual do Judiciário e atribuir ao mesmo o caráter de uma das

117

causas mais importantes da morosidade judicial.

Ao atribuir como uma das vicissitudes do Judiciário o elevado custo de acesso, o que resulta numa seleção censitária dos demandantes, ainda que haja recursos como gratuidade de justiça, defensorias públicas e organizações não- governamentais que ofereçam a assistência judiciária, acaba por deslocar esse problema para um lugar outro, que os juízes não têm muito a fazer com relação a isso. O que não deixa de ser uma verdade em termos, pois é sabido, também, que a morosidade judicial tem impacto significativo nos custos de contratação de advogados, por exemplo, que ao projetarem um eventual êxito, sabem que somente será algo passível de apropriação daqui a um considerável número de anos e essa projeção de longo prazo é definitiva para a fixação de honorários de êxito ou para a cobrança da propositura da ação.

Por fim, no tocante à falta de previsibilidade – entendida como a capacidade das partes anteciparem a decisão do Judiciário, principalmente em demandas que são muito semelhantes a outras anteriormente submetidas ao exame de tal Poder e vista como o terceiro principal vício do Judiciário –, os juízes indicam dois fatores como decisivos para essa distorção: a chamada “judicialização” do conflito político e a chamada “politização” do Judiciário.

A judicialização do conflito político é entendida como a tendência dos poderes políticos (Executivo e Legislativo) de transferirem para o Judiciário a resolução de questões que não se dão nas esferas apropriadas para isso. Um exemplo dessa prática diz respeito ao processo legislativo

[...] onde, na incapacidade de produzir maiorias que permitam aprovar leis bem definidas, aprova-se textos gerais e por vezes ambíguos, que é o máximo factível em uma arena política muito fragmentada. Transfere-se depois o ônus de clarificar e resolver essas ambigüidades ao Judiciário, que fica responsável por arbitrar conflitos políticos, em vez de simplesmente aplicar a lei (PINHEIRO, 2000).

O fenômeno dual da judicialização das questões políticas vem a ser politização das decisões judiciais, apontada acima como o segundo fator decisivo para a falta de

118

previsibilidade das decisões judiciais. Se por um lado, a judicialização das questões políticas trata-se de um movimento exógeno, onde os poderes políticos transferem para o Judiciário a decisão de questões que lhes caberiam, na politização das decisões judiciais os juízes chamam para si uma função política, em uma atuação endógena que pode significar tentativa de favorecimento de grupos sociais mais fracos – trabalhadores, pequenos devedores, consumidores, etc – ou a pura e simples visão do magistrado acerca da questão (PINHEIRO, 2000).

5.1.4 O Judiciário como Superego da Sociedade

Antes de retornar ao artigo referido no início deste capítulo (“Judiciário como Superego da Sociedade. O papel da Atividade Jurisprudencial na ‘sociedade órfã’”), é preciso fazer um breve esclarecimento do conceito da psicanálise para superego (ou supereu) e nisso não haverá digressões de maiores grandezas, de modo que se reproduz o quanto explicitado por LAPLANCHE e PONTALIS:

Uma das instâncias da personalidade tal como Freud a descreveu no quadro da sua segunda teoria do aparelho psíquico: o seu papel é assimilável ao de um juiz ou de um censor relativamente ao ego. Freud vê na consciência moral, na auto-observação, na formação de ideais, funções do superego.

Classicamente, o superego é definido como o herdeiro do complexo de Édipo; constitui-se por interiorização das exigências e das interdições parentais. (LAPLANCHE e PONTALIS, 1992, p. 497-8). Grifos Nossos.

Retomando o quanto exposto por Ingeborg Maus, esta dá conta de um agigantamento do Poder Judiciário alemão, mormente da Corte Constitucional, crescimento que é atribuído pela cientista política à abordagem hermenêutica por partes dos magistrados, em detrimento da aplicação silogística do direito positivo, com convocação de fundamentos morais. Com esse desapego à norma escrita, traduzido pelas expressões de conteúdo indeterminado, o Judiciário tornou-se superego, qual o monarca, da "sociedade órfã", que confere ao Estado poder de pai, que determina os valores norteadores – posto que classificado pelo mesmo Estado como principais. O direito aplicado não é aquele definido através do processo

119

legislativo, mas, sim, aquele que o Judiciário entende como aplicável, cabendo, inclusive, cria-lo diante da ausência. (MAUS, 200, p. 187)

Malgrado as peculiaridades da sociedade alemã (cujo Judiciário está sob análise de MAUS), as considerações de seu texto se aplicam a outras sociedades, principalmente aquelas nas quais – destituídas de crítica, órfãs que são – se notou um agigantamento do prestígio do Poder Judiciário e que ensejam teorias que, segundo a Autora, atribuem um poder demasiado aos juízes (MAUS, 2000, p. 186), como as apresentadas por Ronald Dworkin7. Não obstante a falta de aprofundamento sobre a teoria de Dworkin – e que parece ter sido deliberado por parte da Autora – o que é de se notar no texto de MAUS e que é caro a este trabalho é a função assumida pelo Judiciário e o papel conferido pelo cidadão a este Poder.

Por um lado, se tem o povo alemão que, consoante se aduz da leitura do multicitado texto, apresenta o infantilismo da crença na Justiça – e que aparece de forma mais clara quando se espera da parte do Tribunal Federal Constitucional alemão (TFC) uma retificação da própria postura em face das questões que envolvem cidadania.

De outro lado, ou melhor colocando, de nosso lado temos, a sociedade brasileira que espera apesar de dever, ver reconhecida – pelo Poder Judiciário – a sua não- divida; que apesar de ter se comprometido a determinada obrigação (sem grandes reflexões sobre suas reais capacidades para fazê-lo), pretende ver reconhecida – pelo mesmo Judiciário – que tal obrigação não existe, qual se espera de um pai ou de uma mãe.

Malgrado as atlânticas diferenças entre as sociedades alemã e brasileira, o infantilismo evidenciado pela crença depositada na justiça pela primeira sociedade,

7 Ronald Dworkin, autor de Levando Direitos a Sério, O Império do Direito e Uma questão de princípios é um dos mais importantes filósofos do Direito na contemporaneidade, que considera a filosofia jurídica como parte significativa da filosofia moral e política. Deu ênfase ao fato – para ele – de que os conceitos jurídicos fundamentais não podem ser explicados através de formas convencionais, a exemplo do conceito de justiça. Dentre suas contribuições, figuram o modelo de função judicial conhecido como o modelo da resposta correta, de acordo com o qual o juiz sempre encontra resposta correta no direito preestabelecido, para tanto, o juiz necessita de poder político. Despiciendo frisar o enorme poder conferido por Dworkin aos juízes.

120

apesar da origem diversa, também é observado na sociedade brasileira quando esta aposta que o que foi estabelecido pode vir a deixar de ser.

Na sociedade brasileira, como visto anteriormente neste capítulo, há também o aspecto inverso dessa relação, do juiz para a sociedade, onde aquele toma para si o papel de determinar se uma lei deve ou não ser aplicável para se “fazer justiça”, qual uma mãe ou um pai que vai decidir a que filho vai contemplar com o afago e a que filho imporá o castigo.

Certas são as distorções em todo o sistema – mais intensas e notadas em uns que em outros – e, em se tratando de distorções, devem ser corrigidas, mas seria interessante indagar – trazendo a questão para tema deste trabalho – se todos os empreendimentos que não logram êxito são geridos por administradores que fraudam deliberadamente créditos e/ou interesses de terceiros (sejam credores, funcionários ou outros interessados)?

Tudo indica que se essa pergunta vier a ser feita pelo magistrado brasileiro ela já terá de antemão a sua resposta em sentido afirmativo porque é a resposta que vem sendo dada, principalmente pelos juízes de primeira instância.

Não se pode arriscar pensamento predominante diferente do acima especulado quando as decisões acerca de desconsideração da personalidade jurídica prolatadas para se atingir o patrimônio pessoal do sócio – administrador ou não – para a satisfação de créditos.

Apenas no estado da Bahia, há 422 (quatrocentos e vinte dois) empresas diferentes peticionaram ao Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e ao Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região8 em matéria de desconsideração da personalidade jurídica que, frise-se, sem prejuízo do capítulo que tratará do assunto, se trata de medida excepcional, aplicada quando verificados certos requisitos. São recursos, agravos, embargos de declaração, pedidos de reforma de sentença, apelações que têm como

8 Dados obtidos mediante pesquisa nos sítios dos aludidos tribunais. Disponível em www.tj.ba.gov.br e www.trt05.gov.br Acesso em: 07.10.2007.

121

objeto a reversão da desconsideração da personalidade jurídica decidida em primeira instância.

O que este capítulo, como um todo, pretendeu trazer à tona são as múltiplas dimensões que, ressalvadas as nuances, dão conta do mau funcionamento da Poder Judiciário no Brasil. Os juízes enxergam, ainda que com muito comprometimento, essa disfunção, os empresários e a sociedade como um todo também. Cada grupo, a seu modo, e de maneira indissociável com seus interesses, mas as deficiências são postas às claras e as refutações, ainda que por vezes pertinentes, não satisfazem, a exemplo da trazida pelos magistrados quando alegam a seu favor a judicialização das questões políticas.

O fato que parece incontestável é o descontentamento em relação ao Poder Judiciário por parte da sociedade, incluído o empresariado.

Desse modo, não seria de todo desarrazoado trazer para a realidade do Brasil um sentimento que se depreende da leitura de MAUS: o de que a própria insatisfação social com o Judiciário decorre de uma crença na falha do seu papel de “pai”, de “protetor”, qualquer que seja o lado para o qual a balança da Justiça deixe de pender.

122

6 IMPACTOS DA ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO NA ECONOMIA

6.1 DA COMUNICAÇÃO ENTRE JUDICIÁRIO E ECONOMIA

Se, como afirmado no capítulo anterior, o juiz não precisa ser um perito em assuntos da economia, também podemos afirmar o contrário: o economista não há de ser um especialista nas questões legais. Contudo, essa ausência de requisitos formais para a formação de um juiz ou de um economista não significa que os mundos dessas duas disciplinas sejam estanques e incomunicáveis.

Se, por um lado, há questões da ordem econômica que não podem ser consideradas de maneira absoluta ou sem uma necessária relativização, por outro lado, há questões também de ordem econômica que não podem ser ignoradas pelo Judiciário, como um dos poderes da estrutura política nacional. É o que se verá adiante.

6.1.1 Do Risco País

O Brasil, como país integrante da América do Sul, vive às voltas com uma preocupação econômica além da conhecida inflação: o chamado Risco-Brasil ou, de maneira mais genérica, risco país, que se trata do índice de avaliação do desempenho das economias emergentes, caso do Brasil. O índice apresenta variações diárias e tem por referência a diferença cobrada no mercado pelos juros negociados por papéis de um país em relação à remuneração paga por papéis norte-americanos – aos quais são atribuídos risco zero.

O Emerging Market Bond Index-Plus9 (Índice de Títulos da Dívida de Mercados

9 Informações obtidas no sitio do JP Morgan Chase N.A. www.jpmorgan.com Acesso em 31.01.2008

123

Emergentes), o EMBI+, foi criado pelo banco internacional JP Morgan Chase N.A., em 1992, para mensurar o risco de investimentos em países emergentes e leva em conta indicadores sócio-econômicos desses países e os pontua. No caso da classificação feita pelo JP Morgan, quanto mais pontos forem atribuídos a um país emergente, mais afugentados se sentem os investidores internacionais em investir em tal país. Há outras instituições que pontuam de maneira diversa o risco país, a exemplo da agência Fitch Ratings10, que classifica em níveis de “B+”, “B”, “A-“ e etc. A agência Standard & Poor’s, por sua vez, adota a classificação A, AA e AAA para indicar – de maneira crescente – a forte capacidade de pagamento (ou menores riscos) até se chegar ao D (passando pelo B, BB, BBB, C, CC e CCC)11

O EMBI+ representa um dos principais índices de risco-país utilizados pelos investidores internacionais quando da avaliação da destinação de seus investimentos, mediante análise dos preços dos títulos de países emergentes que tenham significativa emissão de títulos no mercado internacional.12

O risco-país é calculado pela taxa de juros que os certificados de dívida do governo pagam acima do rendimento dos títulos do Tesouro americano, considerados de risco nulo. Por exemplo, se o risco-país estiver a 1.500 pontos, então os títulos nacionais pagam, neste caso, um ágio de 15% em relação aos do Tesouro americano. O índice tem como finalidade refletir o grau de incerteza no futuro de uma economia. Um índice elevado demonstra, portanto, maior insegurança quanto ao futuro de uma determinada economia, o que significa maior possibilidade de calote da dívida pública (default). O risco zero seria a certeza do pagamento do título, que, neste índice, é representado pelos títulos do Tesouro americano. O índice de risco-país tem um objetivo claro: orientar os investidores quanto ao futuro de suas aplicações em um determinado país, considerando todas as informações disponíveis – passadas e presentes – relevantes para conduzir o futuro da economia. (DEZORDI, 2002, p. 14-15)

Ou seja, o risco país é a sobretaxa paga em relação à rentabilidade garantida pelos bônus do Tesouro dos Estados Unidos, país considerado o mais solvente do mundo, ou seja, o de menor risco para um aplicador não receber o dinheiro investido acrescido dos juros prometidos.

10 Disponível em:< www.fitchratings.com>, Acesso em: 01.02.2008. 11 Disponível em Acesso em: 01.02.2008. 12 Informações disponíveis no sítio da instituição www.jpmorgan.com Acesso em: 31.01.2008.

124

É necessário relativizar a preponderância do risco-país para fins de orientação de política econômica, sob pena de se tornar refém dos mercados especulativos e de se ter uma linha de governo que acabaria por ser pautada pelo que uma instituição financeira internacional, que baseia sua análise de risco em títulos do tesouro norte- americano para pautar a segurança dos títulos emitidos por outros mercados, o que representa séria ameaça à noção de soberania nacional. Escândalos como o ocorrido com a Enron e, mais recentemente, a crise do mercado de crédito imobiliário revelam uma economia não tão imune a riscos como pressupõe o cálculo do JP Morgan.

O futuro de um país não pode ser determinado apenas por um indicador de investimentos. Há outros fatores, destacados ao longo do texto, que devem compor a análise de risco. E, neste sentido, o Brasil não está tão vulnerável. Ou, ao contrário do que prevêem os pessimistas, o país não quebrará. (DEZORDI, 2002, p. 16)

Apesar do fato de se estabelecer uma relação direta entre eficiência do judiciário e risco-país parecer por demais simplista e – até mesmo – leviano, não se pode desprezar o impacto da avaliação feita agências de ratings, com relação ao Brasil.13 Levando-se em consideração que aspectos sócio-econômicos são instrumentos para determinação da classificação do risco e que o Judiciário possui relevante papel institucional, não se pode fechar os olhos para o que ora se especula: a atuação do Judiciário possui, em maior ou menor medida, papel relevante para fixação do risco-país na medida em que contribui para a determinação do custo- país, no caso, o Custo Brasil, que pode ser resumidamente determinado como:

Nessa pluralidade de definições, situações e fatos que são relacionados ao ‘Custo Brasil’ é necessário enfatizar que eles devem estar diretamente associados, em termos econômicos, ao preço pago para se manter uma empresa, em marcha, no País. O conceito que se adota, nesta análise, para uma empresa em marcha é, direta e objetivamente, a manutenção das condições para produzir e entregar o produto (bem ou serviço) ao mercado. (BIFANO, 2007,p.1)

Nesse sentido, não é difícil imaginar que acaso seja difícil ter certo grau de previsibilidade, dentro do ordenamento brasileiro, cujo sistema é filiado ao direito romano-germânico, codificado, que a atuação do Judiciário tem um papel senão de

13 Apenas como referência, 586 edições do jornal Valor Econômico no período de 01.01.2006 a 01.01.2008 trouxeram matérias relativas ao Custo Brasil ao Risco Brasil, totalizando 1596 matérias a respeito dos temas.

125

destaque, ao menos importante, para concorrer à formação do custo país e, consequentemente, do risco país. Senão, vejamos uma das conclusões do trabalho intitulado “Fazendo com que a Justiça Conte. Medindo e Aprimorando o Judiciário no Brasil”, elaborado pelo Banco Mundial:

A aparente custo-ineficiência dos juízos trabalhistas, em outros aspectos altamente produtos. O governo brasileiro e os réus particulares investem grandes somas neste sistema em comparação com os retornos relativamente modestos para os reclamantes particulares. Além de qualquer impacto negativo sobre o emprego e o Custo Brasil, a questão que se coloca é se os objetivos que estão sendo perseguidos, em si mesmo não claros, poderiam ser alcançados de uma forma mais eficiente e possivelmente não judicial. Considerando que esses tribunais possuem valor simbólico considerável, pode ser difícil mudar, ainda que até mesmo os advogados trabalhistas já tenham começado a questionar a utilidade das práticas atuais. (BANCO MUNDIAL, 2004, p 14)

É preciso esclarecer que se entende que nem todos os problemas do Judiciário são, de fato, problemas do Judiciário. Há desde problemas de recursos humanos14, complexa estrutura recursal, judicialização de questões políticas por parte do governo e, até mesmo, uma certa utilização do Judiciário – pelo Governo – para fins de controle de fluxo de caixa e, com isso, o pouco critério do que é encaminhado para os tribunais através de recursos, litigância de má-fé pelos advogados e etc. (BANCO MUNDIAL, 2004, p. 15-19). Afora isso, há as questões relativas ao ativismo judicial (vide capítulos 3 e 4) que cooperam para uma atuação questionável em termos qualitativos do Poder Judiciário.

Portanto, em que pese a necessidade de se relativizar não apenas a importância do risco país para a economia pátria, mas, também, a influência do Poder Judiciário sobre o Custo Brasil (que por conseguinte influencia o risco Brasil), não se pode esquecer que são sistemas que se comunicam (Judiciário e Econômico) e que, portanto, ao menos a ciência dessa interrelação deve ser instalada nos agentes dessa relação.

Um aspecto crucial do risco país é que o governo de um país é um ator

14 O estudo do Banco Mundial revelou – com números de 2002 – que há 1.357 ações ajuizadas (ou sentenças) para cada juiz, considerando Justiça Federal, Trabalhista e Estaduais e excluindo a Justiça Militar, Eleitoral e os Juizados Especiais.

126

soberano. Dentro de seu território, um governo, especialmente se não for inibido por salvaguardas constitucionais, possui grande influência para a determinação da estrutura legal que cerca os acordos econômicos. (HERRING, 1983, p. 79).

Logo, não apenas se critica a atuação do Judiciário, mas entende-se, também, que deve ser dada a devida atenção às questões estruturais e substantivas do Poder Judiciário, posto que as mesmas possuem impacto na economia para além dos investimentos feitos pelo governo e embora não seja recomendável que as decisões sejam tomadas seguindo a uma lógica de mercado pura e simplesmente, especula- se neste trabalho que o pensar de maneira sistêmica pelo Poder Judiciário, entendendo que suas decisões não se restringem às partes do processo seria bastante salutar para o ordenamento brasileiro.

6.1.2 Da Tensão entre Função Social e Livre Iniciativa

A imprecisão (ou fluidez) terminológica da expressão função social da propriedade tornou a propriedade, “direito subjetivo por excelência na ordem patrimonial – passa a ser encarado como uma complexa situação jurídica” (GOMES, 2008, p. 123; PERLIGIERI apud GOMES, 2008, p. 124), e como se entende que a função social abrange bens imóveis (dimensão mais associada à função social) e móveis (GOMES, 2008, p. 129) e numa filiação à tese de que a empresa “é um modo de exercício da propriedade” (GOMES, 2008, p.131), teríamos a função social da empresa.

Interessante seria observar que caráter assume tal função social para a empresa. Seria um dever comissivo ou um dever de abster-se de certas condutas quando do exercício da propriedade? Tal função social impõe deveres ou obrigações positivas ou simplesmente implica exercício da propriedade sem que seja contrária ao interesse coletivo? Deve concorrer para o bem da coletividade na medida em que se abstém de causar danos ou – além disso – efetivamente pratica ações para a consecução de tal bem coletivo?

127

O Código Civil estabelece em seus artigos 966 e 981 o que se segue:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.

Ao seu turno o artigo 2º, de maneira mais contundente, estabelece:“Art. 2º Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes.”

Ou seja, não se pode olvidar que a finalidade das empresas – sejam limitadas, sejam sociedades anônimas – é o lucro. É claro que o lucro não é um fim em si mesmo e que está condicionado a princípios que comunicam o ordenamento (boa-fé objetiva e subjetiva, vedação do enriquecimento ilícito, proteção ao terceiro de boa- fé, etc), mas as empresas de um modo geral não podem ser obrigadas “a renunciar, ainda que por vias oblíquas, ao objeto primeiro de sua existência (que é o lucro tal qual previsto pelo Art. 2º da Lei n. 6.404/76)” (NUNES, 2007, p. 345). Vias oblíquas essas que incluem a função social quando esta é convertida em “filantropia compulsória”.

Pode-se dizer que gravita entre o ingênuo e o cínico, pretender que sempre haja coincidência entre os interesses corporativos de uma empresa e os da coletividade (GUERREIRO, 1990, p. 54, NUNES, 2007, p. 345). A realidade capitalista demonstra que tal coincidência não acontece dessa forma. É nesse sentido a lição de Fábio Konder Comparato:

Mais especificamente, em caso de conflito entre o interesse próprio da empresa, como unidade econômica, e o interesse geral da coletividade, deve o empresário sacrificar o interesse empresarial em prol do bem comum deixando, por exemplo, de aumentar os preços dos produtos ou serviços de primeira necessidade, sem estar a isso legalmente obrigado?

[...]

Na verdade, a idéia de as empresas serem obrigadas, de modo geral, a exercer uma função social ad extra no seio da comunidade em que operam, apresenta o vício lógico insanável da contradição. (COMPARATO, 1996, p.

128

44).

É preciso reafirmar que – à luz das lições de Comparato e sem esquecer das obrigações positivas, por exemplo dos direitos trabalhistas elencados no art. 7º da Constituição Federal, logo, da condicionante do modo de obter resultados que, por sua vez, geram dividendos, a empresa é uma “organização produtora de lucros” (COMPARATO, 1996, p. 44).

Retome-se o artigo 116 da Lei das S.A:

Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e

b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.

Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.

O parágrafo único do artigo 116 refere-se ao dever do acionista controlador atuar de modo a cumprir a função social da empresa. Embora não se chegue ao ponto de considerar que o aludido parágrafo nada mais seja do que um “exercício de retórica” (MUNHOZ, Eduardo apud CUNHA, p. 156-157), mas é fato que o referido dispositivo é carregado muito mais de uma noção ética do que jurídica. “Com efeito, o comando do parágrafo único do artigo 116, permeado de grandiloqüência, reveste-se de traço excessivamente genérico, emoldurando a conduta do acionista controlador com recomendações de ordem ética, mais do que jurídica” (GREBLER, 1993, p. 38).

Diante do impasse traduzido por Fabio Konder Comparato como “vício lógico insanável da contradição” (COMPARATO, 1996, p. 44) e o ideal de solidariedade trazido na Constituição Federal tanto quanto o fundamento na livre iniciativa, cabe perguntar: é possível resolver essa situação de maneira coerente com os

129

fundamentos econômicos e com os ideais de cooperação, sem que isso resvale para o assistencialismo empresarial, expressão cunhada por Marcio Tadeu Nunes (NUNES, 2007, p. 343)? Parece que sim.

As Parcerias Público-Privadas (PPP), trazidas pela Lei 11.079/04, parecem apontar nessa direção. As PPP, como já informa o art. 2º do diploma legal, são contratos administrativos de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa.

Art. 4o Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: I – eficiência no cumprimento das missões de Estado e no emprego dos recursos da sociedade; II – respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes privados incumbidos da sua execução; III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado; IV – responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias; V – transparência dos procedimentos e das decisões; VI – repartição objetiva de riscos entre as partes; VII – sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria.

Ou seja, cuidou a lei de fixar a indelegabilidade descrita no inciso III, mas, também, estabeleceu a repartição objetiva de riscos entre as partes, que pode chegar a 40% (quarenta por cento), conforme prevê a Portaria do Tesouro Nacional n. 614/2006.

As PPP, instituídas para que o Estado, através de tais parcerias, não se exima de seus deveres fundamentais, mas, ao mesmo tempo promova eficiência administrativa e otimização das vantagens do parceiro privado em uma atividade (certos serviços públicos) que, a rigor, possui reduzida taxa de retorno do investimento.

Em suma, as PPPs são um tipo de contrato que pode gerar eficiência microeconômica na provisão de determinados serviços públicos, cuja taxa de retorno privada é muito baixa e menor que a taxa de retorno social. Nesse sentido, desenhar uma institucionalidade que consiga minimizar os riscos fiscais envolvidos poderá trazer um ganho importante no sentido de incentivar investimentos privados em infra-estrutura pública de forma eficiente. (CAMARGO, 2004).

Curiosamente, na lei das PPPs não foi mantido dispositivo que constava de seu projeto original que estabelecia – no §2º do art. 12 – que a administração pública poderia adotar como critério de desempate a demonstração de responsabilidade

130

social por parte dos licitantes. A razão da não-permanência de tal dispositivo, foi a imprecisão conceitual do termo (SOUTO, 2006).

Essas questões acabam por evidenciar que é preciso haver uma maior intelecção por parte do Judiciário (e Legislativo também) no sentido de que a empresa não tem dentre seus objetos atuar de maneira supletiva ou mesmo complementar em relação ao Estado e que fundamentar restrições a sócios ou administradores com base numa suposta omissão em concorrer positivamente para o exercício da função social da empresa é, no mínimo, reforçar uma contradição sistêmica, ainda que num capitalismo de cooperação. Para que a empresa exerça sua função social, bastaria que a mesma perseguisse seus objetivos sociais sem abuso do direito de propriedade. Pressupor o abuso do direito e a má-fé é equivocado e não é demais lembrar que a presunção – ainda que relativa - é a da boa-fé para qualquer das partes em um dado litígio.

Assim, reafirmando o entendimento do alcance do conceito de função social da empresa às regras de abstenção (NUNES, 2007, p. 348) segue entendimento de Rodrigo Ferraz Pimenta da Cunha:

A busca pela sobrevivência econômica conduz, em nível macroeconômico, à convergência de resultados de interesses conflitantes nos planos inferiores. Sua concepção de extremo liberalismo deve ser sopesada, sobretudo em vista do Estado Democrático de Direito. De qualquer forma, seus princípios são fundamentais para o correto entendimento da noção de livre iniciativa e mercado. (CUNHA, 2007, p. 149).15

6.2 RISCOS PARA O ORDENAMENTO DECORRENTES DOS DESCOMPASSOS ENTRE APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ECONÔMICOS E SOCIAIS

Considerando a elevada carga tributária do Brasil16 e as freqüentes exceções ao princípio da limitação da responsabilidade, seja pelo Legislativo e, mais

15 Também neste sentido, v. SALOMÃO NETO, 1996, p. 158. 16 Estudo do Banco Mundial em conjunto com a PriceWaterhouseCoopers revela que 69,2% do lucro líquido das empresas de porte médio são consumidos por tributos. Disponível em: http://www.ibpt.org.br/home/publicacao.view.php?publicacao_id=2517&pagina=30 Acesso em: 14.02.08.

131

notadamente pelo Judiciário, posto que, através deste, tais exceções se operam muitas vezes ao alvedrio das normas processuais, como se viu anteriormente neste trabalho, mais notadamente nos capítulos 2 e 3 encerram os seguintes riscos para o ordenamento brasileiro:

(a) afugentamento de captação de investimentos nacionais e internacionais (COMPARATO apud NUNES, 2007, p. 28) propiciada pela insegurança gerada pela mitigação pouco criteriosa da limitação de responsabilidade;

(b) redução das taxas de crescimento de longo prazo do país. Conforme estudo conduzido pelo economista Armando Castellar, o PIB brasileiro cresceria potencialmente “a taxas 25% mais altas se a qualidade dos serviços prestados pelo judiciário evoluísse na direção de padrões de ‘Primeiro Mundo’”.

Ou seja, o mau funcionamento do judiciário reduz a taxa de crescimento do PIB em cerca de um quinto. É claro que essa é apenas uma medida aproximada. [...] Não obstante, esses valores deixam claro que o impacto do mau funcionamento da justiça sobre o crescimento econômico é significativo. (PINHEIRO, 2000, p. 188-189).

(c) há o risco de migração para atividades informais o que é temerário para um sistema supostamente capitalista, como se depreende da lição sempre atual de Ripert:

Desde um século, não são mais os homens que detêm as grandes posições do comércio e da indústria, forma eliminados pelas sociedades por ações. Nenhum fato é mais importante do que este para a compreensão do regime capitalista. (RIPERT, 1947, p. 59)

A relevância acima exposta, podemos estender, por analogia, às sociedades por quotas de responsabilidade limitada. (d) por fim, no tocante aos administradores, é esperado crescimento com gastos na contratação de seguros específicos para as atividades dos administradores. Como a modalidade de seguros D&O, que são os seguros feitos para sócios-administradores

132

ou diretores de empresas17 não cobre sinistros que envolvam riscos trazidos pela desconsideração da personalidade jurídica (NUNES, 2007, p. 360).

Ante o exposto neste capítulo espera-se ter chamado a atenção para a premente necessidade de se trazer harmonia – ainda que não isenta de tensão produtiva – entre os diversos princípios constitucionais e jurídicos que comunicam o ordenamento e que impactam a economia e, por conseguinte, os indicadores sociais do país.

17 D&O do inglês Directors and Officers.

133

7 CONCLUSÃO

Através de elementos históricos da limitação da responsabilidade, principalmente a partir do período medieval e das companhias marítimas, conclui-se que, malgrado entendimento em sentido diverso, a limitação da responsabilidade repousa – de maneira bastante significativa – sobre o fundamento econômico da limitação dos riscos dos sócios ou da socialização dos riscos.

Do contrário, os custos necessários para afastar o risco do empreendimento (motivado pelo animal spirits keynesiano), a exemplo dos custos de informação e de agência, acabariam por inviabilizar o investimento, por demais vultuosos e a economia, destarte, apresentasse crescimentos tímidos e, consequentemente, os indicadores sociais pudessem ser negativamente impactados por esse contido espírito empreendedor em uma sociedade em que os riscos do empreendimento tivessem o condão de – indistintamente – atingir de maneira ilimitada o patrimônio do sócio.

É claro que nos casos de fraude, simulação, atuação fora dos propósitos sociais a legislação, independente de qualquer expediente de desconsideração da personalidade jurídica, oferece remédios hábeis que implicam – a um só turno – atingir o patrimônio do agente da fraude, simulação ou outra prática ilícita sem com isso desprestigiar o princípio de preservação da empresa e, por conseguinte, o da livre iniciativa.

No que se refere aos administradores das sociedades, sejam limitadas, sejam anônimas, o Brasil – através de diversos diplomas legais – tratou de estabelecer causas de responsabilização direta dos mesmos, a exemplo da própria Lei das S/A, ainda que com algumas distorções no tocante à particularização das condutas, como ocorre na lei 6.024/74, que dispõe sobre a intervenção e liquidação extrajudicial das instituições financeiras, que acaba por objetivar – indevidamente - a responsabilidade dos administradores de tais instituições.

Entretanto, tais institutos e/ou remédios contra tais eventos, a exemplo da fraude,

134

dolo, simulação, teoria dos atos ultra vires ou responsabilidade direta positivada, seriam mais do que suficiente para buscar imprimir no ordenamento brasileiro um ambiente que não favoreça a “irresponsabilidade ilimitada” e que, ao mesmo tempo, busque acenar com certo grau de segurança jurídica e previsibilidade, necessárias à estabilidade institucional e, conseqüentemente, como se viu, econômica.

Apesar de tal contexto legal, o Brasil vem sendo pródigo na aplicação de teoria forjada no seio da common law apesar de ter sido sistematizada por jurista alemão: a teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou disregard doctrine. E, de maneira bastante incompreensível, à medida em que a teoria vem sendo criticada em seu berço (Estados Unidos), vem ganhando vulto nas mãos do legislativo e do Judiciário brasileiro, em contradição frontal, até mesmo, aos princípios originais da teoria que, resumidamente, tinha a fraude por elemento fundamental e a pessoa jurídica como obstáculo às pretensões creditórias de terceiros.

A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade acaba por trazer consigo, como visto, o desrespeito e inobservância de uma série de princípios e direitos de matriz constitucional e que inspiram preocupação: princípio da livre iniciativa, princípio da preservação da empresa, princípio do devido processo legal (incluídos a ampla defesa e o contraditório), da vedação de pena que ultrapasse a pessoa do condenado, etc.

Inspiram preocupação porque hoje tais princípios são indevidamente flexibilizados (sem esquecer da lição que não há princípios ou direitos absolutos) para proteger direitos creditórios. Amanhã poderão ser flexibilizados de modo a nos cercear a liberdade de ir e vir, de imprensa de expressão. Não se pode ser permissivo com esse tipo de mitigação desproporcional de princípios que são tão caros ao Estado Democrático de Direito.

A busca por justiça, através de ativismo judicial, no caso concreto que se dê em detrimento da certeza do direito já traz, em si mesma, uma teratologia que precisa ser evitada e, nesse sentido, contribuiria bastante que nossos juízes, após a esperada politização de questões pelo legislativo, não partisse da premissa que todo e qualquer empresário desfruta da presunção de má-fé.

135

Apesar disso tudo, não se pode fechar os olhos – e este trabalho não o fez – para o principal projeto em tramitação no Legislativo Federal que visa a regulamentação da aplicação da multicitada formulação teórica, de iniciativa do falecido deputado Ricardo Fiúza – o PL 2.426/2003-, proposto ante o açodamento da aplicação da disregard doctrine, do alargamento das hipóteses de aplicação, da inconveniência de se atribuir a todo e qualquer sócio ou administrador, mesmo os que não concorreram para a prática de atos fraudulentos, a responsabilidade por débitos da empresa.

O fundamento que não figurava no projeto e que a nosso ver é, de fato, essencial é que é preciso haver um convencimento de que a harmonização entre o que a lei societária determina em sede de responsabilização e o que os demais diplomas dizem precisa ser harmonizado. É inconcebível que o sistema tenha construído seus fundamentos societários em cima da limitação da responsabilidade, da autonomia das pessoas jurídicas e da distinção entre pessoa jurídica e sócio, para que – ao sabor da popularidade que tais medidas podem ensejar, outros diplomas venham estabelecer a quebra desse sistema até mesmo em situações que não tenha sequer havido fraude, a exemplo do que ocorre no tratamento que o Código de Defesa do Consumidor conferiu à teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Mais desarrazoado ainda é a extensão dos efeitos da desconsideração da personalidade jurídica para atingir a figura do administrador que não detenha participação societária na empresa que teve a personalidade desconsiderada. Como visto, os administradores possuem um regime especial de responsabilização fixado na lei societária que deve prevalecer sobre o regime geral fixado no artigo 50 do Código Civil.

O PL 2.426/2003 possui méritos relevantes, como o da necessidade de se indicar os atos abusivos praticados e os administradores ou sócios deles beneficiados, buscando trazer à superfície novamente a lição do exercício da demanda como um direito condicionado. Ademais, buscou assegurar o combalido contraditório, buscando harmonizar a ânsia de desconsiderar a personalidade jurídica com outros princípios constitucionais, além do que,.trouxe uma bem-vinda regra de

136

interpretação que veda o uso da analogia.

Entretanto, o projeto de lei em questão foi tímido no tocante à retificação dos excessos já cometidos preteritamente pelo legislador infraconstitucional, como no caso do Código de Defesa do Consumidor, na Lei do CADE, Lei 9.605/98 e outros diplomas legais. Entretanto não é um mal irremediável, podendo ainda o projeto sofrer emendas necessárias para corrigir tais distorções.

Além disso, seria extremamente salutar para o sistema que, além do uso dos remédios jurídicos já postos à disposição e que por eles próprios ensejariam a ociosidade prática da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, houvesse uma maior atenção dos magistrados ao papel desempenhado na economia pelo Judiciário.

Que fique claro que isso não representa que o Judiciário deva se ater aos critérios de eficiência econômica de maneira obstinada, mas seria importante entender a dimensão de seu papel, principalmente quando se considera que sua ineficiência pode representar um crescimento reduzido em 25%.

Entendemos que pode contribuir para essa mudança de cultura de exacerbado ativismo judicial, que acaba por politizar – onde não deveria – as questões judiciais, o entendimento, com o auxílio da psicanálise, de como sua atuação é enxergada como superego e, com isso, contribuir para um cenário de promoção não de uma cidadania verticalizada, pelas mãos protetoras desse Judiciário (e muitas vezes pelo Ministério Público), mas sim de maior imputação de responsabilidade aos indivíduos, genericamente considerados, e não apenas quando se tratar de empresas no banco dos réus.

Fechar os canais dessa necessária comunicação entre Direito e Economia será ignorar a importância que questões como Custo Brasil (bastante influenciado pela atuação do Judiciário) e Risco-Brasil (influenciado pelo Custo Brasil, logo, indiretamente influenciado pela atividade judicial) para o contexto jurídico, econômico e social brasileiro, ainda que se relativize, como se deve relativizar, tais

137

índices.

Além disso, é preciso não ter receios de se assumir um fato bastante lógico: a finalidade da empresa é o lucro. Condicionado, claro, seja às normas trabalhistas, tributárias, ambientais, mas, o objetivo primeiro da empresa é a perseguição do lucro e isso não deve ser objeto de constrangimento.

Na medida em que atende ao condicionamento acima, está, de maneira própria, executando sua função social, pela via da abstenção de causar prejuízos aos interesses da coletividade, não sendo cabível impor um assistencialismo empresarial ou uma filantropia compulsória, sob pena de fazer com que as empresas percam seu traço de “organização produtora de lucros”, como defendido neste trabalho. Afora essa abstenção, nos parece próprio indicar que as Parcerias Público-Privadas (PPP), são um outro modo de exercício de função social da empresa, de maneira mais positiva, mas, lembremos que, neste caso, os riscos são compartilhados com a administração pública em atendimentos aos preceitos da eficiência administrativa e, ao mesmo tempo, da otimização das vantagens do parceiro privado na prestação de serviços públicos que, sob outras condições, possuem taxa de retorno pouco ou nada atraente. Qualquer outra coisa fora dessas duas formas (abstenção ou PPPs) seria pressupor uma atuação supletiva ou complementar da empresa em relação aos deveres do Estado.

Insistir nessa atuação desconectada da realidade, que o Direito nem sempre consegue captar – seja através da produção legislativa, seja através da atuação dos magistrados, significa fechar os olhos para os riscos de afugentamento de captação de investimentos internos e externos, de redução das taxas de crescimento de longo prazo do país, de fluxo migratório para atividades informais; e elevação dos custos de contratação de seguros para administradores.

Pode-se dizer que a tônica deste trabalho é buscar evidenciar a necessidade de harmonização dos diversos institutos jurídicos entre si e destes com os aspectos econômicos.

É claro que, como também visto, os problemas do Judiciário não são sempre

138

originados de distorções do próprio Poder Judiciário. Há problemas que são francamente advindos de uma má-produção legislativa, mas acreditamos ter mais chances de sensibilizar – com esta produção - o Poder Judiciário do que o Legislativo. Estamos trabalhando, portanto, na ordem do possível ou do mais viável, e sem considerar que essa crença é utópica, mas – ainda que o seja – tanto melhor do que permanecer indiferente.

139

REFERÊNCIAS

ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção. A desconsideração da personalidade jurídica à luz do direito civil-constitucional: o descompasso entre as disposições do Código de Defesa do Consumidor e a disregard doctrine. 2003. Tese (Doutorado em Direito Civil) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Não publicada.

ALVES, Sandra Maria Geraldes; MARTINS, Julio Manuel dos Santos; FERREIRA, Carlos Manuel dos Santos. O efeito da estrutura de propriedade e das oportunidades de investimento na opção de acções - uma revisão de literatura. Disponível em: http:// dialnet.unirioja.es/servlet/fichero_articulo?codigo=2232578&orden=75044; Acesso em: 10.12.2007.

AMORIM, Manoel Carpena. Desconsideração da personalidade Jurídica.Revista da EMERJ, v. 2, n. 8, 1999.

ARANGIO-RUIZ, V. La società in Diritto Romano. Nápoles: Jovene, 1950.

ASCARELLI, Tullio. Iniciación al Estúdio del Derecho Mercantil. Barcelona: Bosch, 1964.

BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In: GIDDENS, A., BECK, U. & LASH, S.: Modernização Reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997.

BOLDÓ RODA, Carmen. El “levantamiento del velo” y la personalidad juridica de las sociedades mercantiles. 2 ed. Madrid: Tecnos, 1993.

BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Novo Código Civil. Silvio de Salvo Venosa, organizador. - São Paulo: Atlas, 2002.

BRASIL. Lei nº 6.404 de 15 de dezembro de 1976. Mônica Gusmão, organizadora. Rio de Janeiro: Roma Victor, 2002.

ALMEIDA, Antônio Pereira de. Estrutura Organizatória das Sociedades. In: Problemas do Direito das Sociedades. Reimpressão. Coimbra: Almedina, 2003.

BANCO MUNDIAL. Fazendo com que a Justiça Conte. Medindo e Aprimorando o

140

Judiciário no Brasil, 2004.

BARCELLOS, Ana Paula de; BARROSO, Luis Roberto. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios do direito brasileiro. Disponível em http://www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2003/arti_histdirbras.pdf #search=%22O%20int%C3%A9rprete%20e%20os%20limites%20de%20de%20sua %20discricionariedade.%20A%20moderna%20interpreta%C3%A7%C3%A3o%20co nstitucional%20envolve%20escolhas%20pelo%20int%C3%A9rprete%C%20bem%2 0como%20%22; Acesso em: 20/12/2007.

BARROSO, Luis Roberto. Princípio da legalidade. Delegações Legislativas. Poder Regulamentar. Repartição constitucional das competências legislativas. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 93, n. 337, p. 204-205, jan./mar. 1997.

______. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6 ed. São Paulo: Saraiva: 2004.

BARUCHEL, Natalhie. La Personnalité Morale em Droit Privé – Éléments pour une Théorie. Paris: LGDJ, 2004.

BIFANO, Elidie Palma. O custo tributário brasileiro: em busca de soluções. Disponível em: http://www.acionista.com.br/pwc/030407_elidie_palma.htm acesso em: 10.01.2008.

BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 8.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. V.1, 32. ed. rev. e atual. São Paulo: Globo, 1980.

CAENEGEM, R.C. van Uma Introdução Histórica ao Direito Privado 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol II. 7 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003.

______. Lições de Direito Processual Civil. Vol. III. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2000.

CAMARGO, José Marcio. PPP, Eficiência e Risco. Folha de S. Paulo. São Paulo,

141

03.11.2004.

CANCELLI, F. Società (Diritto Romano). In: AZARA, Antonio & EULA, Ernesto (Dir). Novíssimo Digesto Italiano. V. 17, Torino: UTET, 1970.

CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

CEOLIN, Ana Caroline Santos. Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

CHEVITARESE, L. & PEDRO, R. Risco, Poder e Tecnologia: as virtualidades de uma subjetividade pós-humana. In: Anais do Seminário Internacional de Inclusão Social e as Perspectivas Pós-estruturalistas de Análise Social. Recife: CD-ROM, 2005.

COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

______. Curso de Direito Comercial. Volumes I, II e III. 7, 9 e 4 edições, respectivamente. São Paulo: Saraiva, 2006.

______. Roteiro de Lógica Jurídica. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

COMPARATO, Fabio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

______. Direito Público: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1996.

COOTER, Robert; RUBINFLED, Daniel. Analysis of Legal Disputes and Their Resolution. Journal of Economic Literature, Chicago, v. 27, n.3, setembro, 1989.

CORDEIRO, Antonio Menezes. Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Anônimas. Lisboa: Lex, 1997.

CORNET, Roberto Julio; CAPDEVILA, Tomas. Los deberes de los administradores de las sociedades comerciales. In: VII CONGRESO ARGENTINO DE DERECHO SOCIETARIO Y III CONGRESO IBEROAMERICANO DE DERECHO SOCIETARIO Y DE LA EMPRESA – La sociedad comercial ante el tercer milênio, [ca. 2000], [Buenos Aires]. Anais [Buenos Aires]. [s.n], [ca. 2000], p. 168-177.

142

CORRÊA-LIMA, Oscar Brina. Sociedade Anônima. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

CORREIA, Luís Brito. Os Administradores de Sociedades Anónimas. Coimbra: Almedina, 1993.

COSTA, Paolo Enrique Spilotros. A Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. In: VIEIRA, Patrícia Ribeiro Serra (Coord.) Responsabilidade Civil Empresarial e da Administração Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

CUNHA, Rodrigo Ferraz Pimenta da. Estrutura de Interesses nas Sociedades Anônimas: hierarquia e conflitos. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

DELGADO, José Augusto. A desconsideração da pessoa jurídica e os seus reflexos na ordem tributária In TÔRRES, Heleno Taveira e QUEIROZ, Mary Elbe. Desconsideração da Personalidade Jurídica em Matéria Tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

DESAI, Mihir A. e DHARMAPALA, Dhammika. Corporate Tax Avoidance and firm value, 2005 Disponível em: http://www.papers.ssm.com/sol3/paers.cfm?abstract_id=689562, acessado em 20.12.2007.

DEZORDI, Lucas Lautert. Revista FAE Business, n 3, set/2002. Risco-Brasil: Mitos e Verdades. Curitiba: FAE Business School, 2002.

DIDIER JUNIOR, Fredie. Aspectos Processuais da Desconsideração da Personalidade Jurídica In: TÔRRES, Heleno Taveira e QUEIROZ, Mary Elbe. Desconsideração da Personalidade Jurídica em Matéria Tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

DI PIETRO, Maria Silvia Zanella. Direito Administrativo. 10 ed. São Paulo: Atlas, 1999.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

143

______. O Império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

______. Uma questão de princípio. Capítulo 5: Não existe mesmo nenhuma resposta certa em casos controversos? Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

EASTERBROOK, Frank H. & FISCHEL, Daniel R. Limited Liability and Corporation in The University of Chicago Law Review, Chicago: University of Chicago Law School, v. 89, 1985.

EISENBERG, Melvin Aron. Corporations and Other Business Organizations – Cases and Materials. 8. ed. Nova Iorque: Foundation Press, 1995.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. A Luz do Novo Código Civil Brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

FERRARA, Francesco. Tratatto di Diritto Civile Italiano. Turim: UTET, 1956.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994.

FERREIRA, Waldemar. Tratado das Sociedades Mercantis. Vol I, 5. ed., Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1958.

FURTADO, Jorge Henrique Pinto. Curso de Direito das Sociedades. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2004.

FUX, Luiz. Tutela de Segurança e Tutela de Evidência. São Paulo: Saraiva, 1996.

FERREIRA, Waldemar. Tratado das Sociedades Mercantis. 5. ed. Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1958.

GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. 9. ed. Campinas: Papirus, 1999.

GIANNETTI, Eduardo. Auto-Engano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005a.

144

GIANNETTI, Eduardo. O valor do amanhã: ensaio sobre a natureza dos juros. São Paulo: Companhia das Letras, 2005b.

GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 19. ed (rev., atual. e aum.). Rio de Janeiro: Forense, 2007.

______. Direitos Reais. 19. ed (rev., atual. e aum.). Rio de Janeiro: Forense, 2008.

GRAU, Eros Roberto; FORGIONI, Paula. O Estado, a Empresa e o Contrato. São Paulo: Malheiros, 2006.

GREBLER, Eduardo. A responsabilidade do acionista controlador frente ao acionista minoritário na sociedade anônima brasileira. Revista dos Tribunais, n. 694, ago. 1993.

GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Sociologia do Poder nas Sociedades Anônimas. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, ano XXIX, n. 77, p. 50-56, jan./mar. 1990.

HAMILTON, Robert W. Corporations. 4.ed. Saint Paul: West Group, 1997.

HERRING, Richard J. Managing International Risk. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

IBOPE. Confiança nas Instituições. Agosto de 2005.

JENSEN, M & MECKLING, W. Theory of the firm: Managerial Behavior, Agency Costs and Ownership Structure. Journal of Financial Economics. Amsterdã: North Holland, v. 3, 1976.

JORGE, Fernando Pessoa. Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil. (reimpressão). Coimbra: Almedina, 1999.

KAUFMANN, Pierre. Dicionário Enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

145

KIST, Ataides. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. São Paulo: LED, 1999.

LAMY FILHO, Alfredo. Temas de S.A. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

LAPLANCHE, J e PONTALIS, J.B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego, 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

LAZZARESCHI NETO, Alfredo Sérgio. Lei das Sociedades por Ações Anotada. São Paulo: Saraiva, 2006.

LUCCA, Newton. A responsabilidade civil dos administradores das instituições financeiras. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômica e Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 67, jul./set. 1987.

LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 5 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003 .

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

MARTINS, Pedro Baptista. O Abuso de Direito e o Ato Ilícito. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

MAUS, Ingeborg. Judiciário como Superego da Sociedade. O papel da Atividade Jurisprudencial na ‘sociedade órfã’. Trad. Martonio Lima e Paulo Albuquerque: Novos Estudos CEBRAP, nº 58. São Paulo, 2000.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.

MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Vol. II. Tomos II e III. Atualizado por NUCCI, Ruymar de Lima. Campinas: Bookseller, 2001.

146

MICHOUD, Leon. La Théorie de la Personnalité Morale: son aplication au Droit Français. Paris: LGDJ, 1924, 2V.

MONTANARI, Massimo. Impresa e Responsabilità. Sviluppo Storico e Disciplina Positiva. Milão: Giuffrè, 1990.

MORAES, Márcio André Medeiros. A desconsideração da Personalidade Jurídica no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: LTr, 2002.

NUNES, Marcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a Desconsideração da Personalidade Jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Sociedade Limitada. Campinas: LZN, 2003.

OLIVEIRA, José Lamartine Correa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979.

PARENTE, Flávia. O Dever de Diligência dos Administradores de Sociedades Anônimas. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

PASCHOAL, Tânia Negri. Sociedades Unipessoais. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 287, ano 80, jul./set. 1984.

PEIXOTO, Daniel. Responsabilidade dos Sócios e Administradores em Matéria Tributária. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE DIREITO TRIBUTÁRIO, XX, 2006, São Paulo. Revista de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2006.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. PINHEIRO, Armando Castelar (org). Judiciário e Economia no Brasil. São Paulo: Sumaré, 2000.

______. Magistrados, Judiciário e Economia no Brasil. In: ZYLBERSTAJN, Decio; STAJN, Rachel (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

RAMOS, Maria Elisabete Gomes. Responsabilidade Civil dos Administradores e Directores de Sociedades Anônimas perante os Credores Sociais. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.

ROCHA, Henrique Bastos. Concorrência e Responsabilidade Civil. In: VIEIRA,

147

Patrícia Ribeiro Serra (Coord.) Responsabilidade Civil Empresarial e da Administração Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

ROTHENBURG, Walter Claudius. A Pessoa Jurídica Criminosa In: Revista dos Tribunais, julho de 1995, vol. 717, p. 359.

SADEK, Maria Tereza (org.). Uma Introdução ao Estudo da Justiça. São Paulo: Sumaré, 1995.

SALOMÃO FILHO, Calixto. ‘Societas’ com Relevância Externa e Personalidade Jurídica. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo: Malheiros, a.30, n.81, 1991.

______. O Novo Direito Societário. 2. ed. reform., São Paulo: Malheiros, 2002.

SALOMÃO NETO, Eduardo. O Trust e o Direito Brasileiro. São Paulo: LTr, 1996.

SANTO, João Espírito. Sociedades por Quotas e Anônimas. Coimbra: Almedina, 2002.

SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Sistema do Direito Romano Atual. Vol. I, Ijuí: Unijui, 2004.

SCHMIDT, Karsten. Derecho Comercial. Buenos Aires: Astrea, 1997.

SILVA, Nogueira da; NAPOLEAO, Paulo. Breves Comentários à Constituição Federal. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

SILVA, Osmar Vieira da. Desconsideração da Personalidade Jurídica – Aspectos Processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Parcerias Público-Privadas. In: GARCIA, Flavio Amaral (Org.) Parcerias Público-Privadas. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, v. XVII, Rio de Janeiro, p. 46, 2006.

STIGLER, George J. Law or Economics? Journal of Law and Economics, Chicago, Outubro, 1992, v. 35, n. 2.

148

SUCH, José Maria Garreta. La responsabilidad civil, fiscal y penal de los administradores de lãs sociedades. 4. ed. Madrid: Marcial Pons, 1997.

TEJERA, Norberto L. Garcia. Persona Jurídica. Buenos Aires: Abeledo-Perrot. 1998.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo Cautelar, 4 ed. São Paulo: LEUD, 1980.

TOKARS, Fábio. Sociedades Limitadas. São Paulo: LTr, 2007.

TÔRRES, Heleno Taveira. Direito Tributário e Direito Privado. São Paulo: RT, 2003.

TÔRRES, Heleno Taveira. Regime tributário da Interposição de pessoas e da desconsideração da personalidade jurídica: os limites do art. 135, II e III, do CTN In TÔRRES, Heleno Taveira e QUEIROZ, Mary Elbe. Desconsideração da Personalidade Jurídica em Matéria Tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

VARIAN, Hal R. Microeconomia: princípios básicos. Rio de Janeiro: Campus, 1994.

VIANNA, Luiz Werneck et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997.

WARDE JUNIOR, Walfrido Jorge. Responsabilidade dos Sócios: a crise da limitação a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

WILLEMAN, Flavio de Araújo. A responsabilidade do Administrador Empresarial de Fato. In: VIEIRA, Patrícia Ribeiro Serra (Coord.) Responsabilidade Civil Empresarial e da Administração Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

WILLIAMSON, Oliver. Porque Direito, Economia e Organizações? In: ZYLBERSTAJN, Decio; STAJN, Rachel (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005;

ZANITELLI, Leandro Martins. Abuso da pessoa jurídica e desconsideração. In MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista

149

dos Tribunais, 2002.

ZUCCHI, Maria Cristina. Direito de Empresa São Paulo: Harbra, 2004.

ZULUETA, Francis de. The Institutes of Gaius. Volume 2, Oxford: Clarendon Press, 1953.

ZYLBERSTAJN, Decio; STAJN, Rachel (org). Direito & Economia: Análise Econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.